Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
68/11.4TAPNI-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: PERDÃO
IDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 2º, N.º 1, DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2.8; 13º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA.
Sumário: O âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2.8, diferenciando positivamente os “jovens” entre os 16 e os 30 anos de idade, encontra justificação material desde logo na proteção especial da juventude prevista no artigo 70.º da CRP, não sendo arbitrária nem irrazoável, tratando de forma igual todos os que se encontram na mesma situação.
Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 I. RELATÓRIO

1. No processo comum colectivo nº 68/11.... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Central Criminal de Leiria - Juiz ..., a arguida foi condenada numa pena única de seis anos e seis meses de prisão, conforme acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 20 de Abril de 2022 e transitado em julgado.

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2. Por despacho proferido nos autos em epígrafe (Ref.ª 105098059) foi indeferida a pretensão da arguida de beneficiar do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, por falta de preenchimento do pressuposto de delimitação subjectiva (ter até 30 anos de idade, à data da prática dos factos), estatuído no artigo 2.º, n.º 1 do referido diploma.

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3. Inconformada com a decisão, a arguida interpôs recurso, formulando no termo da respectiva motivação, as seguintes conclusões:

“1º O douto despacho da qual se recorre indeferiu a pretensão da Arguida com fundamento que a Arguida à data da prática dos factos tinha 33 anos de idade e portanto não se mostra elegível para aplicação da lei da amnistia.

2º Chegados aqui cumpre desde logo sindicar da constitucionalidade do critério da idade como requisito de aplicabilidade da lei do perdão/amnistia.

3º Por sentença transitada em julgado, foi a Arguida condenada em cúmulo jurídico na pena única de 6 anos e 6 meses;

4º Em 01 de Setembro de 2023, entrou em vigor a Lei 38-A/2023, de 02 de Agosto que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude;

5º Nos termos do artigo 3º da mencionada Lei, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, dispondo igualmente o artigo 14º do citado diploma legal que nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei compete ao juiz de instância de julgamento ou da condenação.

6º Os crimes pela qual a Arguida foi condenada não se encontram excluídos do referido perdão, nos termos do respectivo artigo 7º.

7º A arguida nasceu em 1974, pelo que não obstante a data de julgamento e trânsito, certo é que à data da prática dos primeiros factos, a mesma tinha 33 anos de idade;

8º Chegados aqui, a questão a apreciar, consiste em saber se o limite de idade imposto pelo artigo 2º, nº 1, da mencionada Lei constitui uma discriminação, sem fundamento razoável, relativamente a outros cidadãos com idade superior.

9º E neste caso, se tal solução fere de inconstitucionalidade material esse limite, por violação do núcleo fundamental do princípio da igualdade, na modalidade de proibição do arbítrio, artigo 13º nº 1 da CRP.

10º A amnistia tem de ser encarada como um pressuposto negativo da punição, como uma contraface do direito de punir que assiste ao Estado, como uma medida de clemência, esta constitui por si mesma uma derrogação ao princípio da igualdade, ao excluir determinadas categorias do seu âmbito de aplicação.

11º Não obstante o que ficou dito, o legislador terá sempre de respeitar o princípio da igualdade, na sua dimensão material.

12º O artigo 13º nº 1 da CRP, prescreve que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, acrescentando o nº 2, que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

13º Como ensina a doutrina constitucional mais autorizada (Gomes Canotilho e Vital Moreira n Constituição da República Portuguesa Anotada) “o princípio da igualdade tem a ver fundamentalmente com a igual posição em matéria de deveres e direitos.”

14º Acrescentando ainda que a “proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou decisão dos poderes públicos…nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que essencialmente desigual pode ser arbitrariamente tratado como igual.”

15º Concluindo de seguida “quando os limites externos da discricionariedade legislativa são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, existe uma infracção do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio.”

16º Exige-se portanto que no âmbito de aplicação da norma ser de carácter geral quanto aos destinatários e objectiva no seu fundamento.

17º Salvo o devido respeito por opinião contrária, os critérios que serviram de fundamento à distinção, correspondem a um apelo à espécie de pena aplicada (tendencialmente mais leves), ao tipo de crimes pelos quais os arguidos foram condenados (de menor gravidade ao nível da lesão do bem jurídico ou lesão dos bens jurídicos considerados socialmente menos graves) e por último uma determinada idade, que é utilizado como instrumento de diferenciação.

18º Em regra, o nosso legislador à ideia de idade faz equivaler a ideia de capacidade, sendo consensual o estabelecimento de limites etários para a habilitação ou exclusão de prática de determinados actos;

19º Contudo, tais limites não são fixados de forma arbitrária, bem pelo contrário, decorrem de estudos científicos que confirmam a diferenciação.

20º Chegados aqui, cumpre problematizar a solução preconizada pela lei da amnistia, ou seja, o limite de 31 anos menos um dia, constitui um factor de discriminação objectivo

para ser estabelecido? Dito de outra forma, qual o fundamento racional para tal limite?

21º Ora, o legislador penal não tem, nem nunca utilizou aquele limite (30 anos).

22º Desta forma, se por um lado se compreende a opção do legislador em amnistiar as condutas de mínima gravidade, transmitindo desta forma à comunidade que os crimes de médio e grave criminalidade continuarão a ser objecto de punição;

23º Contudo, o mencionado limite etário, por falta de qualquer referência, antecedente ou fundamento legal ou científico, gera na comunidade o sentimento de injustiça, uma vez que o Estado titular do direito punitivo, não oferece qualquer fundamento objectivo para a diferenciação.

24º Desta forma, dúvidas não restam que a opção de 31 anos, menos um dia, ou seja, 30

anos, enquanto limite à aplicação da amnistia, artigo 2º nº 1 da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 13º nº 2, da CRP.

25º Como se está perante uma situação de inconstitucionalidade parcial e meramente quantitativa, segmento da norma (30 anos).

26º Pelo que se requer, o conhecimento e declaração da inconstitucionalidade do segmento da norma, que fixa o limite de 31 anos, menos 1 dia.

27º E consequentemente, aplique à Arguida o perdão da pena de um ano, alterando a medida da pena, pois só assim se fará a costumada JUSTIÇA!”

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4 - Respondeu ao recurso o Ministério Público, formulando no termo da contra motivação as seguintes conclusões:

“1. A Lei n.º 38-A/23, de 2-8 – ao restringir a aplicação do perdão de penas a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos à data da prática dos factos – não viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

2. Considerando que a recorrente nasceu a ../../1974, forçoso será concluir que tinha 33 anos de idade (ou mais) à data da prática dos factos pelos quais foi condenada; pelo que não pode beneficiar do perdão previsto pela Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, por falta de preenchimento do pressuposto de delimitação subjectiva (ter até 30 anos de idade, à data da prática dos factos), estatuído no artigo 2.º, n.º 1 do referido diploma.

3. Não se mostram, pois, violados, por qualquer forma, quaisquer preceitos legais ou princípios constitucionais, designadamente os referidos pela recorrente.

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Face ao exposto, e ao abrigo das disposições legais supra citadas, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se, na íntegra, o despacho recorrido.”

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           Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1, do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.

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Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do C. Processo Penal.

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 Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1, do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, consiste em saber

- se à arguida, que à data da prática dos factos tinha 33 anos de idade, é aplicável o perdão concedido pela lei 38-A/2023, de 02 de Agosto.

- inconstitucionalidade da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto, por violação do princípio da igualdade, consagrado na Constituição da Republica Portuguesa.

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           O despacho recorrido:

“A arguida AA nasceu a ../../1974, sendo os factos mais remotos, por cuja prática foi condenada, ocorridos em 2007 (cf. facto a.49), sendo os demais factos praticados em datas posteriores. Ou seja, a arguida tinha 33 anos de idade (ou mais) à data da prática dos factos pelos quais foi condenada.

Perante tal, fácil é constatar que, in casu, está arredada a aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, por falta de preenchimento do pressuposto de delimitação subjectiva (ter até 30 anos de idade, à data da prática dos factos), estatuído no artigo 2.º, n.º 1 do referido diploma. Acresce ainda que, mesmo que assim não fosse, nunca haveria motivo para suster os mandados de detenção, já cumpridos.

Consequentemente, improcede a sua pretensão, por manifesta falta de fundamento legal.

(…)”

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III Decidindo

Como é sabido e constitui jurisprudência uniforme, os recursos destinam-se a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior, visando apenas apurar a adequação e legalidade das decisões sob recurso e não a obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições.

A lei 38-A/2023, de 02 de Agosto, entrou em vigor no dia 1 de setembro de 2023 - artigo 15.º

Segundo o disposto no artigo 1.º a referida lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

E no artigo 2.º, nº 1, estabelece que “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.”

As leis de amnistia devem ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas.

Conforme Ac de fixação de jurisprudência de 25-10-2001 «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de excepção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas susceptíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).”

O perdão de penas e a amnistia, previstos na Lei da Amnistia JMJ, só se aplicam aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19-6-2023 por pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos, conforme resulta dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 3.º e 4.º. (ou seja, é aplicável apenas a jovens que à data da prática dos factos tivessem até 30 anos de idade - cfr ac Rel Coimbra, 20 de março de 2024, relatora Des Ana Carolina Cardoso)

Tanto basta para se afirmar que no caso não tem aplicação o regime do perdão e da amnistia previsto na Lei 38-A/2023, de 02.08, atento o disposto no seu Artigo 2.º, nº 1 e a idade da recorrente à data da prática dos factos - 33 anos.

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7. Inconstitucionalidade da norma do art. 2.º, nº 1, da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto, por violação do princípio da igualdade, consagrado na Constituição da Republica Portuguesa.

O direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de Direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, já que permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, função atribuída apenas ao poder judicial.

Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam.

A propósito do direito de graça, vem o Tribunal Constitucional entendendo que - nos parâmetros do Estado de direito democrático, - a liberdade de conformação legislativa “goza de alargado espaço onde têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d'Etat.»

Discricionariedade normativo-constitutiva que, contudo, tem de respeitar as normas e os princípios constitucionais, nomeadamente o princípio da igualdade (perante a lei e na lei - cf. Pedro Duro, “Notas sobre alguns limites do poder de amnistiar”, in Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Cno II, nº. 3, 2001, p. 323 et seq.; e Francisco Aguilar, Amnistia e Constituição, Almedina, p. 37 e seg.) ). e a proibição de arbitrariedade, como limites à actividade legiferante do órgão constitucionalmente competente para dispor sobre a matéria.

Assim, o Tribunal Constitucional nº 25/00, publicado no Diário da República, II Série, nº 71, de 24 de Março de 2000:

"De acordo com a jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional, as soluções normativas relativas às chamadas medidas de graça ou de clemência não estão subtraídas ao crivo do princípio da igualdade. Como se afirmou no acórdão nº 444/97 (Diário da República, II Série, de 22 de Julho de 1997, sobre a Lei nº 9/96, de 23 de Março, 'o princípio de igualdade, tratando-se aqui da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são alargados – como são restringidos pela aplicação das sanções – impede desigualdades de tratamento'.

A diferenciação de tratamento que por elas seja estabelecida não deve ser arbitrária, materialmente infundada ou irrazoável (cf. o acórdão nº 42/95, Diário da República, II Série, de 27 de Abril de 1995, a propósito da exclusão de certas infracções do âmbito do perdão de penas concedido pela Lei nº 15/94; v. também os acórdãos 152/95, Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1995, e 160/96, não publicado, ambos sobre normas extraídas da mesma Lei).

Por outro lado, situações substancialmente diferentes exigem um regime diverso. A desigualdade de tratamento para diferentes situações é ainda uma dimensão essencial do princípio da igualdade - art 13º CRP.

Do mesmo modo, afirmou-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no Diário da República 1.ª série-A, de 17 de Junho de 2003), assumindo em diversos passos da sua fundamentação abundante argumentação de jurisprudência anterior:

[...] Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., pág. 129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da "atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição) (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).

O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, «razoável, racional e objectivamente fundadas», sob pena de, assim não sucedendo, «estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes», no ponderar do citado Acórdão n.º 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade - Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).

Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como «princípio negativo de controlo» ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos n.º s. 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados n.º s. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial («tertium comparationis»). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminando o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão n.º 330/93).

Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; Alves Correia, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da «diferença» de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.”

Analisada a lei 38-A/2023, de 02 de Agosto entendemos em conformidade com o Ac desta Relação, de 22-11-2023, relator Des João Abrunhosa a Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto, que “…a delimitação do âmbito de aplicação da lei reveste carácter geral e abstracto, pois aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, portanto em número indeterminado, está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável, pelo que não padece de inconstitucionalidade a limitação constante do n.º 1 do artigo 2.º.”

Sobre a questão, veja-se Ac do TC nº 510/98, que contem um estudo desenvolvido do instituto da amnistia, da sua história e da sua justificação no Estado de direito da Constituição e o respectivo voto de vencido onde se assinala “Ao apreciar a conformidade de uma decisão descriminalizadora com os princípios e normas constitucionais, o Tribunal deve averiguar, nomeadamente, se não há violação do princípio da igualdade (por exemplo, através de uma descriminalização de crimes mais graves, como o homicídio, associada à persistência da incriminação de crimes menos graves, como as ofensas corporais) ou até mesmo da exigência de segurança jurídica derivada do princípio do Estado de direito democrático (mediante a desprotecção sem apelo a meios alternativos de política criminal dos bens jurídicos de primordial dignidade que, afinal, não podem ser negligenciados pelo legislador penal sem que o sistema seja posto em causa no seu conjunto).

Abordando o tema, Ema Vasconcelos (Juíza de Direito no Juízo Central Criminal de Lisboa), na revista Julgar online Janeiro 2024, deixa expresso que “A instituição de normas diferenciando positivamente os “jovens” não é inédita no nosso ordenamento jurídico. Com efeito, e desde logo, o artigo 70.º da CRP, que consagra uma protecção especial da juventude. De igual modo, o artigo 9.º do Código Penal impõe a aplicação de disposições especiais para os maiores de 16 anos e menores de 21. Em obediência a tal disposição, o DL n.º 401/82, de 23 de Setembro, aprovou o Regime Especial para Jovens, aplicável a jovens que tenham cometido um facto qualificado como crime. Finalmente, também ao nível das anteriores leis de graça, é possível identificar disposições que impõem medidas especiais para jovens, designadamente o artigo 10.º da Lei n.º 15/94, de 11.05, e o artigo 3.º da Lei n.º 29/99, de 12.05, ambos impondo um regime diferenciado, aplicável a menores de 21 anos.

Logo, perfilhando este entendimento expresso com muita clareza, também se nos afigura que “o âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2.8, em análise, diferenciando positivamente os “jovens” entre os 16 e os 30, por ocasião da realização em Portugal das JMJ, encontra uma justificação material razoável e constitucionalmente relevante, tendo em conta, desde logo, a consagração, no artigo 70.º da CRP, da protecção especial da juventude, não sendo arbitrária, nem irrazoável, tratando de forma igual todos os que se encontram na mesma situação.

Em suma, a norma em questão mostra-se de acordo com os princípios constitucionais vigentes.

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IV Dispositivo

Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.

Custas pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC - (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).

Coimbra, 10-04-24

Elaborado e revisto pela relatora, que utiliza a ortografia antiga

Isabel Valongo

Alexandra Guiné

João Novais