Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
156/06.9TASAT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: MULTA
COIMA
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 10/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SÁTÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 8º Nº 7 DO RGIT E 29º, N.º 5, DA C.R.P.
Sumário: É inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, a norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias quando aplicável o gerente de uma pessoa coletiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infração tributária.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I.
Nos autos, após audiência pública de discussão e julgamento, por sentença proferida em 20.01.2011, transitada em julgado, foi decidido:
- condenar os arguidos A..., B...e C..., pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, sob a forma continuada, previsto e punido pelo artigo 107°, nº 1 do RGIT nas penas, respectivamente, de: - 150 de multa à razão diária de € 6.00; - 120 de multa, à razão diária de € 7,00; e - 220 dias de multa à taxa diária de € 5.00;
- condenar a arguida “D..., Lda.”, pela prática do mesmo crime de abuso de confiança contra a contra a segurança social previsto e punido pelo artigo 107º, nº1 do RGIT, na pena de 400 dias de multa 3 taxa diária de € 5.00. num lotai de € .2.000.00.
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Tendo a sentença transitado em julgado, os autos prosseguiram os seus termos com vista ao cumprimento das sanções.
Não tendo a arguida sociedade procedido ao pagamento da multa, o Ministério Público veio promover que os arguidos A..., B...e C..., fossem declarados civil e solidariamente responsáveis pelo pagamento da multa em que foi condenada a sociedade arguida.
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Foi então proferido despacho judicial (fls. 1261-1264) no qual foi decidido:
“(…) Constatando-se que os arguidos A..., B...e C... foram condenados como co-autores materiais do crime pelo qual a sociedade arguida também foi condenada, consideram-se preenchidos os requisitos legalmente exigidos pelo artigo 8° nº 7 do RGIT no que se refere à responsabilidade solidária pelo valor correspondente à multa aplicada.
Pelo exposto, decide-se declarar, ao abrigo do disposto no artigo 8º, n.º7 do RGIT, os arguidos A..., B...e C..., solidariamente responsáveis pelo pagamento da multa a que a sociedade arguida “ D..., Lda.”, foi condenada nos presentes autos, no valor de €: 2.000,00 (dois mil euros). Notifique os arguidos para procederem ao pagamento”.
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Recorrem do aludido despacho os arguidos C... (fls. 1296 – 1310) e B...(fls. 1313-1317).
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O recorrente C... formula as seguintes CONCLUSÕES (reprodução por sacanner, salvo a parte relativa à reprodução dos termos do processo):
(…)
4. Antes de mais, a responsabilidade sancionatória decorrente dessa disposição esta interdita por implicar uma dupla valoração do mesmo facto para efeitos penais, a acrescer ao facto de esta segunda sanção violar os princípios da culpa, não se adequando à natureza e gravidade da infração quando praticada pelo agente a título individual.
5. O objecto deste recurso assenta na transmissão de uma responsabilidade penal que era, originariamente, imputável à sociedade ou pessoa colectiva, e a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo.
6. A verdade é que a decisão recorrida viola os princípios da intransmissibilidade das penas e da presunção de inocência do arguido, consagrados no n.º 3 e do artigo 30.º e no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República.
7. A decisão recorrida é, ainda, inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
8. O fundamento onde basicamente se alicerça este juízo de inconstitucionalidade é a violação da regra da intransmissibilidade da responsabilidade penal, consagrada no artigo 30.º, n.º 3, da CRP.
9. O recorrente, gerente, só pode ser responsabilizado por facto próprio (como não pode deixar de ser, tratando-se de uma responsabilidade subjectiva), não coincidente com o facto gerador da sanção pecuniária.
10. Dados os distintos fundamentos e fins dos dois sistemas de responsabilidade, é problemático ver no não pagamento da multa um prejuízo patrimonial configurável como um dano de natureza civil, indemnizável ao abrigo da correspondente responsabilidade.
11. Se o fim da multa não era a obtenção de uma receita (mas a imposição de um sacrifício económico, com fins repressivos e preventivos), dificilmente se pode considerar que o não pagamento (ainda que associado a outros factores) gera um dano enquadrável, como um dos seus pressupostos, na responsabilidade civil.
12. Não há, assim, a automática transposição, sem mais, para a esfera de um sujeito, da responsabilidade inicialmente gerada na esfera de um outro, por força de factores exclusivamente atinentes à esfera jurídica deste último.
13. O chamamento do gerente ou administrador à responsabilidade não se dá por força dos mesmos factores de imputação que conduziram à responsabilidade da pessoa colectiva, meramente redireccionados, por um mecanismo de transmissão, para a esfera debitória daquele sujeito.
14. Dá-se porque esse sujeito «incumprindo deveres funcionais, não providenciou no sentido de que a sociedade efectuasse o pagamento da multa em que estava definitivamente condenada e deixou criar uma situação em que o património desta se tornou insuficiente para assegurar a cobrança coerciva» (Acórdão n.2 150/2009).
15. Daí que esteja assegurada a conexão da sanção com a prática de actos ou omissões por aqueles que a sofrem, mesmo que se admita, na esteira do que acima defendemos, uma comunhão de natureza das duas responsabilidades, o que implica atribuir natureza sancionatória também à que recai sobre os administradores.
16. Além disso, quando carregado com o sentido valorativo adveniente do princípio da pessoalidade das penas que o informa, o conceito de transmissão não abrange situações deste tipo.
17. Em face do exposto, a questão de constitucionalidade que nos ocupa pode ser formulada, em último termo, como sendo a de decidir da admissibilidade constitucional de um regime sancionatório em que a medida da multa não depende da avaliação, em concreto, do grau de culpa do responsável e das circunstâncias específicas que rodearam a sua actuação.
18. Há que ponderar, antes de mais, que, neste caso, a total insensibilidade a factores pessoais, na determinação da medida da sanção, não resulta apenas da irrelevância de elementos de responsabilização reportados à culpa, em concreto, do responsável.
19. Na verdade, pessoas colectivas e pessoas físicas são entes morfologicamente bem distintos, com estrutura e grandeza de património tipicamente diferenciáveis.
20. Em resultado, a incidência patrimonial subjectiva, o "grau de sacrifício" que uma mesma multa comporta, não são idênticos, quando aplicadas a uma pessoa colectiva ou a um sujeito individual.
21. Aliás, o que o legislador, de forma praticamente constante e por um imperativo de justa medida, leva em conta, fixando valores mais elevados para os limites mínimo e máximo das sanções a aplicar a entes colectivos.
22. Tal como vem fixada no artigo 8º do RGIT, a responsabilidade subsidiária subverte esse critério diferenciador, ao pôr a cargo do administrador o pagamento de uma multa ou multa fixadas dentro de uma moldura estabelecida por reporte a uma categoria de sujeitos de natureza distinta - a pessoa colectiva responsável pela infracção tributária que deu motivo à sanção.
23. Aliás, no caso concreto, a pena de multa aplicada ao recorrente, ab inicio, foi, por tudo isto, substancialmente diferente.
24. O recorrente foi condenado a pagar uma multa de 1.100,00 €. Ao invés,
25. A sociedade foi condenada a pagar uma multa de 2.000,00 €
26. Quer isto dizer que, inexplicavelmente, a diferenciação havida, aquando da condenação, agora, por motivo nenhum, é desconsiderada.
27. Porque determinadas dentro de uma moldura ajustada à natureza própria da personalidade colectiva do devedor primário, a multa, quando passam a incidir, em igual medida, sobre a pessoa individual chamada, a título subsidiário, à responsabilidade, revelam-se, à partida, desproporcionadamente agravadas.
28. E, ao parificar, quanto ao objecto, situações de responsabilidade que, pelo menos do ponto de vista da natureza do sujeito responsável, são estruturalmente desiguais, a solução gera desconformidades com o que o princípio da igualdade exigiria.
29. Para além desta inadequação que contamina, in radice, todo o processo sancionatório da conduta culposa dos administradores, não pode ignorar-se que esta, pela heterogeneidade de comportamentos potencialmente englobados, não é susceptível de recondução a um tipo de ilícito e a um grau de culpa tendencialmente uniformes.
30. O não atendimento mínimo de limites sancionatórios decorrentes do princípio da culpa abre a porta a que os princípios da igualdade e da proporcionalidade resultem também insatisfeitos, e de forma agravada, dado o desajustamento da própria moldura aplicável, prevista para infracções cometidas por pessoas colectivas.
31. Em si mesma, mas, sobretudo, pela sua potencial projecção na ofensa a valores constitucionais de vigência incontroversamente geral, como os da igualdade e da proporcionalidade, uma tal denegação de qualquer eficácia delimitativa à culpa do agente do facto responsabilizador apresenta-se como constitucionalmente desconforme a norma aplicada pelo Tribunal “a quo",
32. Conclui-se, pois, pela inconstitucionalidade do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT, por violação dos princípios atrás identificados, nomeadamente, os princípios ne bis in idem, da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
Termos em que se requer a revogação da decisão impugnada, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, com a aplicação da norma do n.º 7 do artigo 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
*
Por sua vez a recorrente B...formula as seguintes CONCLUSÕES:
1. Conforme resulta do art. 8º, n.º1 do RGIT, os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas são apenas subsidiariamente responsáveis, no âmbito do processo-crime, pelas multas aplicadas à sociedade. 
2. Do teor conjugado dos art. 8° do RGIT e 24° da Lei Geral Tributária, extrai-se que a responsabilidade subsidiária tributária reveste natureza civil, pois que como tal é sempre tratada e que esta surge numa situação em que:
- O obrigado na relação tributária ao cumprimento do imposto não o fez;
- Foi contra ele instaurado um processo de execução fiscal:
- Nesse processo verificou-se, ou que não há bens para pagar a dívida fiscal, ou
que esses bens são insuficientes: e
- A execução fiscal vai então reverter contra eventuais responsáveis.
3. O procedimento de reversão contra algum ou alguns dos responsáveis subsidiários deve ser realizado nas hipóteses previstas nos art. 23º e 24° da Lei Geral Tributária e 153°, nº 2 do CPPT e segundo o ritual previsto nos artigos 23º, nº 4 e 60º da Lei Geral Tributária, em conjugação com o art. 45º do CPPT.
4. Antes que possa operar-se a reversão deve ter-se apurado, entre outros e de forma fundada, a insuficiência ou inexistência de bens penhoráveis do devedor principal. Só depois podendo reverter-se para os demais eventuais responsáveis.
5. No despacho ora em crise a Mma. Juiz a quo não faz qualquer referência quanto à existência ou não de bens no património da sociedade arguida através do qual possa ser paga a multa em que foi condenada, olvidando que se encontra a correr, por apenso aos presentes autos, uma acção executiva contra a sociedade arguida, cujo estado não é referido no douto despacho ora em crise.
6. Só depois de se mostrar provado nos presentes autos a insuficiência do património da sociedade arguida para o pagamento da multa que lhe foi aplicada, poderá o Tribunal a quo, eventualmente, desencadear qualquer outro tipo de responsabilidade, de acordo com os preceitos legais supra elencados.
7. Revestindo aquela responsabilidade natureza civilista, não pode a mesma ser executada no âmbito do processo penal, pese embora o princípio da suficiência, pois em causa está um regime especial que, como tal, se impõe ao regime geral.
8. A declaração da responsabilidade subsidiária tributária do arguido para pagamento da multa da sociedade por si gerida – art. 8° do RGIT, não cabe na competência do tribunal penal, mas sim do tributário, constatando-se, assim, a nulidade prevista no art. 119°, al. e) do C. P. Penal.
9. O campo de aplicação do artigo 8° do RGIT restringe-se às situações em que está em questão mera responsabilidade civil, mas já não a penal.
10. O art. 8° do RGIT reporta-se a infracções fiscais em que o lesado seja a Administração Fiscal, isto é, aplica-se quando, por virtude da actuação de um gerente, o Fisco deixou de receber uma quantia que lhe era devida e que teria sido paga, caso não tivesse ocorrido o esgotamento culposo do património da sociedade.
11. Mas a impossibilidade de cobrança coerciva de uma pena de multa criminal não implica para a administração fiscal qualquer dano, pois o destino dos montantes devidos a este título é, nos termos previstos no art. 512° do C. P. Penal, o que for fixado no Regulamento das Custas Processuais - no caso, tais quantitativos são recebidos e devidos, em regra, ao Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça, I.P., ou seja, esses montantes são devidos a entidade diversa da Administração Fiscal.
12. Assim, há que concluir que o art. 8° do RGIT é inaplicável a casos em que a eventual responsabilidade civil dos gerentes se funda numa condenação em pena de multa, proferida em processo-crime.
13. Sem prescindir, a norma do artigo 8°, n° 7, do RGIT e a interpretação que dela se faz no despacho em crise é inconstitucional por violação do princípio da intransmissibilidade das penas (art. 30°, n° 3 da CRP), do princípio ne bis in idem (art. 29°. n° 5 da CRP) e por violação do princípio da proporcionalidade na dimensão relativa à exigibilidade / necessidade.
14. A recorrente já tinha visto a sua actuação ser punida pela co-autoria material de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, na forma continuada, tendo cumprido integralmente a pena de multa que lhe foi autónoma e individualmente imposta pela sentença condenatória.
15. É princípio geral de direito que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, com a ressalva, quanto ao processo penal, do disposto nos termos dos artigos 371°-A. 379° e 380° do CPP.
16. Com a prolação da sentença que condenou a recorrente, esgotou-se o poder jurisdicional do Tribunal, estando vedado ao juiz, em despacho posterior, alongar essa condenação, ainda que apoiado em preceito legal.
17. As situações previstas no n°1 do art. 8° do RGIT e as obrigações delas decorrentes têm natureza diversa das situações previstas no n°7 do mesmo preceito e das obrigações que delas decorrem.
18. Não colhe a argumentação no sentido de que não é a pena criminal directamente imposta a terceiro que o art. 8° do RGIT transmite, mas apenas a responsabilidade civil pelo pagamento da multa, funcionando esta apenas como elemento de referência para a quantificação do valor de tal responsabilidade.
19. Não estando em causa uma situação de abuso do direito, nem a violação de um direito absoluto, a ilicitude extracontratual a atribuir ao co-autor do acto para também o responsabilizar solidariamente nos termos previstos no n°7 do art. 8° do RGIT só poderia dar-se por violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, nos termos do n° 1 do art. 483° do Código Civil.
20. O não pagamento da multa criminal em que foi condenada a sociedade co-­arguida não constitui para a Segurança Social qualquer dano, pelo que inexiste fundamento ressarcitório que torne legalmente admissível a aplicação do disposto no n°7 do art. 8° do RGIT e a solidária responsabilização dos gerentes.
21. Entendimento diverso traduziria clara violação dos princípios constitucionais acima aludidos (em 14).
22. O exercício dos direitos de audiência e de defesa, constitucionalmente garantidos pelo art. 32°, n°1, 5 e 10 da CRP, como também pelos artigos 61°, n°1, b) do CPP, e 3°, n°1 (2ª parte) do CPC, não foram integralmente assegurados à recorrente no que tange à declaração de responsabilidade solidária.
23. A recorrente não pôde pronunciar-se quanto aos factos respeitantes à determinação da medida da pena e à fixação da taxa diária aplicadas à sociedade co-­arguida e pelas quais se pretende seja agora responsabilizada.
24. Ao decidir como decidiu, o despacho recorrido violou o disposto no artigo 8°, n°7 do RGIT, nos artigos 29°, n°1, 3 e 5, 30°, n°3, e 32°, n°1, 5 e 10, todos da Constituição da República Portuguesa, bem como o disposto nos artigos 4° e 61°, n°1, al. b) e o art. 119°, al. e) do Código de Processo Penal, e nos art. 3°, n°1 (2ª parte), e 666°, n°1, ambos do Código de Processo Civil, e no art. 483°, n°1 do Código Civil.
TERMOS EM QUE,
Deve o presente recurso ser julgado provido e, consequentemente, ser revogado o douto despacho recorrido, concluindo-se não ser a recorrente responsável pelo pagamento da multa em que a sociedade arguida foi condenada.
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Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido pugnado pela improcedência dos recursos.
Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual manifesta inteira concordância com a resposta apresentada em 1ª instância.
Corridos vistos, cumpre conhecer.
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II.
Está em causa a aplicação efectuada na decisão recorrida, do disposto no artigo 8º, nº 7, do RGIT e sua conformidade com a Constituição da República.
Bem como a questão da competência do tribunal criminal/penal para a sua aplicação em processo penal suscitada pela arguida/recorrente.
Face ao princípio da suficiência da acção penal – art. 7º do CPP - nada impede que todos os pressupostos e consequências do crime sejam apreciados no processo penal. Naturalmente desde que verificados, no processo e com as garantias do processo penal, esses pressupostos.
Assim, sendo o tribunal competente, importa apreciar a questão material da conformidade constitucional da norma aplicada pela decisão recorrida, na interpretação ali assumida.

Esta questão material foi apreciada no Ac. TRC de 24-04-2013, recurso n.º 54/08.1IDVIS-B.C1, acessível em htt://www.trc.pt/, subscrito pelo ora relator. O qual, por isso, será seguido de perto.

Sob a epígrafe “Responsabilidade civil pelas multas e coimas”, dispõe o artigo 8º do RGIT:
“ 1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
2 - A responsabilidade subsidiária prevista no número anterior é solidária se forem várias as pessoas a praticar os actos ou omissões culposos de que resulte a insuficiência do património das entidades em causa.
3- As pessoas referidas no n.º 1, bem como os técnicos oficiais de contas, são ainda subsidiariamente responsáveis, e solidariamente entre si, pelas coimas devidas pela falta ou atraso de quaisquer declarações que devam ser apresentadas no período de exercício de funções, quando não comuniquem, até 30 dias após o termo do prazo de entrega da declaração, à Direcção-Geral dos Impostos as razões que impediram o cumprimento atempado da obrigação e o atraso ou a falta de entrega não lhes seja imputável a qualquer título.
4 - As pessoas a quem se achem subordinados aqueles que, por conta delas, cometerem infracções fiscais são solidariamente responsáveis pelo pagamento das multas ou coimas àqueles aplicadas, salvo se tiverem tomado as providências necessárias para os fazer observar a lei.
5- O disposto no número anterior aplica-se aos pais e representantes legais dos menores incapazes, quanto às infracções por estes cometidas.
6 - O disposto no n.º 4 aplica-se às pessoas singulares, às pessoas colectivas, às sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e a outras entidades fiscalmente equiparadas.
7 - Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso.
8 - Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos dos números anteriores, é solidária a sua responsabilidade.

Este preceito (artigo 8º) prevê múltiplas situações de responsabilidade civil dos administradores gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas pelo pagamento de multas ou coimas aplicadas ao ente colectivo/sociedade.
Na alínea a) do número 1 consagra-se a responsabilidade subsidiária das pessoas singulares que actuem em nome do ente colectivo (administradores, gerentes ou pessoas que exerçam, de facto, essas funções) desde que se prove que foi por culpa sua que o património da sociedade ou da pessoa colectiva se tornou insuficiente para pagamento. A alínea b) estipula que essa responsabilidade existirá quando se provar que a falta de pagamento da multa ou da coima lhes é imputável.
O número 2 prevê ainda a responsabilidade solidária quando tenham sido várias as pessoas a exercer os cargos referidos e se prove que todas elas praticaram os actos ou omissões culposos que tenham determinado a insuficiência do património da pessoa colectiva.
A responsabilidade subsidiária dos administradores, dos gerentes e de outras pessoas que tenham exercido, ainda que apenas de facto, funções de administração, não decorre necessariamente (automaticamente) do não pagamento da multa ou da coima por parte do ente colectivo. Pressupõe ainda a prova de que a impossibilidade de pagamento derivou de uma actuação culposa desse agente.
O número 7 deste preceito legal consigna que quem colaborar dolosamente na prática de uma infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela sua prática, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso.
Foi neste normativo que se estribou o tribunal recorrido para declarar, em despacho posterior à sentença, a responsabilidade solidária dos gerentes da sociedade – também arguidos e condenados pela co-autoria do mesmo e único crime -  pelo pagamento da pena de
multa aplicada à sociedade.
Não pelo pagamento das prestações devidas à segurança social cujo não pagamento constituiu o objecto do crime. Mas da pena pecuniária – de multa – em que foi condenada, autonomamente, a sociedade.
A conformidade constitucional do preceito tem sido objecto de discussão – além do Ac. do TRC citado cfr., entre outros, o acórdão do T.R.P. de 13/02/2013 e o Ac. do Tribunal Constitucional nº 1/2013 de 22 de Fevereiro.
Sobre o preceito o Acórdão n.º 297/2013 do Tribunal Constitucional, de 28.05.2013, DR 2ª S de 05.07.2013 – posterior ao Ac.T.R.C. citado -  decidiu: - Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração tributária pelas multas aplicadas à sociedade.

O Regulamento Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aplica-se às infracções tributárias (artigo 1º), definidas nos termos do artigo 2º como todo o facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei tributária anterior, e divididas em crimes e contra-ordenações (número 1 e 2 deste artigo). Reunindo a nível substantivo: crimes tributários comuns [artigos 87º a 91º]; crimes aduaneiros [artigos 92º a 102º]; crimes fiscais [artigos 103º a 105º], crimes contra a segurança social [ artigos 106º e 107º]; contra-ordenações aduaneiras [artigos 108º a 112º] e; contra-ordenações fiscais [artigos 113º a 129º].
A nível processual contem o direito adjectivo relativo ao processo de contra-ordenação tributária e ao processo penal tributário e um processo de inquérito, aos quais se aplicam muitas das regras do processo penal.
Postula o artigo 3º: “São aplicáveis subsidiariamente: Quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar; Quanto às contra-ordenações e respectivo processamento, o regime do ilícito de mera ordenação social; Quanto à responsabilidade civil, as disposições do Código Civil e legislação complementar; Quanto à execução das coimas, as disposições do Código de Procedimento e de Processo Tributário.”
Reporta-se esta visão de conjunto do diploma para realçar a multiplicidade de situações que ele cobre, as quais, pela sua diversa natureza (crimes e contra-ordenações) mas, sobretudo, pela dissemelhança das situações que previne e pune, reclamam soluções próprias e específicas.
Embora constituindo legislação especial, deve reconduzir-se sempre aos princípios gerais do Direito Penal. O Direito Penal Tributária é direito penal, sendo-lhe aplicáveis, portanto, em tudo o que não for afastado pela sua especialidade própria, os princípios gerais que enformam este ramo do direito bem como os princípios da Constituição Penal, de aplicação directa – art. 8º da Lei Fundamental.
Daí que o Tribunal Constitucional tem vindo a ser chamado a pronunciar-se sobre a conformidade de alguns destes preceitos legais com a nossa Lei Fundamental.
Aquele Tribunal tem decido sempre pela compatibilidade ou incompatibilidade constitucional daquele preceito quando interpretado no sentido que consagra uma responsabilidade subsidiária pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão de execução fiscal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora, quando se verifica a impossibilidade de cobrança da coima que foi aplicada ao ente colectivo, no âmbito contra-ordenacional. Neste âmbito, pode vislumbrar-se uma relação entre valor da coima aplicada – que reverte para a Administração fiscal – e o valor do prejuízo para esta adveniente caso a coima não venha a ser paga. Ainda assim, porém, com todas as objecções de princípio que as decisões proferidas (que a seguir analisaremos) evidenciam.
Assim o acórdão nº 129/2009, decidiu não julgar inconstitucional as normas das alíneas a) e b) do artigo 87º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela lei nº 15/2001 de 5 de Junho, na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes por coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação. Ali se refere, com interesse:
“Não estamos perante uma qualquer forma de transmissão de responsabilidade penal ou tão pouco de transmissão de responsabilidade contra-ordenacional. O que o artigo 8 nº 1, alíneas a) e b), do Regime Geral das Infracções Tributárias prevê é uma forma de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento da multa ou da coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento quando a sociedade ou pessoa colectiva foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo. O que está em causa não é, por conseguinte, a mera transmissão de uma responsabilidade contra-ordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa colectiva; mas antes a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente que constitui causa adequada dano que resulta, para a Administração fiscal da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram decidas. A simples circunstância de o montante indemnizatório, corresponder ao valor da multa ou coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar; que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional e de nenhum modo permite concluir que tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da responsabilidade contra-ordenacional.(…)
Tudo leva, por conseguinte a considerar que não existe, na previsão da norma do artigo 8°, 1, alíneas a) e b), do R.G.I.T. um qualquer mecanismo de transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional, nem ocorre qualquer violação do disposto no artigo 30º, n.° 3, da Constituição, mesmo que se pudesse entender - o que não é liquido - que a proibição aí contida se torna aplicável no domínio das contra-ordenações”.

Vão no mesmo sentido as decisões tomadas nos Acórdãos 150/2009 e no 234/2009, na mesma linha de argumentação. Que se prende com a constatação de que não ocorre uma simples transmissão da responsabilidade contra-ordenacional da sociedade para o ente singular, este responde por facto próprio, desde que se encontre provada a sua culpa na colocação da sociedade em situação de não poder pagar o que estava obrigada, ou seja, desde que se prove que contribuiu para a verificação do dano sofrido pela Administração Fiscal ao não conseguir receber quantias que lhe eram devidas.
 Na mesma linha no acórdão nº481/2010 o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo7º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA) aprovado pelo Decreto-Lei nº.20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.9 394/93, de 24 de Novembro, na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal.
Na fundamentação desta decisão começa-se por atacar a separação estanque que a jurisprudência anterior fazia entre a responsabilidade decorrente da norma sancionatória e responsabilidade civil, consistente, esta, na obrigação de pagamento da multa ou coima.

Ali de escreveu o seguinte: “Na verdade, a dissociação total entre responsabilidade pela violação do dever tributário e responsabilidade pelo não pagamento do montante sancionatório correspondente parece algo artificial e de sentido precário, desmembrando uma posição subjectiva que forma uma unidade conceptual e vital - Nuno Brandão, pronunciou-se sobre o lugar paralelo do artigo 11º , nº 9 do Código Penal (responsabilidade subsidiária dos administradores pelo pagamento de multas e indemnizações em que a pessoa colectiva for condenada), não poupando palavras críticas, considerando que «esta distinção não é aceitável e constitui uma autêntica burla de etiquetas, ao travestir de responsabilidade pelo cumprimento da sanção aquilo que na realidade é uma autêntica transmissão de responsabilidade penal], ainda que operada por via legal» (“O regime sancionatório das pessoas colectivas na revisão do Código Penal”, Direito penal económico e europeu: textos doutrinários, III, Coimbra, 2009, 461 ss , 469). Na realidade dos efeitos prático-jurídicos, o Estado vai conseguir por via indirecta, através do património de sujeitos não vinculados pela obrigação que, em termos sancionatórios, a coima consubstancia, a cobrança do débito correspondente.”
Mais adiante, continuando a análise da substituição do sujeito passivo da obrigação e questionando a possibilidade de “transfiguração de responsabilidade contra-ordenacional em responsabilidade civil” são tecidas as seguintes considerações: “Responsabilidade contra-ordenacional e responsabilidade civil não são sobreponíveis, preenchem distintos espaços de imputação de condutas lesivas de valores juridicamente tutelados, resultam de ilícitos de natureza distinta, pelo que a responsabilidade civil não pode ser actuada subsidiariamente em consequência da frustração da responsabilidade contra-ordenacional para satisfazer, por na indirecta, os fins próprios desta. Na responsabilidade contra-ordenacional, a vinculação ao pagamento de uma importância monetária, a título de coima, tem carácter instrumental da realização de fins de outra natureza, de reafirmação da ordem de condutas desrespeitada, de sanção ao agente por se ter desviado dos deveres decorrentes do exercício de determinada actividade social e de dissuasão de práticas futuras contra-ordenacionais. A sua função é puramente sancionatória e preventiva. Já a responsabilidade civil visa a reposição de um equilíbrio patrimonial afectado por um facto danoso.(…) Se o fim da coima não era a obtenção de uma receita (mas a imposição de um sacrifício económico, com fins repressivos e preventivos) dificilmente se pode considerar que o não pagamento (ainda que associado a outros factores) gera um dano enquadrável como, um dos seus pressupostos na responsabilidade civil.
(…) Em suma: não pode haver responsabilidade civil onde não estejam presentes todos os pressupostos que lhe dão nascença, designadamente o dano, cuja reparação constitui a razão de ser a finalidade de tal figura (…)”

Retomando a fundamentação desta última decisão, no acórdão nº 24/2011 decidiu-se “julgar inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 8º do Regime Geral das Infracções Tributárias aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, interpretado com o sentido de que aí se consagra urna responsabilização subsidiária pelas coimas que se efectiva através do mecanismo da reversão da execução fiscal contra os gerentes e administradores da sociedade devedora.”
Seguindo a mesma linha de argumentação foi proferido o acórdão nº 26/2011 onde se decidiu “julgar inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da culpa da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 8º do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei nº 15/2001 de 05 de Junho, com as alterações posteriores), na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal, efectivada através do mecanismo da reversão da execução fiscal”.

Após as três decisões citadas, foi preferido o acórdão nº 35/2011, no qual — pese embora sem unanimidade — se verifica um nítido regresso à jurisprudência resultante dos acórdãos nº 150/2009 e nº 234/2009, já referidos.
Face à falta de unanimidade de posições o Ministério Público intentou recurso para o Plenário, a fim de ver consolidado o entendimento relativo à conformação ou não daquele preceito legal com os ditames constitucionais. Vindo então a ser proferido o acórdão nº 437/2011 o qual concluiu “não julgar inconstitucional o artigo 8º número 1, alíneas a) e b), do RGIT, quando interpretado no sentido de que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão da execução fiscal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora”.
Esta decisão contou, ainda assim, com múltiplos votos no sentido de inconstitucionalidade (cinco com fundamento convergente e dois com fundamento divergente, só por isso vingando a orientação de constitucionalidade dos seis restantes) nas quais, a título de exemplo, se sufragava o entendimento de que essa norma não seria conforme com a Constituição, nomeadamente por fazer recair sobre os gerentes e administradores a obrigação de pagamento de uma coima fixa, sem a consideração da culpa e da situação económica do agente, o que pode permitir a sujeição a uma coima desproporcionada (Conselheira Maria João Antunes), e por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade (conselheiro J. Cunha Barbosa).


Para o entendimento cabal do decidido pelo Tribunal Constitucional importa atermo-nos aos fundamentos dele constantes. “(…) O que o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT prevê é uma forma de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento da multa ou da coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento quando a sociedade ou pessoa colectiva foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo.
O que está em causa não é, por conseguinte, a mera transmissão de uma responsabilidade contra-ordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa colectiva; mas antes a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.
A simples circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional; e de nenhum modo permite concluir que tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da responsabilidade contra-ordenacional.

Por outro lado, o facto de a execução fiscal poder prosseguir contra o administrador ou gerente é uma mera consequência processual da existência de uma responsabilidade subsidiária, e não constitui, em si, qualquer indício de que ocorre, no caso, a transmissão para terceiro da sanção aplicada no processo de contra-ordenação (cfr. artigo 160º do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
Acresce que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes assenta, não no próprio facto típico que é caracterizado como infracção contra-ordenacional, mas num facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal.
É esse facto, de carácter ilícito, imputável ao agente a título de culpa, que fundamenta o dever de indemnizar, e que, como tal, origina a responsabilidade civil.
Tudo leva, por conseguinte, a considerar que não existe, na previsão da norma do artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, um qualquer mecanismo de transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional, nem ocorre qualquer violação do disposto no artigo 30º, n.º 3, da Constituição, mesmo que se pudesse entender - o que não é liquido - que a proibição aí contida se torna aplicável no domínio das contra-ordenações”.
Deste fragmento da fundamentação do acórdão resulta que se está sempre no âmbito da responsabilidade civil, decorrente da obrigação de indemnizar um dano, dano esse que corresponde ao valor do montante da coima que a Administração Fiscal não conseguiu cobrar do obrigado principal (da sociedade) e causado por culpa dos seus representantes.
Ainda do texto do acórdão a que nos vimos reportando consta o seguinte:
“O Tribunal entendeu então que a responsabilidade dos gerentes ou administradores consagrada no artigo 8.º, n.º 1 do RGIT é titulada pelo instituto da responsabilidade civil delitual ou aquiliana: aqueles sujeitos são chamados, a título subsidiário, na exacta medida do dano que produziram à Administração Fiscal ao terem impossibilitado, pela sua administração, a realização do pagamento das coimas devidas. A imputação não prescinde, como realçou então o Tribunal, da verificação dos pressupostos gerais, atinentes ao cometimento de um facto ilícito e culposo, bem como ao nexo de causalidade adequada entre a acção e o dano produzido. Esta configuração da responsabilidade prevista nas alíneas a) e b) do artigo 8.º, n.º 1, do RGIT torna inadequada a convocação de qualquer dos parâmetros contidos nos artigos 30.º e 32.º da Constituição. De facto, e independentemente da questão de se determinar, previamente, o âmbito de aplicação das garantias de defesa em processo criminal quando estejam em causa ilícitos contra-ordenacionais, pode-se concluir liminarmente pela inadequação das mesmas enquanto parâmetros de apreciação da questão em apreço, uma vez que a mesma se localiza num outro lugar do sistema, atinente à responsabilidade extracontratual.
Esta é também a posição de Germano Marques da Silva, que defende que “ a responsabilidade civil pelo pagamento da multa penal nada tem a ver com os fins das penas criminais, porque a sua causa não é a prática do crime, mas a colocação culposa da sociedade numa situação de impossibilidade de cumprimento de uma obrigação tributária. É evidente que para a responsabilização do administrador é necessário que a sentença dê por verificados os pressupostos da responsabilidade e a respectiva condenação” (in Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e representantes, Verbo, 2009 p. 443). De acordo com este autor, “trata-se de um caso de responsabilidade civil por facto próprio, facto culposo causador do não pagamento pelo ente colectivo da dívida que onerava o seu património, quer porque por culpa sua o património da pessoa colectiva se tornou insuficiente para o pagamento, quer porque também por culpa sua o pagamento não foi efectuado quando devia, tornando-se depois impossível.”


Vistos estes argumentos, vejamos quais os que são transponíveis para a decisão em apreço.
Como decorre do que se encontra citado, a responsabilidade civil subsidiária a que alude o artigo 8º nº 1 do RGIT tem de ter sido declarada na sentença e pelo mecanismo da reversão fiscal.


Resulta evidente que todas as dúvidas colocadas sobre a conformação constitucional do preceito, foram arredadas, na decisão proferida, por se estar no âmbito de um processo contra-ordenacional, no qual as coimas aplicadas revertem para a Administração Fiscal e por se entender que, provado o comportamento culposo do gerente ou administrador colocando a pessoa colectiva sem meios que permitissem àquela executá-la, passa a ser deles a responsabilidade pelo ressarcimento do prejuízo causado equivalente ao valor da coima não paga.
Ora “a conexão entre a reversão e a responsabilidade subsidiária” é incontornável: a reversão é a tradução processual daquela responsabilidade. Previsto no artigo 23º da Lei Geral Tributária, o instituto da reversão fiscal tem subjacente o princípio da economia processual – evita-se a instauração de um novo processo executivo contra o responsável, permitindo-se que o já instaurado contra o primitivo devedor originário passe a correr este.

Na situação em apreço, o tribunal recorrido julgou e condenou – por sentença transitada em julgado - pelo crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artº 105º, nº 1 e 4 do RGIT, os arguidos/recorrentes bem como a sociedade que representavam, por força do preceituado no artigo 7º número 1 do mesmo diploma legal. Cada um dos arguidos (sócios/gerentes e sociedade) foi condenado não só em pena mas ainda no pagamento solidário das prestações em dívida à Segurança Social cuja falta de pagamento consubstancia o crime
O despacho ora recorrido “acrescenta” à sentença a condenação pessoal dos gerentes (já condenados, autonomamente, em penas de multa, pela prática do mesmo crime, além do pagamento solidário das prestações em dívida à Segurança Social consubstanciadoras do crime) a condenação no pagamento da pena de multa aplicada à sociedade que representavam, também ela condenada. 
Ora, não se vislumbra à luz de que princípios se admite a possibilidade de, transitada em julgado a sentença, possa vir-se, em sede de execução dessa decisão, pretender-se mais do que nela foi declarado. Pois que transitada em julgado a decisão proferida, o juiz vê esgotado o seu poder jurisdicional.
Transitada a sentença apenas é permitido corrigi-la, nos precisos termos que constam do artigo 380º do Código de Processo Penal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
O caso julgado é a garantia de certeza e segurança, que nenhum sistema jurídico pode dispensar (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, páginas 282/284; Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume III, página 384; Antunes Varela e outros, ob. cit., páginas 704/705).
Daí que, na fase executiva, não se possa pretender ir para além do que nela se encontra declarado - seja em termos de condenação penal seja em termos de responsabilidade civil.
Não se vê ainda como se pode declarar, seja quem for, civilmente responsável, prescindindo da alegação e prova de todos os pressupostos dessa responsabilidade, a não se basta com a declaração de existência do dano, mas pressupões ainda a imputação ao agente de um facto ilícito culposo do qual o dano seja causa directa e necessária.

Chama-se aqui à colação a Declaração de Voto à decisão proferida pelo acórdão 437/2011 do Excelentíssimo Conselheiro Dr. Joaquim de Sousa Ribeiro, onde o mesmo aduz, referindo-se à situação prevenida no nº 1 do artigo 8º, no âmbito contra-ordenacional e onde se fala em responsabilidade subsidiária, mas que se aplica ao caso dos autos, por maioria de razão: “Não estando em causa um abuso de direito nem a violação de um direito absoluto, a ilicitude extracontratual só poderia dar-se por violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios (artigo 483º nº 1 do C.C.) Não basta que alguém tenha cometido um facto culposo causador de prejuízos a outrem para que se possa imediatamente reivindicar daquele o pagamento de uma indemnização. Para que proceda a imputação ao autor do facto de responsabilidade civil, de que beneficia o titular do interesse afectado, é mister que este esteja juridicamente protegido, ou por um direito absoluto, ou por uma norma que tenha como escopo justamente a protecção desse interesse. A responsabilidade civil traduz-se numa relação obrigacional entre duas esferas jurídicas, e só assim se identifica o sujeito credor da indemnização.
Por isso que o artigo 78º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais apenas responsabiliza os gerentes, administradores para com os credores da sociedade “pela inobservância culposa das disposições legais destinadas à protecção destes”.

Se não for o caso, os credores ficam sem a faculdade de accionar directamente aqueles sujeitos. Não pode haver responsabilidade civil se não estiverem verificados os seus pressupostos gerais. A qualificação, que consta da epígrafe do preceito, de “responsabilidade civil” é apenas, recorrendo ao nosso Eça o “manto diáfano” que mal esconde a “nudez forte” da responsabilidade contra-ordenacional, sujeita aos princípios que a regem, designadamente o da proporcionalidade”.
Entende-se assim, salvo sempre o devido respeito por entendimento contrário que o artigo 8º número 7 do RGIT, se refere à responsabilização civil de outros que não os arguidos já condenados em processo-crime, pela co-autoria do mesmo crime. Colaborar significa, cooperar, concorrer, contribuir, auxiliar, coadjuvar. Pelo que se o arguido pratica a mesma infracção, até pelo elemento literal se chega à conclusão expressa.
As objecções que se têm vindo a colocar à conformação constitucional do preceito saem reforçadas quando nos movemos no âmbito do processo criminal, pois, “as penas fiscais”, como penas que são, não têm por finalidade ressarcir prejuízos, reais ou presumidos, que a violação de um dever tributário tenha provocado, à entidade credora do imposto. O critério e os fins últimos das penas criminais aplicam-se também às penas fiscais.
A doutrina do Tribunal Constitucional relativamente ao nº 1 do artigo 8º do RGIT aplica-se ao número 7 do mesmo artigo, na interpretação em que repousa a decisão recorrida, quando entende que permite que se declare, por mero despacho, a responsabilidade civil solidária do arguido, pessoa singular, já condenado pela co-autoria do mesmo crime, ainda no pagamento da pena de multa aplicada à pessoa colectiva.
A responsabilidade criminal é própria e como se encontra constitucionalmente consagrado (cf. número 3 do artigo 30º do Constituição da República Portuguesa) é insusceptível de transmissão.
Por isso, pelo cumprimento da pena imposta à sociedade – multa penal – não pode ser responsabilizado outro que não o próprio condenado, doutro modo haverá violação daquele preceito constitucional.

Do mesmo modo que viola o princípio ne bis in idem, porquanto, no caso, os sócios/gerentes foram já condenados, autonomamente, em penas que lhes foram impostas pessoalmente, pela prática do mesmo crime. Não existindo, tal como se encontra conformado o instituto, responsabilidade civil, pelo cumprimento de uma pena de multa criminal.
O artigo 8º reporta-se a infracções fiscais em que o lesado seja a Administração Fiscal, aplicando-se quando, por virtude da actuação de um gerente, o Fisco deixou de receber uma quantia que lhe era devida e que teria sido paga, caso não tivesse ocorrido o esgotamento
culposo do património da sociedade.
A impossibilidade de cobrança coerciva de uma pena de multa criminal não implica para a administração fiscal qualquer dano pois o destino devido a esse título é nos termos do artigo 512º do Código de Processo Penal o que for fixado no CCJ (…) esses montantes são devidos a entidade diversa da Administração Fiscal.
Assim há que concluir que o artigo 8º do RGIT é inaplicável a acção em que a responsabilidade dos gerentes se funda numa condenação em pena de multa, proferida em processo-crime.
A responsabilidade civil emergente da prática de um crime de abuso de confiança fiscal é regulada pela lei civil, para a qual remete quer o artigo 129º do Código Penal quer o artigo 3º do RGIT.

Pretender que a norma se aplica aos arguidos (pessoas singulares) condenados em processo criminal, era fazer recair sobre outro, que não próprio condenado, a responsabilidade pelo cumprimento de uma pena que lhe fora aplicada em processo crime, em clara violação do princípio da intransmissibilidade das penas, consagrado no artigo 30º nº 3 da Constituição da República Portuguesa.
Acresce que as penas de multa aplicáveis em processo criminal às pessoas colectivas, previstas no RGIT podem ser concretizadas entre 20 e 1920 dias, à taxa diária que varia entre o mínimo de 500 a 5000 euros. Enquanto para as pessoas singulares, a multa poderá ser fixada entre o mínimo de 10 e o máximo de 600 dias, à taxa diária de 1 a 500 euros, (artigos 12º e 15º do Regime Geral das Infracções Tributárias). Determinando a lei que sejam fixadas em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos. Pelo que ficaria vazio de sentido este ordenamento legislativo se a lei permitisse ao credor obter do arguido, pessoa singular, o cumprimento da pena de multa aplicada ao arguido pessoa colectiva, como poderia, tratando-se responsabilidade solidária, não lhe sendo possível opor-se a tal pretensão alegando que a sociedade tinha meios para cumprir a pena que lhe havia sido aplicada.
Daí que, impor o cumprimento da pena de multa aplicada ao arguido ente colectivo, ao arguido, pessoa singular, viola os princípios da culpa (artigos 1º e 27º nº 1), da igualdade (artigo 13º) e da proporcionalidade (artigo 18º) todos da Constituição da República Portuguesa.
A imposição de uma responsabilidade solidária a terceiro para pagamento de penas de natureza criminal aplicadas à pessoa colectiva configuraria uma situação de transmissão da responsabilidade penal, na medida em que passa a responder pelo cumprimento integral da sanção que respeita a uma outra pessoa jurídica.
Desde que, porém — como é o caso dos autos —, a responsabilidade solidária do gerente acresce à responsabilidade própria decorrente da sua comparticipação na prática da infracção, o que aí está em causa é, não já transmissão de responsabilidade penal, mas a violação do princípio ne bis in idem. Dito de outro modo, a transferência da responsabilidade penal da pessoa colectiva, por via da imposição da obrigação solidária, quando o responsável solidário é também condenado, a título individual, pela prática da infracção, corresponde à atribuição de diferentes consequências sancionatórias relativamente ao mesmo facto ilícito. E caracterização jurídica adquire autonomia e prevalência sobre a possível violação do disposto no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição.
Carece de relevo entrar na análise da violação do princípio da culpa, da igualdade e da proporcionalidade como parâmetros de constitucionalidade da norma em causa. O que apenas se justificaria se houvesse que apurar se os limites e o tipo de sanção imposta por via da regra do artigo 8.º, n.º 7, do RGIT.
Concluindo-se que a responsabilidade sancionatória decorrente dessa disposição está interdita por implicar uma dupla valoração do mesmo facto para efeitos penais, fica naturalmente prejudicada a questão de saber se esta segunda sanção respeita o princípio da culpa ou se se adequa à natureza e gravidade da infracção quando praticada pelo agente a título individual.
Assim, em conclusão julga-se inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, a norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias quando aplicável o gerente de uma pessoa colectiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infracção tributária. O que, por violação do aludido juízo, impõe a revogação da decisão recorrida.

***

III. Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se conceder provimento aos dois recursos interpostos, revogando a decisão recorrida. ---
Sem tributação.

Belmiro Andrade ( Relator)
Abílio Ramalho