Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
33/12.4TAGVA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: INJÚRIA
DIREITO À CRÍTICA
ATIPICIDADE DA CONDUTA
Data do Acordão: 06/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 181.º, N.º 1, 184.º E 132.º, N.º 2, ALÍNEA L), DO CP
Sumário: Estando suficientemente indiciado que, no dia 26 de Dezembro de 2011, no decurso de uma reunião ordinária da Câmara Municipal de Gouveia, o arguido, munícipe daquele conselho, dirigindo-se, em voz alta e em tom sério, a quatro membros executivos daquela instituição, entre eles o presidente, proferiu as seguintes expressões: «tem que haver mais respeito pelas pessoas que trabalham por aqui e os senhores não têm tido respeito por mim e o Sr. Presidente de Câmara é um deles (…), não tem vergonha, passa lá todos os dias. É uma vergonha, pois só fazem trabalho para um grupo de “amigalhaços”», os citados juízos de apreciação e de valoração são penalmente atípicos, na justa medida em que configuram, não considerações caluniosas, com o intuito de rebaixar e/ou de humilhar os visados, mas apenas críticas objectivas sobre a competência dos referidos elementos da CM.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO

           

1. No âmbito do inquérito registado sob o n.º 33/12.4TAGVA que correu termos no Tribunal Judicial de Gouveia, o MP decidiu acusar em processo comum e com intervenção do tribunal singular, o arguido A..., melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática de quatro crimes de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181º, 183º, n.º1, al. a), 184º e 132º, n.º2, al. l), todos do Código Penal. 

            2. Inconformado com o despacho de acusação, o arguido requereu a abertura de instrução. 

3.Admitida a abertura da instrução, teve lugar o respectivo debate, tendo a final sido proferido despacho, no qual ficou decidido não pronunciar o arguido pelos factos e qualificação jurídica constantes da acusação pública.

4. Desta decisão recorreram o MP e os assistentes B..., C..., D... e E..., formulando nas respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:

4.1 - Do MP

1 - Mostra-se suficientemente indiciado que o arguido, no dia 26 de Dezembro de 2011, pelas 15:30 horas, numa reunião ordinária da Câmara Municipal de Gouveia, que teve lugar na sala de reuniões do edifício dos Paços do Concelho de Gouveia dirigindo-se a todos (4) os assistentes, que exercem funções executivas na Câmara, disse, em voz alta e em tom sério, e perante as várias pessoas que ali se encontravam que:

"...ultimamente fui confrontado com três casos mas, pelo menos, um muito grave. O primeiro prende-se com o facto de terem ido referindo-se ao pessoal da Câmara - desligar dois candeeiros que ficam mesmo emfrenteao acesso ao meu parque TIR .... não há necessidade de fazer uma coisa daquelas. Perseguição, chega, Basta" e

"... Tem que haver mais respeito pelas pessoas que trabalham por aqui e os senhores não têm tido respeito por mim e o Senhor - falando para o Presidente da Câmara - é um deles que é de Ribamondego, não tem vergonha, passa lá todos os dias. É uma vergonha, pois só fazem trabalho para um grupo de amigalhaços"...

2 - Tais expressões porque levantam suspeitas de parcialidade e favorecimento, são objectivamente ofensivas da honra e consideração dos assistentes.

3 - Integram por isso, o crime de injúria agravada p. e p., pelos arts. 181.º, 183.º, n.º 1, al. a), 184.º e 132.º, n.º 2, al. j), todos do C.Penal.

4 - Assim, deverá o despacho de não pronúncia ser substituído por outro que pronuncie o arguido pela prática de quatro crimes de injúria agravada, p. e p., pelos art°s. 181°, 183.º, n.º 1, al. a), 184° e 132°, n.º 2, al. j), todos de C.Penal.

5 - A decisão recorrida violou o disposto nos art°s 181.º, 183.º, n.º 1, al. a), 184.º e 132.º, n.º 2, al. j), todos do C.Penal.

TERMOS EM QUE, deverá ser concedido provimento ao recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-se por outra que pronuncie o arguido pelos factos e crimes constantes da Acusação Pública, seguindo-se os ulteriores trâmites até final.

ASSIM, farão V EXAS como sempre Justiça.”

4.2 - Dos assistentes B..., C..., D... e E...:

“CONCLUSÕES

1) As expressões ‘Perseguição, chega, basta, é uma vergonha pois só trabalham para um grupo de amigalhaços” proferida por um cidadão numa sessão de Câmara e dirigida para o Presidente e para os vereadores do executivo municipal são objetiva e subjetivamente injuriosas, por ofenderem a honra e consideração pessoal, política e funcional dos visados.

2) O povo atribui a estas expressões conotação depreciativa, associando-as a um juízo negativo sobre o caracter e a personalidade dos assistentes, que qualificam como pouco transparentes, isentos, imparciais e até corruptos e vulneráveis a favorecimentos e abusos de poder.

3) As expressões em causa, mesmo tendo políticos como destinatários, extravasam o direito à livre crítica e à liberdade de expressão do cidadão que as proferiu e ofendem o direito à reputação e à honorabilidade desses políticos, ainda que a tutela dos bens pessoais destes seja mais reduzida ou fragmentada que a do cidadão comum.

4) Era importante apurar-se se os factos alegados no art. 6 do pedido de indemnização civil (também constantes da participação criminal), se encontravam ou não indiciados, sendo que se viesse a demonstrar-se que as relações pessoais entre o arguido e os assistentes eram já de conflito e de atrito, favorecendo a retaliação e as agressões gratuitas, mais verosímeis e preenchíveis se tornariam os elementos subjectivos do tipo ilegal do crime de injúria agravada que o arguido vinha acusado.

5) Há nos autos indícios suficientes de que o arguido praticou quatro crimes de injúria agravada, previsto e punido nos arts. 181º, 183 n.º 1, al. a), 184º e 132º, n.º 2, al. j) do Código Penal, pelo que teria de ser - e deve ser - pronunciado por esses crimes e sujeito a julgamento.

6) Mesmo que a decisão instrutória fosse de não pronúncia ou absolutória, o arguido devia e deve ser sempre condenado na indemnização cível que foi peticionada, por se revelar fundada.

7) A sentença recorrida violou ou interpretou incorretamente os arts. 181º, 183º, n.° 1, al. a), 184º e 132º, n.° 2, al. a) e 1) do C. Penal e 377º do C.P.Penal, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que submeta o arguido a julgamento.

Assim se fará JUSTIÇA!”

4.3. O recorrido respondeu ao recurso do MP nos seguintes termos:

“Não merece qualquer censura a douta decisão instrutória que não pronunciou o arguido pelos crimes de que vinha acusado, que se encontra, como bem reconhece o recorrente Ministério Público, bem fundamentada e com todo o brilhantismo intelectual.

O recorrente Ministério Público vem dizer que o arguido, numa reunião pública da Câmara, ao pronunciar as palavras “é uma vergonha pois só fazem trabalho para um grupo de amigalhaços"quis insinuar que há especiais interesses que os assistentes procurariam salvaguardar com um tal grupo que na opinião do arguido seria por eles beneficiado.

E acrescenta, insinua-se, assim, um favorecimento de um determinado grupo de pessoas por parte dos assistentes, ou seja, na prática que os assistentes estariam a praticar atos corruptivos

Por fim refere que tais expressões, por desnecessárias, excessivas e ultrajantes são objetiva e subjetivamente ofensivas da honra e consideração de quem quer que seja, designadamente de quem exerce funções políticas."

E para alicerçar estas conclusões procura nos textos legais f artigo 132.º nº 2 alínea I) do CP, artigo 4.° da Lei 29/87, artigo 84º da lei 169/99 das autarquias locais) um espécie de “salvo conduto” para que os assistentes não possam estar sujeitos a crítica por parte dos munícipes e no lugar próprio - a reunião pública da câmara.

Ora, as normas invocadas tem o desiderato oposto àquele que o recorrente pretende dar.

Começamos pela norma do artigo 84.° da lei das autarquias locais para dizer que o arguido, conforme resulta da ata da reunião pública, não se intrometeu em qualquer discussão que os assistentes estivessem a ter, nem aplaudiu ou reprovou as opiniões que aqueles emitissem, as votações ou as deliberações tomadas.

O arguido pediu ao Presidente do órgão colegial para usar da palavra, o que lhe foi deferido, dizendo aquilo que consta da ata.

Em momento algum usou da palavra sem estar autorizado.

Respeitou escrupulosamente as normas que devia observar enquanto usava da palavra na reunião pública.

Não deixa de ser estranho o raciocínio percorrido pelo recorrente ao afirmar que as palavras imputadas ao arguido “é uma vergonha só fazem trabalho para um grupo de amigalhaços” são objetiva e subjetivamente ofensivas para quem quer que seja na medida em que a amizade entre as pessoas não é proibida, assim como não é proibido não ter inimigos.

Dito de outro modo não é crime, nem é ética e moralmente reprovável uma pessoa trabalhar só para os amigos.

Não pode, por isso, o recorrente comparar os assistentes enquanto membros de um órgão da autarquia local que têm como atribuições a satisfação do bem comum com a generalidade das pessoas que têm o direito de escolher trabalhar só para os amigos.

Quanto à qualificação agravada prevista no artigo 132.° n.° 2 alínea I) do CP, a mesma resulta do facto daquelas pessoas, ao contrário da generalidade dos cidadãos, exercerem especiais funções - públicas - na sociedade em prol do bem comum

É por esta razão, por exercerem funções públicas em nome e por conta da generalidade dos cidadãos, que estão sujeitas à crítica mais assertiva do que a generalidade das pessoas.

Como tivemos oportunidade de dizer no nosso requerimento de abertura de instrução, a atuação dos titulares dos órgãos eleitos pelo povo, como são os assistentes, é de proximidade com os cidadãos, com conhecimento direto das pessoas, enfim, atuando em conformidade com a relação de amizade que, muitas da vezes, vão estabelecendo sem qualquer intenção de os beneficiar ou causar prejuízo a outrem, mas desconhecendo aqueles que não são amigos e que por isso muitas das vezes não conseguem, até por vergonha, manifestar os seus anseios e desejos.

Não é proibido aos eleitos locais ter amigos e de tomarem decisões que apenas a estes digam respeito.

Aliás, mal feito seria se os eleitos locais estivessem proibidos ou inibidos de atuarem sempre que estejam em causa decisões que dizem respeito ao bem comum em que os amigos estão por elas abrangidos.

O mal está em ignorarem, por omissão, os outros que por não serem seus conhecidos e amigos, também são destinatários do bem comum.

Quando o povo refere “é só para os amigos, ou é só para um grupo de amigalhaços está a referir-se àquela primeira hipótese, sem contudo insinuar que pratiquem atos corruptivos como, perdoar-me-á, de forma gratuita o Ministério Público alega na última linha da página 3 das alegações.

Não há qualquer Insinuação nas palavras proferidas pelo arguido. Limitou-se a criticar a atuação de quem não mandou limpar as valetas e caminhos da rua publica em frente à sua sede e de quem mandou desligar as lâmpadas dos postes de iluminação pública, ao contrário do que tinha acontecido em outros casos.

Por tudo isto e, acima de tudo, por aquilo que o tribunal recorrido disse na fundamentação à decisão de não pronuncia, deve o recurso ser julgado improcedente e a final manter-se a não pronúncia do arguido.

Justiça.”

4.4 A... respondeu também ao recurso dos assistentes, concluindo:

“Não merece qualquer censura a douta decisão instrutória que não pronunciou o arguido pelos crimes de que vinha acusado, conforme sufragamos na resposta ao recurso do Ministério Público.

E apenas respondemos ao recurso dos assistentes face a inédita conclusão vertida no ponto 6), de que ficamos estarrecidos.

Na verdade, com respeito por opinião diversa, o Juiz de Instrução não aprecia, nem julga pedido de indemnização civil, mas apenas aprecia se foram ou não recolhidos - indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e não a de apreciar e julgar pedido de indemnização civil. Cfr. Artigo 308º do CPP.

Ora, por não ter suporte legal, tal conclusão não pode proceder.

Por tudo isto e, acima de tudo, por aquilo que o tribunal recorrido disse na fundamentação à decisão de não pronúncia, deve o recurso ser julgado improcedente e a final manter-se a não pronúncia do arguido.

Justiça.”


*

5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em douto parecer, pugna pela procedência dos recursos, por também se lhe afigurar que, “tendo sido proferidas contra os Assistentes expressões objectivamente lesivas do seu bom nome e consideração, pessoal e fun­cional, haverá indícios suficientes da prática dos crimes imputados na acusação, pelo menos, para o arguido poder ser pronunciado e submetido a julgamento.

Questão diferente será a de saber se são suficientes para permitir um juízo de condenação, mas isso só poderá ajuizar-se após o julgamento e depois do contraditório e dos di­reitos de defesa serem exercitados.

Pelas razões expostas, concordamos genericamente com os recursos do M.º P.º e dos Assistentes, sendo de parecer que deve ser revogado o despacho recorrido.”

6.  Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência de acordo com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

           

            II – FUNDAMENTAÇÃO

           

 1. Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigo 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recursos, as questões a decidir prendem-se com o seguinte:

- Existem indícios suficientes da prática pelo recorrente do crime que lhe está imputado na acusação, ou seja, o de injúria agravada p.p. artigos 181º, 183º, n.º1, al. a), 184º e 132º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal

            2. Do Despacho recorrido

           

“(…)

Vejamos então o que resulta da aplicação destes princípios à situação em apreço tendo presente que o juiz de instrução está limitado, à partida, pela factualidade relativamente à qual foi requerida a instrução, nos termos dos artigos 287.º, n.ºs 1 e 2, e 288.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal, sendo orientado no seu procedimento e decisão pelas razões de facto e de direito invocadas.  O arguido A..., no seu requerimento de abertura de instrução, não põe em causa a factualidade constante da acusação, antes confirma que, nas circunstâncias de tempo e lugar aí aludidas, proferiu as expressões da mesma constantes.  Portanto, e em conformidade com as premissas supra enunciadas, não caberá, no âmbito da presente instrução, verificar a existência  (ou  não)  de  indícios  suficientes  da  ocorrência  dos factos relatados na acusação.

A questão que se coloca é a de saber se tal factualidade consubstancia a prática, pelo arguido A...,  de qualquer ilícito criminal, designadamente, e no entendimento da acusação, quatro crimes de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181º, 183º, n.º1, al. a), 184º e 132º, n.º2, al. l), todos do Código Penal.  Nos termos do disposto no artigo 181º, n.º1, do Código Penal, “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.  Prevê o artigo 183º, n,º1, al. a), do Código Penal:             “1. Se, no caso dos crimes previstos nos artigos 180º e 181º: a) a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; (...) s penas da difamação e da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.  Por sua vez, estabelece o artigo 184º, do Código Penal que: “As penas previstas nos artigos 180º, 181º e 183º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do nº 2 do artigo 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade”.

O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a honra.   À luz da nossa lei, “a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal  ou  interior  de  cada  indivíduo,  radicado  na  sua  dignidade,  quer  a  própria reputação ou consideração exterior” (cfr. José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 607). Não tem, assim, entre nós, aceitação a restrição da honra  ao  conjunto  de  qualidades  relativas à personalidade moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade.  Ensina o Prof. Beleza  dos  Santos,  a  propósito,  que  a  honra  é  aquele  mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale, e que a consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal forma que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa ao desprezo público (R.L.J., ano 92º, pág. 164).  Como  bem  se  vê,  deste  tipo  legal  de  crime  fazem  parte  os  seguintes  elementos objectivos:  -  a  imputação  a  outra  pessoa,  mesmo  sob  a  forma  de  suspeita,  de  um  facto,  ou dirigindo-lhe palavras;  - a ofensa à honra ou consideração dessa pessoa pela imputação desse facto ou pela formulação desse juízo.  Note-se que a proposição “mesmo sob a forma de suspeita”, ligada a todos os referidos elementos do tipo não é um verdadeiro e próprio elemento do tipo, mas antes um alargamento modal à imputação dos factos ou juízos desonrosos. Isto é: a imputação de factos ou a formulação de juízos desonrosos podem ser inequívocas ou podem estar cobertas pelo manto perverso e acutilante da suspeita.    O crime de injúria tem natureza dolosa, o que significa que só estão arredadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes, sendo por isso a imputação baseada em qualquer das modalidades de dolo definidas no artigo 14º do Código Penal.  O dolo, entendido como elemento subjectivo geral, deve referir-se a todos os elementos objectivos do tipo de ilícito correspondente, assegurando a congruência tipo objectivo – tipo subjectivo. Vejamos, então, a situação em apreço. Analisando as expressões em causa, proferidas na reunião ordinária da Câmara Municipal de Gouveia de 26 de Dezembro de 2011, aberta ao público, verifica-se  que  o arguido formulou juízos de valor negativos sobre a actuação dos  assistentes  B...,  C...,  D...  e E... - note-se, enquanto Presidente e Vereadores eleitos pelo Partido Social Democrata da Câmara Municipal de Gouveia, respectivamente. É certo que o arguido partiu do relato de um episódio que o afectou pessoalmente (o facto de o pessoal da Câmara ter desligado dois candeeiros que ficam mesmo em frente ao acesso do seu parque TIR, actuação que interpreta como “perseguição”). Contudo, e mesmo que tenha sido esse episódio a espoletar a sua presença e intervenção na reunião camarária, a verdade é que serviu de mote e/ou de ilustração para formular uma crítica mais genérica sobre a actuação dos titulares do poder politico local (o que resulta evidente em face das afirmações de que “Tem que haver  mais  respeito  pelas  pessoas  que  trabalham  por  aqui”,  “É  uma  vergonha  pois  só  fazem  trabalho  para  um  grupo  de  amigalhaços”),  crítica  essa  que  se reconduz à acusação do executivo camarário de exercer as suas funções com falta de isenção e imparcialidade, com favorecimento de pessoas suas amigas.   Ora, entendemos que as expressões proferidas pelo arguido na circunstância em apreço não podem considerar-se atentatórias da honra e consideração pessoal dos assistentes, atenta a sua contextualização, que  não  pode  deixar  de  ser  feita  (lê-se,  a  propósito,  no  Acórdão  da Relação de Lisboa de 19.04.2006, processo n.º 11862/2006 – 3, disponível em www.dgsi.pt:  “O carácter injurioso  ou  difamatório  de  determinada  expressão  ou  atitude  é  muito  relativo, estando fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre e do modo como ocorre”).  Com efeito, trata-se de uma crítica acintosa, indelicada e até feroz, mas não passa de uma crítica à actuação dos assistentes B..., C...,  D... e E...,  enquanto Presidente e Vereadores eleitos  pelo  Partido  Social  Democrata  da  Câmara  Municipal de Gouveia, respectivamente, os quais, no âmbito de uma sociedade democrática, estão sujeitos a um controlo das pessoas que compõem a respectiva comunidade, no qual aqueles exercem as suas funções. Os assistentes exercem um cargo público pelo que estão, naturalmente, sujeitos a  críticas,  por  parte  da  comunidade  em  geral.  Além  disso,  como  o  Tribunal  Europeu  dos Direitos do Homem teve a oportunidade de reconhecer  e recordar no seu acórdão “Roseiro Bento contra Portugal”, datado de 18/04/2006, a qualidade de homem político aporta como consequência para o tipo de infracções que aqui temos presentes, “que os limites da crítica admissível são mais vastos em relação a um político agindo na sua qualidade de personagem pública, do  que  a  do  simples  particular ”;  em  sentido  idêntico,  pode  ler-se  no  Acórdão  da Relação do Porto de 23.06.2010, proc. 3475/07.3TDPTT.P1, disponível em www.dgsi.pt que:  “para as "pessoas da história do seu tempo", ou seja, para aqueles que  ocupam a boca de cena  no  palco  da  vida  política,  cultural,  desportiva,  etc.,  a  tutela  dos  bens  pessoais  em  questão é mais reduzida e fragmentada do que no caso do cidadão comum”; ou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.03, onde se escreve: “Como é sabido e geralmente aceite, os cidadãos que exercem cargos públicos, nomeadamente políticos (…) estão sujeitos à crítica, quer das colectividades pela satisfação de cujos interesses devem pautar o exercício das respectivas funções, quer dos titulares de entidades que tutelem interesses conflituantes, do ponto de vista da sua própria perspectiva de satisfação do bem comum (…)as pessoas que ocupam lugares de  relevância  política  ou  altos cargos na administração pública estão sujeitas a  figurar  como alvos de mais e de mais intensas  críticas  que  os  demais  cidadãos, provenham elas de seus pares ou não. Em democracia, a tutela da honra pessoal e reputação dos políticos é, por isso, também menos intensa que a dos cidadãos em geral”. Acresce que as expressões em causa foram proferidas numa reunião pública da Câmara Municipal, portanto, em sede do órgão político por excelência, em lugar próprio para os munícipes se expressarem, designadamente exercendo o direito de pedir esclarecimentos nos termos do artigo 84º, da Lei das Autarquias Locais. Assim, quer considerando o lugar onde as expressões foram proferidas, quer considerando a qualidade dos seus destinatários, não obstante a motivação pessoal do arguido (como vimos indiscernível da vertente política da sua intervenção),  é  no âmbito do debate político que os juízos e expressões aqui em causa têm de ser encarados. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reteve como licitas, no âmbito da luta política, uma expressão como imbecil, (1.7.1997, DDP, 1997, 10, 1209); lobbista, experiente em urbanizações selvagens, comissário de negócios sujos, são outros exemplos mencionados na ob. cit., a fls. 213. “Nas apontadas asserções poderá deparar-se com algum tipo de censura, ao nível ético, de deselegância, de injusto possivelmente – mas no fundamental trata-se de debate público corriqueiro e do quotidiano da democracia, relativo a pessoas que transportam consigo mais visibilidade,  pelos  desafios  e  combates  que  resolvem  travar”  (neste  sentido,  o  Acórdão  da Relação do Porto de 28.06.2006, proc. 0612206, disponível em www.dgsi.pt). Actualmente, vem sendo entendido pela maioria da jurisprudência, que em casos como o que nos ocupa, não existe responsabilidade penal, como se pode ver, e a título exemplificativo, nos Acórdãos do STJ de 07.03.2007; da Relação de Lisboa de 21.10.2007 e de 20.03.2006; da Relação de Coimbra de 23.04.1998, de 24.09.2003 e de 24.03.2004; da Relação de Guimarães de 30.10.2006, e da Relação do Porto de 28.06.2006 e de 31.10.2007 – todos disponíveis em www.dgsi.pt e citados pelo Acórdão da Relação do Porto de 14.07.2008, processo n.º 0841633. A protecção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos que atentem contra esses bens jurídicos, só se justifica em situações em que objectivamente as palavras  proferidas não têm outro conteúdo ou sentido que não a ofensa, ou em situações em que, uma vez ultrapassada a  mera susceptibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa  a  quem  o  foram, são, indubitavelmente, lesivas da honra e da consideração do lesado (vide Ac. da RL de 20.03.2006, já citado). Como se lê no sumário do Acórdão do STJ de 07.03.2007, com citação de doutrina acerca deste assunto, e cujo entendimento perfilhamos, “I – No conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático, o que justifica a assunção de uma nova perspectiva na resolução do conflito. II – Neste contexto, temos vindo a defender, na esteira da orientação assumida por Costa Andrade, deverem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc. (…)quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm  exclusivamente  às  obras,  às  realizações  ou  prestações   em  si,  não  se  dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade  penal  e  a  carência  de  tutela  penal  que  definem  e  balizam  a  pertinente  área  de tutela típica. III – Mais entende aquele insigne Mestre que a atipicidade da crítica objectiva pode e deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias pública s (…). IV – Por outro lado, segundo ele, a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além do correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva. V – Costa Andrade defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto, esclarecendo, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente às críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignando expressamente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma consideração dirigida à sua pessoa. VI – Parte da jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem sufragando tal orientação, sendo que, de acordo com a mesma, entendemos que o direito de expressão, na sua vertente de direito de opinião e de crítica, quando se exerça e recaia nas concretas áreas atrás referidas e com o conteúdo e âmbito mencionados, caso redunde em  ofensa  à  honra,  se  pode  e  deve  ter  por atípico, desde que o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor aos quais subjaz o exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar. (…)”.  Na sequência do que vimos de expor, entendemos que as expressões proferidas pelo arguido se inserem no âmbito do debate e da análise política por parte de um munícipe que se sentiu preterido pela actuação do executivo camarário de Gouveia. Reportam-se à actuação dos assistentes, de uma forma negativa e até acintosa, mas não se reconduzem a uma vontade de agressão gratuita e de confronto com as pessoas em causa ou ao propósito de as rebaixar ou humilhar, ou seja, de atingir a sua honra e dignidade pessoal. Antes exprimindo uma polémica tomada de posição contra um particular modo de gerir a Câmara Municipal, assunto público.

E, portanto, apresentando um evidente interesse público-social imediato, que o arguido visou acautelar.  Tal não significa que a linguagem utilizada pelo arguido seja eticamente irrepreensível, nem que deva ser encorajada tão pouca contenção no debate de interesse público. Todavia o interesse público-social da questão (atinente à forma de actuação do executivo camarário) exige que se ponha a tónica na liberdade de expressão. É pertinente a referência, neste contexto, ao Acórdão do TEDH de 28.09.00 que condenou o Estado Português a indemnizar quem se viu condenado pelos tribunais portugueses por crime contra a honra em situação que o TEDH considerou ilegítima. Não é demais recordar o que ali pode ler-se: “A liberdade de expressão é um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das principais condições para o seu progresso e para o desenvolvimento de cada indivíduo (…)”.  Fica-nos, portanto, a convicção de que o arguido agiu no exercício de um direito de crítica pública. Pelo exposto, entendemos que a conduta do arguido não acarreta qualquer atentado à honra e consideração pessoal dos assistentes, devendo, portanto, ser considerada atípica.  Aliás, como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 12.06.2002, Recurso 332 /02, de que foi relator o Desembargador Dr. Manuel Braz: “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”. Assim sendo, e atenta a noção de indícios suficientes que deixámos expendida, concluímos que os mesmos não se verificam no caso em apreço.             

Pelo que deverá ser proferido despacho de não pronúncia relativamente ao arguido. 


*

Face a todo o exposto, decide-se não pronunciar o arguido A... pela prática de quatro crimes de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181º, 183º, n.º1, al. a), 184º e 132º, n.º2, al. l), todos do Código Penal.”           

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 Quadro legal

Versando sobre a finalidade imediata e âmbito da instrução, prescreve o art. 286.º do CPP que tal fase visa o reconhecimento jurisdicional da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, no sentido de que se não está perante um novo inquérito, mas apenas perante uma fase processual de comprovação (jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação).

«Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para a acta, considerando-se notificado aos presentes, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito, enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução» (art. 307.º, n.º 1 do CPP).

Sobre a natureza da decisão a proferir após o encerramento da instrução, dispõe o art. 308.º do CPP:

«1. Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos: caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

2. É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto no artigo 283.º, n.ºs 2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.

3. No despacho referido no n.º 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer».

3.2 Concretização do conteúdo do critério normativo “indícios suficientes”

Decorre do disposto no artigo 283º, nº 2, do CPC, que indícios suficientes são os que impliquem uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.

E o artigo 308º, nº 1, do CPP estabelece que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respectivos (…)”.

Como vem sendo unanimemente entendido, a instrução constitui uma mera instância de controlo judicial da verificação da existência ou inexistência de indícios suficientes da prática de um crime, por isso que não se impõe ao Juiz a mesma exigência de verdade e certeza requerida no julgamento.

O juiz de instrução deverá bastar-se com a existência de indícios suficientes da prática de um crime para que profira despacho de pronúncia.

Sobre o conceito de indícios suficientes a definição que melhor se nos afigura harmonizada com o pensamento do legislador, a do Prof. Figueiredo Dias: «os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição» - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. 1, 1974, pág. 132-133.

E esclarecendo o limite de distinção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza processualmente relevante, o referido Professor entende: «o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta. O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade e da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no fim da fase preparatória».

Definição resumida na perfeição por Noronha e Silveira: «Afirmar a suficiência dos indícios deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. Não logrando atingir essa convicção, o Ministério Público deve arquivar o inquérito e o juiz de instrução deve lavrar despacho de não pronúncia» - Cfr. Jorge Noronha e Silveira, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, p. 171.

O que vem afinal a significar que na apreciação dos elementos probatórios e na convicção da suficiência dos indícios está contida idêntica exigência de verdade requerida para o julgamento, porém, com as limitações legalmente impostas – art 286º, nº 1 e 301º, nº 3 do CPP – ponderada que seja a natureza indiciária exigida para a prova nesta fase.

Perspectiva que a jurisprudência captou no conceito de indícios suficientes: “ são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado” – Ac T. Relação de Coimbra, de 10.09.2008.

Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.

4. O caso concreto:

O arguido não nega queno dia 26 de Dezembro de 2011, pelas 15:30 horas, numa reunião ordinária da Câmara Municipal de Gouveia, que teve lugar na sala de reuniões do edifício dos Paços do Concelho de Gouveia dirigindo-se a todos (4) os assistentes, que exercem funções executivas na Câmara, disse, em voz alta e em tom sério, e perante as várias pessoas que ali se encontravam que:

"...ultimamente fui confrontado com três casos mas, pelo menos, um muito grave. O primeiro prende-se com o facto de terem ido referindo-se ao pessoal da Câmara - desligar dois candeeiros que ficam mesmo emfrenteao acesso ao meu parque TIR .... não há necessidade de fazer uma coisa daquelas. Perseguição, chega, Basta" e

"... Tem que haver mais respeito pelas pessoas que trabalham por aqui e os senhores não têm tido respeito por mim e o Senhor - falando para o Presidente da Câmara - é um deles que é de Ribamondego, não tem vergonha, passa lá todos os dias. É uma vergonha, pois só fazem trabalho para um grupo de amigalhaços"...

Amigalhaço significa grande amigo, basta ler o dicionário da Língua Portuguesa s Porto editora 8ª edição.

Objectivamente, as frases acima indicadas contêm críticas à actuação dos assistentes enquanto governantes autárquicos, apontando erros diversos - discriminação negativa e positiva, com a consequente injustiça.

E como tal, insere-se no poder/dever que as democracias ocidentais garantem aos seus cidadãos - a liberdade de discordar e de criticar o governo.

A cidadania numa democracia exige participação, civismo e paciência, sendo que a democracia bem-sucedida demanda cidadãos activos, cientes de que o sucesso ou o fracasso do governo é também responsabilidade sua. Por seu turno, os governantes entendem que todos os cidadãos devem ser tratados de modo igual, e perante chamadas de atenção ou críticas ao seu desempenho, devem ter a humildade e a sabedoria de saber escutar, elucidar o cidadão e corrigir erros quando for o caso. Atitude exigível ainda que se trate de adversário político ou de cidadão obcecado pelo exercício do direito à indignação, quantas vezes injusto e a quem por isso apetece colocar uma vassoura nas mãos e sugerir-lhe a limpeza do passeio defronte de sua casa.

De todo o modo, se os governantes não suportam a crítica, é caso para repensarem a sua opção de vida pois certamente não estarão no lugar certo, com óbvio prejuízo para os cidadãos e para o País.

Tal como o tribunal recorrido, também nós perfilhamos o entendimento da doutrina vertido no  Acórdão do STJ de 07.03.2007, de que “no conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático, o que justifica a assunção de uma nova perspectiva na resolução do conflito”

Consequentemente, na esteira da orientação assumida por Costa Andrade, devem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc. (…)quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm  exclusivamente  às  obras,  às  realizações  ou  prestações   em  si, não  se  dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade  penal  e  a  carência  de  tutela  penal  que  definem  e  balizam  a  pertinente  área  de tutela típica.

A atipicidade da crítica objectiva deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias públicas.

Esclarece Costa Andrade que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além do correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva. (sublinhado nosso)

Reportando-nos aos autos constata-se que o recorrido não produziu senão críticas objectivas, embora com reflexo necessário na competência dos membros do executivo daCâmara Municipal de Gouveia, sem contudo constituir crítica caluniosa ou mera formulação de juízos de valor com o subjacente e exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar. Os indícios revelados pelos elementos probatórios em referência, são assim de tal forma insuficientes para garantirem uma probabilidade sustentada de condenação, pois se valorados em julgamento, seriam, de todo em todo, insusceptíveis de sustentar um juízo de condenação do recorrido, pela prática do imputado crime de injúria, o mesmo é dizer, são manifestamente insuficientes para que se profira despacho de pronúncia.

Bem andou pois o tribunal recorrido ao concluir que as expressões proferidas pelo arguido se inserem no âmbito do debate e da análise política por parte de um munícipe que se sentiu preterido pela actuação do executivo camarário de Gouveia. Reportam-se à actuação dos assistentes, de uma forma negativa e até acintosa, mas não se reconduzem a uma vontade de agressão gratuita e de confronto com as pessoas em causa ou ao propósito de as rebaixar ou humilhar, ou seja, de atingir a sua honra e dignidade pessoal. Antes exprimindo uma polémica tomada de posição contra um particular modo de gerir a Câmara Municipal, assunto público.

E, portanto, apresentando um evidente interesse público-social imediato, que o arguido visou acautelar.Improcedem os recursos do MP e dos assistentes.

            III – DISPOSITIVO

           

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em julgar não provido os recursos do MP e dos assistentes, mantendo na íntegra o despacho recorrido.

Custas por cada um dos assistentes, com a taxa de justiça fixada em 3UCs.


(Isabel Valongo - Relator)

(Joaquim Correia Pinto)



[1] São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringi8r o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões»).