Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | LUÍS TEIXEIRA | ||
Descritores: | SIMULAÇÃO DE CRIME | ||
Data do Acordão: | 01/30/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE SOURE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 366º Nº 1 CP | ||
Sumário: | 1.- O crime de simulação de crime insere-se no âmbito da tutela da realização da justiça determinando-se a punição à proteção da eficácia funcional das instituições judiciárias, ou seja, com a punição pretende-se evitar que sejam afetados meios ou recursos, já normalmente escassos, em vão. 2.- Tal crime consuma-se quando a autoridade competente (que recebe a denúncia) é induzida em erro, com essa denúncia. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra I 1.Nos autos de processo comum nº 151/10.3JACBR do Tribunal Judicial de Soure, em que é arguida AA…, Tendo a arguida a última residência conhecida na zona da estação da CP de Soure sido declarada contumaz pelo que os autos prosseguiram apenas contra a arguida AA...; Sendo-lhe imputados factos susceptíveis de integrarem, em co-autoria e na forma tentada, a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, al. f), todos do Código Penal; em co-autoria e na forma consumada, a prática de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo artigo 366.º, n.º 1, do Código Penal; e em autoria material e na forma consumada, um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, Procedeu-se a julgamento e a final foi decidido: Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a acusação, por parcialmente provada, em consequência: 1) Convolar o crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, al. f), todos do Código Penal, pelo qual a arguida vinha acusada e de que vai absolvida, para um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, n.º 1, do mesmo diploma legal; 2) Atendendo à natureza semi-pública deste crime, à desistência de queixa apresentada pelos ofendidos e à não oposição da arguida, julgar válida e homologar, por sentença, tal desistência e, consequentemente, declarar extinto o procedimento criminal contra a arguida nessa parte - cfr. artigos 190.º, n.º 1 e 198.º, e 116.º, n.º 2, do Código Penal, e 49.º e 51.º, n.º 2, 2.ª parte, ambos do Código de Processo Penal. 3) Atendendo à natureza semi-pública do crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, à desistência de queixa apresentada pelo ofendido e à não oposição da arguida, julgar válida e homologar, por sentença, tal desistência e, consequentemente, declarar extinto o procedimento criminal contra a arguida nessa parte – cfr. artigos 143.º, n.º 2, e 116.º, n.º 2, do Código Penal, e 49.º e 51.º, n.º 2, 2.ª parte, ambos do Código de Processo Penal. 4) Absolver a arguida da prática de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo artigo 366.º, n.º 1, do Código Penal, do qual vinha acusada. Decide-se ainda julgar extinta a instância relativamente ao pedido cível apresentado contra a arguida - cfr. artigo 4.º do Código de Processo Penal e 287.º al. e) do Código de Processo Civil. 2. Da decisão recorre o Ministério Público formulando as seguintes conclusões: 2.1. Face aos elementos juntos aos autos a fls. 1, 6, 12, 44, 51 e 55 e à demais prova produzida em julgamento, devia-se ter dado por provado, no seguimento do ponto 13 dos factos dados por provados: - as arguidas actuaram com conhecimento de que relatavam, perante órgão de polícia criminal, a verificação de crimes que não tinham ocorrido. - com a sua conduta as arguidas pretendiam dar origem a um procedimento criminal – assim encobrindo a sua participação, horas antes, na tentativa de furto à residência de ……..e criar na GNR de Condeixa-a-Nova e nas autoridades competentes para investigação criminal a suspeita de que os factos por si denunciados tinham ocorrido, resultado que lograram obter. - as arguidas agiram deliberada, livre e conscientemente, com conhecimento de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. 2.2. Impunham que assim fosse toda a prova produzida em audiência e em particular os documentos de fls. 1, 6, 12, 44, 51 e 55 bem como o depoimento prestado em audiência pelas testemunhas: - … , cujas declarações se encontram registadas no sistema habilus (…) que disseram que foram raptadas e ali deixadas (no café) pelo raptor ; estavam só as duas (sabendo nós que na fuga da residência na qual entram foram transportadas por terceiros – veja-se quanto a este ponto o depoimento da vítima. - … , cujas declarações se encontram registadas no sistema habilus (…) com particular destaque para a passagem ao minuto 10:00 quanto à fuga numa carrinha branca. 2.3. Consequentemente, a arguida AA… deveria ter sido condenada pela prática do pp pelo artigo 336º do Código Penal de que vinha acusada. 2.4. Mostra-se violado o artigo 127º do CPP porquanto os documentos juntos aos autos e os depoimentos das testemunhas foi deficientemente valorado, impondo-se a correcta apreciação dos mesmos que se dessem como provados os factos supra alegados com as consequências referidas. Pelo que deve ser revogada a decisão recorrida, condenando-se a arguida pela prática do crime de simulação de crime de que foi acusada.
3. A arguida recorrida veio responder ao recurso, louvando-se na fundamentação de facto e de direito da sentença recorrida, que deve ser mantida. * Factos não provadosProduzida a prova e discutida a causa resultaram não provados os seguintes factos: 1. A arguida introduziu-se no interior da residência descrita em 1. dos Factos Provados, após plano previamente delineado com a mulher que a acompanhava e com vista a apropriar-se dos objectos de valor que aí se encontrassem. 2. A arguida, a sua amiga e o menor foram surpreendidos por … . 3. Foi a arguida, em conjugação de esforços com o menor, que empurrou … . 4. Seguidamente, … foi arrastado pela arguida e pelo menor, após o que este último e aquela saltaram da varanda. 5. A arguida agiu com o propósito, que apenas não logrou concretizar por intervenção de … , de integrar no seu património os objectos de valor que encontrassem na residência de ……..e de deles dispor como se fosse sua proprietária, designadamente, vendendo-os a terceiros e ficando com o produto da venda para si. 6. A arguida agiu ainda deliberada, livre e conscientemente, com o intuito de causar lesões corporais em ..., o que logrou, ciente que, ao empurrá-lo da forma descrita, tal meio era apto a provocar as referidas lesões. 8. A arguida actuou com o conhecimento de que relatavam, perante órgão de polícia criminal, a verificação de crimes que não tinham ocorrido. 9. Com a sua conduta, as arguidas pretendiam dar origem a um procedimento criminal, assim encobrindo a sua participação, horas antes, na tentativa de furto à residência de ... e de ... e criar na GNR de Condeixa-a-Nova a suspeita de que os factos por si denunciados tinham ocorrido, resultado que lograram obter. 2. A factualidade provada e não provada é motivada nos seguintes termos: A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto dada como provada e não provada assentou no conjunto e análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente nas declarações da arguida, nas declarações pelas testemunhas ..., ... e …. . A arguida assumiu ter entrado na residência, conforme provado em 1. - facto corroborado pela testemunha ... que disse tê-la visto no interior da residência. Não se deu porém como provado o propósito pelo qual a arguida se introduziu na residência, designadamente para se apropriar dos objectos de valor que aí se encontrassem, considerando a versão apresentada pela arguida, no sentido de o ter feito, na companhia de uma amiga e menor, para que alguém concedesse um copo de água a este e a ausência de prova suficiente no sentido do contrário (isto é, de o propósito ser efectivamente a subtracção de objectos que lá se encontrassem). Não obstante ser convicção do ofendido que a arguida e demais se tivessem introduzido na residência para que de lá retirassem objectos, certo é que os mesmos não foram encontrados com quaisquer bens em sua posse e, inclusivamente, antes e depois de entrarem na casa chamaram “Oh senhor! Oh senhor”, conforme a própria testemunha ... afirmou, como se, conclui-se, procurassem que alguém lhes respondesse, quiçá para lhe solicitarem algo. Talvez mais normal fosse, caso quisessem levar consigo objectos que se encontrassem na casa, de forma silenciosa neles pegassem e de forma fugaz com eles abandonassem o local. O que não aconteceu. Tudo o que aconteceu em seguida foi fruto de um mal entendido radicado no facto de o ofendido, em erro, julgar que a mala que trazia a mulher que acompanhava a arguida era de sua mãe, agarrando-a e disputando tal objecto com aquela - facto unanimemente referido pela arguida, ... e … . Não se deu igualmente como provado que a arguida empurrou o ofendido essencialmente com base nas declarações deste, que disse não saber quem o empurrou. Disse ainda o ofendido que as lesões que sofrera foram unicamente causadas da queda dada pelas escadas abaixo aquando da disputa da mala com a outra mulher que acompanhava a arguida, o que motivou a prova do facto 8. tal qual o descrevemos. Os factos provados e não provados com relação ao que foi transmitido pela arguida à GNR, assentaram na conjugação e análise crítica das declarações prestadas pela arguida, depoimentos do ofendido e da testemunha … , participação de fls. 6, informação da PJ de fls. 1 referente à abertura de inquérito e relato de diligência externa de fls. 44. Com efeito, considerando, por um lado, o mal entendido relatado pela arguida e testemunha ... relativamente à propriedade da mala - que o arguido pensou ser da mãe quando a final pertencia à mulher que acompanhava a arguida -, mal entendido esse que originou que ficassem efectivamente sem a mala que pertencia à mulher de quem a arguida se fazia acompanhar, e a inexistência de prova no sentido de que a arguida entrou na residência em causa com o propósito de furtar objectos que lá se encontrassem; e, por outro, o afirmado pela testemunha … , cabo da GNR que ouviu a arguida e sua amiga, no sentido de estas se expressarem mal em português, de não terem formalizado queixa contra ninguém e de não ter desde logo conferido credibilidade à tese do rapto por saber da existência de uma queixa apresentada contra as mesmas por tentativa de furto em local onde havia ficado a mala, deixou ao Tribunal sérias dúvidas sobre o que quiseram transmitir e com que intenção, designadamente a arguida, à autoridade, e indução desta em erro. Dos elementos recolhidos nos autos não resultam diligências investigatórias que levem a crer pela seriedade com que encararam as autoridades o relatado pela arguida, sendo certo que, repita-se, o militar da GNR que as ouve em primeiro lugar não atribuiu credibilidade à tese do rapto, desconhecendo se foi realizada alguma diligência de investigação. Os restantes factos provados tiveram como base o depoimento das testemunhas ... e … , auto de apreensão e exame médico-legal de fls. 4 e 13 do processo de inquérito apenso 77/10.0GASRE; e os restantes não provados por produção de prova em sentido diverso ou ausência de prova. No que tange aos factos relativos à situação pessoal e económica da arguida, a convicção do Tribunal assentou nas suas próprias declarações. Considerou-se ainda o certificado de registo criminal da arguida junto aos autos do qual nada consta. 3. Finalmente, fez o tribunal a quo o seguinte enquadramento jurídico do factualismo quanto ao crime de simulação de crime que é o que no caso interessa: Dispõe o artigo 366º, n.º 1, do Código Penal, que “Quem, sem o imputar a pessoa determinada, denunciar crime ou fizer criar suspeita da sua prática à autoridade competente, sabendo que ele não se verificou, é punido com pena (…)”. A consumação da infracção exige a lograda e efectiva indução em erro daquela autoridade. Trata-se assim de um crime material, com o erro a figurar como resultado típico. Exige-se pois que se induza a autoridade em erro quanto à subsistência dos indícios bastantes para impor a promoção de acções de investigação e perseguição dos responsáveis. O que, por sua vez, afasta a relevância das denúncias e suspeitas (falsas) que não sejam idóneas a causar aquele erro e a consequente promoção processual - cfr. COSTA ANDRADE, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 1999, p. 564-567. Outro elemento do tipo objectivo do crime em análise é a falsidade da denúncia ou suspeita, ou seja, um facto que se não verificou. Nesta medida, não há preenchimento do tipo quando a falsa representação de facto penalmente relevante constitui apenas um exagero ou empolamento de um crime efectiva e inquestionavelmente cometido; ou quando o facto simulado e o facto real se interligam e sobrepõem em parte. Do tipo subjectivo dir-se-á que o facto só é punível a título de dolo, exigindo-se um dolo qualificado relativamente à falsidade da denúncia ou suspeita. O agente tem de actuar com conhecimento da falsidade ou tendo-a como segura, o que afasta a actuação com mero dolo eventual. O dolo deverá estender-se igualmente à idoneidade da conduta para induzir a autoridade em erro e, consequentemente, para desencadear a sua acção infundada e inútil - vide COSTA ANDRADE, ob. cit., p. 571. A factualidade não provada e descrita em 8. e 9. dos factos não provados, implicaria desde logo a conclusão pelo não preenchimento de todos os elementos do tipo de crime de simulação de crime, conforme supra expostos. Todavia, também se nos merece dizer que o relatado pela arguida, conforme descrito em 10. e 11. dos factos provados, considerando a restante factualidade provada, tinha um fundo de verdade: alguém lhes havia realmente subtraído a mala com toda a documentação e inclusive lhes havia levantado em sua direcção, designadamente à mulher que acompanhava a arguida, um pau, o que obrigou ao abandono do local (sem a mala); circunstância verídica que, associada ao facto de se não ter provado que a introdução na residência se destinava à subtracção de objectos que lá se encontrassem, afastaria o preenchimento do tipo objectivo do crime, considerando-se o alegado rapto como um exagero (ou, quem sabe no caso da arguida, uma errada verbalização em português ou má qualificação jurídica do que se passara na realidade). Perante isto, deverá a arguida ser absolvida do crime de simulação de crime de que vinha acusada. IV Cumpre decidir:1. Entende o recorrente Ministério Público que deve ser dado como provado que: - as arguidas actuaram com conhecimento de que relatavam, perante órgão de polícia criminal, a verificação de crimes que não tinham ocorrido. - com a sua conduta as arguidas pretendiam dar origem a um procedimento criminal – assim encobrindo a sua participação, horas antes, na tentativa de furto à residência de ... e de ... e criar na GNR de Condeixa-a-Nova e nas autoridades competentes para investigação criminal a suspeita de que os factos por si denunciados tinham ocorrido, resultado que lograram obter. - as arguidas agiram deliberada, livre e conscientemente, com conhecimento de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Entende o recorrente ainda que impunham que assim fosse, toda a prova produzida em audiência e em particular os documentos de fls. 1, 6, 12, 44, 51 e 55 bem como o depoimento prestado em audiência pelas testemunhas: - … , cujas declarações se encontram registadas no sistema habilus (…) que disseram que foram raptadas e ali deixadas (no café) pelo raptor ; estavam só as duas (sabendo nós que na fuga da residência na qual entram foram transportadas por terceiros – veja-se quanto a este ponto o depoimento da vítima. - ..., cujas declarações se encontram registadas no sistema habilus (…) com particular destaque para a passagem ao minuto 10:00 quanto à fuga numa carrinha branca. 2. Ouvida a produção da prova gravada em CD, maxime as declarações da arguida, do ofendido … e da testemunha … , agente da GNR que lavrou a participação de ocorrência criminal nº 07/10, de fls. 3, cumpre desde já dizer que não merece qualquer censura o decidido. V DecisãoPor todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida. Sem custas. Coimbra, 30.1.2013 _______________________________________ (Luís Teixeira, Relator) ______________________________________ (Calvário Antunes, Adjunto) |