Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
973/09.8TBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
ALTERAÇÃO
Data do Acordão: 07/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.467 Nº2, 508-A Nº2, 512 Nº1, 512-A Nº1 CPC
Sumário: 1. Não é possível oferecer prova testemunhal, nos termos do art.º 512º-A, n.º 1, do CPC, quando nenhuma testemunha haja sido indicada anteriormente para prova dos fundamentos da acção.
2. Entendimento contrário equivaleria, afinal, a estabelecer como prazo normal para a indicação de testemunhas o do referido normativo, situação legitimamente não pretendida pelo legislador.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Na acção emergente de acidente de viação sob a forma ordinária que J (…)e mulher, A (…), movem contra Companhia de Seguros (…), S.A., a correr termos pelo 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu, a demandada interpôs recurso de apelação, a subir em separado, do despacho proferido a 23.02.2010 que admitiu “o aditamento ao rol de testemunhas dos autores – art. 512º-A, n.º 1 do CPC” e ordenou a notificação da parte contrária “para, querendo, usar de igual faculdade”, tendo concluindo:  

1ª - O douto despacho recorrido violou o disposto no n.° 1 do art.° 512°-A do C. P. Civil, na medida em que admitiu uma prova inadmissível.

2ª - Os AA. não apresentaram nos autos qualquer rol de testemunhas, nem com a petição inicial, nem em data anterior à prolação do douto despacho saneador, nem nos 15 dias subsequentes a terem sido notificados do dito despacho saneador.

3ª - Tendo ficado precludido o seu direito de apresentarem rol de testemunhas não podem, consequentemente, vir aditar testemunhas a um rol que não apresentaram.

4ª - O douto despacho recorrido deve, pois, ser revogado e substituído por outro que não admita as testemunhas apresentadas pelos AA. no seu requerimento de 18.02.2010.

Não houve contra-alegação.

Cumpre assim decidir se é possível oferecer prova testemunhal, nos termos do art.º 512º-A do CPC[1], ainda que nenhuma testemunha haja sido indicada anteriormente para prova dos fundamentos da acção.

                                                      *

II. 1. Para a decisão importa considerar a seguinte factualidade:

a) Com a petição inicial da acção em apreço os AA. juntaram diversos documentos e pediram a requisição de um documento, não tendo oferecido outros meios de prova.

b) Proferido o despacho saneador e seleccionada a matéria de facto, foram as partes notificadas, por carta de 07.7.2009, nos termos e para os efeitos do art.º 512º, n.º 1, do CPC.

c) Apenas a demandada decidiu apresentar a sua prova - arrolou três testemunhas e requereu a gravação da audiência e a notificação dos AA. para juntarem aos autos determinados documentos -, requerimento sobre o qual recaiu o despacho de 07.9.2009.

d) Designada data para a audiência de discussão e julgamento, vieram então os AA., por requerimento de 18.02.2010 e invocando o disposto no art.º 512º-A, n.º 1, do CPC, “aditar à sua prova” (sic) uma cópia de um termo de transacção e respectiva sentença homologatória do foro laboral e duas testemunhas.

e) Por despacho de 23.02.2010, o Mm.º Juiz a quo admitiu a junção aos autos dos referidos documentos e “o aditamento ao rol de testemunhas dos autores” (sic).

2. Dispõe o n.° 1 do art.° 512°-A do CPC (na redacção conferida pelo DL n.º 180/96, de 25.9) que “o rol de testemunhas pode ser alterado ou aditado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência de julgamento, sendo a parte contrária notificada para usar, querendo, de igual faculdade, no prazo de 5 dias”.          

No referido normativo estabelece-se a possibilidade de o rol de testemunhas, apresentado nos articulados, na audiência preliminar ou na sequência da notificação a que alude o art.º 512º, ser alterado ou aditado até 20 dias antes da data em que se realize efectivamente a audiência de julgamento,[2] sendo que o sistema anteriormente vigente, assentando numa tendencial imutabilidade dos requerimentos probatórios, mesmo nos casos em que decorriam largos meses ou anos entre a indicação das testemunhas e a realização da audiência, configurava-se como excessivamente restritivo, «amarrando», sem justificação plausível, a parte a provas indicadas com enorme antecedência.[3]

No sistema actualmente vigente, instituído pela reforma da lei processual civil de 1995-96, a indicação de testemunhas no processo ordinário de declaração deve ser feita na audiência preliminar [art.º 508º-A, n.º 2, alínea a)], ou no prazo de 15 dias após a notificação prevista no n.º 1 do art.º 512º, quando o processo deva prosseguir e se não tenha efectuado a audiência preliminar, sendo que nada impede a apresentação do rol de testemunhas nos próprios articulados (art.º 467º, n.º 2), mas é naquela audiência ou naquele prazo que essa apresentação deve ter lugar.

Após a apresentação do rol de testemunhas na audiência preliminar ou no prazo previsto no art.º 512º, n.º 1, é permitido alterá-lo ou aditá-lo até 20 dias antes da audiência de discussão e julgamento, nos termos do art.º 512º-A; no entanto, findo aquele prazo de 20 dias previsto no art.º 512º-A, n.º 1, é ainda possível às partes substituir testemunhas, nos termos e casos previstos no art.º 629º (e art.º 631º).

Decorre do mencionado quadro normativo, por um lado, que o art.º 512º-A permite que, até uma data muito próxima da audiência final, as partes substituam testemunhas constantes do rol que apresentaram no momento próprio, ou aditem testemunhas a esse mesmo rol, mas já não lhes permite apresentar o rol pela primeira vez; por outro lado, o art.º 512º-A não exige qualquer justificação para a substituição ou para o aditamento que prevê, contrariamente ao art.º 629º, que apenas permite a substituição de testemunha em certos casos pontuais (por exemplo, impossibilidade definitiva da testemunha para depor ou falta injustificada da testemunha à audiência e desconhecimento do seu paradeiro).

As regras constantes dos art.ºs 508º-A, n.º 2, alínea a), e 512º, n.º 1, não têm carácter indicativo: estabelecem verdadeiros ónus para as partes, nos termos expostos - a maleabilização que a reforma de 1995-96 introduziu quanto ao oferecimento da prova testemunhal não significou qualquer alteração substancial no que diz respeito ao prazo normal para o oferecimento da prova testemunhal, apenas se tendo deixado de condicionar a alteração do rol aos termos apertados do art.º 629º.

E se o legislador concedesse à parte que não indicou tempestivamente as testemunhas a possibilidade de, através do mecanismo do art.º 512º-A, o fazer pela primeira vez, desvirtuaria totalmente o sentido das normas que, visando a disciplina da actividade probatória e o regular andamento da causa, estabelecem momentos próprios para a sua apresentação (o da audiência preliminar, ou o previsto no n.º 1 do art.º 512º). Ficariam, pois, sem utilidade prática as normas que impõem a sua apresentação em momentos processuais prévios, de resto, perfeitamente razoáveis – e, como tal, perfeitamente coadunáveis com o direito de acção, já que o acesso aos tribunais não se traduz na justiça sem regras –, dado não ser concebível que as partes, após a dedução de factos nos articulados, não estejam em condições de indicar as provas em que, afinal, esses factos se sustentavam.

Assim sendo, justifica-se plenamente que à parte que não indicou as testemunhas nos momentos processuais próprios seja vedado lançar mão do mecanismo do art.º 512º-A para as indicar pela primeira vez, pois que entender diversamente equivaleria, afinal, a estabelecer como prazo normal para a indicação de testemunhas o do art.º 512º-A, situação legitimamente não pretendida pelo legislador[4].

Finalmente, a circunstância de o art.º 512º-A não exigir qualquer justificação para a substituição de testemunhas, ou para o aditamento do rol, e, portanto, poder permitir "fraudes processuais, pois bastaria que uma das partes introduzisse em juízo, mesmo nos articulados, um rol com nomes de pessoas inexistentes, como testemunhas, para que posteriormente lhe fosse permitido aditar testemunhas reais a esse rol de testemunhas virtuais, com vista à prova em audiência", consubstancia um argumento totalmente improcedente para a resolução da questão em análise.

Efectivamente, a permissão contida no art.º 512º-A tem em vista, como aliás decorre da leitura do preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12.12, maleabilizar o oferecimento da prova testemunhal, não podendo extrair-se de uma eventual utilização distorcida ou patológica de tal mecanismo uma permissão para apresentar, no prazo ali previsto, o rol de testemunhas pela primeira vez, e, portanto, um qualquer termo de comparação com a situação sub judice.[5]

3. A jurisprudência das Relações tem vindo a considerar que não é possível “aditar” o rol de testemunhas se não tiver sido, anterior e tempestivamente, apresentado outro - sob pena de se permitir suprir a falta de cumprimento oportuno do prescrito no n.º 1 do art.º 512º -, entendimento considerado conforme à Constituição da República.[6]

É neste mesmo sentido o expendido na alegação de recurso.

E esta Relação, atento o actual quadro normativo e os contributos da doutrina[7] e da jurisprudência, não vê a menor razão para divergir de tal entendimento – introduzir alterações ou aditamentos a um rol de testemunhas pressupõe necessária e naturalmente que esse rol já fora apresentado; no contexto em que se insere a mencionada norma, alterar significa precisamente substituir (ou excluir) testemunha ou testemunhas já indicadas, tal como aditar tem o significado de acrescentar o rol que já anteriormente tenha sido apresentado.[8]

4. É hoje indiscutível a supremacia relativa do direito substantivo sobre os puros ritos do direito adjectivo[9], afirmando-se a prevalência da substância sobre a forma. Contudo, ainda não é tempo, e porventura nunca o será, de ignorar o ensinamento de Rudolf Von Jhering, segundo o qual “a forma é inimiga jurada do arbítrio e irmã gémea da liberdade”.
                Assim, no processo civil, sendo clara a opção do legislador no sentido da prevalência do fundo sobre a forma[10], tal não significa o postergar de todas e quaisquer exigências de ordem formal.
            Voltando ao caso em análise, como relativamente ao objecto/fundamentos da acção, ou seja, aos factos relacionados com o pedido de indemnização por danos decorrentes de acidente de viação, nenhuma testemunha havia sido arrolada, não existindo, assim, rol que pudesse ser aditado, não estavam reunidas as condições para a admissibilidade do requerimento dito em II. 1. d), supra, razão pela qual, procedendo as “conclusões” da alegação de recurso, importa revogar o despacho de 23.02.2010 na parte em que admitiu “o aditamento ao rol de testemunhas dos autores” [II. 1. e)].

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            III. Pelo exposto, julga-se procedente o recurso de apelação e, em consequência, revoga-se o despacho proferido a 23.02.2010 na parte em que admitiu “o aditamento ao rol de testemunhas dos autores”, que deverá ser substituído por outro que não admita a prova testemunhal apresentada pelos AA. no seu requerimento de 18.02.2010.

            Custas pelos AA..
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Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Carlos Querido
Emídio Costa
[1] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[2] Na redacção originária do DL n.º 329-A/95, de 12.12, a matéria da alteração do rol de testemunhas estava integrada no art.º 512º, nos seus n.ºs 2 e 3; com a revisão do DL n.º 180/96, de 25.9, passou a constituir um preceito autónomo.
[3] Vide Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. I, Almedina, 2ª edição, 2004, pág. 448.
[4] Tendo presente a presunção contida no art.º 9º, n.º 3, do CC, de que o legislador se expressou do modo mais conveniente na busca das soluções mais adequadas, o entendimento que se propugna encontra-se adequadamente plasmado/objectivado na expressão legal.
[5] Seguiu-se de perto o expendido no acórdão do TC n.º 519/2000, de 29.11.2000, publicado no “site” do referido Tribunal (e Acs. TC, 48º Volume, pág. 505), dada a similitude com o caso vertente.
[6] Cf. o cit. acórdão do TC n.º 519/2000 que decidiu “não julgar inconstitucional, face ao disposto no n.º 1 do artigo 13º da Constituição, a norma constante do artigo 512º-A, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual não é possível apresentar novas testemunhas na data aí prevista, quando não exista qualquer rol prévio” e, entre outros, os acórdãos da RC de 05.12.2000, RL de 13.12.2000 e RP de 24.5.2007 in CJ, XXV, 5, páginas 36 e 127 e XXXII, 3, 181, respectivamente, e, ainda, acórdãos da RL de 22.02.2001-processo 0093872 e da RP de 20.6.2002-processo 0230062, publicados no “site” da dgsi.
[7] Cf. entre outros, Isabel Alexandre, que refere, nomeadamente, que a aplicabilidade do art.º 512º-A “pressupõe que este (o rol) já tenha sido apresentado” e considera a solução legal como um compromisso entre a total ausência de preclusão imediata da faculdade de propor os meios de prova a produzir em audiência e a restrição anteriormente vigente [in Aspectos do Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, págs. 284 e seguintes]; Lebre de Freitas, autor que afirma haver “sugerido” algumas das inovações introduzidas pela reforma de 1995/1996 e esclarece, inclusive, que o legislador veio a afastar a sugestão que apresentara no sentido do alargamento da faculdade (hoje prevista no citado normativo) “ao caso em que nenhuma prova, designadamente testemunhal, tivesse sido inicialmente proposta”, circunstância esta que também nos elucida sobre o propósito e o alcance da alteração introduzida na lei civil adjectiva [cf. J. Lebre de Freitas, e outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 390] e Abílio Neto que diz: “Trata-se (…) de uma simples alteração ou aditamento a um rol de testemunhas tempestivamente apresentado, e não um meio de suprir a falta de cumprimento oportuno do prescrito no n.º 1 deste art.º 512º” [in CPC Anotado, 13ª edição, 1996, pág. 231].
    E também Lopes do Rego, no comentário ao art.º 512º-A (in ob. e vol. cit. – cf. nota 3, supra), perfilha idêntico entendimento.
[8] Vide o cit. acórdão da RC de 05.12.2000.
[9] Cf., a propósito, Antunes Varela, in RLJ, 122º, pág. 255.
[10]Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz, compensado pela previsão do princípio da cooperação, por uma participação mais activa das partes no processo de formação da decisão”, como se afirma na parte inicial do Preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro.
    No domínio do direito adjectivo tem-se acentuado o papel interventivo do juiz, sobretudo, quando está em causa a descoberta da verdade material – a prova dos factos da causa deixou de constituir monopólio das partes, podendo o juiz realizar ou ordenar oficiosamente as diligências necessárias ao apuramento da verdade (art.º 265º, n.º 3), razão pela qual não se afigura defensável, sobretudo neste domínio, a total e irrestrita afirmação do princípio da preclusão e da auto-responsabilidade das partes [cf., a propósito, J. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 1996, págs. 138 e 145].