Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
210/11.5TAPBL.S1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: CONVERSÃO DA MULTA EM PRISÃO
PRISÃO SUBSIDIÁRIA
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
AUDIÇÃO DO DEFENSOR
AUDIÇÃO PRÉVIA
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 04/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DE POMBAL - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 49.º DO CP; ARTS. 61.º, N.º 1, AL. B), E 119.º, AL. C), DO CPP
Sumário: Enferma da nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea c), do CPP, o despacho que converte a pena, principal, de multa em prisão subsidiária, sem a audição prévia do condenado e do seu defensor.
Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo 210/11.5TAPBL da Comarca de Leiria, Instância Local de Pombal, Secção Criminal, J2, o arguido A... foi condenado pela autoria de dois crimes de falsificação p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alíneas a) e e) do Código Penal e de dois crimes de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217º, nº 1  218º, nº 1 do Código Penal, na pena única de 600 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, no montante de 3.000 euros.

A respectiva decisão transitou em julgado em 27.4.2015 e o arguido não procedeu ao pagamento da multa no prazo legal nem posteriormente, não justificou a falta de pagamento, não requereu a sua substituição por prestação de trabalho, como não foi possível a sua execução patrimonial.

O Ministério Público em 25.9.2015 promoveu a conversão da pena de multa em prisão subsidiária.

Em 1.10.2015, sem prévia audição do arguido e do seu defensor, foi proferido o seguinte despacho:

Nos presentes autos, por decisão datada de 05.06.2014 e transitada em julgado a 27.04.2015, foi o arguido A... condenado na pena única de 600 dias de multa, à taxa diária de € 5, no montante total de € 3.000,00, pela prática de dois crimes de falsificação, previsto e punido 256.º, n.º 1, alínea a) e e) do Código Penal, e pela prática de dois crimes de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, por referência ao disposto no artigo 202.º, al. a) do Código Penal.

O arguido não efectuou o pagamento voluntário da multa em que foi condenado, nem apresentou qualquer justificação para não o ter feito, não requereu o pagamento em prestações, nem requereu a sua substituição por trabalho.

Não lhe são conhecidos bens, o que inviabiliza a execução patrimonial - cfr. fls. 827.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do artigo 49°, nº 1 do Código Penal, "se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n º 1 do artigo 49º."

Uma vez que a multa não foi paga voluntariamente, nem é susceptível de ser cobrada coercivamente, determina-se que o arguido A... cumpra a pena de 400 (quatrocentos) dias de prisão subsidiária, que correspondem à pena de multa aplicada e não paga.

O arguido deve ser notificado com a informação que pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa em que foi condenada - artigo 49º, nº 2 do Código Penal e artigo 100º do Código das Custas Judiciais.

Nos termos do artigo 491 º-A do Código de Processo Penal, deve o arguido ser notificado que, por cada dia de detenção, será descontado o montante de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos) à pena de multa.

Notifique.

Após trânsito, emitam-se os competentes mandados de detenção para cumprimento da prisão subsidiária.

No mais, como se promove.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. Violação do art.º 13.º n.º 2 da CRP:

O recorrido despacho considera que uma vez que o arguido não possui., comprovadamente, possibilidades económicas para pagar a multa que lhe foi arbitrada, deve esta ser cumprida na modalidade de pena de prisão, no cumprimento do disposto no art.º 49. 0 do Código Penal.

2. Inconstitucionalidade material do art.º 49.ºn.º 1 do Código Penal:

O art.º 49.º n.º 1 do CP, na sua atual redação, encontra-se ferido de inconstitucionalidade material, uma vez que possibilita o cumprimento de pena de prisão a quem não tenha possibilidades económicas para pagar a pena de multa, como é o caso do arguido.

3. O art.º 49.º n. º 1 do Código Penal, interpretado como o fez o recorrido despacho (possibilitando a aplicação de pena de prisão apenas por o arguido não ter dinheiro para pagar a multa no valor de 3000€, viola o disposto no art.º 13.º n.º 2 da Constituição da República. E por tal razão deve ser declarado materialmente inconstitucional.

4. A inconstitucionalidade material da citada norma deriva do facto de conter em si mesmo um arbítrio, qual seja o de poder obrigar um cidadão com menos posses económicas a ter de suportar a prisão (no caso, mais de uma no), enquanto que a outro cidadão, apenas por ter mais posses e pagar a mencionada multa ( de valor elevado "in casu" 3000€) tal procedimento já não ter aplicação.

5. O que o douto Ac do TC n.º 270/09 veio realçar ao afirmar que: "à luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico" cfr ainda, fazendo uma importante síntese da jurisprudência, o Ac. do TC. nº 232/03.

6. De facto, na proibição de arbítrio, não está apenas em causa a vertente negativa do princípio da igualdade, isto é, a determinação dos casos em que merece censura constitucional o estabelecimento, por parte do legislador, de diferenças de tratamento entre as pessoas. Pelo contrário "a proibição do arbítrio exige ainda tratamento diferenciado, mas proporcionado, de situações que, no plano fáctico, surjam como diversas" (Ac. Do TC n.º 96/05).

7.0ra, "in casu", o preceito em causa, aplicado na dimensão normativa em que o foi, encontra-se por isso ferido de inconstitucionalidade material.

Vossas Excelências contudo, exercerão a acostumada Justiça!

Notificado, o Ministério Público não respondeu ao recurso.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer do seguinte teor:

Contrariamente ao que devia ter sido ordenado, o arguido não foi notificado para se pronunciar sobre as razões do não pagamento da multa e sobre a pro­moção do M º P º (em obediência ao princípio do contraditório).

Como não efectuou o pagamento da pena de multa e desconhe­cendo-se a existência de bens susceptíveis de penhora, o Tribunal a quo, sem ouvir o ar­guido, ou notificá-lo para se pronunciar, ordenou o cumprimento da pena de 400 dias de prisão subsidiária (art. 49 º, n ° 1 do Cód. Penal) - fls. 833 e 834.

É desta decisão que recorre o arguido, A... , a fls. 845 a 849, defendendo a anulação do despacho, que ordenou o cumpri­mento da pena de prisão, por defender que o entendimento perfilhado é inconstitucional, por violação do art. 13 º, n º 2 da Constituição da República Portuguesa.

Afigura-se-nos não assistir razão ao Recorrente, ao optar por mera impugnação do despacho recorrido, com base na violação do art. 13º, n º 2 da C.R.P. (vio­lação do princípio da igualdade e da não descriminação em razão de condições económicas).

Porém, pode assistir razão ao Recorrente, no que concerne à anu­lação do despacho recorrido e ao ter sido decidido, quase automaticamente, o cumprimento da pena de prisão subsidiária, mas por outra razão, ou seja, por não ter sido ouvido o ar­guido, ou notificado para se pronunciar (ele e/ou o seu Advogado) sobre a promoção do M º P º e sobre as razões do não pagamento da multa.

Ao não se ter procedido da forma referida, nos pontos 3 d) e 3 g) des­te parecer, afigura-se-nos ter sido violado o princípio do contraditório, devendo anular-se o douto despacho recorrido e ordenar-se seja ouvido o arguido ou notificado o mesmo e o seu Advogado, para se pronunciarem, sobre a promoção do M º P º, de fls. 832, e sobre as razões do não pagamento da multa.

Sobre questão idêntica têm sido proferidos alguns acórdãos dos Tribunais da Relação, tais como:

-Acórdão, de 19/05/2014, do Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n º 355/12.4GCBRG-A.Cl, in Colect. Jur. n º 255, Ano XXXIX - Tomo III - 2014, pág. 339:

"III - A decisão que converte a pena de multa em prisão subsidiária tem que ser precedida da audição do arguido, para se pronunciar sobre as razões do não pagamento, mas tal audição não tem que ser presencial".

- Acórdão, de 19/12/2013, do Tribunal da Relação de Évora, in Col. Jur. n º 250, Ano XXXVIII -Tomo V -2014, pág. 323:

"I - A violação do dever de pagamento da pena de multa tem de assumir certa gravidade; A lei exige uma violação culposa; É necessário que não haja qualquer dúvida que o condenado não cumpriu, intencional ou culposamente.

II - Ao julgador impõe-se um poder-dever de obter todos os elementos para avaliar a causa que determinou o incumprimento e tomar uma das medidas do artigo 49 º do Cód. Penal ".

Pelas razões expostas, somos de parecer dever ser anulada a decisão recorrida e ordenada a notificação do arguido, ou a sua audição, para se pronunciar sobre a promoção do M º P º e as razões de não pagamento da multa.

Procedeu-se a exame preliminar e foram cumpridos os demais trâmites legais com realização de conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II. Apreciação do Recurso

Como é sabido, o âmbito do recurso delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 e nº 2 do Código de Processo Penal). 

Confrontadas as conclusões do recurso interposto e acima transcritas, verificamos que a única questão suscitada pelo recorrente consiste em saber se a interpretação do artigo 49º, nº 1 do Código Penal no sentido de permitir o cumprimento de pena de prisão a quem não tenha possibilidades económicas viola o disposto no artigo 13º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

A questão que se impõe previamente ao conhecimento deste Tribunal é a suscitada no seu douto parecer pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto; a da nulidade da decisão recorrida por não ter sido precedida da possibilidade de contradição.

Com efeito, nos termos do artigo 410º, nº 2 em conjugação com o artigo 119º (corpo), antes de mais o Tribunal de recurso deve conhecer de nulidades que não devam considerar-se sanadas, como é o caso das nulidades qualificadas como insanáveis no último preceito citado e que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento.

Como já ficou exarado no antecedente relatório, a decisão recorrida foi proferida logo após a promoção do Ministério Público, sem que o arguido e o seu defensor tenham sido ouvidos e tido a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento do Ministério Público e as razões do não pagamento da multa.

O artigo 61º do Código de Processo Penal que enuncia os direitos e deveres processuais do arguido é expresso, no seu nº 1, alínea b), no sentido de que o arguido tem o direito de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, não suscitando qualquer dúvida que a conversão de multa em prisão é decisão que pessoalmente afecta o arguido.

Acresce que o cumprimento de prisão subsidiária não é consequência inevitável por via do não pagamento da multa, não requerimento da sua substituição por trabalho e impossibilidade da sua execução patrimonial, podendo o arguido provar que a razão do não pagamento lhe não é imputável e requerer a sua suspensão, como se prevê no artigo 49º, nº 3 do Código Penal, questão a decidir no despacho de conversão da prisão em multa, se suscitada, o que mais acentua a necessidade de contraditório prévio.

Ou seja, a decisão recorrida não podia ser tomada sem que antes o arguido pessoalmente e também o seu defensor (como resulta do disposto no artigo 113º, nº 9 do CPP) fossem notificados para se pronunciarem sobre a possibilidade da conversão da pena de multa em prisão.

Ainda que a lei ordinária não fosse expressa neste sentido, sempre tal decorria do disposto no artigo 20º, nº 4 da Constituição quando se refere ao direito a processo equitativo cuja noção é avessa a decisões surpresa, tomadas sem prévia possibilidade de contradição. O mesmo se diga do artigo 32º, nº 1 da CRP quando determina que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa.

A violação do disposto no artigo 61º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal integra a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea c) do mesmo diploma “ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência” que entendemos tanto se referir à ausência física quando deva ser convocado para comparecer, como também à ausência processual, quando deva ser convidado a pronunciar-se no processo e tal convite não tenha sido feito.

A nulidade deverá ser sanada através da prática do acto processual omitido nos termos do artigo 122º do Código de Processo Penal.

Cremos que a jurisprudência tem sido unânime sobre a consequência da preterição do contraditório no caso em apreço, divergindo apenas quanto à qualificação do vício (que alguns integram no artigo 120º, nº 2, alínea d) do CPP ou no artigo 123º do mesmo diploma) citando-se a título exemplificativo os acórdãos desta Relação de 17.2.2016, proc. nº 155/06.0PBLMG.C1, de 25.6.2014, proc. nº 414/99.7TBCVL-B.C1 e de 16.3.2016, proc. nº 243/12.4GCLRA.C1, da Relação do Porto de 19.1.2011, proc. 662/05.2GNPRT-A.P1, da Relação de Lisboa de 15.3.2011, proc. nº 432/08.6POLSB.L1-5 e de 9.7.2014, proc. nº 350/09.0PDALM-9, da Relação de Guimarães de 23.3.2009, proc. nº 36/00.1IDBRG.G1 e de 24.1.2011, proc. 1662/08.6PBGMR-A.G1, da Relação de Évora de 3.2.2015, proc. nº 252/12.3GBMMN.E1 e de 2-2-2016, proc. nº 1013/09.2PALGS-A.E1.

Merece provimento o recurso, embora por razões diversas das alegadas, tornando-se despiciendo conhecer do alegado sobre o mérito do despacho recorrido, posto que declarado nulo.


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III. Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos acordam em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência, declarar nulo o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que ordene a notificação do arguido e do seu defensor para se pronunciarem sobre as razões do não pagamento da multa e sobre a possibilidade de ser substituída por prisão subsidiária, como promovido.

Não há lugar a tributação em razão do recurso.


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Coimbra, 20 de Abril de 2016

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora; a primeira signatária)



(Maria Pilar Pereira de Oliveira - relatora)

(José Eduardo Fernandes Martins - adjunto)