Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1280/08.9TBAND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
EXTRACTO DE FACTURA
Data do Acordão: 04/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.45, 46 CPC, DECRETO Nº 19490 DE 21/3/1931
Sumário: 1 - Uma guia de transporte, mesmo que assinada pelo respectivo destinatário, pessoa singular, desacompanhada da declaração de ser representante legal da sociedade executada, bem como a junção de uma factura emitida pela exequente, não constituem, separadamente ou juntos, título executivo, nos termos previstos na al. c), do n.º 1, do artigo 46.º do Código de Processo Civil, por não estarem assinados por representante legal da sociedade executada e por não resultar das declarações neles exaradas a constituição ou o reconhecimento de uma dívida.

2 – O extracto de factura é um título de crédito à ordem representativo de um crédito proveniente de venda mercantil a prazo, realizada entre comerciantes, e obrigatoriamente emitido sempre que essa transacção não seja efectuada por meio de letra (arts. 1.º e 3.º § 1.º do Decreto n.º 19 490, de 21 de Março de 1931).

3. A mencionada guia de transporte e factura não constituem extracto de factura.

Decisão Texto Integral: I. Relatório:

a) A recorrente instaurou acção executiva em tribunal para cobrar a quantia de €1 163,44 euros.

Esta execução foi indeferida liminarmente por se ter considerado que os documentos apresentados como título executivo não o eram.

b) A exequente interpôs recurso e concluiu da seguinte forma:

Em primeiro lugar, as decisões têm de conter os elementos de facto e de direito e o raciocínio lógico subjacente à decisão.

No caso em apreço, a decisão recorrida só concluiu, sem explicar, pelos motivos e o raciocínio lógico-normativo que esteve na base da declaração de que, no caso em apreço, “não há título executivo”;

Verifica-se, por conseguinte, que o dever legal de fundamentação não foi cumprido, pelo que, a sentença recorrida, infringiu o dever legal de fundamentação previsto no artigo 158.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, padecendo do vício da nulidade, nos termos do disposto no artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.

Em segundo lugar, ajuizou-se erradamente ao afirmar-se que «o documento dado à execução é uma guia de transporte e uma factura comercial da qual, por si, só não é possível extrair a existência de um crédito. Isto é, não é um título executivo».

Isto porque, o recorrente instaurou uma acção executiva com base num extracto de factura e documentos assinados pelo devedor.

Além disso, sendo as facturas um documento recognitivo de uma obrigação pecuniária, tem sido pacificamente admitido pela jurisprudência e pela doutrina que as mesmas constituem título executivo, sendo certo que os documentos assinados pelo devedor enquadram-se categoricamente, sem qualquer margem de dúvidas, na previsão normativa do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

Acresce ainda, que a existência do crédito se presume, nos termos do artigo 458.º, n.º 1 e 2, do Código Civil.

Concluiu no sentido da revogação do despacho sob recurso com vista ao prosseguimento da execução.

c) Não houve contra-alegação.

d) As questões a resolver no recurso são:

Em primeiro lugar, verificar se ocorre um caso de nulidade da decisão por carência de fundamentação.

Em segundo lugar verificar se os documentos juntos pela recorrente constituem título executivo, designadamente se valem como extracto de factura ou como documentos particulares nos quais o devedor reconhece a obrigação

II. Fundamentação.

a) Factos relevantes.

A recorrente instaurou acção executiva em tribunal para cobrar a quantia de €1 163,44 euros, sendo €1 008,35 euros de capital e o resto de juros.

O título executivo é composto por um documento que se auto-denomina de «guia de transporte n.º 19 051» de onde conta como transportador  C (…), , Ld.ª, e como destinatário J (…), Rua da ..., estando rubricada no campo destinado a «data, assinatura do destinatário», não sendo legível o conteúdo manuscrito da rubrica.

Bem como por um documento de onde consta que é uma factura («Factura n.º 240/2007») emitida pela empresa C (…), Ld.ª,  e dirigida a I (…), Ld.ª.

Do seu teor consta a designação do objecto, no caso o «Transporte de Barco de Malaposta para Sesimbra…» e respectivo preço.

Não contém qualquer assinatura.

b) Passando à análise das questões colocadas.

1 - Nulidade da decisão por carência de fundamentação.

O artigo 668.º do Código de Processo Civil, na al. b) do seu n.º 1, dispõe que a sentença é nula «Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».

Trata-se de um vício de natureza processual que tem a ver com a forma prescrita na lei processual, mas não com a matéria substantiva de que trata o processo.

Daí que esta falta de fundamentação da sentença, seja quanto à matéria de facto ou de direito, se refira à sua total omissão e não à sua maior ou menor valia do ponto de vista do direito aplicável ao caso.

 Com efeito, relativamente à qualidade da fundamentação da sentença a parte dispõe do recurso e é em sede de recurso que esta matéria é apreciada.

Daí que só haja nulidade quando a omissão é total.

Como ensinou o Prof. Alberto dos Reis, referindo-se a esta matéria, «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do n.º 2 do art. 668.º» ([1]).

No caso dos autos escreveu-se o seguinte:

«Finalmente importa ainda trazer à colação o disposto nos artigos 45º e 46º do CPC e lembrar que “1. Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva. 2. O fim da execução, para o efeito do processo aplicável, pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo, quer negativo”, sendo que à execução apenas podem servir de base: a) As sentenças condenatórias; b) Os documentos exarados ou autenticados por notário que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação; c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto; d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva. 2 – Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante.

Ora, no caso em apreço o documento dado à execução é uma guia de transporte e uma factura comercial da qual, por si, só não é possível extrair a existência de um crédito.

Isto é: não constitui título executivo».

Muito embora não revele a totalidade do raciocínio que esteve presente na decisão de não se considerar os documentos como constituindo título executivo, verifica-se, porém, que o texto em causa constitui um caso de «fundamentação»; é fundamentação, pelo que, não se pode concluir que não existe fundamentação.

Quando muito poder-se-á dizer que a fundamentação é insuficiente, mas este caso já não é um caso de nulidade.

Conclui-se, pelo exposto, que não ocorre a apontada nulidade de sentença

2 - Em segundo lugar, vejamos se os documentos juntos pela recorrente constituem título executivo, designadamente se valem como extracto de factura ou como documentos particulares nos quais o devedor reconhece a obrigação que se pretende executar.

O artigo 46.º do Código de Processo Civil, que versa sobre as espécies de títulos executivos, tem a seguinte redacção:

«1 - À execução apenas podem servir de base:

a) As sentenças condenatórias;

b) Os documentos elaborados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto;

d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.

2 - Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante».

No presente caso, os documentos juntos com a petição constituirão título executivo se se integrarem em algumas das alíneas do n.º 1 do artigo 46.º do Código de Processo Civil, sendo de excluir liminarmente que se integrem nas hipóteses previstas nas al. a), b) e d), pelo que, só poderão constituir título executivo, se se integrarem na al. c), isto é:

(1) Têm de ser documentos particulares;

(2) Assinados pelo devedor;

(3) Que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.

Ambos os documentos, «guia de transporte n.º 19 051» e «Factura n.º 240/2007» são (1) documentos particulares.

Apenas a guia de transporte está (2) rubricada no campo destinado ao destinatário que vem identificado na guia como sendo J (…), não se sabendo se a respectiva rubrica é dele ou não, por não ser legível.

A factura não está assinada.

A guia de transporte não contém qualquer declaração que importe a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.

Uma guia de transporte, mesmo que assinada pelo destinatário nela identificado, apenas contém a declaração de que, no dia e local aí identificados, o destinatário recebeu aquela mercadoria.

Mas esta declaração não é uma declaração de dívida, isto é, uma declaração em que o declarante diz, com sentido juridicamente vinculante, que deve certa quantia, que está identificada, a certa e determinada pessoa.

Repare-se que da guia não consta qualquer quantia monetária, nem uma declaração, expressa ou tácita, no sentido do destinatário dever tal quantia a alguém.

Em abstracto até se pode configurar a hipótese do negócio subjacente ser uma venda e do preço já ter sido pago. Ou tratar-se de um caso em que os bens foram entregues sem que o negócio tenha sido já fechado, não havendo ainda dívida.

  Com efeito, a guia de transporte não é uma declaração de onde resulte a assunção de uma dívida. Aliás, nem sequer tem o condão de revelar o negócio que está subjacente à sua emissão.

Daí que não possa constituir um título executivo, mesmo que acompanhada de uma factura a condizer.

É que a factura também não contém qualquer declaração que importe a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, pois trata-se de um documento unilateralmente elaborado pela exequente.

Verifica-se, por conseguinte, que os documentos em causa não constituem título executivo, porque em nenhum deles ou em ambos reunidos, está constituída ou reconhecida uma dívida por parte da executada.

A recorrente refere-se nas suas alegações à figura do «extracto de factura» sustentando que a factura n.º 240/2007 é um extracto de factura.

Efectivamente, na antiga redacção da al. c) do n.º 1, do artigo 46.º do Código de Processo Civil, o extracto de factura era um dos exemplos aí considerados como constituindo título executivo ([2]).

Porém, o extracto de factura é um documento que não se confunde com a factura.

O extracto de factura foi criado pelo Decreto n.º 19 490, de 21 de Março de 1931.

Nos termos do proémio do artigo 1.º deste decreto, «Nos contratos de compra e venda mercantil a prazo celebrados entre comerciantes domiciliados no continente e ilhas adjacentes, sempre que o preço não seja representado por letras, deve, no acto da entrega real, presumida ou simbólica da mercadoria, passar-se uma factura ou conta, que será acompanhada de um extracto, nos termos do art. 3.º.

E o artigo 3.º tem esta redacção:

«O extracto passado na conformidade do presente decreto ou instrumento do protesto nos termos do artigo 11.º é a base indispensável de qualquer procedimento judicial destinado a tornar efectivos os direitos do vendedor, e deve conter:

a) O número de ordem da factura;

b) A data da emissão;

c) O nome e domicílio do vendedor;

d) O nome e domicílio do comprador;

e) O saldo líquido da factura original, em algarismos e por extenso, ou, na hipótese do artigo 2.º, a importância da prestação a que corresponde;

f) O número do copiador e respectivos fólios;

g) A época do pagamento;

h) O lugar onde este deva ser efectuado;

i) A assinatura do vendedor.

§ 1.º Todo o extracto passado nos termos deste decreto envolve necessariamente a cláusula à ordem.

§ 2.º Se o extracto não indicar o lugar do pagamento, será pagável no domicílio do vendedor».

Nas palavras de J. Pires Cardoso «Podemos definir extracto de factura: o título à ordem, sujeito a certas formalidades, que representa o crédito proveniente duma venda mercantil a prazo, realizada entre comerciantes, e obrigatoriamente emitido sempre que essa transacção não seja efectuada por meio de letra (arts. 1.º e 3.º § 1.º do Decreto n.º 19 490, de 21 de Março de 1931).

Um exemplo: A, comerciante, vendeu a prazo de 3 meses, a B, também comerciante, uma certa mercadoria, mediante um preço estipulado. Se esta operação não for representada por meio de letra, exige a lei que o vendedor passe uma factura ou conta e a faça acompanhar do seu extracto.

O comprador ficará com a factura e o vendedor com o extracto respectivo; este será conferido e aceite (assinado) pelo comprador (art. 10.º, § 1.º do cit. decreto); e deverá ser devolvido ao vendedor dentro do prazo estabelecido na lei» (Noções de Direito Comercial, pág. 312/313, Atlântida Editora/1979).

Bem se vê, pois, pelo exposto, que a factura junta aos outros não é um extracto de factura.

O extracto de factura é um título de crédito endossável, semelhante a uma letra, assinado pelo devedor, reconhecendo assim ser devedor daquela quantia.

Aliás, o artigo 20.º deste decreto diz que «São aplicáveis aos extractos selados de facturas todas as disposições do Código Comercial relativas a letras e não contrárias ao preceituado no presente decreto».

 Face ao que fica referido conclui-se que os documentos não constituem título executivo, pelo que improcede o recurso.

III. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida. Custas pela exequente.


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Alberto Ruço ( Relator )
Judite Pires
Carlos Gil

[1] Código de processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140, (reimpressão), Coimbra Editora/1984.

[2] O artigo 46.º na redacção do Decreto-Lei n.º 47690, de 11-5-67, tinha a seguinte redacção:

«À execução apenas podem servir de base:

a) As sentenças condenatórias;

b) Os documentos exarados ou autenticados por notário;
c) As letras, livranças, cheques, extractos de factura, vales, facturas conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis;

d) Os títulos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva».