Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8/16.4IDCBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: CONEXÃO DE PROCESSOS
CONEXÃO SUBJECTIVA
CONEXÃO OBJECTIVA
Data do Acordão: 11/25/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 24.º, N.º 1, DO CPP
Sumário: I – Tendo sido instaurados vários processos relativos a diversas infracções criminais, aqueles podem ser julgados em conjunto se se verificarem as condições previstas em qualquer uma das alíneas do n.º 1 do art. 24.º do CPP.

II – Prevê essa norma a conexão subjectiva e objectiva de processos. Verifica-se a primeira, quando os crimes são cometidos pelo mesmo agente, e a segunda, quando os diversos ilícitos, praticados por vários agentes, estão, entre si, interligados.

III – Estando o arguido acusado por ter perpetrado uma multiplicidade de factos em nome e no interesse de dois entes colectivos, os dois crimes de abuso de confiança fiscal (um deles na forma continuada, agravado) que lhe são imputados – cada um deles em processo autónomo –, não decorrem da mesma acção ou omissão, ficando, deste modo, afastada a aplicação da al. a) do n.º 1 do artigo 24.º do CPP.

IV – Por outro lado, não existe nenhum nexo que justifique, por via do disposto na al. e) do n.º 1 do art. 24.º do CPP, a apensação dos dois processos para julgamento conjunto, porquanto os episódios de vida narrados na acusação/despacho de pronúncia proferidos num e noutro não revelam a existência de qualquer relação de reciprocidade.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em Conferência na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. Por despacho proferido em 17 de outubro de 2019, o Tribunal a quo indeferiu a apensação aos presentes autos do processo nº 72/17.9IDLSB, requerida pelo arguido S..

2. Não se conformando com esta decisão dela recorre o arguido, concluindo como segue:

A O despacho objecto do presente recurso, através do qual o Tribunal a quo indeferiu o pedido formulado pelo Recorrente no sentido do reconhecimento e determinação da conexão entre o Processo em epígrafe e o Processo n.º 72/17.9IDLSB do Juízo Criminal de Cascais (Juiz 3) padece de erro de julgamento.

B. Relativamente ao Processo em epígrafe e ao Processo n.º 72/17.9IDLSB, verificam-se as seguintes circunstâncias:

a. Encontra-se ambos, simultaneamente, na mesma fase processual, na fase de julgamento;

b. Em ambos, o Recorrente deverá ser julgado pela prática que lhe é imputada pelo Ministério Público de crimes de abuso de confiança fiscal, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 105.º do RGIT;

c. Relativamente aos concretos imputados crimes existe uma ligação tal que faz presumir que o esclarecimento de todos será mais fácil ou completo quando processado conjuntamente;

d. De acordo com as imputações que são feitas, tais crimes serão causa e efeito uns dos outros;

e. Com carácter homogéneo;

f. Os crimes imputados terão sido cometidos em períodos temporais próximos, a saber: o segundo e o quarto trimestre de 2015 e os meses de julho e agosto de 2016;

g. Será, porventura, defensável a verificação de uma prática subsequente;

h. De acordo com as acusações, até se coloca a hipótese, de estarmos perante um crime praticado sob a forma continuada;

i. O Ministério Público alega estar em causa a realização plúrima do mesmo tipo de crime, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior – o que tudo faria diminuir consideravelmente a culpa do agente; e

j. Existirá sempre o interesse do Estado ou da ordem jurídica no julgamento conjunto, e também o interesse ponderoso e atendível do Recorrente na concretização da apensação dos processos – desde logo o de evitar plúrimas e eventualmente diferentes decisões sobre os mesmos factos, em abono dos princípios da unidade do sistema, da segurança jurídica e do ne bis in idem.

C. Entre o Processo em epígrafe e o Processo n.º 72/17.9IDLSB verificam-se os requisitos / pressupostos de conexão objectiva e subjectiva previstos no artigo 24.º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 2 do CPP.

D. Apesar de que no Processo em epígrafe estarão em causa factos imputados ao Recorrente na qualidade de legal representante da F., Lda., e que no Processo n.º 72/17.9IDLSB estarão em causa factos imputados ao Recorrente na qualidade de legal representante da T., S.A, o certo é que, em ambos os processos figura como arguido, acusado e pronunciado o Recorrente, a quem é imputada a prática de, exactamente, o mesmo crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 105.º do RGIT, relativamente a duas sociedades que tiveram relações comerciais entre as mesmas, as quais, alegam as acusações proferidas em ambos os processos, e ainda a acusação, a decisão instrutória e o acórdão final proferidos no Processo n.º 189/12.6TELSB integrariam um universo de sociedades geridas e detidas pelo Recorrente.

E. Os factos imputados ao Recorrente, no Processo em epígrafe e no Processo n.º 72/17.9IDLSB, alegadamente, se terão verificado em períodos temporais imediatamente subsequentes, a saber: o segundo e o quarto trimestre de 2015 e os meses de julho e agosto de 2016.

F. Pelo que, deveria o Tribunal de 1ª Instância, em lugar de escudar-se em argumentos de carácter formal e de solidez discutível, ter atendido, em primeiríssimo e principal lugar, ao legítimo interesse do Recorrente na concretização da apensação dos processos para evitar plúrimas e eventualmente diferentes decisões sobre os mesmos factos, em abono dos princípios da unidade do sistema, da segurança jurídica e do ne bis in idem, interesse esse que deveria sempre prevalecer sobre qualquer pretensa e, in casu, infundada necessidade de celeridade processual, não existindo, como não existe, qualquer risco para a pretensão punitiva do Estado.

G. Ao indeferir o pedido de apensação formulado, pelo Recorrente, incorreu o Tribunal a quo em erro de julgamento por errada / limitativa interpretação da previsão do artigo 24.º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 2 do CPP; também por violação do direito do Recorrente a um único julgamento por todos os factos que lhe são imputados nos dois processos em causa e, em definitiva, por violação das garantias e direito de defesa do arguido, consagrados legal e constitucionalmente, mormente no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República e no artigo 6.º, n.º 3 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, do direito de acesso ao Direito e aos Tribunais, garantido no artigo 20.º, n.º 1 da Lei Fundamental e do direito a um processo equitativo com abrigo constitucional, concretamente, no n.º 4, parte final, do citado artigo 20.º da Lei Fundamental e também no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no artigo 6.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e no artigo 47.º, segundo parágrafo da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; preceitos estes todos os quais são directamente aplicáveis, vigoram na ordem jurídica interna e vinculam a todas as entidades públicas e privadas, por força do disposto nos artigos 8.º e 18.º, ambos da Constituição da República.

 

3. O Ministério Público, em primeira instância, respondeu à motivação do Recorrente, concluindo pela improcedência do Recurso.

4. O Digno Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

5. Cumprido o artigo 417º, do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais não obsta ao conhecimento de mérito.

II. DESPACHO RECORRIDO

Da apensação de processos (fls. 795 a 797 - refª 4926832, de 05/04/2019):

Compulsada a certidão extraída dos autos com o n.º 72/17.9IDLSB, contendo cópia da acusação, auto de notícia, despachos de recebimento da acusação e agendamento/adiamento da audiência, constata-se que, não obstante sejam da mesma natureza, os agentes não são os mesmos, nem foram praticados através da mesma acção/omissão, e menos ainda na mesma ocasião ou lugar – cfr. alíneas a) e b) do art. 24º do CPP.

Com efeito, enquanto nestes autos se encontra pronunciada pela prática, cada um, de um crime continuado de abuso de confiança fiscal agravado (por factos atinentes à não entrega das quantias de €183.530,97 e €11.761,76 de IVA, no período referente ao segundo e quarto trimestres do ano de 2015) a sociedade arguida: F., Lda., NIPC (…), com sede à data dos factos na Rua (…), Lote (…), nº (…), Letra (…), em (…) e actualmente na Rua (…), freguesia das (…); e bem assim o arguido S., enquanto seu legal representante; já no Proc. nº 72/17.9IDLSB encontra-se acusada pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal uma diferente sociedade comercial: a “T., S.A.”, sociedade anónima, pessoa colectiva n.º (…), com sede na Avenida (…), n.º (…), (…), da qual S. também será também legal representante. Aliás, esta sociedade anónima “T, S.A.”, tem sede actual na Rua (…), n.º (…), (…) e, à data dos factos abaixo descritos, na Rua (…), n.º (…), Bloco (…), Letra (…), em (…) (por factos respeitantes a Julho e Agosto de 2016, em que a sociedade arguida está acusada de ter recebido dos seus clientes IVA no valor de, pelo menos, € 62.619,11 - período 2016/07- e € 61.386,75 -período 2016/08 -, e que os arguidos não fizeram acompanhar a declaração que enviaram do respectivo meio de pagamento, ainda que parcial).

Nestes termos, ainda que se condescendesse que se verificaria alguma das situações de conexão objectiva previstas nas alíneas a) e b) e 2, do art. 24º, nºs1, do CPPenal – e que se entende não existir – também é certo que tal conexão há muito que já deveria ter sido atendida (e não foi) e determinada a apensação dos mesmos.

Ademais, perfilhando a posição do MP, entende-se que em face da data da prática dos factos objecto destes autos e dos autos n.º 72/17.9IDLSB ainda que se verificassem os invocados pressupostos da conexão objectiva de processos (que não se verificam), sempre a apensação dos processos retardaria excessivamente o julgamento dos arguidos, incluindo o requerente S., e representaria um grave risco para a pretensão punitiva do Estado.

Nestes termos, indefere-se a requerida apensação processual».

III. ACTOS RELEVANTES PARA A DECISÃO

Nos autos principais, os arguidos F., Lda. e S. foram acusados e pronunciados pela prática de um crime continuado e abuso de confiança fiscal agravado, previsto e punido pelo artigo 7º, nº 1 e 3, 16º- g e 105º, nº, 1, 4 e 5, do RGIT, porquanto:

No segundo e quarto trimestre do ano de 2015, a sociedade arguida, por intermédio do Recorrente, recebeu as quantias de 183 530,00€ e 11 761,76€ de IVA que não entregou ao Estado, como devia.

No processo nº 72/17.9IDLSB, o Recorrente e T., SA foram submetidos a julgamento pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal previsto e punido pelo artigo 105º, nºs 1 e 5, do RGIT, em conjugação com o artigo 6º, do mesmo diploma, porquanto:

A sociedade arguida recebeu dos seus clientes IVA, nos meses de julho e agosto de 2016, pelo menos, no valor de 62 619,11€ e 61 386,75€, respectivamente, quantia que não entregou ao Estado atempadamente.  

Cada um destes processos está na fase de julgamento, o primeiro, no Juízo Local de Criminal de Coimbra e o segundo, no Juízo Local Criminal de Cascais.

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Cinge-se o Recurso à questão de saber se estão reunidos os pressupostos de conexão entre estes autos e o processo nº 72/17.9IDLSB, como defende o Recorrente.

Decidindo:

Como é sabido, no plano processual penal, a cada crime corresponde um processo e um julgamento, para o qual é competente o tribunal definido, em função das regras da competência [cf., entre outros, na doutrina, Cavaleiro Ferreira, Lições de Processo Penal, 1985-1986 e Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, 1º, volume e na jurisprudência, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.10.2004 e do Tribunal da Relação da Lisboa, de 19de Outubro de 2010 (in www.dgsi.pt)].

Esta regra sofre, contudo, excepções, permitindo o legislador que em determinados casos, seja organizado um só processo para uma pluralidade de crimes, desde que entre eles exista uma ligação que torne conveniente para a melhor realização da justiça que todos sejam apreciados conjuntamente.

As vantagens de atribuir a um mesmo tribunal (ou juiz) a possibilidade de julgar os casos em que vários crimes eram cometidos pela mesma pessoa ou por várias pessoas foram sendo reconhecidas, paulatinamente, ao longo do tempo, remontando - como explica José Lobo Moutinho, in a Competência por conexão no Novo Código de Processo Penal, 1992, Direito e Justiça - Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa - ao direito Romano, estando presentes nas Ordenações, nas Reformas Judiciárias do século XIX e no Código de Processo Penal de 1929.

A organização de um só processo para o julgamento conjunto de uma pluralidade de crimes,  reflectindo-se na alteração da competência do tribunal com o afastamento o principio do juiz natural,  justifica-se, não só por razões de economia processual, mas também, da boa administração da justiça penal (juntando processos conexos será provavelmente mais esgotante a produção probatória e respetiva cognição), o prestígio das decisões judiciais (minorando o perigo de uma pluralidade de decisões sobre infrações conexas se contradizerem materialmente)   e a vantagem dela advinda para o agente, que, julgado conjuntamente, pelos diversos crimes, vê a sua situação jurídico-penal unitariamente definida. - (cf. Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado, anotação ao artigo 24º e Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 210).

A conexão de processos para julgamento conjunto de vários crimes, regulada na Secção III, Capitulo II, Titulo I, do primeiro Livro da Primeira Parte do Código de Processo Penal, está correlacionada com a competência do tribunal, dependendo da existência vários crimes com uma concreta ligação – subjectiva (o mesmo agente) ou objectiva (vários crimes) -  a justificar a unificação de julgamento por um só tribunal.

A este propósito, dispõe o artigo 24º, nº 1, do Código de Processo Penal:

Há conexão de processos quando:

a) O mesmo agente tiver cometido vários crimes através da mesma acção ou omissão;

b) O mesmo agente tiver cometido vários crimes, na mesma ocasião ou lugar, sendo uns causa ou efeito dos outros, ou destinando-se uns a continuar ou a ocultar os outros;

c) O mesmo crime tiver sido cometido por vários agentes em comparticipação;

d) Vários agentes tiverem cometido diversos crimes em comparticipação, na mesma ocasião ou lugar, sendo uns causa ou efeito dos outros, ou destinando-se uns a continuar ou a ocultar os outros; ou

e) Vários agentes tiverem cometido diversos crimes reciprocamente na mesma ocasião ou lugar.

Daqui resulta que, tendo sido instaurados vários processos por várias infracções criminais, aqueles podem ser julgados em conjunto, se se verificarem as condições exigidas para que sejam conexionados, prevendo-se, do ponto de vista processual, uma conexão subjectiva – quando os crimes tenham sido cometidos pelo mesmo agente –  e uma conexão objectiva – quando os vários crimes praticados por vários agentes estão, entre si, interligados.

A conexão opera, assim, quando o agente cometeu vários crimes através da mesma ação ou omissão, ou, quando os crimes hajam sido praticados pelo mesmo agente, na mesma ocasião ou lugar e entre eles houver um relacionamento recíproco.

Em qualquer uma das hipóteses anteriormente descritas, «a conexão subjetiva é penetrada por uma dimensão objetiva, atinente à materialidade dos delitos objeto de indagação, reveladora de uma estreita ligação substancial entre todos eles que torna particularmente desejável o seu conhecimento pelo mesmo tribunal num mesmo processo». [Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal – Texto de apoio ao estudo da unidade curricular de Direito e Processo Penal do Mestrado Forense da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - pág. 56].

Dito isto;

No âmbito dos presentes autos, o arguido (ora recorrente) S. e a sociedade arguida “F., Lda.” [com sede, à data de interesse, em (…)], da qual o primeiro era, à data dos factos, gerente, foram pronunciados pela prática, cada um, de um crime continuado de abuso de confiança fiscal agravado, previsto e punido nos artigos 7.º, n.ºs 1 e 3, 16.º, alínea g) e 105.º, n.ºs 1, 4 e 5, todos do R.G.I.T., com referência aos artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, ambos do Código Penal, em virtude da não entrega, à Autoridade Tributária, das quantias de € 183.530,97 e € 11.761,76 de I.V.A., no período temporal correspondente aos segundo e quarto trimestres do ano de 2015. (fls. 2 a 11).

No âmbito do Processo n.º 72/17.9IDLSB, o arguido (ora recorrente) S. foi acusado, juntamente com a sociedade arguida “T., S.A.” [com sede, à data de interesse, em (…)], da qual era, à data dos factos, administrador, da prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido nos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1 e 5, do R.G.I.T. em virtude da não entrega, à Autoridade Tributária, das quantias de € 62.619,11 e € 29.944,34 de I.V.A., no período temporal correspondente aos meses de julho e agosto de 2016 (cf. certidão emitida pelo Tribunal de Cascais em 24 de Junho de 2019)

Diante dos factos imputados ao arguido S., num e noutro processo, não vislumbramos, como se podem enquadrar nas alíneas a) e b), do nº 1, artigo 24º, do Código de Processo Penal.

No que toca ao cometimento dos dois crimes através da mesma acção e omissão, diga-se, como e bem refere a Digna Procuradora na Resposta ao Recurso que, pese embora o ora recorrente surja como agente dos ilícitos acusados em ambos os processos, o mesmo actua enquanto representante legal de duas sociedades distintas, concomitantemente acusadas.

Tal resulta do principio da responsabilidade penal cumulativa (paralela para outros, Gonçalo de Melo Bandeira, Responsabilidade Penal Económica e Fiscal dos Entes Coletivos) das pessoas colectivas, designadamente das sociedades e dos seus administradores e representantes, decorrente dos artigos 6º e 7º, do RGIT, em que a responsabilidade penal da sociedade não exclui a responsabilidade individual das pessoas singulares, que agiram em nome e no interesse daquela.

A imputação do mesmo ilícito penal recai, assim, sobre a sociedade (ente colectivo), pelos actos que os seus legais representantes e, nesta qualidade, em nome daquela praticaram e sobre as pessoas singulares, despidas daquela veste estatutária.  

Pelo que, sendo o Recorrente acusado por ter praticados factos diferentes em nome e no interesse de sociedades distintas, os dois crimes de abuso de confiança fiscal (um deles agravado na forma continuada) que lhe são imputados não decorrem da mesma acção ou omissão, ficando, assim, afastada a aplicação da alínea a), do nº 1, do citado artigo 24º.

De igual modo, não se vislumbra, nem o Recorrente indica, de que modo os factos que terão ocorrido na comarca de Cascais são efeito dos factos que terão sido praticados na Comarca de Coimbra, ou como é que aqueles se destinam a continuar ou a ocultar estes (artigo 24º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal).

Ademais, revendo-nos nos argumentos da Digna Procuradora, é de salientar que os factos, objecto dos presentes autos, dizem respeito a sociedade que, à data, tinha sede nesta cidade de (…), estando aqui em causa período temporal balizado nos segundo e quarto trimestres do ano de 2015.

Por seu turno, o objecto do Processo n.º 72/17.9IDLSB incide sobre factos relativos à sociedade que, à data, tinha sede em Cascais, relevando o período temporal correspondente aos meses de julho e agosto de 2016.

Por outro lado, decorre da comparação do despacho de pronúncia proferido nos presentes autos e da acusação deduzida no processo nº 72/17.9IDLSB, que a imputação ao Recorrente do crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, apenas respeita às duas acções ilícitas que terão ocorrido no segundo e quarto trimestres do ano de 2015, no seio da sociedade “F., Lda.”, sem qualquer ligação com o crime de abuso de confiança fiscal por factos alegadamente praticados nos meses de julho e agosto de 2016, no seio da sociedade “T., S.A.”.

As relações comerciais estabelecidas pelas duas sociedades que, segundo o Recorrente integrariam, um universo de sociedade por si geridas, não justificam, por si só, o interesse da realização de um julgamento conjunto, sendo certo que, tratando-se de factos autónomos e com sujeitos processuais diferentes não se anteveem plúrimas decisões sobre os mesmos factos.

Em suma, não existe qualquer nexo que justifique a apensação de processos para julgamento conjunto, quando os episódios de vida narrados na acusação e despacho de pronúncia proferidos nos presentes autos e na acusação do Processo n.º 72/17.9IDLSB não revelam qualquer relação de reciprocidade nos crimes cometidos (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/10/2016, Processo n.º 135/16.8YREVR, Relator Fernando Ribeiro Cardoso).

Por último, é de realçar a inconveniência da apensação do Processo que corre termos em Cascais, por retardamento do julgamento nos presentes autos.

Bem andou, assim, o tribunal a quo ao indeferir o pedido de apensação dos Processos em apreço.

Tal decisão aplicou correctamente a lei, sem qualquer reflexo ao nível da ofensa às garantias e direitos de defesa do recorrente e bem assim ao seu direito de acesso à justiça e a um processo equitativo.

Não se mostram violados quaisquer disposições legais, princípios da Lei Fundamental ou de direito internacional,  nos termos invocados pelo Recorrente na Conclusão G), nomeadamente o artigo 24º, nº 1, alíneas a) e b) e nº 2 do Código de Processo Penal; artigo 20º, nºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa (a par do artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do artigo 47º, 2º parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e dos artigos 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa e 6º, nº 3, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

Por tudo se conclui pela improcedência do Recurso.

V. DECISÃO

Nestes termos, as Juízes desta Relação acordam em julgar não provido o recurso interposto por S..

Custas pelo arguido, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCS.

Notifique.

Coimbra, 25 de Novembro de 2020

Alcina da Costa Ribeiro (relatora)

Ana Carolina Cardoso (adjunta)