Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
222/09.9GBETR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: TELECOMUNICAÇÕES TELEFÓNICAS
IDENTIFICAÇÃO DO UTILIZADOR
Data do Acordão: 01/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – AVEIRO – JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 189º, 2 CPP. ,2º, 1, G) L. 32/08
Sumário: A entrada em vigor da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, não revogou o disposto no art. 189º, nº 2, do Código de Processo Penal, impossibilitando a obtenção da identificação de assinante de serviço de telemóvel para investigação de crime que não corresponda a um dos crimes classificados como “crime grave” pelo art. 2º, nº 1, al. g), daquela Lei.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

O inquérito que originou estes autos de recurso em separado iniciou-se com a queixa apresentada por C... contra desconhecidos por factos susceptíveis de integrar a prática de crime de um crime de perturbação da vida privada previsto e punido pela norma do artigo 190.° do Código Penal, cometido mediante a utilização de telemóvel.
No decurso do inquérito e esgotadas as diligências possíveis, o M.P. requereu ao Exmº Juiz de Instrução Criminal que determinasse à operadora de comunicações Vodafone, a quebra do sigilo das telecomunicações, para que esta informasse os números de telefone que realizaram chamadas telefónicas para a queixosa, no período compreendido entre 6 de Julho de 2009 e 31 de Julho de 2009, o que veio a ser indeferido por despacho judicial em que foi invocada falta de fundamento legal.
Inconformado com esse despacho, o M.P. interpôs o recurso agora em apreço, de cuja motivação retirou as seguintes conclusões:

1 - A necessidade de dotar os Estados integrantes da União Europeia de instrumentos eficazes de combate à criminalidade organizada e terrorismo, levou as instâncias comunitárias a optar pela harmonização dos quadros jurídicos dos países membros, aplicáveis a esta matéria.

2 - Desta forma, verificou-se igualmente a necessidade de criar a obrigação sobre as operadoras de telecomunicações de conservação de dados de tráfego e de localização, relativos às comunicações entre pessoas singulares ou colectivas, com vista à prevenção, combate e repressão da criminalidade. ( In «Crime e Punição» de HELENA RESENDE DA SILVA, pag. 13.)
3 -Na tradução e sequência dessas recomendações comunitárias, foi publicada a Lei n.° 38/2008 de 17.Julho, que possui por objecto a conservação e a transmissão de dados de tráfego e de localização, bem como, dados conexos, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves.
4- Este diploma, na focalização dos crimes graves, não revogou o regime do Código de Processo Penal, delineado nos artigos 189.° e 187.° n.° 1 deste compêndio legislativo, no que diz respeito à captura e obtenção processual desses dados.
5 - Não existe qualquer contradição substantiva insanável ou de relevo, entre os regimes legais que disciplinam a captura e intercepção de dados delineados na Lei n.° 32/2008 e nos artigos 187.° n.° 1, 189.° e 190.° do Código de Processo Penal.
6 - Estes regimes possuem áreas de aplicação não coincidentes, são substancialmente sobreponíveis, complementares e encontram-se simultaneamente em vigor.
7 - Com efeito, caso fosse intenção da Lei n.° 32/2008, revogar o regime do Código de Processo Penal, face ao melindre da matéria a disciplinar e em obediência à boa hermenêutica, o legislador tê-lo-ia dito de forma expressa e categórica, em homenagem às exigências de segurança e certeza na aplicação do direito.
8 - O despacho recorrido violou as disposições conjugadas dos artigos 1.°, 187.°, 189.° do Código de Processo Penal, bem como, dos artigos 1.°, 2.°, 3.° e 9.° da Lei n.° 32/2008 de 17.Julho.
9 - Razão pela qual, na declaração da sua ilegalidade, deverá ser dado sem efeito e revogado, bem como, substituído por outro, que em apreciação da promoção do Ministério Publico, a defira e atenda, ordenando-se à operadora móvel VODAFONE que forneça, aos autos, os elementos pretendidos.
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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância pronunciando-se pela procedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a questão que importa decidir consiste em saber se a entrada em vigor da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, revogou o disposto no art. 189º, nº 2, do Código de Processo Penal, impossibilitando a obtenção da identificação de assinante de serviço de telemóvel para investigação de crime que não corresponda a um dos crimes classificados como “crime grave” pelo art. 2º, nº 1, al. g), daquela Lei.
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II - FUNDAMENTAÇÃO:
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“O sigilo das comunicações sofre as limitações que decorrem do disposto nos artigos 187.°, 189° e 190.° do Código de Processo Penal e ainda as decorrentes da Lei n°32/2008 de 17-7, cuja entrada em vigor ocorreu no dia 7-8-2009.
Como o regime processual claramente pressupõe, a admissibilidade da transmissão de dados está conformada pelo princípio da proporcionalidade; não só pela especial gravidade dos casos em que é admitida (os chamados «crimes de catálogo»), mas também pela exigência de um juízo de necessidade e do grande interesse para a descoberta da verdade.
Especificamente quanto à obtenção e junção aos autos de dados sobre tráfego e de localização respeitantes a pessoas bem como de dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado para fins de investigação, detecção e repressão de crimes, esta só pode ser ordenada ou autorizadas por despacho do Juiz de Instrução sempre quanto a «crimes graves», tal como definidos na referida Lei (art. 2°, nl1 g) isto é:
a) terrorismo;
a) criminalidade violenta (condutas dolosas contra a vida, a integridade física ou a liberdade puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos);
b) criminalidade altamente organizada (condutas que integrarem crimes de associação criminosa, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência ou branqueamento);
c) sequestro;
d) rapto e tomada de reféns;
e) crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal;
f) crimes contra a segurança do Estado;
g) falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda;
h) crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
E apenas quanto às pessoas referidas no n°3 o artigo 9o da referida Lei:
a) suspeito ou arguido;
b) pessoa que sirva de intermediário - relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido;
c) vítima de crime, verificado o respectivo consentimento efectivo ou presumido.
No caso dos autos, está em causa a investigação de factos susceptíveis de integrar um crime de perturbação da vida privada p.p. pelo art.° 190° do Código Penal.
Tal crime, embora subsumível ao disposto no Código de Processo Penal quanto a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas, não pode subsumir-se ao catálogo elencado na referida Lei n° 32/2008.
Ora, salvo melhor entendimento, não pode deixar de entender-se que a referida Lei derrogou, quanto aos dados ali previstos, o disposto no artigo 189° do Código de Processo Penal. Efectivamente trata-se de uma norma especial (relativamente ao disposto no artigo 189° do Código de Processo Penal). A referida Lei transpõe para o ordenamento nacional a directiva n° 2006/24/CE referente (unicamente, diga-se) à conservação de dados, mas o legislador foi mais além, estabelecendo um regime específico de acesso e divulgação dos dados em causa, ressalvando (apenas):
- o disposto na Lei n°41/2004 de 18-8, designadamente a possibilidade referida no n°7 do artigo 6o daquela Lei - art. 1o, n°2 da Lei 32/2008;
- o disposto no Código de Processo Penal quanto a intercepção e gravação de conversas telefónicas (cfr. o mesmo art. 1o n°2) e
- o disposto no artigo 252°-A do Código de Processo Penal - art. 9° n°5 da Lei 32/2008.
Estabeleceu-se, deste modo, em matéria de dados elencados no artigo 4o da Lei n°32/2008 um regime diverso do antes consagrado no artigo 189° do Código de Processo Penal:
- o regime previsto no artigo 189° do Código de Processo Penal fazia coincidir os requisitos com os estabelecidos no artigo 187° para a intercepção e gravação do conteúdo de conversações telefónicas;
- o regime agora previsto na Lei 32/2008 afasta-se dessa similitude, fazendo coincidir o catálogo de crimes em que a transmissão de dados é admissível, não com o previsto no artigo 187°, n°1, mas, de outro modo, com o previsto no n°2 do art. 187°. E esta alteração traduz uma opção deliberada - veja-se que no texto da proposta de Lei n° 161/X (que encetou o processo legislativo em causa) havia coincidência entre «crimes graves» para efeitos da Lei 32/2008 e crimes relativamente aos quais é admissível nos termos do Código de Processo Penal a intercepção de conteúdo de conversações, solução que foi abandonada na redacção final da Lei.
Assim sendo (e por paradoxal que possa parecer) o regime legal vigente é mais restritivo no que toca ao acesso, para fins de investigação criminal, quanto aos dados previstos no artigo 4o da Lei 32/2008 do que relativamente à gravação e ao acesso ao conteúdo de conversações telefónicas e deixa de fora, quanto àquele acesso, a investigação dos crimes como o que está em causa nos presentes autos.
Tratou-se (como resulta da alteração do texto inicial da Proposta de Lei - cfr. DAR série A 99/X/13 de 23-5-2008) inequivocamente de uma opção do legislador que, sendo altamente discutível, não cabe a este Tribunal discutir.
Face ao exposto indefere-se o requerido por falta de fundamento legal.”
No dia 8 de Julho de 2009, a C..., apresentou queixa na GNR contra desconhecido que ligou via telemóvel com número privado para o seu telemóvel esclarecendo que desde 2a feira tem estado a receber chamadas que a estão a importunar. A 1a chamada foi recebida às 15h da tarde do dia 6 de Julho, quando estava no trabalho, tendo o desconhecido começado a rir-se. A 2ª chamada ocorreu às 3h40m do dia 7 de Julho, tendo o desconhecido desatado a rir-se novamente. A 3a chamada foi às 23h45m, tendo desta vez o desconhecido dito à denunciante com uma voz ameaçadora que queria o seu coração, facto encarado pela denunciante como uma ameaça. A denunciante perguntou-lhe para que queria o seu coração e o desconhecido começou novamente a rir-se, pelo que a denunciante desligou o telemóvel para não ser incomodada. A 4ª e última chamada sucedeu às 00hl5 do dia 8/07/09, tendo a denunciante rejeitado a chamada e para que não a incomodassem novamente desligou o seu telemóvel durante a madrugada, e só voltou a ligá-lo na manhã seguinte.
Os factos denunciados são susceptíveis de integrar crime previsto no art 190º, nº 2, do C.Penal que se transcreve:
“Artigo 190. Violação de domicílio ou perturbação da vida privada.
1 - Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.
2 - Na mesma pena incorre quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação ou para o seu telemóvel.
3 - Se o crime previsto no n.º 1 for cometido de noite ou em lugar ermo, por meio de violência ou ameaça de violência, com uso de arma ou por meio de arrombamento, escalamento ou chave falsa, ou por três ou mais pessoas, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
A investigação de tal crime – como aliás a investigação criminal em geral - pressupõe a recolha de indícios que permitam concluir pela prática dos factos que preencham o respectivo tipo legal e a consequente recolha de prova( art 124º do CPP), nos termos permitidos por lei, ou seja obedecendo aos princípios estabelecidos nos art 125º e 127º do CPP e às normas ínsitas no art 126º do mesmo diploma legal.

Um dos meios de obtenção de prova a utilizar na fase de inquérito, é o pedido de elementos de informação relativos a dados de tráfego e conteúdo que deve ser analisado e decidido segundo o regime da intercepção das comunicações - artigos 187.°, 190.° e 269.°, n.° 1, alínea e) do Código de Processo Penal.

Aliás, no caso concreto, e como salientou o MP na sua promoção de fls 17, nenhum outro meio de obtenção de prova é susceptível de clarificar o crime indiciado e os seus agentes, na medida em que todos os contactos são feitos via telemóvel, pelo que a lista será o único meio de prova susceptível de atestar a identidade do autor da prática do crime indiciado.

Ciente das dificuldades de investigação do referido crime, o legislador incluiu-o no catálogo do nº 1 do art 187º, do CPP, que dispõe:
1 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:

a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;

b) Relativos ao tráfico de estupefacientes;

c) Detenção de arma proibida e tráfico de armas

d) De contrabando;

e) De injúria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através de telefone;

f) De ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo; ou

g) De evasão, quando o arguido haja sido condenado por algum dos crimes previstos nas alíneas anteriores. ( sublinhado nosso)
E segundo o nº 2 do art. 189º do CPP, “a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registo da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no nº 1 do art. 187º e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo”.
No despacho recorrido defende-se que a Lei n° 32/2008, de 17-07 - que transpõe para o ordenamento nacional a directiva n° 2006/24/CE - derrogou, quanto aos dados ali previstos, o disposto no artigo 189° do Código de Processo Penal, considerando que se trata de uma norma especial (relativamente ao disposto no artigo 189° do Código de Processo Penal).
A vigência da lei – quando não seja temporária – cessa se for revogada por outra lei – art 7º nº 1 do C.C.
A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior – nº 2 do art 7º.
A lei 32/2008, de 17-07 não contém menção revogatória e não regula toda a matéria inserida no código de Processo Penal. Por outro lado, não se detecta qualquer incompatibilidade entre as disposições desta Lei 32/2008 e as regras antecedentes.
Com efeito, o objecto da lei é definido no art 1º e não deixa dúvidas de que coincide apenas com a conservação e transmissão de dados de tráfego e de localização e de dados conexos, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves.
Assim estabelece a mencionada norma que:
“1 — A presente lei regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.
No nº 2 do art 2º da lei 32/2008 na al. g) o «Crime grave», é definido como abrangendo crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
Basta reparar que no nº 2 do art 2º até se pressupõe e apela à Lei nº 67/98 de 26de Outubro e à Lei 41/2004 de 18 de Agosto.
Sobre o particular condicionalismo histórico e legislativo que antecedeu a publicação da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, e que conduziu à respectiva publicação veja-se Ac desta Relação Proc. nº 135/09.4jaavr-A.C1 – relator Miranda Jacob.
É obvio que a Lei 32/2008 veio criar a obrigação de os fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações conservarem certos dados de comunicação especificamente definidos, para que possam ser acedidos pelas autoridades competentes, exclusivamente para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves. E considerando “a sensibilidade dos valores em presença e da conservação dos dados em causa, adoptou especiais restrições, cautelas e medidas de segurança em sede de acesso e tratamento dos dados e de supervisão e fiscalização do cumprimento das obrigações legalmente previstas:
- a inclusão de um elenco taxativo de tipos de crime que integram o conceito de «crime grave»;
- a proibição expressa da conservação de dados que revelem o conteúdo das comunicações;
- a previsão de que o acesso aos dados apenas pode ser solicitado pelo Ministério Público ou pelas autoridades de polícia criminal competentes e depende sempre da decisão do juiz;
- a fixação em um ano do período de conservação de dados;
- a consagração da obrigatoriedade de autorização e registo junto da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) das pessoas que, no âmbito dos fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações, devam desempenhar tarefas associadas ao cumprimento das obrigações previstas na lei.
No que especificamente respeita à transmissão dos dados legalmente previstos, o n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, determina que a mesma se processe mediante comunicação electrónica, nos termos das condições técnicas e de segurança fixadas em portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da administração interna, da justiça e das telecomunicações, que devem observar um grau de protecção e codificação o mais elevado possível, de acordo com o estado da técnica ao momento da transmissão, incluindo métodos de codificação, encriptação ou outros adequados.” - Portaria n.º 469/2009 de 6 de Maio.

Basta ler o preâmbulo ou exposição de motivos da Directiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Março de 2006 para se perceber que foi a luta contra o terrorismo, que incrementou a análise de propostas relativas ao estabelecimento de regras sobre a conservação de dados de tráfego das comunicações pelos prestadores de serviços.

Já em 13 de Julho de 2005, na sua Declaração condenando os ataques terroristas em Londres, o Conselho "Justiça e Assuntos Internos" reafirmara a necessidade de aprovar o mais rapidamente possível medidas comuns relativas à conservação de dados de telecomunicações.

A Directiva impõe assim aos Estados-Membros que tomem medidas legislativas para assegurar que os dados conservados apenas sejam transmitidos às autoridades nacionais competentes em conformidade com a legislação nacional e no pleno respeito dos direitos fundamentais das pessoas em causa. Direitos fundamentais e princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que no direito interno são garantidos no artigo 34.°, n.°s 1 e 4, e 35.° da Constituição da República Portuguesa, na Lei de Protecção de Dados Pessoais - Lei n.° 41/2004, de 18 de Agosto, e cujo respeito o Código Penal reforçou incriminando as condutas violadoras de direitos dos cidadãos à comunicação reservada - ao sigilo das comunicações - nos termos do artigo 192.°, n.° 1, al. a) - crime de devassa da vida privada - e do artigo 194.° - crime de violação de correspondência ou de telecomunicações.
Em resumo, como de forma perspicaz salienta o MP na motivação do recurso da Lei n.° 32/2008, o objecto da Lei n.° 32/2008 diz respeito à conservação de dados para fins de investigação e repressão criminal dos crimes graves, que igualmente definiu e cujo âmbito delimitou. “Não é assim, face às mais elementares regras da hermenêutica jurídica, uma lei especial em relação ao Código de Processo Penal. O facto de ter carácter avulso, «ad hoc», estar desinserida do Código de Processo Penal e descontextualizada de uma codificação ou léxico sistematizado, não lhe confere a natureza de especial. E uma lei com objecto bem definido, certo e seleccionado, bem diferente, da previsão legal do artigo 187.° n.° 1 do Código de Processo Penal, que prevê e faz expressa alusão a alguns crimes que não serão propriamente socialmente graves.”
É óbvio que o legislador não pretendeu eliminar a obtenção legítima de dados de tráfico e localização em relação a outros crimes, designadamente, aqueles que se encontram previstos, residualmente, no artigo 187.° n.° 1 do Código de Processo Penal, nomeadamente a criminalidade especialmente violenta ( art 1º nº al. l e 187º, nº 1, al. a), o contrabando, o crime de ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo e o ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e sossego, quando cometidos através de telefone ou qulaquer outro meio técnico ( art 189º, nº 1, do CPP).
De notar que a al a) do nº 1 do art 187º abrange todos os crimes referidos no seu nº 2 e incluídos no art 2º da Lei n.° 32/2008.
Não se verifica portanto qualquer incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes.
Como não existe qualquer identidade formal ou material entre a previsão legal do artigo 2.° n.° 1 alínea a) da Lei n.° 32/2008 e o catálogo de crimes delineado no artigo 187º n.° 1 e 189º, do Código de Processo Penal - Com a "virtual" excepção da alínea b) do artigo 187.° n.° 1 do Código de Processo Penal., razão pela qual, sendo estruturalmente diferentes as matérias e ilícitos focalizados, não se poderá afirmar, que aquele regime revogou este último, e muito menos, com base na regra da especialidade.
O argumento de que o artigo 2.° n.° 1 alínea g) da proposta de Lei n.° 161/X, tinha uma redacção diferente de “crime grave” que não passou para o texto final, só confirma o que ficou dito. Nos termos da referida Proposta, «Crime Grave» eram «todos os crimes relativamente aos quais a legislação processual penal admita a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações». Ou seja, esta definição iria incluir na noção de “crime grave” o crime de injúria, ameaça, a perturbação da paz e do sossego e outros de carácter tendencialmente bagatelar, quando cometidos através de telefone, o que manifestamente não se harmonizava com o catálogo do artigo 187.° n.° 1 do Código de Processo Penal, que prevê esse crime, assim como o contrabando. Foi esta simples constatação que motivou a alteração e não a pretensão de introduzir um regime inovador, mais restritivo e derrogatório do Código de Processo Penal.
A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada - art 9º nº 1 do CC. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – nº 3.
Mas ainda que se tratasse de um concurso de normas que possuem o mesmo objecto de género, segundo a boa hermenêutica jurídica, não seria tecnicamente viável conciliar a revogação tácita com a regra da especialidade na aplicação de normas, isto é, a regra lex specialis derrogat lex generalis, só se compagina com a revogação expressa. Como avisadamente recorda o recorrente MP alertando para o facto da interpretação que o despacho recorrido preconiza, atacar e ferir de morte “o princípio da legalidade, da descoberta da verdade, dos interesses dos sujeitos processuais, da decência jurídico cultural inerente a qualquer sistema normativo, do processo equitativo, do fair trail e due process of law” (em relação a alguns crimes previstos no catálogo do disposto no artigo 187.° do Código de Processo Penal,) ou pelo menos, “restringir de tal modo e desmesuradamente, a possibilidade do êxito da investigação e da descoberta da verdade, que comprime para além do razoável e do admissível, os direitos dos ofendidos, das vítimas e de todos aqueles que esperam do Estado uma actuação minimamente eficiente no campo da justiça, interesses que também têm tutela e protecção constitucional.”
Não deixa de ser significativo que no preâmbulo da Portaria n.º 469/2009 de 6 de Maio (que estabelece os termos das condições técnicas e de segurança em que se processa a comunicação electrónica para efeitos da transmissão de dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, nos termos previstos na Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho ) se refira expressamente aos pedidos de dados referentes a crimes não contemplados pela Lei 32/2008. Efectivamente aí se escreveu “ A presente portaria vem ainda dar ao juiz a possibilidade de utilizar a plataforma tecnológica criada para enviar pedidos de dados relativos a crimes para os quais não seja possível ordenar ou autorizar a transmissão dos dados conservados ao abrigo da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.
Deste modo, garante-se que o juiz tem a possibilidade de enviar os pedidos de dados aos fornecedores com as mesmas condições de segurança e de forma sempre electrónica, independentemente do tipo de crimes a que tais dados respeitem.” ( sublinhado nosso).
Finalmente, “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.” – art 8º do CC.
O que justifica uma especial atenção ao decidido no acordão proferido nesta Relação no recurso nº 135/09.4jaavr-A.C1 – de que à obtenção da informação pretendida – informação relativa à atribuição de um determinado número de acesso à rede – não são aplicáveis as disposições dos arts. 187º e 189º do CPP, contrariamente ao que se entendeu no despacho recorrido, porque têm em vista exclusivamente a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas e a localização celular ou registo da realização de conversações ou comunicações.
Por outro lado, considera que a interpretação teleológica da Lei nº 32/2008, enquadrado este diploma na globalidade do sistema jurídico e articulado com os demais normativos legais que regem sobre o tema, permite concluir que os “dados conexos” a que se reporta o art. 1º, nº 1, são os dados conexos com os dados protegidos. E de forma brilhante, conclui que esses dados conexos, enquanto isoladamente considerados, estão fora do âmbito da Lei n.º 32/2008, é facto que se patenteia pela consideração de que têm natureza contratual, existem na disponibilidade da operadora independentemente dos dados preservados para o efeito previsto na lei a que nos reportamos, e não serão destruídos no fim do período de conservação previsto no respectivo art. 6º.
Diversos pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República analisaram e distinguiram três categorias de dados – dados de base, dados de tráfego e dados de conteúdo – e reconheceram aos dados de base a tutela pela regra da confidencialidade de génese privatística ou contratual, “decorrente de um simples interesse pessoal do utilizador que de modo algum contende com a sua esfera pessoal íntima, podendo ser comunicados a pedido de qualquer autoridade judiciária para fins de instrução criminal, prevalecendo o dever de colaboração com a justiça - Cfr. nomeadamente, o Parecer nº 21/2000, resumido, quanto a esta matéria, na nota 10 do Parecer nº 101/2007..”
Retomando a distinção entre dados de base, dados de tráfego e dados de conteúdo, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 486/2009 - Publicado no DR, 2ª Série, nº 215, de 5 de Novembro de 2009, pags. 45119 e ss. reconheceu que os dados de base, enquanto dados de conexão à rede, constituem elementos necessários ao estabelecimento de uma base para comunicação, estando aquém da comunicação; são prévios em relação a ela e “constituem, na perspectiva dos utilizadores, os elementos necessários ao acesso à rede, designadamente através da ligação individual e para utilização própria do respectivo serviço”. Prossegue, sobre o tema, um pouco mais adiante, citando Costa Andrade - in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo III, pág. 797-798.: “Na verdade, por exemplo, a mera identificação do titular de um número de telefone fixo ou móvel, mesmo quando confidencial, surge com uma autonomia e com uma instrumentalidade relativamente às eventuais comunicações e, por isso mesmo, não pertence ao sigilo das telecomunicações, nem beneficia das garantias concedidas ao conteúdo das comunicações e aos elementos de tráfego gerados pelas comunicações propriamente ditas” - Em sentido oposto, considerando que também os dados de base beneficiam da protecção do direito ao sigilo das telecomunicações e do direito à privacidade, veja-se Ana Mercedes Oubiña, “As telecomunicações, a vida privada e o direito penal”, in “Direito Penal hoje – Novos desafios e novas respostas”, colectânea organizada por Manuel da Costa Andrade e Rita Castanheira Neves, Coimbra Editora, Agosto de 2009, págs. 16-17..
E conclui o referido acordão 135 que a protecção (entendido o termo protecção como restrição à respectiva transmissão) destes dados conexos opera apenas enquanto tais dados sejam considerados em interligação com outros dados – dados de tráfego e dados de localização – que são aqueles que a lei em causa visa em primeira linha proteger. Fora desse âmbito, isto é, enquanto isoladamente considerados, tais dados não podem ser considerados como conexos, não estando abrangidos pela restrição legal (pela restrição decorrente da Lei nº 32/2008; a respectiva divulgação está abrangida por outras restrições, nomeadamente, pelas decorrentes do art. 65º, nºs 1 e 2, da Lei nº 5/2004, de 10 de Fevereiro – Lei das Comunicações Electrónicas – ou da Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto, diploma que transpôs para a ordem jurídica nacional a directiva nº 2002/58/CE, da Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas).
Ora, não estando os dados cuja obtenção se pretende em interligação com dados de tráfego ou de localização, pretendendo-se apenas a identificação de um assinante ou utilizador registado, independentemente de (sem que se pretenda também o acesso a...) dados de tráfego ou de localização, a questão que se coloca já não é uma questão de tutela da inviolabilidade das comunicações ou do direito à reserva ou intimidade da vida privada, mas sim uma questão de acesso a dados informaticamente tratados. Nesta medida, dados como a identificação do assinante ou utilizador registado estão a coberto do sigilo profissional que impende sobre o operador da rede telefónica, mas podem ser obtidos mediante despacho fundamentado de autoridade judiciária, aplicando-se o incidente previsto no art. 135º do CPP quando o operador deduza escusa - Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do código de Processo Penal”, 2ª Ed., pág. 529..
Em conclusão, se os dados solicitados forem apenas dados de base não conexos podem ser obtidos mediante quebra do sigilo profissional através do incidente previsto no art 135º do CPP; se forem dados de base conexos com os dados de tráfego e localização, e os crimes indiciados forem os “crimes graves” aplica-se a Lei 32/2008 e se forem outros crimes apenas aos contemplados no art. 187º e 189º do CPP se aplica este regime.

Considerando que o Ministério Público através da douta promoção de fls. 17 e seguintes promoveu ao M.° Juiz de Instrução Criminal que a operadora móvel VODAFONE fornecesse aos autos de Inquérito aenas o registo e lista de números de telefone que realizaram chamadas para a queixosa no período de tempo compreendido entre o dia 6/07/2009 a 21/07/2009 o recurso afirma-se como procedente e a pretensão do M.P. deverá ter acolhimento.
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, concede-se provimento ao recurso, determinando-se que o Mmº Juiz do tribunal “a quo” profira despacho no sentido pretendido pelo M.P. no requerimento que formulou a fls 17.
Sem tributação.
Coimbra,
(texto processado pelo relator e revisto por todos os signatários)


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(Isabel Valongo)


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(Paulo Guerra)