Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1679/04.0TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL – 3.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 655.º Nº3 E 496.º Nº 1 DO C. CIVIL
Sumário: 1. A lesão do direito ao corpo e à saúde é, enquanto dano autónomo (dano biológico), fonte de obrigação de indemnização, independentemente de quaisquer consequências pecuniárias ou repercussões patrimoniais de qualquer natureza, cujo critério legal de fixação é a equidade.

2. A indemnização pelos danos não patrimoniais reveste uma natureza acentuadamente mista: visa reparar os danos sofridos pela pessoa lesada e, além disso, constitui uma reprovação à conduta do agente, no pano civilístico e pelos meios próprios do direito privado.

3. Afigura-se ajustado e equilibrado compensar as dores, receios e angústias (passados e futuros), tratamentos, hospitalização e toda a espécie de limitações e sequelas que o autor, com 41 anos à data do acidente, pessoa alegre e bem disposta, sofreu, com a indemnização de 25.000,00 pelos danos não patrimoniais.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A..., residente em ..., Carriço , Pombal, intentou acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra a Rede Ferroviária Nacional-Refer EP, CP-Caminhos de Ferro Portugueses EP, B... e C..., todos com os sinais dos autos, pedindo a condenação solidária destes no pagamento da indemnização de € 186.700,05 (€ 12.120,79 de perdas de rendimentos pretéritos, € 124.699,47 de perdas de rendimentos futuros e € 49.879,79 de danos morais), “acrescida de juros moratórios legais, desde a citação até efectivo pagamento, acrescida de todas as despesas inerentes a eventuais intervenções cirúrgicas de que venha a carecer no futuro e inerentes danos morais a liquidar em execução de sentença”.

Alegou para tal, muito em síntese, que, no dia 8/03/02, ao atravessar, ao volante de uma máquina de que é proprietário, uma passagem de nível sem guarda, foi colhido por um comboio de mercadorias; acidente causado por exclusiva culpa dos RR. (uma vez que a passagem de nível está numa zona sem visibilidade, sem adequada sinalização e sem as características que a lei define e impõe; e que o maquinista e o ajudante (3º e 4º RR.) não efectuaram sinais sonoros, conforme o local que bem conheciam aconselhava, circulando a uma velocidade superior a 120 Km/h); e que lhe provocou os graves danos, de natureza patrimonial e não patrimonial, que detalhadamente invoca e cuja reparação solicita.

Contestaram, separadamente, os RR..

Os RR. CP-Caminhos de Ferro Portugueses, B... e C..., apresentaram contestação conjunta, em que defenderam que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do A., que iniciou a travessia da via férrea sem se ter certificado previamente de que a podia fazer em segurança, não se apercebendo atempadamente que ali circulava o comboio, em desrespeito pela sinalização do local e pela regras da prudência, tendo os 3º e 4º RR. adoptado todos os cuidados (circulavam a 97 km/h) a que estavam obrigados. Concluíram pela total improcedência da acção e absolvição do pedido.

A R. Rede Ferroviária Nacional-Refer invocou a incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria; e a prescrição do direito do A. (por, em conformidade com o Regime Especial dos Caminhos de Ferro, qualquer acção de indemnização por prejuízos causados pelo caminho de ferro dever ser proposta dentro de um ano a partir do facto que lhe serve de fundamento); ademais, invocou que o veículo que o A. tripulava é um veículo especial que não estava autorizado a circular na via pública e a atravessar qualquer passagem de nível, invocou que a passagem de nível em causa estava devidamente assinalada, em termos bem visíveis e de acordo com o regulamento em vigor, e impugnou os danos e respectivos montantes indemnizatórios peticionados, especialmente a título de reparação de perdas e lucros cessantes futuros. Concluiu, caso não se conclua pela respectiva absolvição da instância, pela sua absolvição do pedido.

O A. replicou, pugnando pela improcedência das excepções da incompetência absoluta e da prescrição, reafirmando o antes alegado e concluindo como na P. I..

Foi proferido despacho saneador – em que foi declarada a total regularidade da instância (isto é, foram julgadas improcedentes, sem censura, as excepções da incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, e da prescrição do direito do A.), estado em que se mantém – organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa e instruído o processo.

Entretanto, o processo A.O. 809/05 do mesmo 3.º Juízo de Pombal, decorrente do mesmo acidente – em que os Caminhos de Ferro Portugueses EP pediam a condenação do aqui A. A... no pagamento da quantia de € 21.247,41, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento – foi apensado a estes autos; passando desde aí (e após a elaboração do respectivo saneador e da organização da respectiva matéria factual com interesse para a decisão da causa) os 2 processos a ser tramitados unitariamente (sendo o 1679/04 o “principal”).

Instruído o processo (o “principal” e o apenso) e realizada unitariamente a audiência respeitante aos 2 processos, a Exma. Juíza de Circulo proferiu uma única sentença respeitante aos 2 processos, concluindo a sua decisão do seguinte modo:

 “ (…) Por todo o exposto, decide-se:

1. Julgar a acção 1679/04, parcialmente procedente e, em consequência:

a) Absolver os RR. CP – Caminhos de Ferro Portugueses, EP, B... e C..., da totalidade dos pedidos contra si deduzidos.

b) Condenar a R. Rede Ferroviária Nacional, Refer, EP. A pagar a A... a quantia de 5.000€ a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal e supletiva, contados da data da sua citação (1.10.2004), bem como no pagamento da quantia de 30.000€ a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios à mesma taxa, contados da presente data, tudo até integral pagamento.

c) Absolver a R. Refer, EP, de tudo o que, de mais, havia sido peticionado.

d) Condenar o A. A... e a R. Refer EP, nas custas da citada acção, na proporção do respectivo decaimento, sendo aquele sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

2. Julgar a acção 809/05.9TBPBL totalmente procedente e, em consequência:

a) Condenar A... a pagar a Caminhos de Ferro Portugueses, EP a quantia de 21.247,41€, acrescida de juros moratórios legais contados da sua citação para contestar a referida acção (5.3.2005) e até integral pagamento.

b) Condenar o R. na referida acção, na totalidade das custas, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

(…) ”

Inconformado com tal decisão, interpôs o A. A... recurso de apelação, visando a sua revogação e o incremento das indemnizações que lhe foram concedidas; mais exactamente, visando que seja proferido “ (…) acórdão que avalie/arbitre as perdas de rendimentos pretéritos na quantia de 20.544,00 €, as perdas de rendimentos futuros e ou dano biológico na quantia de 40.000,00 €, e os danos não patrimoniais na quantia de 30.000,00 €, e que decida fazer incidir juros legais moratórios a partir da citação sobre os dois primeiros montantes indemnizatórios arbitrados, e juros legais moratórios a partir da sentença sobre a quantia compensatória atribuível por danos morais, condenando a Ré Refer a pagar ao A. os valores correspondentes à quota-parte de culpa tal como ajuizado nos autos.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª - O A. formulou nos autos pedido indemnizatório global de 187.700,00€, sendo 12.120,79€ de perda de rendimentos pretéritos, 124.699,47€ de perda de rendimentos futuros, e 49.879,79€ de Danos Morais.

2ª - O A. delimita nos termos do artigo 684 do CPC o objecto deste recurso aos seguintes temas:

- Impugnação parcial da decisão de facto com reflexo na fixação dos danos.

- Os danos atendíveis

- Valoração dos danos

- Condenação em juros

3ª - O relatório de perícia medico legal que está nos autos, conjugado com os depoimentos das testemunhas D... (cujo depoimento está gravado com referencia 22/04/2010 e com inicio aos 11:14:11 e termo aos 11:51:39), E... (cujo depoimento está gravado com referencia 22/04/2010 e com inicio aos 11:52:20 e termo aos 12:16:50) F... (cujo depoimento está gravado com referencia 22/04/2010 e com inicio aos 15:43:48 e termo 16:26:53) e G... (cujo depoimento está gravado com referencia 22/04/2010 aos 14:21:53 e termo aos 14:21:57 e reinicio aos 14.33:38 e termo aos 15:02:50) impõem respostas diversas aos factos inseridos nos pontos 51º e 73 e 56º e 57º todos da BI.

4ª - Os pontos 56º e 57º da BI merecem respostas positivas sem quaisquer restrições – porque o A. não consegue manter-se de pé durante muito tempo e é obrigado a parar e sentar-se com insistência (artº 56º da BI), e não pode fazer esforços, ajoelhar-se, subir escadas, e coxeia (artº 57º da BI).

5ª - Os factos inseridos nos pontos 51 e 73 em vez de resposta negativa merecem ser contemplados com respostas positivas, porque à data da p.i. o A. locomovia-se com auxílio de canadianas 8artº 51º da BI) e atenta a idade e falta de preparação, não conseguirá obter outro emprego (artº 73º da BI)

6ª - Todos estes pontos de facto foram incorrectamente julgados, e são de relevo na modificação das respostas os depoimentos testemunhais de D..., E... que de modo isento e credível disseram que o A. à data da p.i. andava com canadianas e viam-no a claudicar (o relatório do INML também confirma o encurtamento do membro inferior), e por outro lado, a testemunha G..., que é pai do A., com plena razão de ciência, disse que este era portador de canadianas à data da p.i. e que tinha dificuldades em manter-se de pé e sentia necessidade de se sentar para descansar o corpo.

7ª - O acidente ocorreu aos 08/03/2002, de acordo com relatório do INML a cura das lesões contraídas pelo A ocorreu aos 16/04/2008, e ditaram um período de incapacidade de aproximadamente seis (6) anos.

8ª - De acordo com os valores do salário mínimo nacional nos anos de 2002, até 2006 inclusive, operando os cálculos do período de doença e de correspondente incapacidade temporária profissional do A., estimamos o valor das perdas de rendimentos pretéritas em 20.544,00€.

9ª - O A. tinha 43 anos à data do acidente, a sua vida activa iria até aos 70 anos, ficou com IPG de 30%, e esta IPG é compatível com a profissão de madeireiro que exercia à data do acidente, exigindo-lhe porém esforços acrescidos no respectivo exercício.

10ª - O A. não fora a IPG de que é portador, com 43 anos e daí em diante, não estaria por certo inactivo e teria prosseguido a normal exercitação da sua actividade profissional, porventura outra, as quais exerceria sem quaisquer limitações, e donde recolheria os naturais proventos ao longo de todo o decurso da sua vida, e daqui já se alcançam as repercussões patrimoniais pecuniárias em correspondência com a quota parte da diminuição da sua capacidade de trabalho, e esta inevitável perda de rendimentos futuros, só é indemnizável mediante a fixação e arbitramento de um capital nunca inferior a quarenta mil euros (40.000,00€), e que permita proporcionar-lhe ao longo da vida um equivalente renditício para as referidas perdas.

11ª - Sufragando-se que, não obstante a IPG de que o A. é portador, este não tem por isso quaisquer perdas de rendimento, tanto mais que entretanto se reformou, o certo é que quer a doutrina quer a jurisprudência, aceitam hoje que qualquer dano causado ao corpo e à saúde, configura o chamado dano biológico afectante da integridade física e psíquica da pessoa lesada, e merecedor de especial atendibilidade ao nível da reparação, quer o dano biológico se repercute ou não na capacidade de ganho de quem o sofra

12ª - O dano biológico, é hoje categorizado pela doutrina e pela jurisprudência, como um “tertium genus” a par do dano patrimonial em sentido estrito, e a par do dano moral, sendo por unanimidade, também tido como uma nova faceta e perspectiva do dano de natureza patrimonial, e como tal indemnizável, e não meramente compensável, e no caso dos autos, tendo o A. como tinha à data do acidente 43 anos, atenta a IPG de que ficou portador, atenta uma vida activa até aos 70 anos, e mais vida ainda para além desta idade, de acordo com a equidade e nos termos do artº 566º, 3 do CC, a fixação e valoração do dano biológico não deve afastar-se da quantia de 40.000,00€ supra referida.

13ª - Dentro do quadro inerente a todas as lesões que o A. contraiu mercê do acidente nos autos, e consequentes sequelas (fracturas expostas, da tíbia e perónio, perda óssea, intervenções cirúrgicas, clausura hospitalar, porte de fixadores, uso de cadeira de rodas, canadianas, necessidade de parar e sentar-se, esforços acrescidos, claudicação na marcha, cicatrizes, cicatrização muito difícil das feridas, IPG de 30%, tratamentos dolorosos, QD de 6/7, DE de 5/7, e pessimismo e tristeza advindos das lesões), nos termos dos artigos 496º, e 494 do CC, os inerentes danos morais devem ser fixados globalmente por valor nunca inferior a 30.000,00€.

14ª - Quanto aos valores supra de perdas de rendimentos pretéritos, perda de rendimentos futuros e ou dano biológico, por serem montantes indemnizatórios de carácter patrimonial, sobre eles e na quota parte devida ao A. devem incidir juros de mora à taxa legal desde a citação.

15ª - Quanto ao valor a arbitrar a titulo compensatório por danos não patrimoniais, supondo-se fixável de modo actualizado, serão devidos juros moratórios, nesta parte, contabilizados a partir da proferição da sentença.

A R. Rede Ferroviária Nacional-Refer respondeu, sustentando, em síntese, que não violou, a decisão de facto e a sentença recorrida as normas adjectivas ou substantivas referidas pelo A/recorrente, pelo que deve ser mantida a sentença nos seus precisos termos.

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – “Reapreciação” da decisão de facto

Como questão prévia à enunciação dos factos provados, importa – atento o âmbito do recurso – analisar as questões, a propósito da decisão de facto, colocadas pelo recorrente a este Tribunal.

No caso vertente, os diversos depoimentos prestados em audiência, nos quais a 1ª instância se baseou para decidir a matéria de facto, foram gravados; constando, assim, do processo todos os elementos probatórios com que aquela instância se confrontou, quando decidiu a matéria de facto e é possível modificar aquela decisão, se enfermar de erro de julgamento.

Em todo o caso – é a observação de ordem geral que, no caso, importa enfatizar – mais do que os depoimentos testemunhais prestados, são relevantes e decisivos, para a análise das questões a propósito da decisão de facto colocadas pelo recorrente, os elementos/documentos clínicos juntos e, acima de tudo, o conteúdo e conclusões da perícia médico-legal oportunamente feita.

Efectivamente, as questões de facto colocadas pelo recorrente têm essencialmente a ver com lesões e sequelas de natureza clínica sofridas pelo A.; e, já se vê, sobre esta matéria, para infirmar o que conste de elementos/documentos clínicos e da perícia médico-legal, não valem – não conferem suporte, com o devido respeito, a uma séria e segura convicção decisória – as “opiniões/palpites” dos “leigos”.

Por outro lado – importa acrescentar – o recurso (que é interposto apenas pelo A.) tem basicamente em vista, como infra melhor se verá, o incremento dos montantes indemnizatórios (não se discutindo a culpa) cuja fixação é feita, no essencial, com recurso à equidade.

O que significa que as questões de facto ora colocadas pelo recorrente acabam por ser, na sua grande maioria, duma instrumentalidade bastante remota para tal fixação equitativa; ou, por outras palavras, independentemente do desfecho de tais questões de facto, há elementos factuais suficientes para fazer funcionar adequadamente a equidade e esta, com ou sem tais factos (sob impugnação), conduz a uma mesma solução jurídica – o mesmo é dizer a uma mesma fixação indemnizatória.

Significa o que se acaba de dizer, debruçando-nos sobre as questões suscitadas, que – com duas “ressalvas” sem qualquer expressão – se corrobora por inteiro a decisão recorrida, designada e principalmente, quando na mesma se observa, sobre os diversos depoimentos testemunhais de amigos e familiares do A. (como o seu pai, G...), que os mesmos são de ter em conta “na parte em que revelaram factos e não raciocínios técnicos, para os quais não se encontravam habilitados, ou meras opiniões pessoais”; e quando se observa que os relatórios médicos “sustentaram a convicção do tribunal no que tange às consequências do acidente para a pessoa do A, tanto no que tange a ferimentos, internamentos, situação de reformado, como no que se refere às sequelas, grau de incapacidade, dano estético e quantum doloris”.

E justamente dos relatórios médicos (e dos elementos e informações clínicas juntos ao processo) resulta que o A.:

“ (…) na sequência do evento foi assistido no Serviço de Urgência do Hospital Distrital da Figueira da Foz, onde lhe foram colocados fixadores externos na perna esquerda por fractura exposta com perda óssea. Onde ficou internado no Serviço de Ortopedia durante cerca de 5 meses, tendo então sido transferido para o Centro Hospitalar de Coimbra. Durante o internamento foram-lhe retirados os fixadores e colocado aparelho de Illizarov, vindo a ter alta para o domicílio em Outubro de 2002, ainda com aparelho, que manteve cerca de 8 meses, deambulando com duas canadianas e orientado para a consulta externa de Ortopedia.

Cerca de 15 dias depois passou a ser seguido regularmente na consulta, onde lhe eram feitos tratamentos e penso aos ferimentos na perna e, em Maio de 2003, foi de novo internado durante cerca de 1 mês, tendo-lhe sido retirado o Illizarov. Continuou a frequentar a consulta, de 8 em 8 dias até Setembro, e depois de 15 em 15 dias, e mais tarde com uma frequência mensal. Em Setembro de 2005, foi re-internado durante cerca de 1 mês para fazer enxerto de pele na perna esquerda. Continuou a ser seguido em regime de consulta, de onde veio a ter alta em 28-11-2005, tendo somente a partir desta data iniciado a marcha sem o apoio de canadianas. Andou também a efectuar tratamentos e penso aos ferimentos na perna esquerda no Centro de Saúde da Guia - Pombal até finais de 2007. Entretanto, foi novamente observado na consulta de Ortopedia do Centro Hospitalar de Coimbra, tendo então sido enviado para os Hospitais da Universidade de Coimbra, onde andou a ser seguido na consulta de Cirurgia Plástica, vindo a ter alta a 16-04-2008

(…)

O Examinando é dextro e apresenta marcha claudicante, sem recurso a ajudas técnicas

(…)

A incapacidade permanente geral (correspondente à afectação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo as familiares, sociais, de lazer e desportivas) na qual, tendo em conta a globalidade das sequelas resultantes, a experiência médico-legal de casos semelhantes e a consulta de tabelas de incapacidades funcionais, (…) valorizam os seguintes aspectos

i. Claudicação da marcha

ii. Encurtamento do membro inferior esquerdo de 1,5cm

iii. Marcada amiotrofia da coxa e perna esquerdas

iv. Anquilose do tornozelo esquerdo

v. Acentuado edema residual do tornozelo esquerdo

vi. Alterações tróficas cutâneas da perna esquerda

O que conduz a uma proposta de incapacidade permanente geral fixável em 30% a partir da data de consolidação

Quanto ao rebate profissional as sequelas resultantes exigem esforços acrescidos no exercício profissional específico do examinando  (…)”

Relatórios/elementos estes que, pela sua objectividade, atenta a sua proveniência, merecem toda a confiança e se mostraram idóneos a abalar a credibilidade das testemunhas ouvidas – na parte em que os seus depoimentos contende com tais relatórios/elementos – cujos depoimentos se valoram, assim, como eivados de alguns exageros, ao terem procurado transmitir a ideia de serem ainda bem mais extensas, profundas e incapacitantes as sequelas de que o A. ficou a padecer.

É justamente por tudo isto que, sobre as 4 concretas questões suscitadas em sede de recurso da matéria de facto, dizemos, sinteticamente, o seguinte:

Quanto ao quesito 51.º – em que se perguntava se “actualmente, só se locomove com o auxílio de canadianas?” e que foi respondido não provado – altera-se a resposta, em face do que se retira dos elementos que constam do relatório médico, para “provado que, de Outubro de 2002 a Novembro de 2005, se locomoveu com o apoio de canadianas”; alteração que é bastante irrelevante, uma vez que com as respostas ao quesitos 49.º, 50.º e 65.º já ficou provado que o “A. usou canadianas na locomoção até data exacta não apurada” (isto é, confiando-se nos elementos médicos, apenas se acrescenta, agora, o início e o termo do uso das canadianas).

Quantos aos quesitos 56.º e 57.º – em que se perguntava “o A. nem sequer consegue manter-se de pé durante muito tempo, sendo obrigado a parar e a sentar-se com insistência?” e “não pode correr, saltar, não pode fazer esforços, ajoelhar-se, subir escadas e coxeia?” – a que foi respondido, em conjunto, que “as sequelas de que padece determinam ao A. dificuldades de locomoção e esforços acrescidos no respectivo exercício profissional”, mantém-se a resposta que foi dada que sintetiza a situação do A., acrescentando-se tão só que “coxeia da perna esquerda”.

Quanto ao quesito 73.º – em que se perguntava se “atenta a idade e falta de preparação não conseguirá obter outro emprego, ainda que leve?” – mantém-se a resposta “não provado”; efectivamente, tal facto não é confirmado de modo seguro por qualquer meio de prova e, sem prejuízo do que os seus amigos e familiar, ouvidos como testemunhas, referiram, tal é insuficiente para infirmar, com credibilidade, o que em contrário se extrai da prova pericial que fixa a IPG decorrente da consolidação das lesões em 30%; daí que a resposta não possa ser outra senão a de “não provado”.

Em conclusão, em face de tudo o que se expôs – que a motivação da decisão de facto refere em síntese – e das atinentes regras da experiência, o sentido e a avaliação da prova produzida, em termos de análise crítica, não poderiam ser outros senão, com as ressalvas (sem expressão) referidas, os que presidiram às respostas dadas; que assim reflectem e exprimem com fidelidade a prova produzida.

É quanto basta para concluir, com as referidas ressalvas, pela improcedência do recurso de facto.


*

III – Fundamentação de Facto

Os factos apurados com relevo para o conhecimento do recurso – isto é, apenas os desta acção 1679/04, uma vez que é apenas no seu âmbito que se situa o presente recurso – são pois os seguintes:

1. No dia 8 de Março de 2002, cerca das 9h, no sítio de Regato e dentro da localidade de Cabeço de Carriço, área desta comarca, ao Km 186,754, da linha do Oeste, ocorreu um acidente ferroviário.

2. Nele foram intervenientes os seguintes veículos: comboio de mercadorias número 753262, rebocado pelas máquinas 1437.8 e 1466, propriedade da R. CP e uma máquina industrial tipo Berlier, articulada e sem matrícula.

3. Em tais circunstâncias de tempo e lugar, o comboio não trazia mercadorias.

4. Circulava no sentido Alfarelos/Caldas da Rainha.

5. Era tripulado pelo R. B..., sendo o R. C... ajudante de maquinista, sendo ambos funcionários da R. CP e conduzindo o comboio ao serviço e sob as ordens, direcção e instruções emanadas desta, cumprindo trajecto ferroviário ditado e traçado pela mesma no seu próprio interesse.

6. No local do sinistro existe uma passagem de nível, sem guarda, sem barreiras e sem sinalização sonora ou luminosa, sendo do Tipo D.

7. No local, a via férrea intercepta a Rua do Regato, a qual estabelece comunicação viária entre a localidade de Cabeço de Carriço e várias outras localidades, nomeadamente as de Nasce Água, Grou, Coimbrão, Guia e Monte Redondo.

8. A mesma é utilizada pelas populações em geral, que nela transitam a pé, com carros tractores e máquinas agrícolas.

9. A Câmara Municipal de Pombal e a Junta de Freguesia do Carriço zelam pela conservação dessa via, limpando as valetas e espalhando tout venant, quando necessário.

10. A Rua, que é interceptada pela passagem de nível, imediatamente antes da zona da passagem, atento o sentido nascente/poente, é ladeada por terrenos rústicos.

11. Os quais, quer de um lado, quer de outro, formam barreiras na zona de confinância com o caminho público e paralelas à estrada.

12. As ditas barreiras têm uma altura variável, sendo a sua altura média de 2,60 m.

13. O talude das barreiras é ligeiramente inclinado e no cimo as mesmas encontram-se cobertas de vegetação e pinheiros disseminados, apresentando silvas e caniços até uma altura aproximada de 7,8 m.

14. Os Pinheiros vindos de mencionar situam-se no topo da barreira e com início a 7,4 m do primeiro carril.

15. Tal barreira, atento o sentido nascente-poente inicia-se a cerca de 263 m da ferrovia e termina a 4 m do primeiro carril e apresenta, junto à ferrovia a altura mencionada em 13., com início a 4 m do primeiro carril.

16. Devido às barreiras existentes a ladear a via pública a visibilidade está confinada à localização de quem se desloca na Rua do Regato a pé ou de carro, aumentando à medida que se aproxima da passagem de nível e sendo maior à esquerda do que à direita.

17. Tendo em conta tudo o que supra fica dito, a visibilidade para a linha inicia-se após a curva existente na Rua do Regato, da qual se avista a passagem de nível e respectivas tabuletas, muito embora o avistamento para a linha se possa fazer a 4 m do primeiro carril.

18. O A. reside na localidade de Cabeço do Carriço e trabalha no local onde ocorreu o sinistro, cujas características conhecia bem.

19. No local do acidente, na Linha férrea, antes da passagem de nível, e atento o sentido Norte-Sul, existe uma curva fechada, visível a peões posicionados no eixo da Rua do Regato e a 4 metros do 1º carril.

20. Tal curva dista do eixo da Rua do Regato 178 m, se essa distância for medida a partir de 4 m do primeiro carril e 191m se medirmos a partir de 3,5 m do mesmo local.

21. No momento do sinistro e a anteceder a zona de intersecção da rua com a ferrovia e do lado direito daquela, atento o sentido nascente/poente, a cerca de 5,5 m do primeiro carril, estava colocado um suporte, ou tabuleta, feito em cimento e constituída por um pilar ou poste, encimado por uma superfície rectangular.

22. No rectângulo estavam inseridos os seguintes dizeres: “Pare, escute e olhe”.

23. Na altura, os referidos dizeres estavam quase imperceptíveis pelo facto de a tinta estar esbatida.

24. Num suporte metálico afastado do acabado de mencionar para nascente, aproximadamente 0,40m, está agora colocada uma cruz de Santo André.

25. Na passagem de nível em causa nos autos já ocorreu um acidente de viação mortal há número exacto de anos não apurado.

26. No troço da via férrea em questão, no sentido norte/sul, a anteceder a passagem de nível, não existem sinais a limitar a velocidade dos comboios.

27. Na Rua, atento o sentido nascente/poente, antes da zona de intercepção desta com a ferrovia, não existia nenhuma sinalização indicativa de aproximação de passagem de nível sem guarda, ou indicativa de perigo, à excepção do supra mencionado.

28. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, antes do acidente, o A. circulava pela Rua do Regato, no sentido nascente poente, ao volante da máquina industrial mencionada na matéria assente, sua propriedade.

29. E pretendia transpor a passagem de nível, prosseguindo, depois, marcha para poente.

30. Ao chegar à zona da passagem de nível e em local exacto não apurado do início da mesma, desligou o motor, parando a máquina.

31. Tornou a accionar o motor da máquina e engatou a primeira velocidade, após o que iniciou a transposição da passagem de nível.

32. Após reiniciar a marcha da máquina que conduzia, o A. reparou na aproximação do comboio a deslocar-se no sentido Figueira - Guia.

33. Só quando desfez a curva a avistou a máquina industrial é que o maquinista do comboio accionou o freio.

34. Ao avistar o comboio, o A. tentou acelerar a máquina, imprimindo-lhe maior velocidade, de modo a passar totalmente para o lado oposto da passagem de nível e assim evitar a colisão.

35. Contudo, não conseguiu evitar o violento embate entre a parte da frente do lado direito da máquina locomotiva e a parte traseira, lado direito da máquina industrial.

36. A máquina, mercê do impacto que recebeu, veio a ficar imobilizada fora da linha e do lado direito, sentido Figueira - Guia.

37. O A. ficou “entalado” com a perna esquerda debaixo da máquina que conduzia.

38. Após a colisão, o comboio prosseguiu a sua marcha, embora frenado, tendo percorrido ainda número exacto não apurado de metros, mas pelo menos cerca de 200m, para além do sítio da passagem de nível e para sul desta.

39. Tanto o maquinista como o ferroviário conheciam bem o local, na perspectiva da circulação dos comboios, já que ali passavam com frequência.

40. Nenhum deles fez à sua entidade gestora ou aos seus superiores hierárquicos qualquer alerta específico relativamente à passagem de nível em causa nos autos.

41. O comboio interveniente no sinistro não estava sujeito a qualquer horário pré-estabelecido e do conhecimento prévio do A..

42. Fruto da colisão, o A. sofreu lesões físicas, designadamente, fracturas expostas da tíbia e perónio esquerdos, com esfacelo e perda óssea.

43. Foi assistido, ainda no local, por uma equipa médica.

44. Após, foi transportado para o Hospital da Gala, na Figueira da Foz.

45. Ali, foi submetido a duas intervenções cirúrgicas.

46. Foi, então, transferido para o Hospital dos Covões.

47. Ali esteve internado entre 7.8.02 e 11.10.02.

48. E voltou a estar internado entre 28.5.03 e 17.6.03.

49. Sempre imobilizado com fixadores externos na perna esquerda.

50. Inicialmente, o A. locomoveu-se em cadeira de rodas e depois em canadianas, entre Outubro de 2002 e Novembro de 2005.

51. Em consequência do sinistro, o A. apresenta as seguintes sequelas, no membro inferior esquerdo:

Retalo cutâneo nacarado no terço médio da face anterior da coxa, medindo 6x4 cm, 4 cicatrizes de características operatórias nacaradas, no terço superior da face antero-interna da perna, a maior medindo 1,5 cm de comprimento e a menos 1 cm de comprimento, complexo cicatricial rosado, estendendo-se ao longo dos terços médio e inferior da perna e envolvendo todo o seu diâmetro, medindo 30 cm de perímetro e 18 cm de altura, com alterações tróficas cutâneas acentuadas a esse nível, pilosidade praticamente ausente e hipopigmentação, na extremidade distal do referido complexo, junto à região maleolar, área deprimida, com perda de substância, aderente aos planos profundos, no seio deste complexo, ao nível da face interna da perna, ferimento coberto por crosta cicatricial, medindo 2x 1 cm, cicatriz rosada a nível da região calcaneana, medindo 2x1 cm, encurtamento do membro inferior de 1,5 cm, amiotrofia da coxa de 4 cm e da perna de 3 cm, anquilose do tornozelo e acentuado edema residual do tornozelo, com claudicação da marcha.

52. As sequelas de que padece determinam ao A. dificuldades de locomoção – coxeia da perna esquerda – e esforços acrescidos no respectivo exercício profissional.

53. Até 16.4.08 as feridas não cicatrizavam, o que forçou o A. a ser submetido até essa data a cuidados médicos e medicamentosos.

54. Só em tal data lhe foi dada alta com cicatrização completa.

55. Antes do acidente, o A. era alegre e bem disposto.

56. Actualmente é uma pessoa pessimista, triste, complexada e em sofrimento constante.

57. As lesões contraídas e as intervenções cirúrgicas e tratamentos causaram-lhe muitas dores físicas, as quais ainda perduravam à data da propositura da presente acção.

58. O que ainda hoje ocorre.

59. Nos períodos em que esteve imobilizado e com os fixadores, sofreu incómodos, mal estar e angústia em elevado grau.

60. O A. usou canadianas na locomoção entre Outubro de 2002 e Novembro de 2005.

61. O quantum doloris sofrido pelo A. é fixável no grau 6 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

62. O dano estético é qualificável de grau 5, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

63. Pela vida fora, o A. continuará limitado na mobilidade dos membros inferiores, sendo que as sequelas de que ficou portador lhe determinam uma incapacidade permanente geral fixável em 30%.

64. Antes do acidente o A. cortava madeira, do que retirava rendimento mensal não apurado.

65. A IPP de que ficou portador é compatível com tal actividade profissional embora lhe exija esforços acrescidos no respectivo exercício.

66. Actualmente o A. encontra-se reformado, o que ocorre desde data não apurada, auferindo pensão mensal que não logrou apurar-se.

67. O A. comprou a máquina referida na matéria assente, como interveniente no sinistro e pagou o correspondente preço.

68. Tendo passado a utilizá-la no exercício da sua actividade comercial à vista de todos, ininterruptamente, sem qualquer violência ou oposição de quem quer que fosse, convicto de não lesar direitos de outrem e de actuar como proprietário da referida máquina.

69. A R. REFER não concedeu qualquer autorização para o atravessamento da ferrovia por parte do veículo mencionado na matéria assente, nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas na dita matéria.

70. Na zona do atravessamento, a visibilidade a norte atinge-se até 179 m medidos do eixo da Rua do Regato e a 4 m do 1º carril, sendo de 192 m na mesma posição, se medidos a 3,5m e a sul, em referência ao 1º carril, a 4 m atinge-se visibilidade até 239 m, sendo de 244m, se medidos de 3,5 m..

71. A tentativa de o A. efectuar a passagem de nível foi efectuada muito devagar.

72. Só tendo acelerado o movimento do veículo que conduzia quando se apercebeu da chegada do comboio.

73. O comboio interveniente no acidente, aquando do mesmo circulava à velocidade de 97 Km/h.

74. A velocidade máxima prevista para os comboios, no local é de 120 Km/h.

75. O A. nasceu a 15.11.1960.


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IV – Fundamentação de Direito

A apreciação e decisão da presente apelação, delimitada pelas respectivas conclusões (cfr. art. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPC), circunscreve-se aos danos; mais exactamente, na perspectiva do apelante, ao montante indemnizatório correspondente à incapacidade permanente geral (IPG) com que ficou; ao montante indemnizatório que há-de compensar os danos não patrimoniais por si sofridos; ao montante indemnizatório correspondente à incapacidade temporária que sofreu; e aos juros que hão-de incidir sobre os montantes indemnizatórios.

Efectuando um muito breve e “tabelar” enquadramento jurídico, diremos que a acção se funda nas regras da responsabilidade civil; e, em princípio, é responsável civilmente quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem causando-lhe danos.

Competia assim ao A. alegar e provar os vários requisitos da responsabilidade civil (483º e ss. do C. C.).

Ónus que cumpriu quanto à alegação; e que, quanto à prova, a decisão recorrida (supra transcrita) também considerou cumprido, pelo menos parcialmente.

Assim, numa primeira delimitação negativa do recurso – a partir do confronto entre o decidido na sentença recorrida e o âmbito do recurso interposto – podemos afirmar que o decidido a propósito do processo 809/05 está em definitivo estabilizado/consolidado nos autos.

Efectivamente, o aqui apelante recorre apenas e só na sua qualidade de A. no processo 1679/06, não colocando em crise a condenação de que, enquanto R. (sendo a CP a A.), foi alvo no processo 809/05.

Evidência que apenas aqui mencionamos para, fazendo o “ponto de ordem e de sequência”, delimitarmos sem lacunas o objecto da apelação.

Passando a uma segunda delimitação negativa do recurso[1], importa referir que também já não está em causa a questão da culpa na eclosão do acidente – que a sentença recorrida atribuiu em partes iguais ao aqui A./apelante e à R/Refer – uma vez que nem o aqui apelante nem a R/Refer colocam em crise a igual percentagem de culpa que a sentença recorrida lhes atribuiu, deixando estabilizar quer as “suas” próprias culpas repartidas quer a ausência de culpa dos outros RR..

Ademais, ainda em termos de delimitação do recurso, poder-se-á acrescentar que também não estará verdadeiramente em causa saber se os danos que foram indemnizados na sentença recorrida o são ou não; a questão – a parte mais importante da questão – está em saber o modo como pode/deve ser juridicamente configurada/construída a indemnização dos danos e, em função disso, a que montantes indemnizatórios, incrementados ou não, se vai chegar.

Assim, antes de nos debruçarmos sobre a tríplice vertente indemnizatória pretendida pelo A/apelante – até para esclarecer o que acabamos dizer – impõem-se as seguintes notas e observações:

Como consta do início do relatório deste acórdão, o A/apelante liquidou e pediu de indemnização o montante de € 186.700,05, sendo € 12.120,79 de perdas de rendimentos pretéritos, € 124.699,47 de perdas de rendimentos futuros e € 49.879,79 de danos morais.

Debruçando-se sobre tal pedido (global e parcelares) – após fixar “em 50% a concorrência de culpas da R. Refer e do A./R. A... na produção do sinistro, ficando assim, a indemnização a que tenha direito, perante apenas a R. co-responsável, limitada a essa medida (…)” – a sentença recorrida considerou:

 - Que o “A. tem direito a uma indemnização por perda de rendimento passado”, “desde a data do acidente até que lhe foi dada alta clínica o que se prolongou durante quase 6 anos, muito embora tal período exceda em muito a data da propositura da acção e na pendência desta não tenha sido deduzido qualquer ampliação do pedido” (…) “apenas se provou que o A. à data do acidente o A. cortava madeira dos pinhais, disso retirando rendimento mensal não apurado” (…) “para agravar ainda mais a indefinição provou-se que o A., entretanto, em data e por motivos exactos que se desconhecem, se reformou (necessariamente por invalidez, pois à data do sinistro contava, comprovadamente com 43 anos), pelo que passou a receber pensão de reforma, mas em valor que igualmente não logrou apurar-se” (…) “atentas todas essas indefinições, que dificilmente serão esbatidas no seu todo, ao abrigo do disposto no art. 566º, nº 3, lança-se mão da equidade, tendo em conta os factos conexos supra considerados provados, mas também o valor do salário mínimo nacional, nas datas das perdas de rendimento” (…) “tendo-se assim por adequado, justo e equitativo, atribuir a compensação por tais danos no montante de € 10.000.”

Que “veio igualmente pedir indemnização pela perda de rendimentos futuros, tendo por referência a sua idade, à data do sinistro, o montante que alegou retirar da sua profissão e a IPP de que ficou portador. Conforme entendimento quase unânime doutrinal e jurisprudencialmente (embora não isento de reparos) o dano decorrente da incapacidade permanente parcial de que o lesado fique afectado, mesmo que não impeditivo do exercício da actividade profissional e não implicando uma diminuição da capacidade de ganho assume natureza de dano patrimonial. (…) Embora esse seja o entendimento maioritário, outro existe, talvez até mais ajustado em determinados casos que vai no sentido de que sempre que o lesado fique portador de uma IPP que não inviabilize a sua actividade profissional, o dano indiscutível que a mesma representa, porque sem rebate na esfera patrimonial do mesmo lesado deve ser valorado ao nível dos danos não patrimoniais, pois o ganho é o mesmo, embora com um esforço físico suplementar em ordem à sua obtenção, o que também haverá que ser compensado.

(…) No caso dos autos, existem vários elementos perturbadores para se poder aplicar o primeiro dos referidos critérios, pois não só não se provou o montante percebido pelo A., na sua actividade profissional como também resultou apurado que o mesmo, entretanto, se reformou (embora sem prova directa que esse facto se deva ao acidente ajuizado, antes se podendo dever a outros factores), o que inviabiliza de uma forma rigorosa a quantificação do dano, se se considerar patrimonial e poderia até implicar um enriquecimento injustificado em consequência do sinistro.

Temos, pois, por mais adequado e justo, no caso concreto (até porque evita futuras liquidações, sempre indesejáveis), valorar o dano indiscutível sofrido pelo A., por via da IPP de 30% de que ficou portador, ao nível dos danos não patrimoniais, até porque em sede decisória, o Tribunal não só não está restringido à qualificação jurídica que as partes façam dos factos que alegam, como nem sequer está espartilhado aos valores parcelares e suas origens, mas apenas á globalidade do pedido deduzido (podendo, pois, alterar para mais ou para menos as parcelas que as partes entenderam indicar como justificação para o pedido, entendido como um todo, mas sempre dentro dos limites deste).

No caso dos autos, a esse nível, sempre tendo por referência os factos já supra e exaustivamente descritos” (…) tais danos, pela sua natureza e extensão constituem dano não patrimonial e merecem a tutela do direito, considerando-se adequado compensá-los com a quantia de 60.000 €, quantia essa reportada à presente data.”

Enfim, a sentença recorrida computou a indemnização pela perda de rendimentos pretéritos em € 10.000,00 e encaixou todos os restantes danos sofridos pelo A/apelante ao nível dos danos não patrimoniais, computando a sua compensação em € 60.000,00, condenando depois a Refer, em face da concorrência/repartição de culpas antes estabelecida, em metade de tais quantias.

Ao que o A/apelante contrapõe:

Que tendo ficado provado um período de incapacidade temporária profissional total de aproximadamente seis anos, recorrendo aos valores do salário mínimo nacional, a indemnização das perdas de rendimentos pretéritas deve ser fixada em € 20.544,00.

Que quer a doutrina quer a jurisprudência aceitam hoje que qualquer dano causado ao corpo e à saúde configura o chamado dano biológico; que uma IPG de 30% tem uma faceta e perspectiva do dano de natureza patrimonial, que, no caso, tendo o A. 43 anos à data do acidente, de acordo com a equidade e nos termos do art. 566º/3 do CC deve dar lugar a uma indemnização, a titulo de dano biológico, no montante de € 40.000,00.

Que os restantes danos, configuráveis como danos não patrimoniais, devem ser compensados com € 30.000,00.

Tudo isto para dizermos e observarmos que, embora seguindo configurações jurídicas um pouco diferentes, são exactamente os mesmos os danos pedidos (quer na PI quer na alegação recursiva) e concedidos; e que o único limite que temos são os globais € 90.544,00 (mais exactamente, ½ de tal quantia, como o A/recorrente pede/reconhece no final da sua conclusão recursiva) que somam as 3 verbas acabadas de referir.

Por outras palavras, não estamos vinculados a qualquer configuração/construção que as partes ou a sentença recorrida hajam feito dos danos; o único limite é o pedido global – neste momento, reduzido ao pedido do recurso – limite em que se acomodarão, até onde for possível, todos os danos revelados pelos factos provados.

Isto dito, debrucemo-nos então, separadamente, sobre cada uma das 3 indemnizações referidas na alegação do A/apelante.

Quanto ao montante indemnizatório correspondente à incapacidade temporária profissional sofrida pelo A/lesado:

Concorda-se, desde já se antecipa, com o montante de € 10.000,00 fixado, equitativamente, como indemnização por tal dano; esclarecendo-se que com tal montante apenas consideramos incluídas/indemnizadas as perdas de rendimento do A/lesado até Julho de 2004 (conforme se pediu – art. 109.º da PI).

Não se discute, evidentemente, que, até tal data (e até depois dela), esteve o A. totalmente incapacitado de trabalhar, porém, é esta a dificuldade, cortando o A madeira dos pinhais, não se apurou o seu exacto rendimento mensal e, em consequência, o valor exacto dos danos; daí o recurso à equidade (cfr. 566.º/3 do CC).

Sem prejuízo do montante fixado equitativamente dever seguir de perto, como é o caso, o valor/resultado a que se chega aplicando os SMN à época vigentes[2].

Foi um pouco esta ideia – do uso “no mínimo” do SMN – que o art. 6.º, n.º 3, da Portaria 377/2008, de 26-05, veio acolher ao mandar considerar, para o cálculo dos danos futuros, “a retribuição mínima mensal garantida à data da ocorrência, relativamente a vítimas que não apresentem declarações de rendimentos[3]; bem sabemos que tal diploma legal não cobre temporalmente os factos em análise, que a Portaria, como começa a ser recorrentemente decidido nos nossos Tribunais[4], só vale, só contém regras juridicamente vinculantes e obrigatórias, numa fase anterior, de regularização amigável e extra-judicial dos danos, e que nem sequer estamos aqui perante um dano futuro, porém – é o que se pretende salientar – apenas fazemos apelo ao princípio/critério (também contido em tal Portaria) como “auxiliar” da equidade.

Por outro lado, como se referiu, apenas aqui consideramos indemnizadas as perdas de rendimento do A/lesado até Julho de 2004.

Quer as “indefinições” em termos de prova de que fala a sentença recorrida – em que se inclui a reforma por invalidez do A/lesado em data desconhecida – quer a circunscrição temporal que o próprio A. colocou em tal dano, permitem supor que, “mais coisa menos coisa” e sem prejuízo das consultas que continuou a frequentar e da cicatrização completa só haver ocorrido bem mais tarde, o que aconteceu a partir de Julho de 2004, em termos de “perda de rendimento”, se acomoda e entra melhor no cálculo do dano futuro (pedido no art. 111.º da PI).

Quanto à indemnização pela IPG com que o A/lesado ficou:

Começar-se-á por repetir, a propósito de tal questão/indemnização, que não está em causa saber se tal dano é indemnizável, mas, verdadeiramente, repete-se, a questão está na sua configuração jurídica e, em função disso, no “quantum” indemnizatório a atribuir-lhe.

Hoje[5] – e o “hoje” não se iniciou com o preambulo da Portaria 377/2008, de 26-05[6] – fora dos danos não patrimoniais, não só a diminuição da actividade profissional é geradora de danos indemnizáveis; hoje, fala-se em “dano biológico” para aludir ao dano causado ao corpo e à saúde do lesado; ao dano causado à integridade física e psíquica que a todos assiste.

Parte-se da ideia que a lesão corporal sofrida pelo lesado merece ser apreciada e o respectivo dano reparado independentemente de repercussões sobre a sua capacidade de ganho; e que sendo o normal estado de saúde a premissa indispensável para uma capacidade produtiva normal não se esgota ou consome apenas e só na capacidade produtiva.

E, nesta linha, afirma-se o dano corporal ou dano à saúde como um dano autónomo – tertium genus para alguns – com um lugar próprio que não se esgota nem é totalmente assimilado pelo clássico dualismo patrimonial (em sentido estrito) - não patrimonial.

Acrescenta-se ainda, em abono de tal tese, que o homem, na sua integridade psico-somática, desenvolve a sua existência terrena na sua vida e realização profissionais e na sua vida relacional – relacionando-se e interagindo com os demais seres humanos; pelo que pode haver dano corporal, nesta faceta da sua vida relacional, tenha ou não havido qualquer rebate anátomo-funcional.

Porém, também se refere e avisa, “a fim de evitar super-equações de danos (com indemnizações em duplicado, em triplicado ou até mesmo em quadruplicado)” e “no intuito de pôr cobro à autêntica anarquia que se instalou nas decisões judiciais[7] que os únicos 3 tipos de danos existentes são, respectivamente, o dano à saúde, o dano patrimonial em sentido estrito (decorrente de incapacidade com incidência no desempenho profissional) e o dano moral; e que, sendo o dano à saúde alheio a quaisquer incidências sobre a capacidade de ganho do lesado, importa não esquecer “que há zonas de tangência e até de intersecção entre vectores diferenciados e autonomizados duma mesma realidade[8].

Tradicionalmente, a análise dualista – patrimonial / não patrimonial – abarcava todo o campo da discussão que os danos corporais comportavam, situando-se toda a discussão em volta da parametrização ressarcitória de tal tipo de danos e da autonomização de um ou outro parâmetro de avaliação, sempre inserido num dos termos da referida dualidade. Agora, ao erigir-se em categoria autónoma de dano (dano biológico) o que, antes, não passava dum parâmetro de avaliação doutro dano, importa que avaliação global não dê lugar a duplicações.

Em síntese, a lesão do direito ao corpo e à saúde é, enquanto dano autónomo – quer o consideremos como um verdadeiro “tertium genus”, quer como uma “nova” faceta e perspectiva do dano patrimonial, como parece ser a inclinação do STJ[9] – fonte de obrigação de indemnização, a suportar pelo autor do facto ilícito e em benefício de quem viu a sua integridade corporal beliscada, independentemente de quaisquer consequências pecuniárias ou repercussões patrimoniais de qualquer natureza; mas a sua avaliação tem que ser acompanhada duma correcta delimitação de realidades e conceitos, para que não haja sobreposições.

Isto dito, regressando ao caso dos autos, temos que o dano indemnizável sob apreciação – de que, adverte-se, não está aqui em causa a parte/vertente não patrimonial – decorre do A., em consequência do acidente, ter ficado, como se refere nos factos 63 e 65 deste acórdão, com um coeficiente de desvalorização, em termos de incapacidade permanente geral, de 30%, exigindo as sequelas com que ficou esforços acrescidos no exercício da sua actividade profissional.

E temos, como único critério legal para a sua fixação – nunca é demais enfatiza-lo, para que não paire a menor dúvida – tão só a equidade (cfr. art. 566.º/3 do C. Civil).

O que não significa ou impede que em situações como a presente – isto é, sempre que se visa encontrar um capital que se vai diluir ao longo de várias dezenas de anos – se rejeite a ajuda da lógica matemática; que não se usem, como auxiliar, como instrumento de trabalho, fórmulas matemáticas, que podem ter o mérito de impedir involuntárias discricionariedades e subjectivismos, na medida em que obrigando o julgador à externalização, passo a passo, do seu juízo decisório e a uma maior “densificação” da fundamentação da decisão, contribuem para impedir raciocínios mais ligeiros e/ou maquinais na fixação de indemnização.

Permita-se-nos pois, sempre cientes que o único critério legal é a equidade e não ignorando que estamos “apenas” perante uma IPG – compatível com o exercício da sua profissão, exigindo “esforços acrescidos no exercício da sua actividade profissional” – e não perante uma incapacidade com repercussão/rebate, directo e proporcional, sobre a capacidade de ganho do A/lesado, que façamos um “ensaio/estimativa” do que seria a indemnização caso estivéssemos perante esta última hipótese.

Então:

Ia o A. nos 44 anos (nasceu em 15/11/1960) na data em que terminou a indemnização por incapacidade temporária (em Julho de 2004), pelo que iremos tomar, como elemento de cálculo, o salário mínimo nacional à época vigente (€ 365,60) 14 vezes por ano, isto é, € 5.118,40 por ano. Admitamos ainda, para o nosso “ensaio/estimativa”, que o A/lesado teria mais 36 anos de vida activa, “funcionemos” com a referida incapacidade de 30% e recorramos, instrumentalmente, ao auxílio de fórmulas e cálculos matemáticas que, encontrada a prestação anual a que o lesado teria direito e conhecido o número de anos por que a mesma se deve manter, nos dizem qual o capital que será necessário deter no ano inicial para, esgotando-se totalmente no final, obter em cada um dos anos a prestação anual[10].

E, tudo considerado, chegamos ao valor (aplicando a fórmula matemática referida em nota[11]) de € 39.386,24 (factor de 25,6501 X a hipotética pensão anual de € 1.535,52, correspondente a 30% X € 5.118,40).

Assim, não esquecendo nunca que o que estamos a indemnizar é “apenas” o dano biológico (com os contornos supra traçados e sem “duplicações” e “sobreposições”) e não, como no ensaio/estimativa feito, um dano com rebate e repercussão na perda de ganho, admitindo que tal dano biológico se prolongará além da vida activa (até ao termo da esperança de vida), reputamos num julgamento “ex aequo et bono” – tomando em conta “todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida[12] – como inteiramente justo e equilibrado, como a boa justiça do caso concreto, fixar a indemnização por tal dano em € 40.000,00.

Para o que se acrescenta e explicita o seguinte: embora o resultado de € 39.386,24 que a fórmula matemática nos deu – uma vez que a fórmula está apenas vocacionada para auxiliar no cálculo de incapacidades com repercussão/rebate, directo e proporcional, sobre a capacidade de ganho – mereça e suscite, num julgamento “ex aequo et bono”, uma compressão/redução no seu valor, a circunstância de só passados 4 anos sobre a data inicial de tal cálculo o A. ter tido alta clínica faz presumir que, durante tal lapso de tempo, o dano causado ao corpo e à saúde do lesado – premissa indispensável para uma capacidade produtiva normal – terá tido uma expressão superior aos 30%, o que, em contrapartida e em síntese, nos “devolve/reenvia” para a referida quantia indemnizatória de € 40.000,00, reportada à data da citação[13].

Quanto à indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo A/lesado:

Não será despiciendo lembrar que a indemnização, no caso dos danos não patrimoniais, reveste uma natureza acentuadamente mista; visa reparar os danos sofridos pela pessoa lesada e, além disso, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.

Isto dito, afigura-se-nos ajustado e equilibrado (cfr. 496.º/1, e 494.º, ambos do CC) – numa perspectiva que não pode nem deve ser miserabilista – compensar com € 25.000,00[14] as dores, receios e angústias (passados e futuros), tratamentos, hospitalização e toda a espécie de limitações e sequelas que o A., com 41 anos à data do acidente, pessoa alegre e bem disposto, sofreu; que os factos deste acórdão detalham e de que, aqui, em síntese, se respiga e salienta em termos de “gravidade” merecedora da tutela do direito (cfr. 496.º/1) o seguinte:

Fracturas expostas da tíbia e perónio esquerdos, com esfacelo e perda óssea, em 08/03/2002;

Assistência no local e transporte para o Hospital da Gala, na Figueira da Foz onde foi submetido a duas intervenções cirúrgicas, donde foi transferido, após 5 meses, para o Hospital dos Covões, onde esteve internado até 11/10/02 e onde voltou a estar internado entre 28/5/03 e 17/6/03, sempre imobilizado com fixadores externos na perna esquerda.

Locomoção em cadeira de rodas e depois em canadianas até Novembro de 2005.

Ficou com o membro inferior esquerdo com retalo cutâneo nacarado no terço médio da face anterior da coxa, medindo 6x4 cm, 4 cicatrizes de características operatórias nacaradas, no terço superior da face antero-interna da perna, a maior medindo 1,5 cm de comprimento e a menos 1 cm de comprimento, complexo cicatricial rosado, estendendo-se ao longo dos terços médio e inferior da perna e envolvendo todo o seu diâmetro, medindo 30 cm de perímetro e 18 cm de altura, com alterações tróficas cutâneas acentuadas a esse nível, pilosidade praticamente ausente e hipopigmentação, na extremidade distal do referido complexo, junto à região maleolar, área deprimida, com perda de substância, aderente aos planos profundos, no seio deste complexo, ao nível da face interna da perna, ferimento coberto por crosta cicatricial, medindo 2x 1 cm, cicatriz rosada a nível da região calcaneana, medindo 2x1 cm, encurtamento do membro inferior de 1,5 cm, amiotrofia da coxa de 4 cm e da perna de 3 cm, anquilose do tornozelo e acentuado edema residual do tornozelo, com claudicação da marcha, sequelas que lhe determinam dificuldades de locomoção e esforços acrescidos no respectivo exercício profissional.

Só em 16/04/08, mais de 6 anos após a data do acidente, após sucessivas consultas e tratamentos, as feridas cicatrizaram por completa.

Actualmente, é uma pessoa pessimista, triste, complexada e em sofrimento constante, pois as lesões contraídas e as intervenções cirúrgicas e tratamentos causaram-lhe muitas dores físicas, tendo sofrido, nos períodos em que esteve imobilizado e com os fixadores, incómodos, mal estar e angústia em elevado grau.

De tal modo que o quantum doloris sofrido pelo A. é fixável no grau 6 numa escala de 7 graus de gravidade crescente, sendo o estético qualificável de grau 5, tendo em conta a mesma escala, sendo que, pela vida fora, o A. continuará limitado na mobilidade dos membros inferiores.

Significa isto que os € 30.000, agora pretendidos pelo Apelante/lesado, constituem um montante ainda assim um pouco acima do que a equidade do caso reclama.

Impondo-se ainda esclarecer que os € 25.000 concedidos – não obstante o acidente ter ocorrido em 08/03/2002 e só passados 9 anos, em 11/03/2011, tal dano ter sido liquidado, dizendo-se na sentença (por certo em obediência ao art. 566.º/2, do CC) que a sua liquidação/fixação é actualizada à data da mesma – também já significam e incorporam a reparação pelo tempo em que o A. (entre o acidente e a data da sentença da 1.ª Instância) não pôde dispor do montante que lhe era devido[15].


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Uma última nota, ainda, quanto aos juros e momento a partir do qual são devidos (embora as alusões pontuais já hajam sido feitas).

Desde a citação ou desde a sentença recorrida?

Em relação à indemnização pelos danos não patrimoniais, fez-se na sentença recorrida, a actualização à “data mais recente que puder ser atendida” (cfr. 566.º, n.º 2, do CC); e, na linha do Acórdão Uniformizador n.º 4/2002, a condenação em juros sobre tal montante indemnizatório, tem que ficar restrita aos que se vençam após a data da sentença recorrida.

Em relação aos 2 restantes montantes indemnizatórios, não houve qualquer actualização por referência à data da sentença recorrida.

A quantia de € 10.000. – dos rendimentos perdidos até Julho de 2004 – não foi, como resulta do que supra se referiu, objecto de qualquer actualização entre a data do início da acção e a da decisão em 1.ª Instância.

A quantia indemnizatória de € 40.000, respeitante ao dano futuro/biológico, foi perspectivada e reportada, como já explicou, à época da propositura e citação para a acção.

Em momento algum se fez a majoração com o argumento de haverem entretanto decorrido cerca de 7 anos e meio (entre a propositura da acção e a data da sua liquidação/fixação judicial)..

É que, vale a pena lembrá-lo, o Acórdão Uniformizador 4/2002 não estabeleceu – na compatibilização dos artigos 805.º, n.º 3, e 566.º, n.º 2, ambos do CC – que, na indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco, os juros são sempre devidos apenas desde a decisão.

Diferentemente, veio tão só estabelecer que “sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação


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Montantes estes – € 10.000 + € 40.000 + € 25.000 – de que o A. A... receberá apenas 50%; na medida em que está assente que ele próprio contribuiu (art. 570.º do CC) para a produção do acidente em idêntica proporção de 50%.

É pois seguindo um caminho um pouco diferente, mantendo-se, em termos úteis e práticos, o essencial e revogando-se em pequena parte o sentenciado em 1.º Instância, que agora se decide (julgando-se, em conformidade, parcialmente procedente o recurso).


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V - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação – mantendo-se o decidido quanto ao dano patrimonial decorrente da incapacidade temporária profissional e alterando-se o decidido quanto ao dano futuro decorrente da IPG e quanto ao dano não patrimonial – razão pela qual a decisão, em que se consolida/integra a alteração/revogação supra exposta, passa a ter o seguinte conteúdo condenatório em relação à R./Rede Ferroviária Nacional, Refer, EP.:

“Condena-se a R./Rede Ferroviária Nacional, Refer, EP. a pagar ao A. A... a quantia de € 25.000 a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal e supletiva, contados da data da sua citação (1.10.2004), bem como a pagar a quantia de € 12.500 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios à mesma taxa, contados da presente data[16], tudo até integral pagamento. “

Mantendo-se em tudo o mais – absolvições na AO 1679 e condenação na AO 809/95, conteúdos decisórios esses que não fazem parte do objecto da presente apelação – a sentença recorrida.

Custas, nesta instância, a cargo do A. e da R. Refer na proporção de 2/3 e 1/3.


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Barateiro Martins (Relator)

Arlindo Oliveira

 Emídio Santos



[1] Intimamente relacionada com a não colocação em crise da sua condenação, enquanto R., no processo 809/05, uma vez que tal significa, no caso, que aceita não estar isento de culpa pela eclosão do acidente.

[2] E que eram de € 348,01 em 2002 (9 meses), de € 356,60 em 2003 (12 meses) e de € 365,60 em 2004 (6 meses), o que, nos 27 meses, perfaz € 11.604,89.
[3] Não sendo diferente o que se dispõe no actual art. 64.º, n.º 7, 8 e 9 do DL 291/2007 – na redacção do DL 153/2008, de 06-08 – sobre o Novo Regime do Seguro Obrigatório.
[4] Cfr., v. g. Ac. de 31/03/2009, da Relação do Porto, in CJ, Tomo II, 2009, P. 219.
[5] Seguimos de perto o que já escrevemos noutros recursos sobre a mesma questão.

[6] Preambulo da Portaria em que, vale a pena aqui mencioná-lo se diz que “só há lugar à indemnização por dano patrimonial futuro quando a situação incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua actividade profissional habitual ou qualquer outra”, para logo a seguir se acrescentar que “ainda que o lesado não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica”.
[7] J. Álvaro Dias, in Dano Corporal, pág. 138/139.
[8] J. Álvaro Dias, in Dano Corporal, pág. 395.
[9] Cfr. Ac. de 01/07/2010, in CJ, STJ, Tomo II, pág. 75/8.

[10] Acrescentando-se, como é hoje mais ou menos pacífico, que tais fórmulas devem garantir, ano após ano, a manutenção em termos reais da prestação (e não em termos meramente nominais), para o que é forçoso que as fórmulas contemplem a inflação anual, os ganhos de produtividade e as evoluções de rendimentos.

C = capital a depositar logo no 1º ano;

P = prestação a pagar no 1º ano;

N = Número de anos (36) porque a prestação se há-de manter

r = taxa de juro nominal líquida das aplicações financeiras (4,0% - taxa ajustada à média ponderada dum longo período temporal);

k = taxa anual de crescimento de P (2 % - taxa de crescimento que, no longo prazo – pese embora as vicissitudes do momento – se afigura razoável/expectável para o crescimento do PIB).
[12] Pires de lima e Antunes Varela, C. C. Anotado, 4ª ed., Vol. 1º, p. 501.
[13] Também entendemos ser possível, invocando-se o Acórdão Uniformizador 4/2002, efectuar a actualização da indemnização por danos futuros à data da sentença; e, então, só conceder juros desde a própria sentença e não desde a citação. Porém, como é evidente, sendo a equidade manejada com perícia, a indemnização a conceder, em termos úteis e práticos, há-de ser exactamente a mesma num caso e noutro, com ou sem actualização à data da sentença; isto é, ao actualizar-se a indemnização à data da sentença, o quantum indemnizatório não pode deixar de incorporar os juros (frutos civis) da quantia que, segundo as premissas do raciocínio (que visa encontrar um capital que se vai diluir – e vencer juros – ao longo de todos os anos por que a prestação se irá manter), já se teriam vencido se o quantum indemnizatório estivesse nas mãos do lesado desde a data inicial das premissas do raciocínio. Efectivamente – é ocioso repeti-lo – num cálculo como o efectuado, o capital encontrado é por reporte a uma data anterior – no caso, Julho de 2004 – e numa lógica, é este o ponto relevante, de que é logo nessa data que o capital (quantum indemnizatório) é disponibilizado (e começa a dar “frutos civis”) ao lesado.

[14] Tendo presente – é neste pressuposto que se aprecia a equidade deste montante indemnizatório – que a sentença recorrida reportou e fixou tal valor com referência à data em que foi proferida.
[15] Como é evidente, não é equitativo “dar”, volvidos 9 anos, a mesma quantia que devia ser “dada” 1 mês após o acidente; daí, o montante de € 25.000.
[16] Desde a data da sentença de 1.º Instância (11/03/2011).i = taxa de juro, sendo i = [11]