Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
151/10.3JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: SIMULAÇÃO DE CRIME
Data do Acordão: 01/30/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 366º Nº 1 CP
Sumário: 1.- O crime de simulação de crime insere-se no âmbito da tutela da realização da justiça determinando-se a punição à proteção da eficácia funcional das instituições judiciárias, ou seja, com a punição pretende-se evitar que sejam afetados meios ou recursos, já normalmente escassos, em vão.
2.- Tal crime consuma-se quando a autoridade competente (que recebe a denúncia) é induzida em erro, com essa denúncia.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I
1.
Nos autos de processo comum nº 151/10.3JACBR do Tribunal Judicial de Soure, em que é arguida AA…, Tendo a arguida a última residência conhecida na zona da estação da CP de Soure sido declarada contumaz pelo que os autos prosseguiram apenas contra a arguida AA...;
Sendo-lhe imputados factos susceptíveis de integrarem, em co-autoria e na forma tentada, a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, al. f), todos do Código Penal; em co-autoria e na forma consumada, a prática de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo artigo 366.º, n.º 1, do Código Penal; e em autoria material e na forma consumada, um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal,
Procedeu-se a julgamento e a final foi decidido:

Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a acusação, por
parcialmente provada, em consequência:
1) Convolar o crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º,
23.º, 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, al. f), todos do Código Penal, pelo qual a arguida vinha acusada
e de que vai absolvida, para um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, n.º 1, do
mesmo diploma legal;
2) Atendendo à natureza semi-pública deste crime, à desistência de queixa
apresentada pelos ofendidos e à não oposição da arguida, julgar válida e homologar, por
sentença, tal desistência e, consequentemente, declarar extinto o procedimento criminal
contra a arguida nessa parte - cfr. artigos 190.º, n.º 1 e 198.º, e 116.º, n.º 2, do Código Penal, e 49.º e 51.º, n.º 2, 2.ª parte,
ambos do Código de Processo Penal.
3) Atendendo à natureza semi-pública do crime de ofensa à integridade física, p. e p.
pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, à desistência de queixa apresentada pelo ofendido e
à não oposição da arguida, julgar válida e homologar, por sentença, tal desistência e,
consequentemente, declarar extinto o procedimento criminal contra a arguida nessa parte –
cfr. artigos 143.º, n.º 2, e 116.º, n.º 2, do Código Penal, e 49.º e 51.º, n.º 2, 2.ª parte, ambos do Código de Processo Penal.
4) Absolver a arguida da prática de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo
artigo 366.º, n.º 1, do Código Penal, do qual vinha acusada.
Decide-se ainda julgar extinta a instância relativamente ao pedido cível apresentado
contra a arguida - cfr. artigo 4.º do Código de Processo Penal e 287.º al. e) do Código de Processo Civil.

2. Da decisão recorre o Ministério Público formulando as seguintes conclusões:

2.1. Face aos elementos juntos aos autos a fls. 1, 6, 12, 44, 51 e 55 e à demais prova produzida em julgamento, devia-se ter dado por provado, no seguimento do ponto 13 dos factos dados por provados:

- as arguidas actuaram com conhecimento de que relatavam, perante órgão de polícia criminal, a verificação de crimes que não tinham ocorrido.

- com a sua conduta as arguidas pretendiam dar origem a um procedimento criminal – assim encobrindo a sua participação, horas antes, na tentativa de furto à residência de ……..e criar na GNR de Condeixa-a-Nova e nas autoridades competentes para investigação criminal a suspeita de que os factos por si denunciados tinham ocorrido, resultado que lograram obter.

- as arguidas agiram deliberada, livre e conscientemente, com conhecimento de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

2.2. Impunham que assim fosse toda a prova produzida em audiência e em particular os documentos de fls. 1, 6, 12, 44, 51 e 55 bem como o depoimento prestado em audiência pelas testemunhas:

- … , cujas declarações se encontram registadas no sistema habilus (…) que disseram que foram raptadas e ali deixadas (no café) pelo raptor ; estavam só as duas (sabendo nós que na fuga da residência na qual entram foram transportadas por terceiros – veja-se quanto a este ponto o depoimento da vítima.

- … , cujas declarações se encontram registadas no sistema habilus (…) com particular destaque para a passagem ao minuto 10:00 quanto à fuga numa carrinha branca.

2.3. Consequentemente, a arguida AA… deveria ter sido condenada pela prática do pp pelo artigo 336º do Código Penal de que vinha acusada.

2.4. Mostra-se violado o artigo 127º do CPP porquanto os documentos juntos aos autos e os depoimentos das testemunhas foi deficientemente valorado, impondo-se a correcta apreciação dos mesmos que se dessem como provados os factos supra alegados com as consequências referidas.

Pelo que deve ser revogada a decisão recorrida, condenando-se a arguida pela prática do crime de simulação de crime de que foi acusada.

3. A arguida recorrida veio responder ao recurso, louvando-se na fundamentação de facto e de direito da sentença recorrida, que deve ser mantida.
4. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
5. Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
II
Questões a apreciar:
1. A impugnação da matéria de facto dada como não provada quanto crime de simulação de crime e sua consequência na prática do crime pela arguida.
III
1. Na sentença recorrida são dados como provados e como não provados os seguintes factos:
Factos provados
Produzida a prova, resultaram provados os seguintes factos com pertinência para a
decisão:
1. No dia … de 2010, pelas 07h55m, a arguida, acompanhada de outra mulher sua amiga e do menor … , introduziu-se no interior da residência de …, sita na Rua … , em Soure.
2. Momentos depois de acederem ao interior da referida residência, surgiu … .
3. Como a mulher que acompanhava a arguida trazia consigo uma mala preta de senhora na mão, que … julgou ser propriedade da sua mãe, este imediatamente agarrou-a, tentando retirar-lha, ao que aquela resistiu.
4. Acto contínuo, ao ser empurrado, … caiu, sem largar a mala em causa.
5. Após, a arguida e o menor abandonaram o local.
6. A mulher que acompanhava a arguida continuou a debater-se com … pela posse da mala em questão, acabando ambos por cair pelas escadas abaixo.
7. Nessa altura, surgiu … que, ao aperceber-se da situação, se muniu de um pau que ali se encontrava e levantou-o na direcção da mulher, o que fez com que esta desistisse dos seus intentos e abandonasse o local.
8. Como consequência directa e necessária da queda descrita em 6., … sofreu dores, e duas escoriações no tórax com estigmas de arrastamento, uma equimose avermelhada no ombro esquerdo e uma equimose esverdeada na mediana dorsal, quatro zonas escoriadas no braço direito e antebraço, com sinais de arrastamento, seis equimoses arroxeadas-esverdeadas pulpares, na face medial do braço direito, edema com equimose arroxeada na 2.ª e 3.ª falanges da mão esquerda e limitação de flexão, zona escoriada e vestígios de arrastamento no terço superior da coxa direita, uma dezena de escoriações no joelho direito e face anterior da pena e dorso do pé e diversas escoriações no joelho esquerdo e dorso do pé.
9. Tais lesões determinaram-lhe quinze (15) dias de doença, com afectação da capacidade para o trabalho geral.
10. Ainda no dia … de 2010, pelas 10h30m, as arguidas dirigiram-se ao Café … , sito na … , em Condeixa-a-Nova, e aí deram conta de que haviam sido “raptadas” por um indivíduo que lhes havia tirado a mala com toda a documentação.
11. Contactada a GNR de Condeixa-a-Nova, deslocaram-se ao local elementos dessa força militar, a quem as arguidas repetiram esse relato, o que veio a dar origem a mera participação de ocorrência criminal n.º 07/10.
12.Remetida tal participação à Polícia Judiciária, esta procedeu à abertura do inquérito registado sob o n.º 151/10.3JACBR.
13. A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que, ao entrar na residência de ……, acedia a uma residência que lhe era alheia, o fazia sem o consentimento dos seus legítimos proprietários e que tal conduta lhe era proibida e punida por lei.
14. A arguida não sabe ler nem escrever.
15. Encontra-se a viver em Portugal exercendo a profissão de empregada de mesa num restaurante, há cerca de um ano, auferindo mensalmente €485,00.
16. Veio da Roménia para Portugal em busca de uma vida melhor.
17. Vive sozinha em casa arrendada, cuja renda mensal se fixa em €300,00.
18. Não tem antecedentes criminais.

*
Factos não provados
Produzida a prova e discutida a causa resultaram não provados os seguintes factos:
1. A arguida introduziu-se no interior da residência descrita em 1. dos Factos Provados, após plano previamente delineado com a mulher que a acompanhava e com vista a apropriar-se dos objectos de valor que aí se encontrassem.
2. A arguida, a sua amiga e o menor foram surpreendidos por … .
3. Foi a arguida, em conjugação de esforços com o menor, que empurrou … .
4. Seguidamente, … foi arrastado pela arguida e pelo menor, após o que este último e aquela saltaram da varanda.
5. A arguida agiu com o propósito, que apenas não logrou concretizar por intervenção de … , de integrar no seu património os objectos de valor que encontrassem na residência de ……..e de deles dispor como se fosse sua proprietária, designadamente, vendendo-os a terceiros e ficando com o produto da venda para si.
6. A arguida agiu ainda deliberada, livre e conscientemente, com o intuito de causar lesões corporais em ..., o que logrou, ciente que, ao empurrá-lo da forma descrita, tal meio era apto a provocar as referidas lesões.
8. A arguida actuou com o conhecimento de que relatavam, perante órgão de polícia criminal, a verificação de crimes que não tinham ocorrido.
9. Com a sua conduta, as arguidas pretendiam dar origem a um procedimento criminal, assim encobrindo a sua participação, horas antes, na tentativa de furto à residência de ... e de ... e criar na GNR de Condeixa-a-Nova a suspeita de que os factos por si denunciados tinham ocorrido, resultado que lograram obter.

2. A factualidade provada e não provada é motivada nos seguintes termos:
A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto dada como provada e não provada assentou no conjunto e análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente nas declarações da arguida, nas declarações pelas testemunhas ..., ... e …. .
A arguida assumiu ter entrado na residência, conforme provado em 1. - facto corroborado
pela testemunha ... que disse tê-la visto no interior da residência.
Não se deu porém como provado o propósito pelo qual a arguida se introduziu na residência, designadamente para se apropriar dos objectos de valor que aí se encontrassem, considerando a versão apresentada pela arguida, no sentido de o ter feito, na companhia de uma amiga e menor, para que alguém concedesse um copo de água a este e a ausência de prova suficiente no sentido do contrário (isto é, de o propósito ser efectivamente a subtracção de objectos que lá se encontrassem).
Não obstante ser convicção do ofendido que a arguida e demais se tivessem introduzido na residência para que de lá retirassem objectos, certo é que os mesmos não foram encontrados com quaisquer bens em sua posse e, inclusivamente, antes e depois de entrarem na casa chamaram “Oh senhor! Oh senhor”, conforme a própria testemunha ... afirmou, como se, conclui-se, procurassem que alguém lhes respondesse, quiçá para lhe solicitarem algo.
Talvez mais normal fosse, caso quisessem levar consigo objectos que se encontrassem na casa, de forma silenciosa neles pegassem e de forma fugaz com eles abandonassem o local. O que não aconteceu.
Tudo o que aconteceu em seguida foi fruto de um mal entendido radicado no facto de o ofendido, em erro, julgar que a mala que trazia a mulher que acompanhava a arguida era de sua mãe, agarrando-a e disputando tal objecto com aquela - facto unanimemente referido pela arguida, ... e … .
Não se deu igualmente como provado que a arguida empurrou o ofendido essencialmente com base nas declarações deste, que disse não saber quem o empurrou. Disse ainda o ofendido que as lesões que sofrera foram unicamente causadas da queda dada pelas escadas abaixo aquando da disputa da mala com a outra mulher que acompanhava a arguida, o que motivou a prova do facto 8. tal qual o descrevemos.
Os factos provados e não provados com relação ao que foi transmitido pela arguida à GNR, assentaram na conjugação e análise crítica das declarações prestadas pela arguida, depoimentos do ofendido e da testemunha … , participação de fls. 6, informação da PJ de fls. 1 referente à abertura de inquérito e relato de diligência externa de fls. 44.
Com efeito, considerando, por um lado, o mal entendido relatado pela arguida e testemunha ... relativamente à propriedade da mala - que o arguido pensou ser da mãe quando a final pertencia à mulher que acompanhava a arguida -, mal entendido esse que originou que ficassem efectivamente sem a mala que pertencia à mulher de quem a arguida se fazia acompanhar, e a inexistência de prova no sentido de que a arguida entrou na residência em causa com o propósito de furtar objectos que lá se encontrassem; e, por outro, o afirmado pela testemunha … , cabo da GNR que ouviu a arguida e sua amiga, no sentido de estas se expressarem mal em português, de não terem formalizado queixa contra ninguém e de não ter desde logo conferido credibilidade à tese do rapto por saber da existência de uma queixa apresentada contra as mesmas por tentativa de furto em local onde havia ficado a mala, deixou ao Tribunal sérias dúvidas sobre o que quiseram transmitir e
com que intenção, designadamente a arguida, à autoridade, e indução desta em erro.
Dos elementos recolhidos nos autos não resultam diligências investigatórias que levem a crer pela seriedade com que encararam as autoridades o relatado pela arguida, sendo certo que, repita-se, o militar da GNR que as ouve em primeiro lugar não atribuiu credibilidade à tese do rapto, desconhecendo se foi realizada alguma diligência de investigação.
Os restantes factos provados tiveram como base o depoimento das testemunhas ... e … , auto de apreensão e exame médico-legal de fls. 4 e 13 do processo de inquérito apenso 77/10.0GASRE; e os restantes não provados por produção de prova em sentido diverso ou ausência de prova.
No que tange aos factos relativos à situação pessoal e económica da arguida, a convicção do Tribunal assentou nas suas próprias declarações.
Considerou-se ainda o certificado de registo criminal da arguida junto aos autos do
qual nada consta.

3. Finalmente, fez o tribunal a quo o seguinte enquadramento jurídico do factualismo quanto ao crime de simulação de crime que é o que no caso interessa:

Dispõe o artigo 366º, n.º 1, do Código Penal, que “Quem, sem o imputar a pessoa determinada, denunciar crime ou fizer criar suspeita da sua prática à autoridade competente, sabendo que ele não se verificou, é punido com pena (…)”.
A consumação da infracção exige a lograda e efectiva indução em erro daquela autoridade. Trata-se assim de um crime material, com o erro a figurar como resultado típico.
Exige-se pois que se induza a autoridade em erro quanto à subsistência dos indícios bastantes para impor a promoção de acções de investigação e perseguição dos responsáveis.
O que, por sua vez, afasta a relevância das denúncias e suspeitas (falsas) que não sejam idóneas a causar aquele erro e a consequente promoção processual - cfr. COSTA ANDRADE, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 1999, p. 564-567.
Outro elemento do tipo objectivo do crime em análise é a falsidade da denúncia ou suspeita, ou seja, um facto que se não verificou. Nesta medida, não há preenchimento do tipo quando a falsa representação de facto penalmente relevante constitui apenas um exagero ou empolamento de um crime efectiva e inquestionavelmente cometido; ou quando o facto simulado e o facto real se interligam e sobrepõem em parte.
Do tipo subjectivo dir-se-á que o facto só é punível a título de dolo, exigindo-se um dolo qualificado relativamente à falsidade da denúncia ou suspeita. O agente tem de actuar com conhecimento da falsidade ou tendo-a como segura, o que afasta a actuação com mero dolo eventual.
O dolo deverá estender-se igualmente à idoneidade da conduta para induzir a autoridade em erro e, consequentemente, para desencadear a sua acção infundada e inútil - vide COSTA ANDRADE, ob. cit., p. 571.
A factualidade não provada e descrita em 8. e 9. dos factos não provados, implicaria desde logo a conclusão pelo não preenchimento de todos os elementos do tipo de crime de simulação de crime, conforme supra expostos.
Todavia, também se nos merece dizer que o relatado pela arguida, conforme descrito em 10. e 11. dos factos provados, considerando a restante factualidade provada, tinha um fundo de verdade: alguém lhes havia realmente subtraído a mala com toda a documentação e inclusive lhes havia levantado em sua direcção, designadamente à mulher que acompanhava a arguida, um pau, o que obrigou ao abandono do local (sem a mala); circunstância verídica que, associada ao facto de se não ter provado que a introdução na residência se destinava à subtracção de objectos que lá se encontrassem, afastaria o preenchimento do tipo objectivo do crime, considerando-se o alegado rapto como um
exagero (ou, quem sabe no caso da arguida, uma errada verbalização em português ou má
qualificação jurídica do que se passara na realidade).
Perante isto, deverá a arguida ser absolvida do crime de simulação de crime de que vinha acusada.
IV
Cumpre decidir:
1. Entende o recorrente Ministério Público que deve ser dado como provado que:

- as arguidas actuaram com conhecimento de que relatavam, perante órgão de polícia criminal, a verificação de crimes que não tinham ocorrido.

- com a sua conduta as arguidas pretendiam dar origem a um procedimento criminal – assim encobrindo a sua participação, horas antes, na tentativa de furto à residência de ... e de ... e criar na GNR de Condeixa-a-Nova e nas autoridades competentes para investigação criminal a suspeita de que os factos por si denunciados tinham ocorrido, resultado que lograram obter.

- as arguidas agiram deliberada, livre e conscientemente, com conhecimento de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Entende o recorrente ainda que impunham que assim fosse, toda a prova produzida em audiência e em particular os documentos de fls. 1, 6, 12, 44, 51 e 55 bem como o depoimento prestado em audiência pelas testemunhas:

- … , cujas declarações se encontram registadas no sistema habilus (…) que disseram que foram raptadas e ali deixadas (no café) pelo raptor ; estavam só as duas (sabendo nós que na fuga da residência na qual entram foram transportadas por terceiros – veja-se quanto a este ponto o depoimento da vítima.

- ..., cujas declarações se encontram registadas no sistema habilus (…) com particular destaque para a passagem ao minuto 10:00 quanto à fuga numa carrinha branca.

2. Ouvida a produção da prova gravada em CD, maxime as declarações da arguida, do ofendido … e da testemunha … , agente da GNR que lavrou a participação de ocorrência criminal nº 07/10, de fls. 3, cumpre desde já dizer que não merece qualquer censura o decidido.
Quanto ao modo como ocorreram os factos na casa do ofendido … e à forma como este “reteve” a carteira da co-arguida ausente, … , a prova gravada conduz à conclusão vertida na decisão, nos seguintes termos:
A arguida assumiu ter entrado na residência, conforme provado em 1. - facto corroborado
pela testemunha ... que disse tê-la visto no interior da residência.
Não se deu porém como provado o propósito pelo qual a arguida se introduziu na residência, designadamente para se apropriar dos objectos de valor que aí se encontrassem, considerando a versão apresentada pela arguida, no sentido de o ter feito, na companhia de uma amiga e menor, para que alguém concedesse um copo de água a este e a ausência de prova suficiente no sentido do contrário (isto é, de o propósito ser efectivamente a subtracção de objectos que lá se encontrassem).
Não obstante ser convicção do ofendido que a arguida e demais se tivessem introduzido na residência para que de lá retirassem objectos, certo é que os mesmos não foram encontrados com quaisquer bens em sua posse e, inclusivamente, antes e depois de entrarem na casa chamaram “Oh senhor! Oh senhor”, conforme a própria testemunha ... afirmou, como se, conclui-se, procurassem que alguém lhes respondesse, quiçá para lhe solicitarem algo.
Talvez mais normal fosse, caso quisessem levar consigo objectos que se encontrassem na casa, de forma silenciosa neles pegassem e de forma fugaz com eles abandonassem o local. O que não aconteceu.
A testemunha ... afirmou, segundo a gravação, que ouviu, em dois momentos diferentes, chamar de “Oh senhor! Oh senhor”, sendo certo que nenhuma das arguidas tinha na sua posse qualquer objecto pertencente ao ofendido.
Com certeza que a questão da mala da arguida … – que o ofendido pensou ser da sua mãe – veio criar uma confusão generalizada quer na conduta do ofendido quer nas condutas das próprias arguidas. Não deixando de ter relevância que quer a arguida recorrida quer o ofendido se referem ao facto daquela ter partido o vidro de uma das divisões para sair de casa, ficando o ofendido ainda em disputa da mala com a arguida … .

3. Quanto à situação posterior, maxime à intervenção da testemunha … , na sua qualidade de agente da GNR (cabo), pode dizer-se que se não existiu mal entendido, existiu pelo menos falta de comunicação e percepção do que as arguidas pretenderam relatar com a afirmação de “rapto”, sendo certo que são cidadãs estrangeiras (romenas), que não dominam o português correctamente sendo verdade que as mesmas estiveram efectivamente envolvidas numa situação que, não podendo ser qualificado tecnicamente de rapto face à nossa legislação, algo de anormal se passou e em que a arguida … se viu sem a sua carteira e a arguida recorrida saiu da casa partindo o vidro de uma janela.
Mas o relevante a concluir das declarações desta testemunha é que a mesma não deu quer significado nem seguimento a qualquer situação de rapto contra as arguidas.
Desde logo, porque em momento algum as arguidas lhe apresentaram ou manifestaram intenção de apresentar queixa por tal rapto. Por outro, o agente fez diligências, tendo-lhe sido comunicado do posto de Soure, que tinha ocorrido a queixa do ofendido .... E que perante estes factos novos, em momento algum levou a sério uma situação de rapto das arguidas nem se preocupou em realizar qualquer diligência nesse sentido. A testemunha é esclarecedora – v. minutos 11:11, 11:38 e 12:36 do seu depoimento -, ao dizer que a partir do momento que souberam da ocorrência dos factos segundo a participação do ofendido, não conferiram mais qualquer credibilidade à “tentativa de rapto”, nem trataram os autos como inquérito desta natureza. Acrescentou ainda a testemunha que apenas lavrou a participação da ocorrência, por ordem da Srª Procuradora de serviço, na altura. Logo, não o fez de sua iniciativa, convencido da veracidade de qualquer rapto. De resto, o expediente foi enviado para a Polícia Judiciária, a quem foi informado (segundo o depoimento da testemunha), dos factos ocorridos, lendo-se neste depoimento que a Polícia Judiciária tinha sido informada ou tinha elementos para não dar qualquer credibilidade a qualquer rapto das arguidas.

4. Sendo estes os factos ocorridos, cumpre averiguar agora o que dispõe o artigo 366º, nº 1 do Código Penal sobre o crime imputado às arguidas:
“Quem sem o imputar a pessoa determinada, denunciar crime ou fizer criar suspeita da sua prática à autoridade competente, sabendo que ela não se verificou, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Trata-se de um crime contra a realização de justiça determinando-se a punição à protecção da eficácia funcional das instituições judiciárias.
Ou seja, com a punição pretende-se evitar que sejam afectados meios ou recursos, já normalmente escassos, em vão.
Por sua vez, o crime consuma-se quando a autoridade competente (que recebe a denúncia) é induzida em erro, com a denúncia do crime.
Sobre este aspecto ensina o Professor Costa Andrade (in Comentário Conimbricense, III, 563) que impõe-se saber se a infracção se consuma com a mera tomada de conhecimento da denúncia ou suspeita pela autoridade competente ou se, inversamente, para tanto será indispensável a lograda efectiva indução daquela autoridade em erro”.
E conclui este Professor que no nosso direito, contrariamente ao que acontece por exemplo no direito germânico, se impõe a mais exigente das alternativas: isto é, o nosso direito exige que se esteja perante um engano bem sucedido no sentido da sua eficácia causal, indutora de um erro na pessoa do destinatário. Sublinhado nosso.
E continua, estamos perante uma infracção reconduzível à categoria dos crimes materiais com o erro a figurar como resultado típico.
Ora, sendo este erro determinante para a consumação do crime do artigo 366º, nº 1 do Código Penal, conforme resulta da matéria de facto supra analisada (coincidente com a dada por provada e não provada), é por demais evidente que a autoridade policial que tomou conta da ocorrência não deu qualquer credibilidade nem seguimento a uma situação de rapto das arguidas. Ademais, nem a testemunha … enquanto agente da autoridade nem a Polícia Judiciária, posteriormente, desenvolveram ou realizaram qualquer diligência em concreto visando tão só e apenas o eventual rapto. A diligência de fls. 44 dá, outrossim, ênfase à versão do ofendido, tendo a Polícia Judiciária realizado algumas diligências para averiguar do seu paradeiro mas não resultando da mesma que estava em causa apurar o seu rapto (das arguidas) mas porventura para serem responsabilizadas pela sua conduta por terem entrado na casa do ofendido como efectivamente veio a acontecer.

V
Decisão
Por todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida.

Sem custas.

Coimbra, 30.1.2013


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(Luís Teixeira, Relator)


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(Calvário Antunes, Adjunto)