Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2045/09.6T2AVR-B.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: TAXA DE JUSTIÇA
CÁLCULO
DISPENSA
PAGAMENTO
REMANESCENTE
Data do Acordão: 04/29/2014
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DA COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: N.º 7 DO ART.º 6.º DO RCE
Sumário: I. A dispensa prevista no n.º 7 do art.º 6.º do RCP assume natureza excepcional e, podendo ser oficiosamente concedida, depende sempre de avaliação pelo juiz, pelo que haverá de ter lugar aquando da fixação das custas ou, no caso de aí ser omitida, mediante requerimento de reforma dessa decisão, não parecendo por isso a reclamação da conta o meio e o momento processualmente adequados para o efeito.

II. Todavia, se o juiz não procede a esta avaliação e se encontram reunidos os pressupostos respectivos, não deixa de ser omitido acto prescrito por lei, e se a aplicação das regras relativas a custas conduz a resultados em que é manifesta a desproporcionalidade entre a actividade jurisdicional desenvolvida e a taxa de justiça a cobrar, poderão estar mesmo em causa princípios constitucionais estruturantes da ordem jurídica -nomeadamente o direito de acesso aos tribunais e o princípio da proporcionalidade- a impor que o ajuste, que a lei previu se fizesse através daquela específica norma, se possa ainda fazer na sequência de reclamação da conta final, por ser afinal esta que revela o excesso, que na maior parte das vezes só então ficará patente para as partes do processo.

Decisão Texto Integral: O recurso é o próprio, tendo sido recebido no modo e com o efeito devidos.
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Atendendo a que a questão colocada nos autos, circunscrita a matéria relativa a custas, se reveste de simplicidade, como autoriza o disposto no artigo 656.º do CPC, passo a proferir decisão sumária.

                                                       *

I. Relatório

No Juízo do Comércio da Comarca do Baixo Vouga foi decretada, por sentença proferida em 15 de Dezembro de 2009, a insolvência da sociedade “A...., Lda”.

Em 15 de Junho de 2010 teve lugar a Assembleia de Credores para a apresentação e votação do plano de insolvência, tendo sido concedido aos credores que o requeressem o prazo de dez dias para apresentarem por escrito os respectivos votos.

O plano foi aprovado em 21 de Julho de 2010 e homologado por sentença proferida em 10 de Janeiro de 2011, da qual o M.P., em representação da Fazenda Nacional, titular de um crédito no valor de € 21 841,42, interpôs tempestivo recurso.

Não tendo sido indicado valor no requerimento de interposição, foi pelo Mm.º Juiz “a quo” fixado o valor da causa para efeitos de recurso, despacho transitado em julgado, em conformidade com o qual foi liquidada pela recorrente a taxa de justiça devida.

Por decisão singular desta Relação veio o recurso a ser julgado procedente e revogada, em consequência, a sentença apelada, tendo sido recusada a homologação do plano.

Sob reclamação da apelada, a decisão proferida veio a ser confirmada por acórdão, com fundamento no facto do plano violar a regra da indisponibilidade dos créditos tributários enunciada pelo n.º 2 do art.º 30.º da LGT, regra que teria aplicação nos processos de insolvência, consoante estipulado no n.º 3 do mesmo preceito, aditado pelo art.º 123.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, com aplicação mesmo àqueles processos que se encontrassem pendentes à data da sua entrada em vigor (o que ocorreu em 1 de Janeiro de 2011) desde que o plano não tivesse sido objecto de homologação, conforme expressamente prevenido no art.º 125.º deste último diploma, situação que ocorria nos autos.

A insolvente recorreu para o STJ, recurso admitido nos termos do art.º 14.º, n.º 1 do CIRE, tendo invocado nas suas alegações, para além do mais, que o crédito da Fazenda Nacional se encontrava extinto pelo pagamento, entretanto efectuado pelos gerentes da insolvente a suas próprias expensas, numa confessada “tentativa última e desesperada de evitar a liquidação de uma empresa exportadora e pelo valor absolutamente ridículo de € 21 814,42”, concluindo que a instância deveria ser considerada extinta por inutilidade superveniente da lide e definitivamente homologado o plano de insolvência.

O STJ, em aresto de fls. 636 a 643 dos autos, ponderou ser de indagar, antes de mais, se poderia ser considerada a alegação do pagamento dos créditos à Fazenda Pública constante das alegações de revista e acompanhada dos documentos comprovativos e, admitindo como rigoroso que os recursos não se destinam à apreciação de questões novas, fez notar que a lei ressalva as de conhecimento oficioso, aqui se incluindo as excepções peremptórias, nos termos do art.º 496.º do CPC, posto que o conhecimento dos factos correspondentes não esteja vedado ao Tribunal. Na sequência de tal consideração, e com base no entendimento de que o que estava verdadeiramente em causa era indagar se poderia ser levado em conta o pagamento -facto- apenas alegado em sede de recurso de revista, e que a situação dos autos justificava “uma ponderação das regras em geral aplicáveis em processo civil (como se sabe, subsidiariamente aplicáveis ao processo de insolvência, art.º 17.º do CIRE), das normas especificamente previstas para o processo de insolvência (recorde-se, por exemplo, a consagração do princípio de que o tribunal não está limitado aos factos alegados, art.º 11.º do CIRE) e, decisivamente, do objectivo com que o CIRE desenhou o regime do chamado Plano de Insolvência, nos seus artigos 192.º e seguintes”, ordenou o STJ a ordenada a descida dos autos a este Tribunal da Relação para que aqui fosse “ponderada a eventual relevância da extinção dos crédito da fazenda pública, alegada pela recorrente e acompanhada de documentos para a provar”. Mais acrescentou não poder “proceder o pedido de extinção da instância de recurso opor inutilidade superveniente: nem do recurso de revista, o que conduziria à consolidação do acórdão recorrido, nem naturalmente, a do recurso de apelação”.

Regressados os autos a este Tribunal, por acórdão de fls. 680 a 682, considerou-se que o cumprimento do acórdão proferido pelo STJ implicava o conhecimento de um facto, “facto que teria de passar pelo crivo da apreciação probatória e respectiva decisão, próprios do conhecimento pela 1.ª instância, a fim de permitir um segundo grau de recurso” determinando-se, em conformidade, a remessa dos autos à 1.ª instância para este efeito.

Cumprido o determinado, veio o M.P. junto do Tribunal de 1.ª instância, em representação da Fazenda Nacional, apresentar o requerimento de fls. 719, no qual alegou que, face à liquidação dos créditos fiscais, perdia sentido o recurso interposto da sentença homologatória do plano, que se destinava à prolação de decisão superior visando a salvaguarda desses créditos, requerendo fossem os mesmos declarados extintos pelo pagamento e, em consequência, por deixar de ter interesse no prosseguimento do recurso, declarou desistir do mesmo.

O Mm.º Juiz admitiu a desistência do recurso, fazendo recair as custas sobre a Fazenda Nacional, atento o disposto nos artigos 446.º, n.º 1 e 451.º, n.º 1 do CPC.

Elaborada a conta final tendo por base de tributação o valor fixado ao processo -€ 750 000,00- foi apurado o saldo devedor de € 6 426,00 (cf. fls. 767), depois de deduzida a taxa de justiça paga, no valor de € 1 020,00.

Notificada da conta, veio a D. Magistrada do M.P. requerer a respectiva reformulação tomando por valor base o correspondente ao crédito reclamado em representação do Estado/Fazenda Nacional -€21 814,42- por ser o correspondente à utilidade económica que a recorrente viria a retirar do recurso, sendo assim o da sua sucumbência, nos termos do art.º 12.º, n.º 2 do RCP.

Para o caso de assim não ser entendido, requereu a dispensa do pagamento do remanescente ao abrigo do disposto no art.º 6.º, n.º 7 do RCP porquanto, atenta a especificidade da situação, é de concluir que se não verifica uma especial complexidade da causa e que a conduta processual da parte o não impede.

O requerido veio a ser indeferido pelo despacho de fls. 767/768, com os seguintes fundamentos (transcrição):

“Fls. 766: Salvo o devido respeito por outra opinião, entende-se que não assiste razão ao M. P. no que respeita à questão da reformulação da conta.

Por um lado, não foi indicado no requerimento de recurso o valor da sucumbência, prevalecendo por isso o valor da acção, nos termos do art. 12.º/2 do RCP. Por outro lado, o valor da causa para efeitos de recurso foi fixado por despacho que não foi impugnado, tendo transitado em julgado. Para além disso, não se justifica, a nosso ver, considerar o valor do crédito da Fazenda Nacional correspondente ao valor da utilidade económica do recurso, uma vez que estava em causa a manutenção ou não da sentença da homologação do plano da insolvência e, portanto, em última análise, a subsistência da empresa insolvente nos termos desse plano ou o prosseguimento dos autos para liquidação. Finalmente, a utilidade económica do pedido, servindo como critério geral e supletivo na definição do valor da causa (art. 296.º/1 do CPC), cede perante as regras especiais que fixam esse valor de modo diverso, como sucede no caso do art. 301.º do CIRE.

No que concerne à aplicação do disposto no art. 6.º/7 do RCP, segundo pensamos, e salvo o devido respeito por outra opinião, parece-nos que será justificada quando o remanescente a pagar seja um valor pouco significativo, face à complexidade da causa e ao comportamento da parte, perante o montante já pago a título de taxa de justiça nos termos do art. 6.º/6 do mesmo diploma legal. Ora, no caso dos autos, o valor remanescente é muito elevado (€ 6.426,00) face ao montante pago (€ 1.020,00), sem que a complexidade da causa, que foi apreciada no Tribunal da Relação de Coimbra e no Supremo Tribunal de Justiça e envolvia questões jurídicas não lineares respeitantes a matéria fiscal e de homologação de plano de insolvência, possa justificar a limitação da responsabilidade apenas ao valor pago.

Pelo exposto, indefiro ao requerido.”
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Irresignado, recorreu o M.P. em representação da Fazenda Nacional e, tendo apresentado as suas alegações, rematou-as com as seguintes conclusões:

“1.ª Por sentença proferida em 10.01.2011 foi homologado o Plano de Insolvência, tendo o Ministério Público, em representação e seguindo instruções da Fazenda Nacional, interposto recurso de tal decisão por considerar que o plano previa um esquema de pagamento das dívidas fiscais que não se coaduna com o estabelecido nas leis tributárias, e que, ao homologar a deliberação que o aprovou, tal sentença violou normas legais de carácter imperativo.

2.ª Ao recurso não foi atribuído valor e no despacho que o admitiu o Exmo. Senhor Juiz fixou como valor da acção o indicado na petição inicial, por aplicação do disposto no artigo 15º do CIRE; tal despacho foi notificado em 02.06.2011.

3.ª Já em 20.09.2011, foi proferido Acórdão no TRC que julgou procedente o recurso do Ministério Público e revogou a sentença recorrida, recusando a homologação do Plano de Insolvência aprovado pelos credores.

4.ª Interpôs revista a insolvente invocando, além do mais, que o crédito da Fazenda Pública fora pago, pelo que o Supremo Tribunal de Justiça, não conhecendo das demais questões, anulou o Acórdão e remeteu o processo à Relação para apreciação da relevância da alegada extinção de tais créditos, tendo o Tribunal da Relação entendido que deveria ser a primeira instância a apreciar tal questão.

5.ª Pelo que em 14 de Maio de 2012, e de acordo com as informações e instruções recebidas da Fazenda Nacional, se informou que os créditos fiscais em causa tinham sido liquidados pela insolvente em 04.10.2011 e que deixava de ter sentido o recurso interposto, que visava a salvaguarda desses créditos, promovendo-se que fossem os mesmos declarados extintos e desistindo-se do recurso, por não haver interesse no seu prosseguimento.

6.ª Foi, então, proferido despacho a admitir a desistência do recurso e a condenar a Fazenda Nacional nas respectivas custas, por referência aos artigos 446º, nº 1 e 451º, nº 1 do CPC; tal despacho foi notificado em 21.05.2012.

7.ª Já em 14 de Outubro de 2013, no apenso do recurso, foi o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, notificado da conta, com a entrega das guias para pagamento, tendo requerido a sua reformulação no sentido de que se tomasse por valor base o correspondente ao crédito reclamado -24.814, 42 €- por ser este o da utilidade que se viria a retirar do recurso ou, caso assim se não entendesse, requerendo a dispensa do pagamento do remanescente ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº 7 do Regulamento das Custas Processuais.

8.ª Porém, o Exmo. Senhor Juiz entendeu não ser possível a reformulação da conta por não ter sido indicado no recurso o valor da sucumbência, prevalecendo o valor da acção, e não ter sido impugnado o despacho que fixou o valor da causa, e que não se justifica considerar o valor do crédito da Fazenda Nacional por estar em causa a decisão de homologação do plano de insolvência e, portanto, a subsistência da empresa ou o prosseguimento dos autos para liquidação.

9.ª Mais entendeu que não é de aplicar o disposto no artigo 6.º, n.º 7 do RCP por o remanescente ser muito elevado face ao montante pago e a complexidade da causa, apreciada no Tribunal da Relação de Coimbra e no Supremo Tribunal de Justiça e envolvendo questões jurídicas não lineares, não justificar a limitação da responsabilidade ao valor pago.

10.ª É, pois, deste despacho que recorre o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional e de acordo com as instruções recebidas, por entender que na reformulação da conta seria de considerar o valor do crédito reclamado em representação da Fazenda, e que se justifica a dispensa do pagamento do remanescente, quer porque a complexidade da causa e o comportamento da parte o permitem, quer porque tal dispensa não está dependente do(s) montante(s) em causa.

11.ª Com efeito, embora não tenha sido fixado valor ao recurso de 21.01.2011, não poderia a Fazenda Nacional, em representação da qual tinham sido reclamados e reconhecidos créditos no valor de 21.814, 42 €, retirar do mesmo uma utilidade económica diferente desse valor, que assim seria o da sucumbência; ora, de acordo com o artigo 12º, nº 2 do RCP, nos recursos o valor é o da sucumbência, quando, como no caso, esta seja determinável, pelo que nos autos não tendo o recorrente indicado o valor, mas sendo este determinável, não se justificaria recorrer ao valor da acção.

12.ª Sendo que se defendeu que a sentença deveria ser revogada e substituída por outra que recusasse a homologação do Plano de Insolvência “no que diz respeito aos créditos reclamados pela Fazenda Nacional”, “na parte relativa aos créditos fiscais da Fazenda Nacional”; assim, o valor do recurso e da sucumbência seria o dos créditos reclamados -21.841, 42 €-, não havendo que fazer apelo a outros valores, sendo ainda possível, neste momento de elaboração da conta a final, considerar esse valor para efeitos de custas e do seu pagamento.

13.ª Já em relação à dispensa do pagamento do remanescente, prevista no artigo 6º, nº 7 do RCP, é de referir que a norma não estabelece qualquer limite para o quantum do remanescente nem permite concluir o que seja ou não significativo, e afigura-se-nos que a dispensa prevista visa precisamente as situações em que se verifica uma desproporcionalidade entre o valor pago e o valor a pagar, face à actividade desenvolvida.

14.ª Por outro lado, tendo presente a especificidade da situação e o preceituado no citado nº 7 do artigo 6º, entendemos verificar-se que nem a complexidade da causa, nem a conduta processual da parte impedem essa dispensa: do que resulta da análise dos autos não é de concluir por uma especial complexidade da causa e o comportamento do Ministério Público, em representação e seguindo instruções da Fazenda Nacional, foi correcto e adequado ao caso, com a prática dos actos indispensáveis à defesa da posição daquela, em respeito às normas tributárias.

15.ª Recorda-se, assim, que o recurso interposto com base na violação de normas tributárias de carácter imperativo obteve provimento, conforme Acórdão do TRC e que foi a insolvente, ali condenada em custas, a interpor recurso de revista, tendo então alegado a extinção dos créditos da Fazenda Nacional por pagamento; perante tal alegação, o STJ, não conhecendo das demais questões que se suscitavam, anulou o acórdão recorrido e determinou o regresso do processo à Relação, sendo que na primeira instância, depois de confirmado o pagamento das dívidas pela insolvente, que se informou não haver interesse no prosseguimento do recurso, por estarem salvaguardados os créditos fiscais que tinham sido reclamados e reconhecidos, desistindo-se do mesmo.

16.ª Acresce que a Fazenda Nacional foi condenada em custas ao manifestar desistir do recurso quando já não se justificava, como se reconheceu, o seu prosseguimento, por terem sido pagos os créditos fiscais que se visava salvaguardar, ou seja, por factos imputáveis à insolvente”.

Com tais fundamentos, requer a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que determine a reformulação da conta tomando por base o valor de € 21.814,42 ou, caso assim se não entenda, deverá a Fazenda Nacional ser dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos previstos no artigo 6.º, n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais.
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Não foram apresentadas contra alegações.

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Sabido que pelas alegações se define o objecto do recurso, são duas as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:

- saber se o apuramento da taxa de justiça devida devia ter sido feito tendo por base tributável o valor da sucumbência;

- indagar da verificação dos pressupostos de que depende a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça prevista no n.º 7 do art.º 6.º do RCE.
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II. Fundamentação

Importando à decisão a proferir os factos processualmente seleccionados como relevantes, tal como os deixámos relatados em I., apreciemos as questões suscitadas pela ordem que se deixaram enunciadas.

Antes de mais, importa reter que o Mm.º juiz “a quo” fez recair as custas sobre a apelante, invocando o disposto nos artigos 446.º e 451.º do CPC.

A solução consagrada no art.º 451.º decorre do princípio da causalidade -é responsável pelas custas quem a elas houver dado causa- acolhendo o critério da sucumbência. É certo que a recorrente declarou desistir do recurso, mas sob a invocação de nele ter perdido interesse, atenta a circunstância superveniente que invocou, uma vez que viu satisfeito, ainda que por iniciativa de terceiros, o crédito reclamado e reconhecido no processo, o mesmo cuja protecção motivara a interposição do recurso. Tal alegação permitiria legitimamente questionar, em nosso entender, se estávamos perante uma verdadeira declaração de desistência, tal como foi considerado.

De todo o modo, não se questionando aqui o acerto daquela decisão, por transitada em julgado, temos igualmente por certo que a recorrente não atribuiu valor ao recurso, donde, em cumprimento do disposto no n.º 3 do art.º 315.º do CPC em vigor ao tempo, ter o mesmo sido fixado pelo Mm.º juiz aquando da prolação do despacho a que alude o art.º 685.º-C do mesmo diploma legal, e com observância do critério consagrado no art.º 15.º do CIRE, o que não se encontra controvertido.

Sustenta no entanto a recorrente que a conta pode agora ser reformulada tomando como base de tributação o valor do crédito por si reclamado nos autos, por corresponder à utilidade que viria a retirar do recurso.

O Sr. juiz indeferiu a pretensão com um triplo argumento: por entender que, não tendo sido pela recorrente atribuído valor diverso ao recurso, conforme consentido pelo n.º 2 do art.º 12.º do RCP, prevalece o valor da acção; por considerar que, estando em causa “a manutenção ou não da sentença da homologação do plano da insolvência e, portanto, em última análise, a subsistência da empresa insolvente nos termos desse plano ou o prosseguimento dos autos para liquidação” não se justificava fazer apelo ao valor do crédito da recorrente; e, por último, porque o critério de determinação do valor é, nos processos de insolvência, o que consta do art.º 301.º do CIRE.

Pois bem, a este respeito, impõe-se fazer breves considerações.

De harmonia com o princípio de que a lei especial prevalece sobre a lei geral (princípio da especialidade consagrado no art.º 7.º, n.º 3 do CC), nos processos de insolvência e de recuperação de empresas, o valor da causa para efeitos processuais é encontrado de harmonia com o critério fixado no art.º 15.º do CIRE, sendo assim determinado sobre o valor do activo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real. No entanto, “tendo em conta que o valor do activo do devedor constitui a medida máxima da satisfação dos créditos que se intenta satisfazer no decurso do processo de insolvência”,[1] a solução aqui consagrada não se afasta, antes se adequa aos critérios fixados no CPC, mormente o consagrado no n.º 3 do art.º 308.º do CPC, diploma que, no omisso, tem aplicação também nesta sede (cf. art.º 17.º do CIRE).

Sendo assim correcta a afirmação de que o valor da causa (para efeitos processuais e, conforme se referirá, também para efeitos de custas), obedece aos critérios fixados no CIRE, lei especial, tal não contende com a constatação de que a intervenção de cada credor tem como escopo a defesa do seu crédito, medida do seu interesse na causa e valor que representa, para utilizar as palavras da lei, “a utilidade económica imediata do pedido” (cf. art.º 305.º do CPC). Por assim ser, se o seu crédito é prejudicado pela decisão judicial que homologou o plano, independentemente da circunstância da impugnação que contra ela deduza, a ser julgada procedente, poder acarretar a não homologação daquele, afigura-se que o prejuízo para o recorrente -a sucumbência- não pode exceder a medida do seu crédito.

Ora, para a determinação do valor do recurso releva o valor da sucumbência, a qual se mede pela utilidade económica imediata que se obtém ou em que se decai na acção. Atento o disposto no artigo 12.º, n.º 2, 1.ª parte, do RCP, nos recursos, quando o valor da sucumbência for determinável, será esse o valor a atribuir ao recurso. Deste modo, e não subscrevendo este passo da argumentação do despacho recorrido, perfilhamos antes o entendimento de que o valor neste caso a atribuir ao recurso, segundo o critério da sucumbência, corresponderia ao montante do crédito reconhecido à recorrente, “rectius”, o valor que resultaria sacrificado em função da aprovação do plano. Ponto é -e aqui já é de reconhecer razão ao Mm.º Juiz “a quo”- que a recorrente tivesse feito indicação desse mesmo valor no requerimento de interposição do recurso, como impõe a parte final do n.º 2 daquele preceito; não o tendo feito, haveria de prevalecer, como prevaleceu, o valor fixado à causa, não podendo agora, apenas depois de notificada da conta, pretender que seja considerado um valor nunca antes indicado, pretensão sem suporte legal.

Finalmente, importa atender ao disposto no art.º 301.º do CIRE, epigrafado de “Valor da causa para efeitos de custas”. Fazendo relevar o facto da insolvência ser ou não declarada e a fase em que o processo finda, a lei estabelece dois critérios: não sendo a insolvência decretada ou findando o processo antes da apresentação do inventário a que alude o art.º 153.º, atender-se-á ao mais baixo dentre os valores da alçada do Tribunal da Relação e o apurado nos termos do art.º 15.º; não se verificando qualquer das referidas situações, o valor será o que tiver sido atribuído no activo ao inventário, considerando-se o mais elevado, se mais do que um tiver sido atribuído.

No caso em apreço, sabemos que o valor processual fixado à causa pelo Mm.º Juiz foi de € 750 000,00, exactamente o considerado como base tributária para efeitos de elaboração da conta (final). Não existindo nestes autos elementos que permitam confirmar se corresponde ou não ao valor do inventário, não tendo a apelante invocado que o mesmo não se adequa ao critério consagrado no normativo a que nos vimos reportando, não existe fundamento para determinar, com este outro fundamento, a reformulação da conta.

Improcedem deste modo as conclusões 1.ª a 12.ª e com elas o primeiro fundamento do recurso.
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Subsidiariamente, requereu a apelante que lhe fosse concedido o benefício da dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, por aplicação do disposto no n.º 7 do art.º 6.º do RCP, o que lhe foi denegado pelo Mm.º Juiz por entender não existir fundamento para tal.

Nos termos do art.º 11.º do RCP “A base tributável para efeitos de taxa de justiça corresponde ao valor da causa, com os acertos constantes da tabela i, e fixa-se de acordo com as regras previstas na lei do processo respectivo”.

Comentando o preceito, faz notar Salvador da Costa[2] que “o valor da causa para efeitos de competência do tribunal e de recurso é o que, ora, quase exclusivamente instrumentaliza a determinação do valor da causa para efeito de custas, ou seja, aquele valor, incluindo o dos recursos, é agora determinado com base nas pertinentes normas da lei do processo”, acrescentando que a solução assim consagrada está “conexionada com a circunstância, no sistema processual civil actual, de se impor sempre ao juiz a fixação do valor da causa para efeitos processuais, ou seja, de alçada do tribunal e competência”.

No entanto, conforme com clareza resulta do diploma preambular, a taxa de justiça é o valor que cada interveniente deve suportar como contrapartida pela prestação de um serviço, ainda que tal não implique “uma rigorosa equivalência entre o valor do serviço prestado e o montante da quantia a pagar, relevando que ela tenha a sua causa e justificação na prestação de um dado serviço”[3].

Tendendo a estabelecer um equilíbrio entre os custos gerados pela actividade judicial desenvolvida e aqueles a suportar pelo utente, repristinando uma solução que antes constava do art.º 27.º do CCJ, na redacção do DL 324/2005, e seguramente para dissipar as dúvidas que já se levantavam a propósito da constitucionalidade de um sistema que fazia depender o volume de custas do valor da causa, sem mecanismos de ajustamento,[4] o n.º 7 do convocado art.º 6.º do RCP veio consagrar que “Nas causas de valor superior a (euros) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz, de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

O preceito foi introduzido pela reforma do RCP levada a cabo pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, com início de vigência 45 dias após a publicação (cf. art.º 9.º do referido diploma), aplicando-se a todos os processos pendentes nessa data, o que inclui os presentes autos (cf. n.º 1 do art.º 8.º).[5]

Trata-se de uma dispensa excepcional que, podendo ser oficiosamente concedida (à semelhança do que ocorre com o agravamento previsto no n.º 7 do art.º 7.º), depende sempre de avaliação pelo juiz, pelo que haverá de ter lugar aquando da fixação das custas (o que o regime que decorre do n.º 9 do art.º 14.º e n.º 2 do art.º 15.º também inculca) ou, no caso de ser omitida, mediante requerimento de reforma dessa decisão,[6] não parecendo por isso a reclamação da conta o meio e o momento processualmente azados para o efeito.[7]

Todavia, se o juiz não procede a esta avaliação e se encontram reunidos os pressupostos respectivos, não deixa de ser omitido acto prescrito por lei, e se a aplicação das regras relativas a custas conduz a resultados em que é manifesta a desproporcionalidade entre a actividade jurisdicional desenvolvida e a taxa de justiça a cobrar, poderão estar mesmo em causa princípios constitucionais estruturantes da ordem jurídica -nomeadamente o direito de acesso aos tribunais e o princípio da proporcionalidade- a impor que o ajuste, que a lei previu se fizesse através daquela específica norma, se possa ainda fazer na sequência de reclamação da conta final, por ser afinal esta que revela o excesso, que na maior parte das vezes só então ficará patente para as partes do processo. Tal solução afigura-se possível de acolher, atendendo a que não implica qualquer alteração quanto à atribuição da responsabilidade pelo pagamento das custas[8] e favorece ambas as partes (posto que o valor da causa, para efeitos de custas, sofre assim uma limitação).

Ademais, dir-se-á que o art.º 31.º do RCP, ao preceituar que o juiz mandará reformar a conta se esta não estiver de harmonia com as disposições legais, aponta no sentido de poderem servir de fundamento à reclamação não apenas erros materiais, mas ainda outras questões, sem embargo de se deverem ter seguramente por excluídas as relativas à definição da responsabilidade pelas custas, que tiveram de ficar decididas em momento anterior.

 Neste pressuposto, analisando a complexidade da instância de recurso objecto de tributação e actividade jurisdicional a que deu lugar, aqui divergindo claramente do juízo a este respeito formulado pelo Mm.º Juiz “a quo”, consideramos que se justifica, “in casu”, a atribuição da requerida dispensa. Com efeito, a questão suscitada pela apelante foi decidida por esta Relação mediante decisão singular o que, nos termos do art.º 705.º do CPC, significa que se tratava de questão simples e/ou objecto de jurisprudência consolidada. Depois, chegados os autos ao Supremo Tribunal de Justiça após confirmação pela Conferência, e na sequência do -só aí- pela insolvente invocado pagamento da dívida tributária, absteve-se aquele Tribunal de conhecer das demais questões suscitadas, mandando baixar os autos à Relação, de onde transitaram, sem decisão, para a 1.ª instância, aqui tendo a agora apelante desistido do recurso interposto, numa leal, colaborante e simplificadora actuação processual.

Tendo sido esta a actividade jurisdicional desenvolvida, e atendendo sempre ao referido princípio da proporcionalidade que subjaz à solução legal consagrada no n.º 7 do art.º 6.º do RCP, é de conceder à apelante a dispensa do remanescente da taxa de justiça, assim procedendo as derradeiras conclusões.
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III. Decisão

Em face a todo o exposto, e na procedência do recurso, concede-se à apelante a dispensa prevista no n.º 7 do art.º 6.º do RCP, devendo a conta de custas ser reformulada de modo a não considerar o remanescente da taxa de justiça nos termos ali prescritos.

Sem custas.


Maria Domingas Simões


[1] . Conforme observam J. Labareda e Carvalho Fernandes, CIRE anotado, 2.ª ed., Quid Juris, pág. 132.
[2] RCP anotado, Almedina 2009, pág. 217.
[3] Do aresto da Relação de Lisboa de 6/5/2008, CJ Ano xxxiii, tomo 3.º, pág. 71, citado por Salvador da Costa in RCP anotado e comentado, Almedina 2009, pág. 125.
[4] V., a propósito, o AC. do Tribunal Constitucional n.º 421/2013 in Diário da República, 2.ª série, n.º 200, de 16 de Outubro de 2013.
[5] A esta versão do diploma nos referiremos salvo indicação contrária, uma vez que a instância de recurso já não se achava pendente à data da entrada em vigor do DL 126/2013, de 30 de Agosto, que não tem assim aplicação ao caso em apreço.
[6] Conforme admite Salvador da Costa, RCP anotado, 5.ª ed., 2013, em anotação ao preceito.
[7] Assim foi igualmente considerado no aresto da Rel de Lisboa de 3/7/2012, processo 741/09.7 TBCSC.L2-7, acessível em dgsi.pt., como se vê da seguinte passagem: “(…) será quando distribui pelos sujeitos processuais o encargo tributário e fixa a percentagem do decaimento, na decisão final em que julgue o procedimento, o incidente ou o recurso, que também o juiz deverá, reunidas as condições que a norma tipifica, determinar a dispensa do pagamento da taxa de justiça final correspondente à diferença por excesso entre o valor (estabelecido) de 250.000,00 € e o efectivo valor da causa (para o efeito de custas) (…)”
[8] Solução similar foi adoptada no aresto da Relação de Lisboa citado em 6.