Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3639/09.5TJCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: PRINCÍPIO DO ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
INVALIDADE
INEFICÁCIA PROCESSUAL
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.613 CPC
Sumário:
1.-Esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 613º, nº 1, do NCPC), com o deferimento de um direito de remição, não pode, de seguida, por iniciativa própria, o juiz dar o dito por não dito, e dar sem efeito o seu anterior despacho, proferindo novo despacho que agora nega essa remição.
2.O segundo despacho padece de invalidade stricto sensu ou ineficácia processual.
Decisão Texto Integral: 6

Proc.3639/09.5TJCBR-A

I – Relatório

1. Caixa de Crédito Agrícola Mútuo (…) CRL, com sede em …, intentou execução para pagamento de quantia certa contra A (…) e mulher M (…), residentes em ..., A (…) e mulher L (…), residentes em ....
No seu curso foi penhorado um determinado prédio urbano (identificado nos autos), pertença dos 2ºs executados.
Foi determinada a venda do bem por negociação particular. A firma Q (…)Lda, apresentou uma proposta de aquisição por 75.000 €, o que foi autorizado por despacho judicial.
I (…), filha e neta dos executados, exerceu direito de remição. O que lhe foi deferido por despacho proferido em 15.5.2017.
Q (…), interpôs recurso de tal decisão, pedindo a revogação da mesma. A executada M (…) contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
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Posteriormente foi proferido despacho, datado de 30.9.2017, dando sem efeito aquele despacho recorrido (de 15.5.2017), e assim considerou aquele pedido de remição extemporâneo.
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2. I (…) interpôs recurso, tendo concluído que:
(…)
3. Q (…) Lda, contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

II – Factos Provados
A factualidade a considerar é a que decorre do relatório supra.


III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.
Nesta conformidade, as únicas questões a resolver são as seguintes.
- Invalidade do despacho recorrido (de conhecimento oficioso – arts. 663º, nº 2, e 608º, nº 2, in fine do NCPC).
- Remição a favor da apelante.

2. Dispõe o art. 613º, nº 1, do NCPC, que proferida a sentença - ou o despacho, pois este normativo vale também para os despachos, nos termos do seu nº 3 – fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz. Isto é, proferida sentença ou despacho sobre a matéria da causa, o juiz não pode voltar a proferir nova decisão sobre a mesma questão.
Que foi o que aconteceu nos autos, pois a juíza a quo depois de proferir despacho (datado de 15.5.2017) sobre o pedido de remição apresentado pela recorrente, que deferiu, mais à frente, por sua própria iniciativa, veio a proferir novo despacho (datado de 30.9.2017) sobre a mesma questão, desta vez de sinal contrário.
O que não podia ter feito, pois esgotado o seu poder jurisdicional a lei apenas lhe permite rectificar erros materiais, que não é o caso, e suprir nulidades, arguidas pela parte interessada, bem como reformar a decisão, a pedido de uma das partes, o que de todo não aconteceu, pois a Q (…) Lda, no recurso que interpôs não arguiu aquelas ou solicitou esta (cfr. os inúmeros arestos referidos por A. Neto, no seu CPC Anotado, 20ª Ed., 2008, na anotação ao art. 666º do anterior CPC, págs. 909/912).
Não se põe como hipótese concreta a figura dos casos julgados contraditórios, prevista no art. 625º do NCPC, porque a primeira decisão nem sequer transitou em julgado, pois estava sob recurso (embora sem cobertura legal para tanto, o tribunal a quo tenha, posteriormente, dado o recurso da Q (…) sem efeito, bem como as respectivas contra-alegações, o que, aliás, representa nas circunstâncias concretas existentes à data nos autos uma conduta anómala !?).
Qual o vício de que padece, então, o segundo despacho proferido sobre o mesmo tema, e de sinal contrário, depois de esgotado o poder jurisdicional do juiz ?
Lebre de Freitas (em A Acção Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013, 3ª Ed., nota (38) pág. 329/330), defende que estamos perante uma nulidade processual, sanável pela falta de tempestiva arguição, o que não conseguimos acompanhar, pois se a lei menciona expressamente o esgotamento do poder jurisdicional, é difícil aceitar que outra seja produzida e essa infracção não passe de uma mera irregularidade.
O Prof. Castro Mendes (em D. Proc. Civil, Vol. III, Ed. AAFDL, 1978/79, pág. 300) considera que se trata de um caso de ineficácia, por aplicação do actual art. 625º, nº 2, do NCPC.
Já o Prof. Paulo Cunha (em Marcha do Processo, Vol. II, págs. 358 e segs.) defende que se trata de uma situação de inexistência jurídica.
Na visão do Prof. A. Reis (em CPC Anotado, Vol. V, págs. 113/128, particularmente a 121), estaremos, ao que parece, defronte a uma ineficácia.
Inclinamo-nos, para a solução da ineficácia.
O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu, ainda que logo a seguir se arrependa, por adquirir a convicção que errou. Para ele a decisão fica sendo intangível. É esta a razão do princípio estabelecido no aludido art. 613º, nº 1, do NCPC. Há, na verdade, que assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional, sob pena de dando o juiz o dito por não dito se criar a desordem, a confusão e a incerteza.
Ora, se a lei determina a ineficácia entre duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, no referido art. 625º do NCPC, paralisando a que transitou em segundo lugar, afigura-se-nos que semelhante raciocínio e consequência jurídica, pode ser feito e há-de ser tirada em relação à situação processual imediatamente antecedente, isto é, quando embora ainda não haja trânsito em julgado de nenhuma das decisões, tivessem sido proferidas duas, de seguida, de sinal contrário. Ou seja, perante a intangibilidade da primeira decisão a defesa da sua eficácia faz-se a montante, num momento anterior, em vez de se esperar que tal ineficácia se produza a jusante, num momento posterior.
A solução alvitrada da mera irregularidade processual é que temos por reacção fraca do sistema jurídico, perante a imposição intensa que emerge do parafraseado legal “imediatamente esgotado” empregue no citado art. 613º, nº 1, do NCPC.
Consequentemente, como questão prévia, de conhecimento oficioso, há que declarar inválida (invalidade stricto sensu ou ineficácia) a decisão proferida nos autos.
Não havendo, pois que conhecer da questão posta no presente recurso. Essa terá de ficar necessariamente para o recurso interposto e alegado pela Quarent e já contra-alegado.

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):
i) Esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 613º, nº 1, do NCPC), com o deferimento de um direito de remição, não pode, de seguida, por iniciativa própria, o juiz dar o dito por não dito, e dar sem efeito o seu anterior despacho, proferindo novo despacho que agora nega essa remição; fazendo-o esse segundo despacho padece de invalidade stricto sensu ou ineficácia processual.


IV – Decisão


Pelo exposto, declara-se a ineficácia processual do despacho proferido nos autos em 30.92017, assim se revogando o despacho recorrido.
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Sem custas.
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Coimbra, 24.4.2018
Moreira do Carmo ( Relator )