Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
111/14.5TBNLS-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS
FINANCIAMENTO
PROGRAMA DE ESTÍMULO AO EMPREGO
DEVEDOR PRINCIPAL
Data do Acordão: 10/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 130, 131 CIRE, 735, 751 CC, DL Nº 437/78 DE 28/12
Sumário: Os privilégios creditórios previstos no artigo 7.º do DL n.º 437/78, de 28/12, recaem apenas sobre os devedores principais, que são as empresas beneficiadas com o incentivo, e já não sobre os devedores solidários, seus sócio-gerentes.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                        I

V (…) foi declarado insolvente por sentença de 14 de Agosto de 2014, transitada em julgado.

Foi fixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos.

Findo o prazo da reclamação, o Sr. Administrador da Insolvência juntou aos autos a lista  de credores reconhecidos e não reconhecidos.

Foi apresentada pela credora C (…), S.A. a fls. 74 e seguintes, duas   impugnações contra a lista de créditos apresentada pela A.I. na parte em que reconheceu os créditos do Instituto da Segurança Social, I.P. (identificados sob os números 8 e 9) qualificando-os como privilegiados nos montantes, respetivamente, de €9.160,39 e €40.054,96, pugnando pela classificação como comuns os créditos do ISS,IP nos valores parcelares de €4.250,48, €3.876,71, €214,87 e €160,72, valores que resultam dos processos de reversão instaurados contra o insolvente na qualidade de gerente da insolvente e, ainda, na parte em que reconheceu como privilegiados os créditos do Instituto e Emprego e Formação Profissional, I.P. uma vez que o insolvente era apenas devedor solidário e não principal do apoio financeiro concedido por aquele Instituto à empresa E (…), L.da, pelo que, o privilegio, na opinião da impugnante C(...) não se não se pode "estender" ao insolvente.

 Responderam a essas impugnações os Institutos da Segurança Social, I.P. e do Emprego e Formação Profissional, I.P., respetivamente, pugnando pela manutenção da classificação dada pela Administradora da Insolvência relativamente aos seus créditos reclamados, isto é, como privilegiados.

Por sua vez, a Administradora da Insolvência respondeu dizendo nada ter a opor à impugnação apresentada pela C (…), S.A. no que respeita à natureza/qualificação dos créditos reclamados pelos Institutos da Segurança Social, I.P. e do Emprego e Formação Profissional, I.P.

Foi realizada tentativa de conciliação a que alude o artigo 136º do CIRE, após o que foi proferida a seguinte sentença:

«Nos termos do disposto no artigo 130º n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, «Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo Administrador da Insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que consta dessa lista.»

No caso concreto, quanto aos créditos não impugnados, há que homologar a lista de credores reconhecidos, apresentada pela Administradora da Insolvência.

Quanto aos créditos impugnados, desde já se adianta crermos assistir razão à reclamante C (…).

De facto, quanto aos créditos do ISS,IP, o privilégio de que os mesmos beneficiam resulta da conjugação do disposto nos artigos 204º, 176º e 177º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro), pelo que os privilégios a considerar serão os que digam respeito ao beneficiário e  responsável directo, ou seja, as contribuições do insolvente como trabalhador independente, não abrangendo os créditos que resultem de processos de reversão instaurados contra o insolvente por dívidas que não sejam dele próprio, ou seja, das quais ele não seja o seu responsável directo (nesse sentido, vide os Acórdão da Relação de Guimarães de 10 de Abril de 2012, proferido no processo 178258/08.6YIPRT-B-G1 e o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23 de Fevereiro e 2012, proferido no processo 0916/11). Desde modo se concluindo que os créditos revertidos (os que resultem de processos de reversão instaurados contra o insolvente por dívidas das empresas das quais ele era gerente) deverão ser considerados comuns.

No que diz respeito aos créditos do Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P. o privilégio de que os mesmos beneficiam resulta do disposto no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28 de Dezembro e diz respeito a créditos resultantes dos apoios financeiros concedidos. Do contrato de concessão de incentivos financeiros junto aos autos com a reclamação apresentada por este Instituto (fls. 123 e ss) resulta que o apoio financeiro foi concedido à empresa E (…) L.da, para a constituição de uma iniciativa local de emprego, no âmbito do Programa de Estímulo à Oferta de Emprego, tendo aquela empresa solicitado apoio financeiro e técnico para a criação de quatro postos de trabalho. Mais resulta desse contrato que o aqui insolvente figura nesse mesmo contrato como promotor, resultando desse contrato quais as obrigações enquanto tal. No que diz respeito à responsabilidade pelo cumprimento das obrigações inerentes ao contrato a cláusula 10º n.º 2 do mesmo dispõe que a responsabilidade pelo cumprimento das obrigações por parte do promotor/insolvente é solidária com a empresa, ou seja, o insolvente não é o devedor principal da obrigação assumida. Nessa medida, ter-se-á que considerar para efeitos de classificação dos créditos resultantes do apoio financeiro concedido que relativamente ao insolvente esses créditos deverão ser classificados como comuns, não beneficiando do privilégio resultante do artigo 7º do diploma acima referido uma vez que se entende que esse privilégio abrange tão só os créditos sobre os devedores principais ou originários, no caso da empresa que solicitou o apoio financeiro.

Procedem, assim, as impugnações apresentadas pela C (…), S.A., nos seus precisos termos.

*

Pelo exposto, nos termos dos artigos 130º n.º 3 e 131º n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, homologo a lista de créditos reconhecidos, apresentada pela Administradora da Insolvência a fls. 2-12 dos autos, com as alterações advenientes da procedência da impugnação apresentada pela C (...) , S.A.

Verificados os créditos por homologação e procedência de impugnação, há agora que proceder à sua graduação, tendo em atenção o que consta da lista homologada, as disposições legais aplicáveis e a composição da massa insolvente.

Os bens apreendidos para a massa insolvente são imóveis, direitos sobre bens imóveis e direitos sobre contas bancárias - cf. Apensos de apreensão e de liquidação.

A regra geral é de que todos os credores estão em situação de igualdade perante o património do devedor.

Existem, porém, causas de preferência no pagamento, legalmente consagradas e que podem incidir sobre alguns bens ou todos os bens do insolvente, as quais constituem excepções ao princípio da igualdade dos credores perante o património do devedor.

O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas veio consagrar a repartição dos credores por classes - artigo 47.º do citado diploma e, em especial, o n.º 4 - sendo garantidos os créditos que beneficiem de garantias reais, incluindo os privilégios especiais, privilegiados os créditos que beneficiem de privilégios creditórios gerais, subordinados os créditos enumerados no artigo 48.º, excepto quando beneficiem de privilégios ou garantias que se não extingam por efeito da declaração de insolvência (cf. artigo 97.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) e comuns os demais créditos.

No caso concreto, e de acordo com a lista homologada temos créditos privilegiados reclamados pelo ISS.IP, créditos garantidos por penhor reclamado pela C (…), S.A. e créditos comuns.

O pagamento dos créditos garantidos é efectuado após o pagamento das dívidas da massa, sobre o produto da venda dos bens onerados com garantia real, havendo contudo que atender ao disposto no artigo 751.º do Código Civil que dispõe que os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.

Relativamente aos créditos privilegiados, temos os privilégios creditórios.

Os privilégios creditórios derivam da lei e visam proteger especialmente um credor, tendo em conta a natureza do crédito. É a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (cf. artigo 733º do Código Civil).

Os privilégios creditórios são mobiliários e imobiliários (cf. artigo 735º do Código Civil). Os privilégios mobiliários podem ser gerais e especiais, consoante abranjam o valor de todos ou o valor de determinados bens existentes no património do devedor (cf. artigo 735º n.º 2 do Código Civil).

No entanto, em legislação avulsa existem privilégios creditórios imobiliários gerais - é o caso dos privilégios creditórios imobiliários de que beneficiam os impostos de IRS, IRC e os créditos da segurança social relativos a contribuições - e imobiliários especiais - como é o caso do IMI.

Para efeitos de classificação e graduação no processo de insolvência, os créditos privilegiados são os que beneficiam de privilégios creditórios gerais sobre os bens integrados na massa insolvente e não se extinguem por efeito da declaração de insolvência (cf. artigo 47º n.º 4, alínea a) 2ª parte do CIRE).

Os créditos privilegiados são pagos à custa dos bens afectos às garantias prevalentes, com respeito pela prioridade que lhes caiba e, na proporção dos seus montantes, quanto aos que sejam igualmente privilegiados; aos que não forem integralmente pagos e perante os quais o devedor responda com a generalidade do seu património, são os saldos respectivos incluídos entre os créditos comuns (artigos 175º n.º 1 e n.º 2 e artigo 174º n.º 1, 2ª parte e n.º 2 do CIRE).

A ordem segundo a qual são pagos (a prioridade respectiva) é a estabelecida nos artigos 745º e seguintes do Código Civil).

*

Dos créditos reclamados pela C (..)

Este credor beneficia de um crédito garantido por penhor o que lhe confere, nos termos do disposto no artigo 666º n.º 1 do Código Civil, o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiros.

Beneficia ainda a C (…) de crédito privilegiado por se tratar de requerente da insolvência, assim beneficiando, nos termos do preceituado no artigo 98º do CIRE, de privilégio creditório geral, graduado em último lugar, sobre todos os bens móveis que venham a integrar a massa insolvente, relativamente a um quarto do seu montante, num máximo correspondente a 500 unidades de conta, sendo, assim, privilegiado.

 Dos créditos reclamados pela Segurança Social

Os privilégios dos créditos da segurança social estão previstos no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.

As dívidas à segurança social podem ser garantidas através de qualquer garantia idónea, geral ou especial, nos termos dos artigos 601.º e seguintes do Código Civil.

Dispõe o artigo 204º daquele Regime que: 1- Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.2 -

Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.

E, o artigo 205º do mesmo Regime, diz que: Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património do contribuinte à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil.

Dos créditos comuns

Os créditos comuns são os créditos que não se enquadram em nenhuma das classificações acima discriminadas, são pagos na proporção respectiva, se a massa insolvente for insuficiente para a sua satisfação integral (cf. artigo 47º n.º 4 alínea c) e 76º, ambos do C.I.R.E.).

*

Em face de todo o exposto, proceder-se-á ao pagamento dos créditos, através do produto da massa insolvente, pela forma seguinte:

1- As dívidas da massa insolvente (onde se incluem as custas de execução fiscal), saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda dos bens apreendidos - artigo 172º n.º 1 e n.º 2 do C.I.R.E.;

2- Do produto da venda dos imóveis cujo direito foi apreendido nos autos, dar-se-á pagamento:

a) Aos créditos privilegiados do ISS,IP;

b) Do remanescente, dar-se-á pagamento, rateadamente, aos créditos comuns;

3- Do produto da venda dos direitos relativos a 5.000 U.P. no Fundo de Investimento Mobiliário Fechado C (...) Optimizer 2010, dar-se-á pagamento:

a) Ao crédito reclamado pela C (…) garantido por penhor privilegiados do ISS,IP;

b) Ao crédito da requerente da insolvência na medida do seu privilégio;

c) Do remanescente, rateadamente, aos créditos comuns.

4- Do produto da venda de 3.000 U.P. do fundo especial de investimento fechado C (...) Maxipremium 2010; 4.510 U.P. do fundo de investimento C (...) Energias Renováveis; 1.957 U.P. do fundo de investimento C (...) Matérias Primas; 5.400 U.P. do fundo de investimento aberto C (...) Maximizer Plus e 2.000 U.P. do fundo especial de investimento fechado C (...) Multiactivo 2011, dar-se-á pagamento:

a) Ao crédito reclamado pela C (…) garantido por penhor;

b) Aos créditos privilegiados do ISS,IP;

c) Ao crédito da requerente da insolvência na medida do seu privilégio;

d) Do remanescente, rateadamente, aos créditos comuns.

5- Do produto da venda dos demais bens apreendidos, dar-se-á pagamento:

a) Aos créditos privilegiados do ISS,IP;

b) Ao crédito da requerente da insolvência na medida do seu privilégio;

c) Do remanescente, dar-se-á pagamento, rateadamente, aos créditos comuns reclamados.

Custas pela massa insolvente (cf. artigo 304º do C.I.R.E.)»

Inconformado com tal decisão veio o Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P. (IEFP) recorrer, assim concluindo as suas alegações de recurso:

(…)

Foram apresentadas contra-alegações por parte da C (...) , que assim concluiu:

(…)

                                                            II

A factualidade a considerar consta do relatório supra

                                                            III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (art. 635 nº 3 do nCPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 608 in fine), é a seguinte a questão que importa decidir:

- Se o crédito decorrente do Insolvente ser solidariamente responsável, perante o IEFP implica a sua qualificação como privilegiado, à semelhança do devedor principal, gozando a recorrente contra o mesmo das garantias especiais consignadas no artigo 7.º do decreto-lei n.º 437/78, de 28 de dezembro.

Ou, pelo contrário, relativamente ao Insolvente, sócio gerente da sociedade beneficiada com o apoio financeiro, tais créditos devem ser classificados como comuns.

Vejamos.

O artº 7º do DL 437/78, de 28/12, dispõe que “os créditos resultantes de apoios financeiros concedidos nos termos do presente diploma gozam das seguintes garantias especiais:

d) Privilégio mobiliário geral sobre os bens móveis do devedor, graduando-se logo após os créditos referidos no artº 747º do Código Civil nos mesmos termos dos créditos previstos no artº 1º do DL nº 512/76, de 3 de Julho, com prevalência sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior;

e) Privilégio imobiliário sobre os bens imóveis do devedor, graduando-se logo após os créditos referidos no artº 748º do Código Civil, nos mesmos termos dos créditos previstos no artº 2º, do DL nº 512/76, de 3 de Julho;

f) Hipoteca legal sobre os bens imóveis do devedor, graduando-se nos termos dos créditos referidos na al.a) do artº 705º do Código Civil”

O financiamento de que emerge o crédito reclamado não foi concedido ao insolvente, mas antes à empresa de que este era sócio-gerente, a EXSUS, Ld.ª, sendo esta a devedora para efeitos do diploma supra citado.

Do contrato de incentivos financeiro, resulta que o apoio financeiro foi concedido à sociedade E (…)ª, para a constituição de um incentivo local de emprego, no âmbito do Programa de Estímulo à oferta de Emprego.

Foi esta sociedade que solicitou o apoio financeiro e técnico para a criação de quatro postos de trabalho, tendo o incentivo financeiro entrado na esfera patrimonial daquela.

Desse modo, o incentivo financeiro não entrou na esfera patrimonial do insolvente, que não é o seu devedor, mas apenas um responsável solidário.

A lei civil e comercial não confunde a pessoa do devedor como do responsável solidário, sendo diversos os institutos em que trata autonomamente cada figura.

Concordamos, por isso, com o decidido, no sentido de que, o privilégio creditório a que se refere o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 437/78, de 2/12, apenas incide sobre bens da pessoa a quem foi atribuído o incentivo financeiro, por ser ele o devedor, não recaindo tal privilégio, sobre eventuais responsáveis solidários.

O insolvente, promotor e sócio gerente da sociedade  (…), Lda. assinou o Contrato de Concessão de Incentivo Financeiro, como 2º outorgante, ficando, decerto vinculado às obrigações assumidas, mas apenas como responsável solidário.

Nenhuma censura merece, assim, a decisão recorrida.

Em suma:

Os privilégios creditórios previstos no artigo 7.º do DL n.º 437/78, de 28/12, recaem apenas sobre os devedores principais, que são as empresas beneficiadas com o incentivo, e já não sobre os devedores solidários, seus sócio-gerentes.

                                                                        IV

Termos em que, acorda-se em julgar improcedente a apelação confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra,

 Anabela Luna de Carvalho ( Relatora ))

João Moreira do Carmo

José Fonte Ramos