Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
11/22.5T8TCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: PRAZO PARA ARGUIÇÃO DA INEPTIDÃO DA P.I.
FACTOS NÃO INCLUÍDOS NOS TEMAS DE PROVA
ESCLARECIMENTOS EM AUTO DE INSPECÇÃO JUDICIAL
ACTOS DE POSSE
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 2091.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 4.º; 5.º, 1; 153.º, 3; 186.º, 1 E 2; 198.º, 1; 200.º, 1 E 2; 452.º; 466.º; 491.º; 595.º, 3; 596.º, 2 E 615.º, 1, D), DO CPC
Sumário: i) A ineptidão da p.i. (art. 186º, nº 1 e 2, do NCPC), só pode ser arguida o mais tardar na contestação, nos termos do art. 198º, nº 1, do mesmo código, a ser apreciada no despacho saneador, que nos presentes autos foi proferido (art. 200º, nº 2, do NCPC); em recurso está precludida tal arguição;

ii) Se a parte alega, quanto à decisão da matéria de facto, que determinados factos não estão incluídos nos temas de prova e por isso não podem ser considerados, a ser verdadeira a sua alegação, apenas apresentada em fase de recurso, então os recorrentes podiam ter reclamado dos temas da prova (art. 596º, nº 2, do NCPC), pois isso permitiria posterior impugnação no recurso interposto da decisão final (nº 3 do apontado preceito); não o tendo feito, precludiu essa possibilidade, agora, no recurso;

iii) Se os AA, em respeito pelo princípio do dispositivo e do ónus de alegação das partes, estabelecido no art. 5º, nº 1, do NCPC, alegaram, na p.i., em determinados artigos, a matéria que veio a desembocar em especificados factos provados, nada obstava a que tais factos fossem considerados para o elenco dos factos apurados;

iv) A recolha de esclarecimentos pelo R., em auto de inspecção judicial não importa nenhuma nulidade;

v) Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente especificar-se os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso;

vi) A omissão dos ónus, impostos no nº 1, da referida b) e nº 2, a), implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto;

vii) Pratica actos de posse, susceptíveis de conduzir à aquisição do direito de servidão de passagem, por usucapião, quem utiliza uma faixa de terreno, bem delimitada no solo, para entrada e saída de veículos de tracção mecânica e animal no prédio dos AA, por onde também se carregava o estrume e entravam as alfaias agrícolas, com o carrinho de mão, a pé e automóveis, caminho entretanto substituído por paralelepípedos, desde há mais de vinte anos, continuada, pública e pacificamente, na convicção de exercer um direito próprio e de não lesar direitos de outrem.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

 

1. AA, BB, CC, DD, todos residentes em ..., EE, residente em ..., FF, e GG, residentes em ..., todos por si e na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de HH, intentaram acção declarativa contra II e JJ, casados, residentes em ..., peticionando que:
a) Ser declarado que a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de HH, é dona e legítima proprietária do prédio identificado no anterior artigo 10º;
b) Serem os RR condenados a reconhecerem a propriedade plena da herança ilíquida e indivisa sobre o referido prédio;
c) Serem os RR condenados a reconhecer que o seu prédio identificado no anterior artigo 14º se encontra onerado com uma servidão a pé e por veículos de tração mecânica, com a largura de 2,5 metros e o comprimento de 12 metros, na extrema sudeste do seu prédio, constituída por destinação de bom pai de família, ou,
d) Subsidiariamente e caso assim se não entenda, serem os RR. condenados a reconhecerem o direito de passagem dos AA, nos moldes identificados na anterior alínea c), constituído por usucapião;
e) Serem os RR condenados a reconhecerem que tal servidão parte da Rua ... e se inicia pelas aberturas identificadas no anterior artigo 39º e segue o percurso identificado no anterior artigo 46º, até atingir a abertura do prédio da herança identificada no anterior artigo 34º;
f) Serem os RR. condenados a repor a configuração inicial das entradas elencadas no anterior artigo 39º, mantendo as mesmas livres e desimpedidas;
g) Serem os RR condenados a absterem-se, por qualquer forma ou meio, de impedir, limitar, dificultar ou perturbar o direito de livre acesso e passagem dos AA. pelo percurso identificado no anterior artigo 46º;
h) Serem os RR condenados a pagar à 1ª A. a quantia de 3.500 €, por conta dos danos morais sofridos por estes.

Alegaram, em síntese, que os prédios dos quais os autores e réus são proprietários advieram de um mesmo prédio mãe (actualmente prédios confinantes), tendo a 1ª autora, juntamente com o seu falecido marido, exercido actos de posse sobre o prédio do qual se arrogam proprietários, isto desde os inícios da década de 70, local onde edificaram a sua habitação. Referem que aquele prédio lhes foi doado verbalmente pelos seus anteriores proprietários, razão pela qual, face aos actos de posse exercidos e ao período temporal durante o qual os mesmos ocorreram, consideram ser a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu marido sua legitima proprietária, invocando para o efeito a aquisição pela via da usucapião.  Referem igualmente que o seu prédio sempre foi composto por duas aberturas, uma delas em frente à fachada da residência aí edificada (estrema nascente), e a outra junto à estrema norte, a qual tem a dimensão de 7,10 metros e não tem contacto com a via pública, acedendo à mesma através de uma passagem (melhor identificada quanto à sua configuração na petição inicial) que se iniciava junto à entrada para o prédio dos réus e desembocava junto à aludida entrada na estrema nascente. Referem que essa passagem e aberturas existem há mais de 40 anos, sempre tendo passado pela mesma a pé e de veículos de tracção. Sucede que os réus têm vindo a impedir a passagem dos autores no aludido caminho de acesso ao prédio do qual se arrogam proprietários, colocando obstáculos no seu trajecto e um portão junto à entrada de acesso ao mesmo, situação que se mantém até à presente data. A 1º A. sofreu danos morais com tal conduta.

Em momento posterior, vieram os autores referir que no dia 29 de Janeiro de 2022 os Réus procederam à colocação de pedras de granito na parte onde desembocava a servidão de passagem em causa, fazendo um muro a separar o prédio dos autores do prédio dos réus. No mesmo acto, retiraram os paralelepípedos que se encontravam a pavimentar a aludida passagem. Como consequência de tal conduta dos Réus, peticionam que:
a) Serem os RR condenados a remover as pedras identificadas no anterior artº 3º e consequentemente o muro construído no dia 29 de janeiro de 2022 e a repor a passagem como a mesma se encontrava antes das citadas obras;
b) Serem os RR. condenados como litigantes de má-fé e, por via disso, a pagarem uma indemnização aos AA. de valor nunca inferior a 3.000 € e no pagamento de uma multa a fixar.

Os réus contestaram, aceitando parte da factualidade alegada pelos utores na sua petição inicial, mas impugnando aquela que contende com a aquisição do direito de propriedade sob o prédio identificado no artigo 10º daquele articulado, assim como a matéria que contende com a alegada constituição da servidão de passagem que os autores afirmam onerar prédio dos réus. Referem, ainda, que os autores, a terem acedido ao seu prédio através do prédio dos réus, apenas o terão feito por razões de familiaridade e boa vizinhança, ou seja, por mera tolerância. Concluem que a acção deverá ser julgada totalmente improcedente. Vieram, ainda, os réus pugnar pela improcedência do pedido adicionado pelos autores, alegando que as obras entretanto realizadas no local se deveram a um mero exercício legítimo do seu direito enquanto proprietários daquele prédio.

Foi proferido despacho saneador, no qual foi admitida a ampliação do pedido nos termos exarados pelos autores no seu anterior requerimento sob a referida a).

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente e, em conformidade decidiu:

a) Reconhecer que a Herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito de HH e aqui representada pelos AA, é proprietária do prédio descrito na matriz predial urbana da União das Freguesias ... e ..., do concelho ..., sob o artigo ...11, composto de casa de habitação, quintal e um anexo, que confronta do nascente com estrada e a norte com II e mulher JJ, tendo esse direito sido adquirido por usucapião;

b) Condenar os RR a reconheceram que o prédio inscrito na matriz predial rústica, sob o artigo ...87, sito à ..., limite da freguesia ..., do concelho ..., se encontra onerado com uma servidão de passagem a pé e de veículos de tracção mecânica, a favor do prédio rústico descrito na matriz predial urbana da União das Freguesias ... e ..., do concelho ..., sob o artigo ...11, composto de casa de habitação, quintal e um anexo, pelo traçado identificado nos pontos 19 3 23 da matéria de facto dada como provada, tendo a servidão sido constituída por usucapião;

c) Condenar os RR a manter o acesso à servidão identificada em b) livre e desimpedida, bem como a remover as pedras identificadas no ponto 37 da matéria de facto dada como provada e na reposição integral da faixa de terreno como antes se encontrava antes dos factos descritos no ponto 38 da matéria de facto provada;

d) Absolver os RR dos demais pedidos deduzidos pelos AA.

*

2. Os RR recorreram, tendo formulado a seguintes conclusões:

F.1) Quanto à matéria de facto

1. Não se consideram de relevo para o presente recurso os factos considerados como provados na decisão recorrida constantes dos factos provados de 1º a 15º e ainda 28º e seguintes.

2. Quanto aos factos provados de 16º a 18º eles não dizem respeito à servidão pretendida pelos autores, mas sim ao acesso direto da casa do artigo 10º à via pública, sendo por isso irrelevantes.

3. Relativamente aos factos provados de 19º a 23º devem também ter-se como irrelevantes para a decisão do presente recurso na medida em que a abertura a que se reportam, resulta da vedação do prédio dos réus, com a colocação de um portão, factos ocorridos há cerca de 1 ano.

4. Contudo, quanto aos factos 19º a 22º, não estão sequer incluídos nos temas de prova e por isso não podem ser considerados provados seja qual for o seu significado, sob pena de nulidade, ao abrigo do disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC.

5. Com o acréscimo de que, quanto ao trânsito de alfaias e outras máquinas agrícolas, não foi produzida qualquer prova, pelo que, por cautela, deverá alterar-se a matéria de facto dando-se como não provado o trânsito destes equipamentos, no facto dado como provado em 22º.

6. Os factos provados de 24 a 27 deverão ser dados comos não provados, na medida em que não foi produzida qualquer prova quanto à existência de sinais visíveis e permanentes reveladores da servidão.

7. Assim como, não foi produzida qualquer prova sobre o animus possidendi referido no facto provado 17º, devendo este dar-se como não provado, porquanto erradamente se pretende abranger no mesmo o exercício da servidão de passagem a que os autos se reportam.

8. Devendo para estas alterações de facto ter-se em conta o âmbito de toda a prova produzida ou não produzida, mas particularmente as declarações de parte da autora BB constante o habilus 10/11/2022 12:02:17 a 12:14:00, folhas 1 a 8 e pela marca da incredibilidade o depoimento de KK, habilus 10/11/2022 15:24:31 a 15:36:44, folha 78.

9. Ademais, não foi alegado ou provado qualquer facto que permitisse concluir que a passagem efetuada pelos réus se referia a uma posse efetiva num direito de servidão.

10. E pretendendo os autores demonstrar que o trânsito para o atual prédio dos réus remonta há época em que a D.ª AA e seu marido criaram os seus filhos na casa do art. 10º, necessariamente por mera tolerância do dono da parte onde veio a ser construída a casa dos réus,

11. não alegaram e muito menos provaram qualquer facto que permitisse concluir pela inversão do título de posse, pelo que a passagem pelo prédio dos réus era necessariamente precária e fundada na mera tolerância destes, nos termos do art. 1290.º do CC.

12. Posição esta reforçada pelo facto de os autores terem procurado evidenciar com a exibição de uma planta camarária que o seu terreno se alargava para o dos réus precisamente sobre a faixa por onde exerciam a passagem - logo não havia animus possidendi de passagem sobre o prédio alheio.

13. Sendo o instituto da usucapião fundado na comunhão de dois requisitos (corpus e animus), não se encontram reunidas as condições, nos termos do art. 1287.º e 1290.º do CC.

F.2) Quanto à matéria de direito

14. A constituição de direitos reais por usucapião tem de obedecer aos requisitos impostos pelo art. 1287º e ss do Código Civil que impõe a prova do animus possidendi.

15. No caso dos autos, esse animus não foi evidenciado, mas, pelo contrário, demonstrou-se que a passagem dos autores pelo prédio dos réus sempre foi exercida, desde a sua origem, por razões de solidariedade e boa vontade, tendo em conta as relações de familiaridade e boa vizinhança, nunca se tendo invertido o título de posse.,

16. Por outro lado, a constituição de servidões com base na usucapião tem de preencher os requisitos do disposto no art 1548º do Código Civil, tendo por isso as mesmas que se revelarem por sinais visíveis e permanentes.

17. A jurisprudência e a doutrina, unanimemente exigem a prova da evidência inequívoca e material dos sinais permanentes e do seu significado revelador da servidão, no sentido de serem percecionáveis e interpretáveis como tais pela generalidade das pessoas que se confrontem com eles.

18. Tais sinais não foram alegados e muito menos demonstrados o que torna manifestamente inviável a improcedência da ação.

19. Para além disso, há os aspetos formais relativos à existência das várias causas de pedir contraditórias e as contradições insanáveis entre estas e o pedido.

20. Isto para além do interesse em agir, conforme no texto se procurou demonstrar.

21. Tais vícios processuais poderiam levar ao seu reconhecimento e à extinção da instância, o que conduziria a uma segunda audiência de julgamento sem qualquer efeito útil pois sempre ficaria indemonstrado o animus possidendi e a total falta se sinais que permitissem a procedência da ação.

22. O mesmo aconteceria relativamente ao facto do Sr. Juiz ter utilizado na sua fundamentação declarações alegadamente proferidas pelo réu II durante a diligência de inspeção ao local (as quais não se encontram gravadas e não foram ouvidas, pelo menos, pelo mandatário dos réus), constitui uma grave violação do princípio do contraditório e eventualmente de igualdade das partes, constituindo uma nulidade que expressamente invoca, nos termos do art. 4.º do CPC e das regras de produção de prova, designadamente, arts. 452.º e 466.º do CPC.

23. Deste modo e tendo em conta o princípio da economia processual é inútil decretar-se a extinção da instância por razões formais quando a ação não oferece de forma definitiva viabilidade material.

24. A decisão recorrida violou assim e além do mais, os arts. 577.º, alínea c), 578.º, 278.º, alínea c) e n.º 3, art.º 4, art.º 452.º e 466.º do CPC e 1287.º, 1290.º e 1548.º do CC, pelo que deverá ser revogada julgando-se a ação totalmente improcedente, absolvendo-se os réus de todos os pedidos.

3. Os AA contra-alegaram, concluindo que:

A) A sentença em recurso não é digna de qualquer reparo ou de qualquer alteração;

B) A mesma respeitou todos os critérios legais, baseada num claro julgamento sobre as provas apresentadas;

C) O Tribunal a quo enunciou corretamente os contornos do litígio, com identificação clara dos pedidos formulados, a par da síntese dos respetivos fundamentos (causa de pedir), tendo culminado com a enunciação das “questões jurídicas” que apreciou com toda a imparcialidade e correção, dignos de elogio;

D) No mais, não será com o recurso apresentado que se poderá fazer improceder a presente sentença que, de forma fiel e fortalecida, respeitou o mais criterioso dever de verdade material.

E) Apesar de os Recorrentes não identificaram concretamente a decisão alternativa que, na sua ótica, deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas;

F) Há uma clara violação do ónus de alegação contido no artigo 640º do CPC;

G) O recurso apresentado terá que ser rejeitado, por não se encontrarem preenchidos todos os requisitos a que alude o artigo 640º do CPC.

H) Foi devidamente valorizada a matéria de fato;

I) Existem vários trechos de depoimentos de testemunhas dos quais é possível extrair que a realidade do que se passou na audiência de discussão e julgamento é muito díspar, quando comparada com aquela que os Recorrentes pretendem transparecer junto do Tribunal ad quem.

J) O depoimento da testemunha LL, de referência 20221110144618_948464_2870929, assume particular enfoque para o que aqui importa no minuto 02:29 a 07:38, bem como o depoimento da testemunha MM, de referência 20221110150648_948464_2870929, em especial no minuto 03:13 a 05:30 e 05:50 a 07:00 e ainda o da testemunha KK, de referência 20221110152429_948464_2870929, mais concretamente no minuto 01:57 a 02:54, 03:16 a 03:39 e 03:55 a 07:25.

K) De igual modo, o depoimento da testemunha NN, de referência 20221110153732_948464_2870929, com particular incidência no minuto 02:53 a 05:30 e também o depoimento da testemunha OO, de referência 20221110154925_948464_2870929, em especial no minuto 02:39 a 04:16, 05:24 a 06:07 e, outrossim, o depoimento da testemunha PP, de referência 20221110160141_948464_2870929, sobretudo no minuto 03:34 a 05:17, foram cruciais.

L) Foram, pois, os depoimentos supraelencados que permitiram a prova dos factos que foram dados como provados nos pontos 1 a 39 da douta sentença.

M) Estas testemunhas denotaram um conhecimento vivenciado e concreto dos factos.

N) Tais depoimentos foram isentos, imparciais, objetivos, claros e desprovidos de interesse na decisão da causa.

O) Tendo em conta que, nos termos do disposto no artigo 342º do Código Civil, “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, era sobre os AA., aqui Recorridos, que impendia tal ónus, a que os mesmos deram cabal cumprimento.

P) Existiram nos autos diversos factos articulados nas peças processuais que foram admitidos por acordo das partes.

Q) A inspeção ao local fez com que o Tribunal a quo aferisse in loco as características do local da servidão de passagem, bem como as concretas medidas das aberturas/passagens identificadas nos autos.

R) Os Recorrentes nunca colocaram em crise a utilização da passagem, pelos Recorridos, no seu prédio.

S) Da prova produzida na audiência de discussão e julgamento em primeira instância resulta que o acesso (passagem) foi sempre feito pelos Recorridos no exercício de um direito próprio;

T) A generalidade das testemunhas asseverou que, para aceder ao prédio dos Recorridos, utilizavam a entrada e o trajeto identificados nos autos, sem pedir autorização a quem quer que fosse, umas vezes a pé, outras de carro, outras de trator, à vista de toda a gente, durante cerca de 45 anos, sem lesar os interesses de quem quer que fosse, à vista de toda a gente e nos termos do ponto 27 da matéria de facto dada como provada.

U) A representação do trajeto no registo fotográfico, que foi aceite pelos Recorrentes, prova o trilho e os sinais visíveis e permanentes da existência da passagem.

V) O caminho descrito nos autos, ainda que inicialmente em terra batida, foi constituído e tem vindo a ser utilizado pelos Recorridos há mais de 20 anos, o que foi feito de forma contínua e sem interrupção, dando-lhe estes o uso contemplado nos autos.

W) Os mesmos utilizaram tal caminho à vista de toda a gente, sem oposição e na convicção de exercerem um direito próprio (factos provados 19 a 28).

X) Os Recorridos procederam daquela forma, durante mais de 20 anos.

Y) Os mesmos só deixaram de o fazer após os Recorrentes terem colocado um portão no local, sem terem entregue aos Recorridos uma chave para que a ele pudessem aceder.

Z) Em ato contínuo, os Recorrentes ainda colocaram obstáculos no caminho supracitado e retiraram todos os paralelos colocados naquela parte do trilho e tapado o mesmo com pedras de granito.

AA) Existe uma servidão de passagem constituída a favor dos Recorridos, que onera o prédio dos Recorrentes e que se constituiu por usucapião, tal e qual conforme consta (e muito bem) da douta sentença

proferida pelo Tribunal a quo.

BB) Tal passagem possui sinais visíveis e permanentes, corporizados na pavimentação com paralelos que existiu até ao mês de janeiro de 2022, altura em que os Recorrentes colocaram o portão e os obstáculos já

enumerados.

CC) Estamos na presença de uma servidão aparente.

DD) Os Recorrentes não lograram fazer qualquer prova dos factos por si articulados.

EE) Os Recorrentes prescindiram da inquirição das testemunhas por si arroladas.

FF) A petição inicial foi escrita em espírito de total sintonia e em estrita obediência no que toca aos mais elementares princípios processuais.

GG) Não há qualquer contradição entre a causa de pedir e os pedidos formulados pelos Recorridos.

HH) As partes em litígio são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, detendo legitimidade para o efeito.

II) Esta situação foi alvo de pronúncia no ponto I do despacho saneador proferido nos autos.

JJ) O despacho saneador não foi objeto de qualquer crítica e/ou censura por parte dos Recorridos.

KK) Não se verificou qualquer reclamação contra o mesmo pelas partes, motivo pelo qual o mesmo transitou em julgado.

LL) Desta ausência de impugnação infere-se que os Recorrentes se conformaram com o seu teor.

MM) Precludiu o direito de os Recorrentes virem agora, só em sede de recurso, levantar tal questão.

NN) De forma similar, os Recorrentes também não reclamaram dos temas da prova vertidos no despacho saneador.

OO) Também quanto a tal temática a questão se encontra consolidada na ordem jurídica, atenta a falta de reclamação contra a mesma.

PP) Não é possível aos Recorrentes virem agora lançar mão de um direito que já não lhes assiste.

QQ) A inspeção ao local realizada nos autos pautou-se pelo mais rigoroso respeito pela Lei e pelas partes.

RR) A mesma teve o desiderato de clarificar os factos articulados nos autos.

SS) Por via de tal diligência, foi possível ao Tribunal a quo ter uma perceção direta dos factos, observados in loco.

TT) No auto da inspeção foram registados todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa.

UU) Tal auto foi redigido na presença das partes, que concordaram com o seu teor.

VV) Foram as partes que, de forma voluntária e livre, quiseram fornecer esclarecimentos ao Tribunal a quo, no decurso da diligência.

WW) Não subsistem dúvidas de que, no decurso de tal diligência, o R. marido, aqui Recorrente, esclareceu o Tribunal a quo, ao referir o seguinte: “Os Autores efetivamente passavam no caminho em discussão nos autos e que o faziam a pé, de carro e trator”.

XX) Configura clamorosa má-fé o facto de os Recorrentes, em sede de recurso, virem colocar este seu próprio esclarecimento em causa.

YY) Os dois pressupostos da usucapião (animus e corpus) ficaram demonstrados nos autos, pois que os mesmos resultaram da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.

ZZ) O Tribunal a quo norteou toda a sentença que proferiu em estrito cumprimento e observância dos mais elementares deveres de imparcialidade e isenção, que sobre o mesmo impendem, não padecendo a decisão de qualquer vício e/ou reparo.

AAA) Deverá manter-se a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, nos precisos moldes aí contemplados, sem alteração, em termos de decisão, da matéria de facto e da matéria de direito.

TERMOS EM QUE,

Deve a presente resposta ao recurso merecer provimento em toda a sua extensão, e, em consequência, manter-se a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.

Só assim decidindo, farão V. Exas.

A tão acostumada

JUSTIÇA!!!

II - Factos Provados

1. A Autora AA foi casada segundo o regime da comunhão geral de bens com HH.

2. HH faleceu no dia .../.../1991, na freguesia ... (...), concelho ..., no estado de casado em primeiras e únicas núpcias de ambos, tendo como última residência o lugar de ..., freguesia ..., concelho ....

3. HH deixou como seus únicos e universais herdeiros a sua esposa, aqui 1ªAutora e sete filhos, os Autores BB, CC, DD, EE, FF, GG e o Réu II.

4. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias ... e ..., do concelho ..., sob o artigo ...11, não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., o prédio urbano composto de casa de habitação, quintal e um anexo, que confronta do nascente com estrada e a norte com os Réus.

5. O prédio identificado em 4 foi dado verbalmente à 1.ª Autora e ao seu marido por QQ, RR, SS e LL, filhos de TT, irmã da 1.ª Autora já falecida, na qualidade de herdeiros da mesma.

6. Após, a casa e respectivo anexo foram edificados no prédio descrito em 4 pela 1.ª Autora e pelo seu marido HH nos inícios da década de 1970.

7. A aludida construção, à data da sua execução, estava isenta de licença de obras e, consequentemente, de autorização de utilização.

8. Encontra-se inscrito na matriz predial rústica, sob o artigo ...87, o prédio sito à ..., freguesia ..., do concelho ..., que confronta a norte e poente com caminho, a nascente com estrada e a sul com os Autores, sito na Rua ..., ..., concelho ....

9. O prédio identificado em 8 foi adquirido pelos Réus através de uma escritura pública de justificação e compra e venda celebrada no Cartório Notarial ... no dia 25 de janeiro de 1990, constando como primeiros outorgantes QQ, por si e na qualidade de procurador de RR, SS e LL, e os aqui Réus como terceiros outorgantes, onde os primeiros declararam, além do mais, vender aos terceiros aquele prédio, tendo estes aceitado comprar.

10. Os Réus edificaram uma habitação no prédio identificado em 9, passando aí a residir.

11. Os prédios identificados em 4 e 9, antes de pertencerem a Autores e Réus, integravam um só prédio.

12. Os prédios identificados em 4 e 9 confinam, respectivamente, pelos seus lados norte e sul.

13. A 1ª Autora, assim como o seu falecido marido, desde a construção da aludida habitação que passaram a residir no prédio identificado em 4, sendo aí que criaram os seus filhos e detiveram toda a sua vida familiar e doméstica, pagando os competentes impostos, usufruindo de todas as utilidades de que aquele é suscetível, pagando a água e a luz inerentes ao mesmo, efectuando igualmente obras de conservação e melhoramento.

14. Foi no anexo aí existente que, desde a sua construção, a 1ª Autora veio a desenvolver a sua atividade de produtora de doces regionais, produzindo igualmente pão.

15. O anexo é composto por forno de lenha, cozinha e uma pequena sala de jantar.

16. Tais atos foram praticados à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e ininterruptamente desde a sua aquisição.

17. A 1.ª Autora e o seu marido sempre atuaram na verdadeira convicção de estarem a exercer um direito próprio sobre o prédio identificado em 4.

18. O acesso à porta principal da casa edificada no prédio identificado em 4 é feito através de um pequeno portão junto ao caminho público, com 1,10 metros, junto à estrema nascente, ao qual se seguem degraus até aceder à respectiva entrada da casa.

19. Desde há mais de 20 anos que o prédio dos Réus identificado 9 possuía uma abertura na sua extrema sudeste junto à estrada com, sensivelmente, 4 metros de largura.

20. Para além da entrada referida em 18, a 1.ª Autora, o seu falecido marido e os seus filhos, bem como todos aqueles que frequentavam o seu prédio, faziam-no através da abertura referida em 19.

21. Mais concretamente, era através da abertura identificada 19 que os veículos de tração mecânica e animal entravam e saiam do prédio dos Autores.

22. Através da abertura referida em 19, a 1.ª Autora, o seu falecido marido e os seus filhos carregavam o estrume, entravam com as alfaias agrícolas, com o carrinho de mão, a pé e, inclusive, com os seus próprios automóveis.

23. O acesso ao seu prédio nos termos dos artigos anteriores era efectuado partindo do caminho público designado por “Rua ...”, com entrada pela abertura identificada em 18, percorriam um caminho no sentido nascente-poente com cerca de 12 metros de comprimento e 2,50 metros de largura, fletindo para sul até atingirem uma abertura com a 7,10 metros que exista na delimitação entre os prédios dos Autores e dos Réus.

24. Esse caminho era inicialmente constituído por terra batida.

25. Em data não concretamente apurada o Réu pavimentou com paralelepípedos de granito o referido caminho.

26. Os Réus utilizam a mesma entrada para aceder ao seu prédio.

27. Os factos praticados nos anteriores artigos 19.º a 23.º, foram concretizados pela 1ª A., pelo seu falecido marido e pelos seus filhos, há mais de 20 anos, à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja e ininterruptamente.

28. Sempre na verdadeira convicção de estarem a exercer um direito próprio.

29. Desde Julho de 2021 que os Réus têm vindo a impedir o acesso dos Autores ao seu prédio utilizando o caminho referido em 23.

30. Para o efeito colocaram andaimes, paletes e um trator no caminho.

31. Colocaram uma chapa de zinco fixa que ocupa 1,40 metros entre a delimitação dos prédios junto à Rua ... e a entrada referida em 19.

32. Colocaram um portão automático que ocupa os restantes 4 metros da entrada identificada em 19.

33. Na sequência dos factos descritos, a 1.ª Autora não tem conseguido transportar lenha, marmelos, vides, abóboras e farinha com recurso a veículos de tracção mecânica, animal e carrinhos de mão para o interior do seu prédio.

34. A 1.ª Autora apenas consegue fazer o transporte referido em 33 a pé e através da entrada referida em 18.

35. No verão de 2021 os filhos da 1.ª Autora e os seus filhos não conseguiram entrar com os seus veículos utilizando o caminho identificado em 23.

36. Os Réus não entregaram aos Autores qualquer chave ou comando do portão referido em 32.

37. No dia 29 de Janeiro de 2022, na abertura junto à residência da 1.ª Autora e onde desemboca o caminho identificado em 23, os Réus colocaram três pedra de granito que ocuparam toda a sua extensão.

38. No mesmo dia os Réus também retiraram os paralelepípedos existentes em toda a extensão da na passagem identificada em 23, desde a entrada identificada em 19 até à zona onde colocaram as aludidas pedras de granito.

39. Os actos referidos em 37 e 38 foram praticados pelos Réus sem prévio conhecimento ou autorização dos Autores.

 

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC).

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade da sentença.

- Contradição entre causas de pedir e destas com o pedido.

- Falta de interesse em agir.

- Alteração da decisão da matéria de facto.

- Inexistência de servidão de passagem a favor do prédio dos AA sobre o prédio dos RR.

2. Os Réus suscitaram a nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no art. 615º, nº 1, d), do NCPC, porquanto os factos 19º a 22º, não estavam sequer incluídos nos temas de prova e por isso não podem ser considerados provados, seja qual for o seu significado (cfr. conclusão de recurso 4.).

De acordo com tal normativo, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Esta arguição é manifestamente de indeferir.  

Por um lado, nem os RR justificam qual seria a apontada nulidade, face ao texto legal, se omissão se excesso de pronúncia.

Se os RR configuraram esta última hipótese, incorrem em óbvia confusão, pois uma coisa é a nulidade da sentença, outra é a suposta inclusão na decisão da matéria de facto de factos não incluídos nos temas da prova, que poderia ser um vício da aludida decisão da matéria de facto, mas não da sentença.

Nulidade da sentença, nunca poderia, na verdade ser, pois as “questões” a que a apontada norma legal se refere, são os pedidos deduzidos, as causas de pedir e excepções invocadas e todas as questões de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, do NCPC, e Lebre de Freitas, em A Ação Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013, 3ª Ed., págs. 334/335). O que nada tem a ver com eventual vício da decisão da matéria de facto.

Improcede, esta parte do recurso.

3. Também invocaram que existia contradição entre causas de pedir e destas com o pedido (cfr. conclusão de recurso 19.). Ou seja, ineptidão da p.i. (art. 186º, nº 1 e 2, do NCPC).

Haja ou não haja, não interessa agora, pois o momento para arguirem tal nulidade principal já há muito passou. Devia ter sido ser arguida o mais tardar na contestação, nos termos do art. 198º, nº 1, do mesmo código, a ser apreciada no despacho saneador, que nos presentes autos foi proferido (art. 200º, nº 2, do NCPC). Agora está precludida tal arguição.

Indefere-se, pois, esta parte do recurso.

4. Igualmente invocam falta de interesse em agir (conforme no texto se procurou demonstrar) – cfr. conclusão de recurso 20.

Esta alegação é confusa, porque no texto do corpo das alegações (pág.33) o que os RR dizem é que os autores são partes ilegítimas por manifesta falta de interesse direto em agir. Na verdade, esta exigência de interesse direto decorre da Lei (art. 30.º, n.º 1 do Código do Processo Civil), pois, o facto de serem titulares da herança, quando muito, apenas lhes conferiria interesse indireto na demanda e não legitimidade para serem partes na ação.. Ou seja, há uma aparente confusão entre dois pressupostos processuais diferentes, a legitimidade e o interesse em agir, que os apelantes misturam. Mas depois, percebe-se que o elemento inciso que pretendem questionar é a ilegitimidade ao mencionarem o art. 30º, nº 1, do NCPC, e o interesse directo. Portanto os RR questionam a legitimidade dos AA.

Os AA, nas contra-alegações, objectam que este tema já foi objecto de pronúncia no despacho saneador, pelo que não pode ser agora levantado, pois já transitou em julgado o decidido. Não é correcta tal afirmação, porque inexistiu qualquer pronúncia em concreto, ela foi meramente genérica e tabelar, e só uma decisão que aprecie em concreto tal pressuposto processual tem valor de caso julgado formal, como resulta do art. 595º, nº 3, 1ª parte, do NCPC. 

Prosseguindo, sobre o referido aspecto da legitimidade, há que relembrar que os AA na p.i. alegaram que todos propunham a acção por si e na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de HH

Ora, quanto a administração da herança, a lei exige, no art. 2091º, nº 1, do CC, para garantir a legitimidade, que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros. O que aconteceu, pois todos os AA são os herdeiros da referida herança. Habemus, portanto, legitimidade activa.

Não procede, esta parte do recurso.    

5.1. Quanto à decisão da matéria de facto, defendem os recorrentes que os factos 19. a 22., não estão incluídos nos temas de prova e por isso não podem ser considerados provados (cfr. conclusão de recurso 4.).

Anote-se, desde logo, que a ser verdadeira a sua alegação, os ora recorrentes podiam ter reclamado dos temas da prova (art. 596º, nº 2, do NCPC), pois isso permitiria posterior impugnação no recurso interposto da decisão final (nº 3 do apontado preceito). Mas não o fizeram. Precludiu, por isso, essa possibilidade, agora, no recurso.

Mais importante, ainda, é que a afirmação dos RR não é rigorosa ou verdadeira, pois tais factos contêm-se efectivamente nos temas da prova enunciados pelo juiz no despacho pós-saneador, designadamente nos seus pontos 4. a 8.  (consultar acta de audiência prévia de 29.6.2022) que agora se transcrevem “4. Características do trajeto/percurso utilizado para aceder ao prédio descrito no artigo 10.º da petição inicial; 5. Atos realizados pelos réus e que impedem os autores de aceder ao prédio descrito no artigo 10.º da petição inicial; 6. Acesso do prédio descrito no artigo 10.º da petição inicial à via pública através da abertura/entrada existente a nascente; 7. Dimensão e modo de acesso à abertura/entrada identificada em 6); 8. Impossibilidade de os autores transportarem objetos para o prédio descrito no artigo 10.º da petição inicial, através da abertura/entrada identificada em 6);“. Usámos a expressão contêm, porque o propósito do legislador de 2013 não foi reestruturar um sistema de questionário ou de base instrutória mas sim de permitir que em traços gerais, genericamente mas não abstractamente, se enunciasse os temas, que da controvérsia entre as partes, estavam sujeitos a prova. Com este sistema, a prova não deixa de incidir sobre os factos principais concretos que o autor alegou como constitutivos do seu direito, tal como plasmados nos articulados (neste sentido Lebre de Freitas, ob. cit., págs. 196/198).

E mais decisivamente é isso que acontece em concreto no nosso caso, pois os AA, em respeito pelo princípio do dispositivo e do ónus de alegação das partes, estabelecido no art. 5º, nº 1, do NCPC, alegaram justamente a matéria que veio a desembocar nos indicados factos provados, na p.i., nos seus arts. 35º a 44º, que se transcrevem “35º O prédio dos RR. identificado no anterior artigo14º possui uma abertura na sua extrema sudeste com, sensivelmente, 5,40 metros de largura – vide desenho topográfico. 36º Sendo que, tal abertura sempre se encontrou dividida em duas partes, uma de entrada a pé (vide letra G do desenho topográfico) e outra destinada ao acesso com veículos de tração animal e mecânica (vide letra H do desenho topográfico). 37º Ora, essas aberturas têm há mais de trinta, quarenta e cinquenta anos, três pilares de granito, que fazem a separação das mesmas. 38º Sendo que, a abertura identificada no anterior artigo 34º confronta diretamente com o prédio dos RR., na precisa zona da passagem para o prédio da herança, aqui A. 39º Isto porque, no prédio dos RR., as tais aberturas identificadas no anterior artigo 36º são contíguas: a) uma com 1,40 metros, que detinha um pequeno portão – vide letra G do desenho topográfico; b) outra com 4,00 metros, que sempre se encontrou, durante mais de trinta, quarenta e cinquenta anos, livre, aberta e totalmente desimpedida, sem possuir qualquer portão – vide letra H do desenho topográfico. 40º Assim, foi sempre por estas duas aberturas identificadas nos anteriores artigos 36º e 39º que, diariamente, tanto 1ªA., como o seu falecido marido, como os seus filhos, bem como todos aqueles que frequentavam o dito prédio da herança, conseguiam ter acesso ao mesmo. 41º Foi sempre pela abertura identificada na alínea b) do anterior artigo 39º que os veículos de tração mecânica e animal entravam e saiam do aludido prédio. 42º Concomitantemente, foi sempre através dessas aberturas identificadas nas alíneas a) e b) do anterior artigo 39º que a 1ªA., o seu falecido marido e os seus filhos carregavam o estrume, entravam com as alfaias agrícolas, com o carrinho de mão e inclusive com os seus próprios automóveis. 43º Deste modo, quando se dirigiam para o prédio a pé, utilizavam a abertura identificada na alínea a) do anterior artigo 39º. 44º Ao passo que, quando a entrada e/ou saída era concretizada com veículos de tração mecânica ou animal ou quando se efetuava o transporte de objetos mais pesados, a mesma era feita pela abertura identificada na alínea b) do anterior artigo 39º.”.   

Por conseguinte, nada obstava a que tais factos fossem considerados para o elenco dos factos apurados, designadamente os provados. Assim, não procedendo esta parte do recurso.

5.2.  Os recorrentes alegam que não foi produzida qualquer prova sobre o animus possidendi referido no facto provado 17., devendo este dar-se como não provado, porquanto erradamente se pretende abranger no mesmo o exercício da servidão de passagem a que os autos se reportam. (cfr. conclusão de recurso 7.).

Salvo o devido respeito, os apelantes laboram em erro, pois o animus possidendi referido no apontado facto 17. não respeita ao exercício da servidão de passagem – para tanto apurou-se o facto provado 28. -, mas sim ao animus possidendi do prédio dos AA referido no facto 4. É o que resulta claramente da conjugação de tais factos. Manifestamente os RR não têm razão.

Indefere-se, pois, esta parte da apelação.  

5.3. Também os apelantes esgrimem com a circunstância de o Sr. Juiz ter utilizado na sua fundamentação declarações alegadamente proferidas pelo réu II durante a diligência de inspeção ao local (as quais não se encontram gravadas e não foram ouvidas, pelo menos, pelo mandatário dos réus), o que constitui uma grave violação do princípio do contraditório e eventualmente de igualdade das partes, constituindo uma nulidade que expressamente invoca, nos termos do art. 4º do NCPC e das regras de produção de prova, designadamente, arts. 452º e 466º do NCPC (cfr. conclusão de recurso 22.). Não colhe esta argumentação.

Por um lado, porque a lei prevê expressamente (art. 491º do NCPC) que durante a diligência de inspecção judicial as partes podem prestar ao tribunal os esclarecimentos que ele carecer. Ora durante a inspecção judicial (vide auto de 10.11.2022), assim se exarou na acta, o R. referiu que os autores efetivamente passavam no caminho em discussão nos autos e que o faziam a pé, de carro e trator. Se o R. prestou tal esclarecimento, como consta da acta, o que podia acontecer à sombra da lei, não se divisa nenhuma nulidade, violação do princípio do contraditório ou de igualdade das partes.

Por outro lado, elaborada a acta, não se mostra que alguma reclamação tenha sido apresentada contra ela, por falsificação, inverdade, incorrecção ou irregularidade, da mesma. Além de que a assinatura do auto de inspecção pelo Juiz (art. 493º do NCPC) garante a sua fidedignidade (art. 153º, nº 3, 2ª parte, do NCPC).

Não colhe, pois, repetimo-lo, esta arguição dos recorrentes, que só se pode compreender por menor atenção.      

5.4. Igualmente os recorrentes impugnam os factos provados 22., 24. a 27., pugnando para que passem a não provados, na medida em que não foi produzida qualquer prova. Devendo para estas alterações de facto ter-se em conta o âmbito de toda a prova produzida ou não produzida, mas particularmente as declarações de parte da A. BB e o depoimento incrédulo de KK (cfr. conclusões de recurso 5., 6. e 8.).

Os AA, nas suas contra-alegações, entendem que o recurso deve ser rejeitado, por os recorrentes não identificarem concretamente a decisão alternativa que, na sua ótica, deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, não se encontrando preenchidos todos os requisitos a que alude o artigo 640º do NCPC.

O julgador exarou a seguinte motivação para a tomada da sua decisão de facto:

“A formação da convicção do tribunal fundou-se na análise crítica e aglutinada da prova documental que instruiu os presentes autos, concatenando-a com aquela que viria a ser produzida em sede de audiência de julgamento, mormente dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos Autores, assim como nas declarações de parte dos Autores BB e CC. No que concerne ao contributo probatórios dos Réus o mesmo foi inexistente, porquanto, fazendo os mesmos uso de tal prerrogativa, prescindiram da inquirição de todas as testemunhas por si arroladas.

Por outro lado, mostrou-se de enorme importância para a prova da factualidade dada como provada a inspecção realizada ao local, tal como se mostra devidamente documentada através da respectiva acta, permitindo assim a este tribunal aferir in loco as características do local em disputa nos presentes autos, assim como as concretas medidas das aberturas/passagem identificadas pelos Autores na petição inicial.

Contudo, partindo-se para a audiência de julgamento, grande parte da matéria de facto alegada pelos Autores já se encontrava admitida por acordo, isto na medida em que não foi objecto de impugnação, prendendo-se as questões controvertidas essencialmente quanto a determinados factos que contendem directamente com a constituição da invocada servidão de passagem.

Concretizando.

(…)

Por último, chegamos aos factos nucleares que contendem com o pedido principal dos Autores, ou seja, aqueles que dizem respeito à constituição da servidão de passagem em benefício do prédio dos Autores e que onera o prédio dos Réus.

Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que os Réus no seu articulado não chegam a por verdadeiramente em causa a utilização daquela passagem de acesso ao seu prédio por parte dos Réus. Tendo impugnado aqueles factos, acabam por referir que “se algum dia se passou de um lado para outro, isso só terá acontecido por razões de familiaridade e boa vizinhança”. Tal posição parece-nos, só por si, ser reveladora de que os Réus, na realidade, já não punham em causa a prática daqueles actos por parte dos Autores, questionando o título a que o faziam, ou seja, se o faziam no exercício de um direito próprio, ou se o faziam por uma mera tolerância face às alegadas “razões de familiaridade e boa vizinhança”. Acontece que tal interpretação foi desde logo corroborada pelo próprio Réu II, o qual, em sede de inspecção ao local, acabou por referir que os Autores passavam efectivamente no caminho em discussão nos autos e que o faziam a pé, de carro e trator (vide acta da audiência de julgamento realizada no passado dia 10.11.2022).

Complementarmente, a generalidade das testemunhas arroladas pelos Autores vieram, de uma forma mais ou menos concretizada, referir precisamente isso, ou seja, que em determinados pontos das suas vidas, para aceder ao prédio dos Autores utilizavam a aludida entrada e trajecto, especificando que nunca lhes foi negada a entrada por quem quer que fosse (LL, MM, KK, NN, OO e OO, relatando, na intervenção a que a cada uma diz respeitos, os acessos com os carros e tratores, ora em situações de visita, ora de prestação de serviços para a 1.ª Autora - por exemplo com carregamento de lenha e estrumes).

Assim, sem necessidade de apreciações detalhadas (nesta parte) quanto à credibilidade das aludidas testemunhas, a verdade é que o relato das mesmas no sentido de acederem ao prédio dos Autores por aquela entrada mostra-se compatível com a própria confirmação nesse sentido do Réu II, pelo que não ficou o tribunal com dúvidas de que a mesma era utilizada nos moldes referidos pelos Autores na sua petição inicial.

Já no que concerne à dimensão da entrada e trajecto até atingir a abertura na parte em que se divide o terreno dos Autores do terreno dos Réus, bem como da configuração do piso daquele trilho, confluíram para a prova de tais factos quer o resultado da inspecção ao local, onde o tribunal pôde realizar as medições em causa como consta da respectiva acta, bem como da análise dos registos fotográficos juntos com a petição inicial, com requerimento de ampliação do pedido e percepção do tribunal aferida directamente (corporizada também em registo fotográfico) em sede de inspecção ao local.

Ainda assim, não podemos deixar de estar balizados pela alegação dos Antores em sede de petição inicial, tendo os mesmos alegado que o caminho em causa tinham dimensões diferentes daqueles apuradas no local (sendo que as que resultaram da inspecção realizada dizem respeito à área em que os paralelos foram retirados pelos Réus). Ademais, e no que concerne à largura do caminho, nem os autores peticionam o reconhecimento de uma servidão com as medidas apuradas na inspecção ao local, limitando a mesma a 2,5 metros.

Por outro lado, no que concerne à dimensão da entrada junto à denominada “Rua ...” e onde está colocado actualmente um portão automático, provou-se apenas que os Autores acediam ao caminho em causa essencialmente com recurso a veículos de tracção, mas também a pé, embora não tivesse sido dado como provado que o fizessem por duas entradas distintas (uma para passagem a pé e outra com veículos, a primeira com 1,10 metros e a segunda com 4 metros). Consequentemente, não se dando como provada a existência daquela segunda abertura com a dimensão de 1,40 metros, naturalmente que a dimensão da entrada terá que ficar balizada pela parte que sobeja, ou seja, pelos referidos 4 metros.

Já no que concerne ao trilho propriamente dito, é latente que no momento em que foi instaurada a petição inicial o mesmo se encontrava pavimentado com paralelos, desde a entrada principal do prédio dos Réus onde se contra actualmente o portão, até à parte onde, tal como reconhecem os Réus na resposta ao pedido de condenação por litigância de má fé, começa o terreno dos Autores. Ademais, são também os próprios Réus que confirmar terem sido os autores da remoção dos aludidos paralelos, pelo que, necessariamente, se os retiraram é porque os mesmos existiam em momento anterior.

E se assim é, tendo por boa a representação do trajecto corporizada no registo fotográfico feito pelos Autores aquando da apresentação da petição inicial (verdadeiramente também não foi posto em causa pelos Réus que tenham procedido à colocação dos paralelos), não ficamos com quaisquer dúvidas de que aquele trilho existia, constituindo aquela pavimentação a materialização de sinais permanentes da mesma (sendo certo que aqueles que tenham existido em momento anterior tenham, necessariamente, desaparecido após a colocação dos paralelos).

Para tanto releva também a análise critica e objectiva do local em questão. Como facilmente se constata, é dado objectivo que todo aquele terreno estava pavimentado em paralelo até à abertura para o terreno dos Autores. Que essa abertura/entrada também existia parece evidente, porquanto os Réus admitem ter aí colocado pedras em granito que não existiam previamente na continuação do muro que delimitava parcialmente as propriedades. Assim, quanto à pavimentação de essa parte do terreno até à dita abertura, coloca-se-nos a seguinte questão: qual o sentido de pavimentar uma parte do terreno que, tal como se pôde aferir directamente no local, não dá acesso senão ao próprio prédio dos Autores? Por outro lado, da própria forma como estavam colocados aqueles paralelos é possível perceber uma descontinuação do seu padrão precisamente na parte em que percorre o trajecto até junto do prédio dos Autores, tendo sido precisamente por aí que os Réus delimitaram a parte em que decidiram arrancar os mesmos.

Isto para dizer que todos estes elementos nos fazem concluir que aquele trilho existia nos termos referidos pelos Autores na petição inicial e que as suas dimensões são aquelas que constam da matéria de facto dada como provada.

(…)

Para concluir, resta-nos aquilo que, após todas estas considerações, podemos afirmar como sendo a matéria que se encontrava totalmente controvertida e que carecia de vir a ser provada com recurso a prova testemunhal, prendendo-se a mesma com o período de tempo em que aquele acesso foi utilizado pelos Autores.

Contrariamente ao alegado na petição inicial, dos relatos testemunhais não resultou minimamente que o acesso àquele prédio com recurso a esse trilho se tivesse iniciado desde o início da construção da residência edificada no local, uma vez que as testemunhas que relataram ter utilizado o mesmo o fazem por referência há cerca de 20/30 anos.

Mas uma coisa é certa: todas as testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, mesmo aquelas mais conservadoras a nível de localização temporal da existência daquele acesso, acabaram por reportar o mesmo há pelo menos 20 anos (como foi o caso da testemunha QQ, o qual relatou que a abertura em causa só foi feita por volta do ano de 2000 quando os Réus concluíram a casa, mas sem que conseguisse esclarecer devidamente se estava a referir-se à uma entrada pavimentada em termos semelhantes aos actuais, ou a toda e qualquer uma, na medida em que não seria possível aceder por aquele local ao prédio dos Autores. Por outro lado, referiu recordar-se de ver carros estacionados junto ao terreno dos Autores por volta dos anos 2000, mas sem que excluísse que tal não acontecesse em momentos anteriores).

Todas as outras testemunhas, cujos relatos nos pareceram minimamente sustentados e circunstanciados, sem quaisquer intenções de relatar factos não condizentes com a verdade e dos quais não tivessem conhecimento directo. Apenas um reparo/observação a fazer a duas testemunhas, nomeadamente …. e KK. …. Já a segunda testemunha apresentou-se com uma forma no mínimo insólita de relatar os factos, mas facilmente nos apercebemos que o tom do seu discurso e a forma como articulou o seu raciocínio não era relevadora de qualquer intenção de relatar factos não condizentes com a verdade, fazendo sim parte da idiossincrasia do seu discurso e exposição de raciocínio, tanto mais que sempre sustentou devidamente todas as suas afirmações.

Assim, como referimos, a generalidade das testemunhas conseguiu, através de discursos minimamente claros, objectivos e imparciais, balizando de forma suficiente os factos no espaço e no tempo, esclarecer o tribunal que as suas respectivas “interacções” com o local aqui em questão reportavam há pelo menos 20 anos. Estão em causa pessoas com ligações de amizade/familiaridade (aqui igualmente em relação aos Réus), mas também de índole mais profissional, na medida em que prestaram alguns serviços à 1.ª Autora ao longo dos anos e que implicaram a utilização daquela passagem (NN, KK e MM).

Particular destaque deve merecer o depoimento da testemunha OO, o qual evidenciou um relato isento de quaisquer reparos, afirmando de forma peremptória ter ajudado o Réu a construir a sua casa e que, desde essa altura, que já utilizava aquele caminho para aceder ao terreno dos Autores, o que nos faz concluir que isso já acontecia antes do ano 2000, pois, tal como referiu a testemunha QQ, aquela construção terminou por volta daquele ano.

Em geral, nenhuma delas transpareceu qualquer intenção de relatar factos não condizentes com a verdade e dos quais não tivesse conhecimento directo, sendo natural que, por referência a factos que remontarão há pelos menos duas décadas, se admitam algumas imprecisões/lapsos de memória, razão pela qual acabamos por não hesitar em dar aqueles restantes factos como provados, balizando a utilização da passagem há pelo menos 20 anos, sem fixação de data mais longínqua, face à impossibilidade da sua determinação mais precisa.”.

Há que recordar que a norma que regula a impugnação da decisão da matéria de facto (art. 640º do NCPC) estatui que tem de observar-se os ditames fixados no seu nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, sob pena de rejeição.

Ou seja, de tal dispositivo verifica-se que a lei exige 5 requisitos:

i) Que o recorrente obrigatoriamente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

ii) Que o recorrente obrigatoriamente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa;

iii) Que o recorrente obrigatoriamente especifique o sentido concreto da resposta, que na óptica do recorrente, se impunha fosse dado a tais pontos;

iv) E por que razão assim seria, com análise crítica criteriosa;

v) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes.  

Ao contrário do defendido pelos AA, os RR especificaram o sentido concreto da resposta, que na óptica do recorrente, se impunha fosse dado aos pontos impugnados, como acima se viu. Por isso, por aqui, com este fundamento, não pode ser rejeitado o recurso.

Mas se a impugnação se baseasse apenas na impugnação deduzida pelos recorrentes com fundamento no denominado “âmbito de toda a prova produzida ou não produzida”, estava votada à rejeição por desrespeito do 2º requisito acima elencado, o de que o recorrente obrigatoriamente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa.

Todavia, os recorrentes ainda assentam a sua impugnação na alegação de que “não foi produzida qualquer prova”. Dada a generalidade desta afirmação, ela equivale a um nada, sendo certo, até, que o julgador apresentou na sua motivação, desenvolvidamente, as provas a que se ateve para responder, como o fez, à matéria provada apurada.

E, por fim, os apelantes assentam a sua impugnação, para as alterações de facto pretendidas, nas declarações de parte da A. BB e o depoimento, que reputam incrédulo, da testemunha KK.   

Ora, a aludida impugnação, relativamente aos apontados factos provados não pode proceder, por desrespeito do quinto requisito processual apontado. Na verdade, invoca-se tais declarações de parte e depoimento testemunhal, cujas declaração e depoimento foram gravados, e registados com precisão na acta de julgamento, mas os RR não indicam as exactas passagens da gravação em que ambos terão dito o que se invoca para demonstrar probatoriamente a sua posição, antes se limitando a efectuar, segundo se aparenta, a transcrição integral duma e doutro, sendo que a transcrição é meramente facultativa, como resulta claramente, da lei. Portanto, tais declaração e depoimentos não podem ser considerados.

Improcede, por isso, in totum, a impugnação deduzida.  

6. Na fundamentação da sentença recorrida escreveu-se que:

“Sucede que os Autores, precavendo o decaimento no pedido principal de constituição da aludida servidão por destinação de pai de família, deduziram pedido subsidiário no sentido da sua aquisição por usucapião (sendo certo que uma leitura atenta do seu articulado nos faz inculcar a ideia de que, este sim, seria o pedido principal, estando a causa de pedir direcionada com mais rigor e detalhe nesse sentido).

Para os devidos efeitos, repristinamos aqui as considerações teóricas efectuadas anteriormente quanto ao instituto das servidões e respectivo modo de constituição.

No caso em análise é latente estarmos perante uma servidão voluntária e não perante o pedido de constituição de qualquer servidão legal, razão pela qual é inócua e desnecessária a alegação dos Autores no sentido da confinância, ou não, do seu prédio com a via pública.

Assim, quanto à constituição das servidões por usucapião, prevê o n.º 1 do art. 1548.º do Código Civil (à semelhança daquilo que já se encontra previsto no art. 1293.º, al. a) quanto à usucapião de imóveis) que “as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião”, referindo logo em seguida que “consideram-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes” (n.º 2).

Ao limitar a possibilidade de aquisição por usucapião às servidões aparentes, entendendo-se estas como aquelas que revelem sinais visíveis e aparentes, o legislador visou essencialmente fomentar as relações de boa vizinhança, obstado a que actos de mera tolerância ou clandestinos praticados pelo proprietário do pretenso prédio dominante se convertessem em situações jurídicas de carácter irremovível. Muitos desses casos não seriam reveladores de uma verdadeira posse, pelo que o legislador “(…) passou a exigir para a constituição da servidão sinais visíveis (destinados a garantir a não clandestinidade) e permanentes (por forma a revelarem inequivocamente a posse da servidão)”, os quais se poderão traduzir, por exemplo, na existência de um caminho, uma porta ou um portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente (Ac. STJ, de 17 de Dezembro de 2019, proc. n.º 797/17.9T8OLH.E1.S1; no mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Valera, op. cit., Vol. III, p. 627 e 628).

Ora, descendo ao caso concreto e trazendo à colação a factualidade que acabou por vir a ser dada como provada, resulta que o prédio dos Réus confina com o prédio dos Autores e, através da entrada para o prédio daqueles, estes acederam ao seu prédio durante mais de 20 anos, utilizando a entrada do prédio dos Réus e onde actualmente se encontra um portão com 4 metros. Para esse efeito, após aí entrarem, percorriam um caminho com 12 metros de comprimento e 2,50 metros de largura, até atingirem o início do seu prédio, local onde se encontrava uma abertura com 7,10 metros de comprimento. Por aí passaram também a pé, fazendo transitar também carros de tracção mecânica, tanto para que ficassem aí estacionados junto à residência, como para carregar e descarregar determinado tipo de materiais necessários à actividadade/bem estar da 1.ª Autora.

Essa faixa de terreno era, a partir de determinado ponto, caracterizada por um trilho devidamente pavimentado com paralelos colocados pelos Réus, flectindo à esquerda para o prédio dos Autores e à direita para o seu próprio prédio. Tal como já tivemos a oportunidade de referir anteriormente em sede de motivação da matéria de facto, é latente que tal configuração desse trilho tinha como propósito exclusivo o acesso ao prédio dos Autores, sendo a única conclusão razoável a retirar quanto o local onde o mesmo desemboca é precisamente a abertura que existia na separação entre os prédios de Autores e Réus.

Esse caminho, ainda que inicialmente em terra batida, foi constituído e tem vindo a ser utilizado pelos Autores nos referidos termos há mais de 20 anos, o que foi feito de forma contínua e sem interrupção, dando-lhe o uso supramencionado, tendo-o feito à vista de toda a gente, sem oposição, na convicção de exercerem um direito próprio (factos provados 19 a 28).

Na verdade, tendo os Autores procedido daquela forma durante mais de 20 anos, os mesmos só deixaram de o fazer após os Réus terem colocado um portão no local sem a entrega de qualquer chave para que a ele pudessem aceder, colocando inclusive obstáculos no caminho, culminando a sua conduta com o retirar de todos os paralelos colocados naquela parte do trilho e tapado com pedras de granito, na continuação do muro já existente, a abertura junto ao prédio dos Autores.

Dito isto, não resultam quaisquer dúvidas que estamos perante uma verdadeira servidão de passagem constituída a favor dos Autores (que onera o prédio dos Réus) e que, atenta a existência de sinais visíveis e permanentes, corporizados na pavimentação com paralelos do mesmo que existiu até ao mês de Janeiro de 2022 (razão pela qual estamos perante uma servidão aparente), a mesma é passível de ser constituída de usucapião.

Analisando conjuntamente todos estes factos dados como provados, especialmente os que se prendem com o concreto uso dado pelos Autores ao referido trilho e o período de tempo em que o fizeram, é latente que essa servidão acabou mesmo por se constituir por usucapião, senão vejamos.

Para o efeito, e por razões de economia processual, dão-se aqui por reproduzidas, mutatis mutandis, as considerações anteriores sobre a aquisição de direitos pela via originária da usucapião.

Assim, não nos suscita qualquer dúvida que os actos praticados pelos Autores sobre aquele trilho de acesso ao seu terreno manifestam um verdadeiro corpus e animus inerente ao exercício da posse. Na verdade, tal como resultou da matéria de facto já enunciada, provou-se que os mesmos agiram na plena convicção de que o faziam ao abrigo de um direito, tendo sempre actuado de forma pública e pacífica (artigos 1258.º, 1261.º e 1262.º do Código Civil).

Não tendo sido alegado pelos Autores, nem resultando da matéria de facto provada, a existência de qualquer título que legitime a sua aquisição, estamos perante uma posse não titulada, presumindo-se a mesma de má fé (arts. 1259.º e 1260.º).

Aqui chegados, comprovado o exercício da posse por parte dos Autores, resta-nos apurar se se encontra igualmente preenchido o segundo elemento necessário à aquisição do direito com base na usucapião, ou seja, se a mesma foi exercida durante o tempo necessário à sua efectivação.

Estando em causa uma situação de usucapião que incide sobre um imóvel, há que atentar ao consagrado no art. 1296.º do Código Civil, segundo o qual “não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé”.

Ora, socorrendo-nos das considerações anteriores sobre o presente instituto, é inegável que o facto de se ter dado como provado que os Autores acederam ao seu prédio nos aludidos termos por mais de 20 anos, não podemos deixar de considerar que se mostram aqui também preenchidos os requisitos subjacentes à aquisição deste direito pela via da usucapião, razão pela qual será julgado procedente o respectivo pedido.”.

Os recorrentes discordam, pelas razões constantes das suas conclusões de recurso (as 1., 3., 9. a 18. e 23.).

Ao invés, entendemos que se decidiu bem, perante a matéria apurada e doutrina e jurisprudência invocada. Havendo, por conseguinte, que chancelar tal discurso jurídico e decisão.

Importando, apenas, aportar mais alguma argumentação para tal conclusão.
Relativamente à constituição por usucapião, importa considerar o art. 1548º do CC acima referido, sobre as servidões não aparentes.
Sabe-se que a exigência de sinais visíveis e permanentes para a constituição de uma servidão por usucapião visa afastar a aquisição do respectivo direito com base em actos de mera tolerância e clandestinos praticados pelo proprietário do prédio pretensamente dominante sobre o serviente e facilitar as relações de boa vizinhança.
Com aquela norma, o legislador quis eliminar os títulos precários e passou a exigir para a constituição da servidão sinais visíveis (destinados a garantir a não clandestinidade) e permanentes (por forma a revelarem inequivocamente a posse da servidão).

Assim, para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião é indispensável a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, tais como um caminho, uma porta ou um portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente. Porém, o requisito da permanência não exige a continuação no tempo dos mesmos sinais ou das mesmas obras. Indispensável é apenas a permanência de sinais, admitindo-se a sua substituição ou transformação (vide Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, 2ª ed., pág. 630).
Essencial é que haja um sinal que revele o exercício do direito de servidão.

Consta dos factos provados (19. a 25., 27. e 28.) que: 19. Desde há mais de 20 anos que o prédio dos Réus identificado 9 possuía uma abertura na sua extrema sudeste junto à estrada com, sensivelmente, 4 metros de largura; 20. Para além da entrada referida em 18, a 1.ª Autora, o seu falecido marido e os seus filhos, bem como todos aqueles que frequentavam o seu prédio, faziam-no através da abertura referida em 19; 21. Mais concretamente, era através da abertura identificada 19 que os veículos de tração mecânica e animal entravam e saiam do prédio dos Autores; 22. Através da abertura referida em 19, a 1.ª Autora, o seu falecido marido e os seus filhos carregavam o estrume, entravam com as alfaias agrícolas, com o carrinho de mão, a pé e, inclusive, com os seus próprios automóveis; 23. O acesso ao seu prédio nos termos dos artigos anteriores era efectuado partindo do caminho público designado por “Rua ...”, com entrada pela abertura identificada em 18, percorriam um caminho no sentido nascente-poente com cerca de 12 metros de comprimento e 2,50 metros de largura, fletindo para sul até atingirem uma abertura com a 7,10 metros que exista na delimitação entre os prédios dos Autores e dos Réus – convém referir neste facto que a menção ao anterior facto 18. só por lapso se pode compreender, pois a abertura referida só pode ser a referida em 19., já que nenhuma abertura é mencionada ou identicada no facto 18., o que se compagina, aliás, com a alegação dos AA, nos artigos da p.i., e com a motivação da decisão de facto, ambas mais atrás transcritas; 24. Esse caminho era inicialmente constituído por terra batida; 25. Em data não concretamente apurada o Réu pavimentou com paralelepípedos de granito o referido caminho; 27. Os factos praticados nos anteriores artigos 19.º a 23.º, foram concretizados pela 1ª A., pelo seu falecido marido e pelos seus filhos, há mais de 20 anos, à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja e ininterruptamente; 28. Sempre na verdadeira convicção de estarem a exercer um direito próprio.
Assim sendo, os factos provados revelam inequivocamente a existência de sinais visíveis e permanentes.

Como justamente se sublinhou na dita sentença recorrida, em consonância, como era de esperar, com a motivação da decisão da matéria de facto, não há dúvidas que estamos perante uma verdadeira servidão de passagem, a favor dos AA, atenta a existência de sinais visíveis e permanentes, corporizados na pavimentação com paralelos do caminho em terra batida que existiu até ao mês de Janeiro de 2022 (cfr. o facto 38.). Tendo, ainda, em conta os actos que se prendem com o concreto uso dado pelos AA ao referido caminho e o período de tempo em que o fizeram, é patente que essa servidão acabou mesmo por se constituir por usucapião.
E os referidos factos também mostram que os autores/recorrentes actuaram no exercício de um direito de servidão através do corpus, traduzido nos actos materiais correspondentes, e com o necessário animus, revelado na convicção de que exerciam um direito próprio.
Os actos por eles praticados foram no âmbito desse direito, tendo exercido verdadeiros actos de posse e não de mera tolerância.
Os factos provados permitem, assim, concluir que estamos perante uma servidão aparente, como tal, susceptível de ser constituída por usucapião e consequente reconhecimento. – vide em situação paralela, de existência de um caminho em terra batida, o ac. do STJ de 17 de Dezembro de 2019, em www.dgsi, indicado pertinentemente na fundamentação da sentença apelada. 
E, mostrando-se, também, provado o tempo de duração da posse para que os AA tivessem adquirido por usucapião uma servidão de passagem, nos termos peticionados na acção.
Resta acrescentar que os Acds. que os apelantes citam em seu favor, sobre a necessária existência de sinais visíveis e permanentes, para além das partes doutrinais/jurisprudenciais de natureza genérica sobre tal temática, têm as seguintes nuances concretas, que merecem as seguintes observações: no Ac. da Rel. Coimbra, de 19.6.2018, efectivamente não se provou nenhum facto que revelasse a existência desses sinais ou permanência, logo não serve de exemplo, é inaplicável ao nosso caso, porque o caso dos autos em análise tem diferente configuração; quanto ao Ac. da Rel. Coimbra, de 3.11.2020, provou-se de dois (uma cancela e uma porta) um sinal e visível permanente, daí o reconhecimento da servidão de passagem, nada havendo a obstar ou a retirar de diferente em relação ao nosso caso; finalmente na situação do Ac. do STJ, de 9.6.2021, igualmente não se provou nenhum facto que revelasse a existência de sinais ou permanência num caminho, logo também não serve de exemplo, é inaplicável ao nosso caso, porque o caso dos autos em análise tem diferente configuração.

(…)

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, assim se confirmando a decisão recorrida.

*

Custas a cargo dos RR/recorrentes.

*

                                                                   Coimbra, 30.5.2023

                                                                   Moreira Carmo

                                       

                                                                   Fonte Ramos

                                                                   Alberto Ruço