Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
368917/10.6YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
DEFICIENTE
ANULAÇÃO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 12/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTº 712º, Nº 4 DO CPC.
Sumário: I – A deficiência a que se reporta o nº 4 do artigo 712º do CPC define-se pela inexistência de elementos de facto que individualizem a realidade factual que se deu como provada.

II - Ao dizer que «não foi paga a dívida» o tribunal usou um termo conclusivo, impondo-se-lhe a definição do montante que se encontra por pagar; se não conseguiu liquidar o montante utiliza a expressão «quantia não apurada».

III - A existência de uma quantia em dívida pressupõe necessariamente a existência de uma relação jurídica justificativa de tal dívida que não pode deixar de ser expressa na matéria de facto.

IV - A contradição a que se reporta o nº 4 do artigo 712º do CPC pode emergir, excepcionalmente, do confronto entre duas realidades factuais uma provada e outra não provada mas que dada a sua integração e interligação no plano substantivo concorrem para a definição do conceito de verdade material que é sempre aquilo que se procura em sede de audiência de julgamento.

Decisão Texto Integral:                 Acordam os Juízes que constituem a 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra.

                1. Em acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias – D.L. nº269/98 – intentada pela autora: “D…, Lda.”, com sede no … contra a ré “A…., Lda.”, com sede na …, invocou como causa de pedir um contrato de compra e venda no âmbito das relações comerciais de autora e ré, ou melhor o seu incumprimento por falta do pagamento do preço.

                Daí ter concluído pela condenação da ré no pagamento da quantia de € 11.339,09, mais juros de mora vincendos à taxa legal até integral pagamento.


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                Regularmente notificada a ré apresentou sua oposição alegando que não celebrou qualquer contrato com a autora, nem nunca o fez. Alguém usa a sua firma para adquirir mercadorias e por isso vai apresentar uma queixa-crime.

                Concluiu pela improcedência da acção.


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                Realizou-se a audiência de julgamento e fixou-se a matéria de facto provada e não provada, passando-se ao conhecimento da questão de fundo que julgou a acção improcedente por não provada e absolveu a ré do pedido.

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                A requerente interpôs recurso que instruiu com as suas doutas alegações que rematou formulando as seguintes conclusões:

                O apelado não contra alegou.

O recurso foi admitido como apelação com subida imediata e nos autos e efeito meramente devolutivo – folhas 101.

2. Delimitação do objecto dos recursos

As questões a decidir nas apelações e em função das quais se fixa o objecto do recurso sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º, 664º, 684º, nº 3 e 685ºA, todos do Código de Processo Civil, são as seguintes:

Ø Nulidade da sentença – violação do artigo 668º, nº 1, b) do CPC

Ø Violação do artigo 653º, nº 2 do CPC

Ø Impugnação da matéria de facto. Repartição do ónus da prova

Ø Deficiência e contradições da sentença recorrida por referência à matéria de facto – 712º, nº 4 do CPC.


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                3. Colhidos os vistos aprecia-se e decide-se

                3.1 – Nulidade da sentença

                Avança a apelante com o facto de a sentença ser nula em virtude de não especificar os fundamentos de facto que justificam a decisão, isto por confrontação com os documentos juntos aos autos que (….) provaram a existência do contrato e deveriam ter conduzido à total procedência da acção.

                É nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPC

Relativamente à primeira nulidade, impõe-se que façamos um brevíssimo comentário no seguimento do que vem sendo expressamente mencionado pela nossa Jurisprudência e doutrina: Só se verifica a nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPC “quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de factos ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão”[1]. Ora, a sentença respeita o formalismo imposto pelo artigo 659º do CPC, identifica os factos provados e os que considerou não provados e de seguida fundamentou-os tal como obriga o artigo 653º, nº 2 do CPC para de seguida proceder à sua análise jurídica que finalizou com a decisão. Que não falta a fundamentação de facto e de direito isso é claro em face da análise física da sentença sob censura, parecendo-nos, no entanto que a apelante confunde falta de fundamentação de facto com divergência entre o que entende que se provou e aquilo que o Tribunal vazou nos factos provados e não provados. Mas isto é uma outra questão que encontra acolhimento nos artigos 685ºA e 712º do CPC que tratam da impugnação de pontos concretos que se consideram ter sido incorrectamente julgados e os meios de prova concretos que no entender da impugnante conferem uma resposta diversa a tida em conta pelo tribunal a quo.

  Como se vê a discordância é de conteúdo e não de forma, sendo que relativamente ao cumprimento das exigências formais e substanciais enunciadas nos artigos 659º e 668º, 1, b) ambos do CPC nada há que apontar à decisão sob censura e daí que nesta parte o recurso improceda.


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3.2 Violação do artigo 653º, nº 2 do CPC

                Tal como a apelante evidencia, o direito à fundamentação e consequente a vinculação à fundamentação dos despachos – que não os de mero expediente – decisões, sentenças e acórdãos por parte dos Tribunais mereceu acolhimento constitucional – artigo 205º da CRP – obrigando o legislador a traduzir tal direito das partes e a vincular dos tribunais no quadro normativo das leis processuais destacando-se no Código de Processo Civil os artigos 158º, 653º, nº 2, 659º e 712º, nº 5 que abordam a necessidade de fundamentação das decisões judiciais e até apontam um caminho par suprir a sua falta quando tal facto – não fundamentado – seja essencial ao julgamento.

                Pode discordar-se da sentença mas não se diga que a mesma não está fundamentada, pode discordar-se do caminho percorrido pelo tribunal pode até defender-se que a prova existente nos autos permite dar como provados uns factos e como não provados outros, pode até discordar-se da análise jurídica e subsequente pronunciamento decisório mas não se apelide a sentença de falta de fundamentação.

                3.3 Impugnação da matéria de facto

Como pode ler-se nas conclusões 1 a 15 a apelante insurge contra o facto do tribunal a quo não ter dado como provado a existência entre as partes de diversos contratos de compra e venda de bens e produtos do seu comércio, de não ter dado como provado que entregou à recorrida os produtos constantes das facturas que juntou aos autos e que totalizam o valor reclamado sem juros de € 11.082,73. Reafirma que a recorrida recebeu as mercadorias n sua sede, bastando para o efeito analisar as guias de remessa e transporte. Os documentos são mais do que suficientes para demonstrar o contrato firmado.  

A impugnação da decisão proferida sobre pontos concretos da matéria de facto integra hoje a esmagadora maioria dos recursos interpostos para os Tribunais da Relação, não fugindo, por isso, à regra o recurso interposto pela autora/apelante. Diga-se, de resto, que a decisão que recaiu sobre a matéria de facto controvertida cumpriu a disciplina legal plasmada no nº 2 do artigo 653º do CPC – cf. artigo 205º da CRP – o que possibilita a afirmação de que tal decisão, independentemente da correcção ou incorrecção do julgamento dos pontos impugnados, evidenciou, como se impunha, quer os factos provados e não provados, e explanou os meios de prova estruturantes da sua convicção que analisou criticamente.

                Serve este intróito para dizermos que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito[2] daí que, em regra, a lei não restrinja os seus poderes de cognição, apesar de um conjunto de condicionantes, a primeira das quais relacionada com a vinculação do objecto do recurso resultantes das conclusões – 685ºA e 685ºB do CPC – à qual se associam outras apoiadas na livre apreciação da prova – artigos 389º, 391º e 396º do CC e 655º do CPC – sem que tais princípios limitem ou impeçam que os Tribunais da Relação no seguimento do disposto nos artigos 685ºB e 712º ambos do CPC apreciem os meios de prova indicados pela parte impugnante e a partir de tal apreciação alterem a decisão proferida sobre a matéria de controvertida, impondo-se, natural e obviamente, a este Tribunal as mesmas exigências na análise crítica das provas e na especificação dos fundamentos que escoram a sua convicção.

Entende o Exmo. Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas[3] que o duplo grau de jurisdição só é assegurado depois do Tribunal da Relação ouvir integralmente[4] os depoimentos e proceder à sua análise crítica e a partir desta realidade – audição e análise crítica – optar com segurança pela manutenção ou alteração do julgado em 1ª Instância. Em face da realidade emanada do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, fica mais evidente que a análise crítica da prova é a actividade jurisdicional que merece, por parte de quem tem a responsabilidade de a fazer, o maior dos cuidados, sendo-lhe exigível um grande distanciamento sobre os factos em discussão e, principalmente, uma grande atenção na conformidade entre os factos e a razão de ciência invocada pelas testemunhas, ao que acresce aquele sexto sentido composto em partes iguais por bom senso e experiência de vida. Vejamos pois se a Exma. Juiz, considerando o número de impugnações à matéria de facto se pautou por critérios de objectividade, racionalidade e sensatez, no respeito, há que não esquecer pelas provas que foram produzidas em audiência de julgamento.

                3.3.1 A primeira dificuldade com que se debate o Tribunal da Relação prende-se com a não gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento – nº 3 do artigo 3º do Anexo ao DL nº 269/98, de 1.9 – e daí que a pretensa modificação da matéria de facto fique limitada às situações enunciadas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 712º do CPC. 

                 A Apelante alegou o fornecimento a ré/apelada e por solicitação desta de um conjunto de bens do seu comércio que facturou e enviou as respectivas facturas sem que esta alguma vez tenha pago a quantia em dívida. Juntos os documentos que titulam encomendas, guias de remessa e facturas – folhas 28 a 55 – e cumprido o contraditório veio a requerida/apelada tomar posição sobre os aludidos documentos, impugnando-os e apelidando-os de falsos.

                Tratando-se de documentos particulares – artigo 373º do CC – consideram-se verdadeiras a letra e assinatura no caso de não terem sido impugnados – artigo 374º do CC – e a sua força probatória é a que consta na previsão do artigo 376º do mesmo diploma legal.

A dado passo das suas alegações e conclusões a apelante refere ter havido violação da regra do ónus da prova – conclusão 23 – o que não merece a nossa concordância. Desde logo, porque nos termos do n º 1 do artigo 342º do CC compete-lhe a alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito, o mesmo é dizer os elementos de facto que conformam um contrato de compra e venda, a entrega dos produtos por solicitação da compradora e o preço em dívida. No caso das facturas apresentadas em audiência de julgamento e ao terem sido impugnadas não fica a apresentante isenta de provar a sua veracidade através de outro meio de prova – nº 2 do artigo 374º do CC.

                Daqui decorre o seguinte: os factos impugnados são os que foram dados como não provados e em face da impugnação das facturas pela ré, não podia deixar a autora de fazer prova da sua veracidade, estando impossibilitado este tribunal de apreciar a correcção ou incorrecção da decisão sobre os factos não provados uma vez que a prova testemunhal não foi gravada. Note-se que o tribunal a quo acaba por referir que os documentos – facturas - «são coerentes entre si, mas não obtiveram adesão de prova quanto ao seu pressuposto subjectivo, ou seja, que existiu um acordo entre a autora e a ré». Esta asserção não pode por nós ser sindicada na medida em que não dispomos de outro meio de prova que analisado sufrague ou infirme este entendimento. Que existe uma relação de coerência é verdade, mas tal coerência é insuficiente quando, em face da sua impugnação, a autora/apelante não consegue fazer prova da sua veracidade. Diz a apelante que a apelada recebeu os produtos – conclusões 4ª e 8ª – e que os documentos juntos são suficientes para preencherem «o elemento subjectivo» ou dito de outro modo que provam a existência de relações comerciais entre apelante e apelada. Não o entendeu assim o tribunal a quo nem nós temos prova que sufrague este entendimento. O que o tribunal a quo disse ou pelo menos quis dizer ao dar como não provado a venda dos bens descritos nas facturas à requerida/apelada foi que não existiu qualquer contrato entre ambas, ou seja, que não existiu qualquer acordo relativo à compra e venda de tais produtos.

                São estas as razões que nos levam a manter a matéria de facto dada como provada e não provada pelo Tribunal a quo.

3.4 Deficiência e contradições da sentença recorrida por referência à matéria de facto – 712º, nº 4 do CPC.

                Refere a apelante que a «sentença desvirtuou o acordo firmado com a apelada posto que consideramos assente que efectivamente existiu um contrato cujo objecto era compra e venda, tendo em conformidade sido fornecidos e entregues os aludidos bens à recorrida pelo que outra alternativa não se vislumbra aceitável que a não confirmação judicial da existência de um acordo entre as partes (…). Esta deficiência e contradição não permitem uma clara e objectiva apreciação dos factos, o que justifica a anulação da decisão nos termos do nº 2 do artigo 712º do CPC (…)».

                3.4.1Vejamos o que nos diz o nº 2 do artigo 712º do CPC: no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada.  

                Por sua vez, a parte final da alínea a) do nº 1 do artigo 712º do CPC declara que ou se tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada nos termos do artigo 685º-B a decisão com base neles proferida.

                Uma leitura ainda que literal do quadro legal avançado pelo recorrente remete-nos para a impugnação da matéria de facto que deve respeitar os condicionalismos legais avançados pelo artigo 685ºB do CPC, ou seja, a identificação clara dos pontos da matéria de facto que no seu entender foram incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios constantes do processo que imponham decisão diversa da recorrida.

                Estamos em crer que existiu um lapso na identificação da norma na medida em que é o nº 4 e não o nº 2 do artigo 712º do CPC que aponta para a possibilidade de anulação do julgamento verificados determinados pressupostos e daí que analisemos esta questão à luz do nº 4 do artigo 712º do CPC – tanto mais que nos termos do disposto no artigo 664º do CPC o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (…).

                Se a questão que a parte nos coloca – artigo 660º do CPC – se prende com a deficiente e contraditória matéria de facto - 4º § de folhas 89 – então a mesma não pode deixar de ser apreciada à luz do nº 4 do artigo 712º, até pela simples razão de não ter cumprido o disposto no artigo 685ºB do CPC.

                Vejamos o que nos diz a matéria de facto provada e não provada:

                Factos provados:

1. A requerente é uma sociedade comercial que exerce no domínio social supra referido, a actividade de fabrico de tintas e vernizes.

2. A requerida foi, por diversas vezes, instada pela requerente no sentido de proceder ao pagamento do preço constante das facturas na sede desta conforme acordado pelas partes.

3. Mas não liquidou o montante em dívida.

Factos não provados.

a. No exercício da descrita actividade, a requerente prestou à requerida, a solicitação desta, os bens daquele seu comércio cujas quantidades, qualidades e preços se encontram descriminadas nas facturas nº57142, com vencimento a 24-09-2010, no montante de €2.927,78, nº57233 com vencimento a 26-09-2010 no montante de €1.614, 31, nº57314 com vencimento a 30-09-2010 no montante de €1.962, 23, nº57402 com vencimento a 02-10-2010 no montante de €833,76, nº57572 com vencimento a 08-10-2010 no montante de €56,35€, nº57605 com vencimento a 09-10-2010 no montante de €77,59 e nº57828 com vencimento a 17-10-2010 no montante de €3.610,71, cujos originais foram entregues à requerida.

b. A requerida reconheceu a sua obrigação.

Determina o nº 4 do artigo 712º do CPC

                Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do nº 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida em primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o Tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições.

                Antes de entrarmos na análise desta norma, impõe-se que explicitemos que a recorrida foi notificada das alegações da recorrente e nada disse e por isso a deferir-se a sua pretensão não pode considerar-se ter sido a recorrida apanhada de surpresa com um acórdão que anule a sentença – artigo 3º, nº 3 do CPC – e daí que se respeite o entendimento do Tribunal Constitucional sobre a amplitude do advérbio «oficiosamente».

                Lendo o requerimento de injunção concluímos o seguinte: a requerente/apelante avança como causa de pedir o incumprimento por parte da requerida do pagamento de bens e serviços por ela solicitados nas quantidades, qualidades e preços que se encontram discriminados nas facturas cujos originais lhe foram entregues. Embora reconheça a obrigação não a liquidou encontrando-se em dívida a quantia de € 11.082,73.

                Na sua douta oposição, a oponente/recorrida refere nada ter adquirido nem encomendado e daí nada dever.

                O poder de cassação da Relação e correspectiva repetição do julgamento verifica-se, nos termos da lei, sempre que considere contraditória ou deficiente a decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto. Embora o processo disponibilize as facturas, guias de transporte e notas de encomenda[5] – folhas 35 a 55 – a verdade é não devemos enveredar pelo caminho de suprimir a eventual contradição, na medida em que retiraríamos à parte vencida a possibilidade de recurso, o que é claramente violador dos princípios processuais que regulam tal matéria – artigos 676º e seguintes – e daí que nos limitemos a analisar a questão à luz do disposto no artigo 712º, nº 4 do CPC e verificar se alguma das situações nele apontadas é passível anular a decisão proferida na 1ª Instância como de resto pretende a apelante.

                Retomando a análise dos factos provados, não provados e a fundamentação que ancorou a razão de ciência avançada pelo tribunal a quo consideramos que a decisão sobre alguns pontos concretos da matéria de facto – provada e não provada[6] -  padece de clara obscuridade e contradição que impõe ser removida de modo a alcançar-se um sentença conforme à realidade probatória alcançada em sede de audiência de julgamento.

                Senão vejamos:

                Se atentarmos nos factos provados 2 e 3 e na alínea a) dos factos não provados concluiremos pela existência de uma relação comercial entre a autora e a ré e daí que faça sentido que aquela reclame junto desta o pagamento do preço constante das facturas conforme acordado pelas partes.

Porém de seguida afirma-se: “mas não liquidou o montante em dívida” para finalmente e em clara contradição com o que acaba de referir dar como não provado que no exercício da descrita actividade, a requerente prestou à requerida, a solicitação desta, os bens daquele seu comércio.

                Ora bem: está necessariamente subjacente à afirmação de «não liquidação do montante em dívida» uma relação de cariz comercial entre a requerente e a requerida, porque se não existisse não se podia dar como provado que a requerida não liquidou o montante em dívida, sendo o facto 3 claramente deficiente na medida em que não delimitou e podia e devia fazê-lo, o montante em dívida e a sua causa ou seja o seu fundamento, ou dito mais prosaicamente o porquê da existência de um montante em dívida que a ré não pagou. 

Então se existia relação comercial e dívida e se o tribunal a quo em sede de fundamentação lançou mão das facturas afirmando que eram «coerentes entre si» então existe uma clara incongruência entre a afirmação de que a requerida não liquidou o montante em dívida e a falta de delimitação de tal montante no confronto com as facturas apresentadas pela autora. Ou seja, na afirmação que a autora não liquidou o montante em dívida está necessariamente subjacente uma relação comercial que passou pela venda de bens por parte da autora à ré, cujo valor esta não pagou – artigo 349º do CC – e daí que não seja compreensível e até contraditório que se considere não provado em toda a sua amplitude a factualidade vazada na alínea a) dos factos não provados.

                Se o facto provado nº 3 padece de deficiência, o mesmo facto acaba por entrar em contradição com a alínea a) dos factos não provados, deficiência e contradição que necessariamente têm de ser removidas, remoção que não pode ser levada a cabo por este Tribunal por duas ordens de razão, a primeira prende-se com a falta de gravação da prova testemunhal e a segunda com a supressão do direito ao recurso que a parte vencida tem direito.

                Em suma:

1. A deficiência a que se reporta o nº 4 do artigo 712º do CPC define-se pela inexistência de elementos de facto que individualizem a realidade factual que se deu como provada.

2. Ao dizer que «não foi paga a dívida» o tribunal usou um termo conclusivo, impondo-se-lhe a definição do montante que se encontra por pagar; se não conseguiu liquidar o montante utiliza a expressão «quantia não apurada».

3. A existência de uma quantia em dívida pressupõe necessariamente a existência de uma relação jurídica justificativa de tal dívida que não pode deixar de ser expressa na matéria de facto.

4. A contradição a que se reporta o nº 4 do artigo 712º do CPC pode emergir, excepcionalmente, do confronto entre duas realidades factuais uma provada e outra não provada mas que dada a sua integração e interligação no plano substantivo concorrem para a definição do conceito de verdade material que é sempre aquilo que se procura em sede de audiência de julgamento.


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                Decisão

                Nos termos e com os fundamentos expostos acorda-se em anular a decisão recorrida e consequentemente:

                1. Anula-se por deficiente formulação e contradição com a alínea a) dos factos não provados e o ponto 3 da matéria provada.

                2. Anula-se a decisão recorrida, ordenando-se a repetição do julgamento que não abranja a parte da decisão não viciada, podendo no entanto o Tribunal a quo apreciar outros pontos da matéria de facto provada com a finalidade exclusiva de evitar contradições.


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                Custas a cargo da parte vencida a final.

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Jacinto Meca (Relator)

Falcão de Magalhães

Sílvia Pires


[1] Sr. Prof. José Lebre de Freitas – Srs. Drs. Montalvão Machado e Rui Pinto – Código de Processo Civil Anotado, onde citam jurisprudência em idêntico sentido. Exmo. PGA, C. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2004, pág. 558.
[2] São constitucionalmente reconhecidos como Tribunais de 2ª instância – nº 4 do artigo 210º da CRP.
[3] Ac. datado de 2 de Fevereiro de 2010, processo nº 1159/04.3TBACB.C1, disponível em www.dgsi.pt
[4] O advérbio «integralmente» não pode, em nossa modesta opinião, deixar de ser conectado com a previsão vazada na alínea b) do nº 1 do artigo 690ºA do CPC, ou seja, com os concretos meios de prova constantes do processo que imponham decisão diversa da recorrida. No estrito cumprimento da lei deve o Tribunal a quo cumprir com o máximo de rigor o nº 2 do artigo 653º do CPC. Se cumprir nos termos exigidos por lei, ficamos a saber quais os meios de prova que estruturaram/formaram a convicção do/a Exmo(a) Juiz e neste caso, o que o Tribunal da Relação deve observar no rigoroso cumprimento do duplo grau de jurisdição é uma de duas coisas: se os meios probatórios elencados pelo Tribunal a quo não foram colocados em causa, situando-se a divergência na consideração de melhor conteúdo e mais forte razão de ciência das testemunhas indicadas pelo apelante mas não tidas em conta pelo Tribunal a quo a audição «integral» deve, no cumprimento da lei esgotar-se na audição e análise crítica depoimentos indicados pela parte como capazes de imporem decisão diversa, o que pode natura e obviamente acontecer; se ao invés o apelante ataca os meios probatórias estruturantes da convicção do Tribunal indicando as razões de discordância, então aí o advérbio integralmente ganha outra dimensão, vinculando o Tribunal Superior a ouvir todos os depoimentos e a partir deles formar a sua convicção que pode ou não, naturalmente, coincidir com a formada em 1ª Instância.
[5] Não foi usada da faculdade a que se reporta o nº 3 do artigo 3º do Anexo ao DL nº 269/98, de 1.9.
[6] O nº 4 do artigo 712º não distingue, limita-se a referir: quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto.