Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
202/16.8PBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 11/29/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JL CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 50.º DO CP
Sumário: I - Os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão vêm enunciados no art.50.º, n.º 1 do Código Penal.
- O pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão é apenas que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos.

- O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o Tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

II - No juízo de prognose deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida (inserção social, profissional e familiar, por exemplo), à sua conduta anterior e posterior ao crime (ausência ou não de antecedentes criminais e, no caso de os ter já, se são ou não da mesma natureza e tipo de penas aplicadas), bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como as motivações e fins que levam o arguido a agir).

III - No entendimento do Prof. Figueiredo Dias, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada, mesmo em caso de conclusão do tribunal por um prognóstico favorável (à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização), se a ela se opuserem as finalidades da punição (art.50, n.º 1 e 40, n.º1 do Código Penal), nomeadamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois que « só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto…».

Decisão Texto Integral:









Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

                          

     Relatório

Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, Juízo Local Criminal da Covilhã, Juiz 1, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido

A... , filho de (...) e de (...) , nascido a 29.10.1977, na freguesia de (...) , residente na Rua (...) , 

imputando-se-lhe a prática, em autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade previsto e punido pelos artigos 21.º e 25.º, alínea a), do DL 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-A.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 27-04-2017, decidiu julgar procedente a acusação do Ministério Público e, consequentemente:

- Condenar o arguido A... , como autor material de um crime de tráfico de menor gravidade previsto e punido pelos artigos 21.º e 25.º, alínea a), do DL 15/93, de 22 de janeiro com referência à tabela I-A, na pena de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada ao arguido se submeter ao tratamento de desabituação do consumo de estupefacientes, com internamento se necessário, a ser supervisionado pela DGRSP.



Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. O arguido A... foi condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelos artigos 21.º e 25.º, al. a) do DL 15/93 de 22.01 com referência à tabela I-A, na pena de 14 meses de prisão.

2. O Tribunal a quo determinou, nos termos do artigo 50.º, n.º 1 do CP, a suspensão desta pena na sua execução por igual período, condicionada ao arguido submeter-se ao tratamento de desabituação do consumo de estupefacientes, com internamento se necessário, a ser supervisionado pela DGRSP.

3. Para suspender a execução da pena de prisão considerou que o arguido não voltará a praticar novos crimes por se encontrar em tratamento de desabituação do consumo de estupefacientes, a trabalhar e tal pena de substituição se restabelece a paz jurídica comunitária abalada pelo crime.

4. Na formulação do juízo de prognose social favorável ao agente, que se encontra no âmago do instituto da suspensão da execução da pena, relevam a personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias deste.

5. Ora, o arguido beneficiou já anteriormente à presente condenação de duas prévias suspensões da execução da pena de prisão pelo mesmo crime com a mesma condição de suspensão: realizar tratamento de desintoxicação de consumo de produtos estupefacientes.

6. Além do mais, o arguido cometeu o crime em causa nos autos ainda no decurso do período da suspensão da execução da pena de prisão determinada na última suspensão.

7. Acresce que o facto de agora ser condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade comprova que ainda mantém ligação com o mundo das drogas, e que os programas de desintoxicação e tratamento anteriormente determinados no âmbito dos anteriores regimes de prova se mostram, também eles, frustrados.

8. O arguido tem revelado desprezo no que tange às anteriores condenações de que foi objecto, voltando sempre a delinquir, denotando uma total insensibilidade em relação às duas anteriores condenações em penas de prisão suspensas nas respectivas execuções, e respectivos regimes de prova.

9. Destarte, a única forma eficaz de o afastar da delinquência passa pela sujeição a pena privativa da liberdade e qualquer outra reacção formal que fique aquém da efectiva privação da liberdade revela-se ineficaz para o afastar na prática de novos crimes.

10. Não sendo possível formular, in casu, relativamente ao arguido, um juízo de prognose favorável, de reconhecer a capacidade do mesmo para não cometer novos crimes, não se encontra preenchido o requisito basilar que permite a suspensão da execução da pena de prisão.

11. Não é possível afirmar a capacidade do arguido sentir a ameaça a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação semelhante e a capacidade de vencer a vontade de delinquir.

12. Ignorou, também, o Tribunal a quo que nos crimes de tráfico de estupefacientes se acentuam as necessidade e de prevenção geral face ao flagelo associado a esta problemática e à necessidade de combate nacional a este tipo de crime que passa também pela reafirmação da norma jurídica violada.

13. Em consequência, o Tribunal a quo, ao optar pela suspensão da execução da pena de 14 meses de prisão em que condenou o arguido, violou o disposto no artigo 50.º n.º 1 do CP.

14. Termos em que, na procedência do recurso, deverá ser revogada a sentença recorrida, condenando o arguido A... pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelos artºs 21.º e 25.º, al. a) do DL 15/93 de 22.01 com referência à tabela I-A na pena de 14 meses de prisão efectiva.

O arguido não respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá proceder.

Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, o recorrente nada disse.

Dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., não tendo havido resposta ao parecer por parte do arguido.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes da sentença recorrida é a seguinte:

            Factos provados

1. O arguido A... dedica-se à actividade de tráfico de produtos estupefacientes desde 2009, vendendo e cedendo produto estupefaciente a terceiras pessoas, de forma mais ou menos regular.

2. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º 259/09.8PBCVL pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes praticado em 2009, tendo a respectiva sentença transitado em julgado em 14.03.2011.

3. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 13.05.2016, o arguido adquiriu a pessoa cuja identidade não se logrou apurar, heroína, destinando-se a mesma ao seu próprio consumo e à cedência a terceiras pessoas, mediante pagamento de quantias monetárias, em valor não concretamente apurado.

4. No dia 13.05.2016, cerca das 11:20 horas, o arguido saiu da sua residência, sita na Rua (...) , para se encontrar com B... , para lhe entregar heroína.

5. Nesse momento, o arguido foi interceptado e revistado pela Polícia de Segurança Pública, tendo na sua posse:

     - 8 embalagens de plástico, contendo no seu interior heroína;

     - 1 nota de € 50,00, 4 notas de € 10,00 e 3 de € 20,00;

6. Após a revista foi realizada uma busca ao domicílio do arguido, onde foi encontrado:

     - 2 telemóveis;

     - papel de alumínio, plásticos cortados em quadrados, tesoura de corte, canudos, e cartão SIM com vestígios de heroína.

7. O produto estupefaciente destinava-se a ser consumido pelo arguido e cedido a B... , mediante pagamento de determinada quantia monetária.

8. O produto estupefaciente detido pelo arguido era susceptível de ser individualizado em quatro doses, atendendo ao seu estado puro e sem aditamento de substâncias de corte.

9. Os objectos apreendidos na casa do arguido destinavam-se a individualizar as doses de heroína que previamente comprava e que seriam depois entregues a terceiras pessoas, mediante o pagamento de determinada quantia monetária.

10. Com a venda de heroína, o arguido obtinha proveitos económicos que lhe permitiam para continuar a adquirir produto estupefaciente para si e para continuar a sua actividade de tráfico.

11. O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo a natureza e características das substâncias que comprava, vendia, cedia, recebia e detinha na sua posse, sem qualquer autorização para o efeito.

12. O arguido agiu no âmbito de uma mesma resolução criminosa que tomou de comprar e vender a terceiros produtos estupefacientes, com vista à obtenção de lucros económicos, para se poder abastecer com produto estupefaciente, para consumir, comprar e vender, o que fez ao longo de vários meses.

13. Paga 120 euros de renda de casa;

14. Aufere o salário mínimo nacional;

15. É consumidor de estupefacientes;

16. Encontra-se em tratamento no programa de metadona.

17. Tem antecedentes criminais pela prática de crimes idênticos.

Motivação:

O arguido confessa os factos atinentes ao ilícito e depôs sobre a sua situação pessoal e económica, relatando [que] adquirir o produto estupefaciente quando se desloca a Lisboa; que a pedido do B... e uma outra pessoa, lhes cede a heroína; mais se valorou auto de notícia por detenção, fls. 6/7; auto de apreensão, fls. 8; auto de busca e consentimento, fls. 12/14; Reportagem fotográfica, fls. 15/20 e crc, fls. 96/98 bem, como relatório toxicológico, fls. 58 bem como os depoimentos dos agentes da PSP C... e D... que conhecem o arguido da sua actividade profissional e efectuaram a detenção e busca e apreensão.

                                                                           *

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

Como bem esclarecem os Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, « Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente A... a questão a decidir é a seguinte:

- se o Tribunal a quo violou o disposto no art.50.º, n.º 1 do Código Penal ao suspender ao arguido a execução da pena de 14 meses de prisão, por igual período, por se impor a condenar em pena de prisão efetiva.


-

            Passemos ao seu conhecimento

O Ministério Público defende que o Tribunal a quo, ao optar pela suspensão da execução da pena de 14 meses de prisão, por igual período de tempo, condicionada a submissão ao tratamento de desabituação do consumo de estupefacientes, com internamento se necessário, a ser supervisionado pela DGRSP, ao arguido A... , pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelos artºs 21.º e 25.º, al. a) do DL 15/93 de 22.01 com referência à tabela I-A na pena, violou o disposto no artigo 50.º n.º 1 do Código Penal, uma vez que, no seu entendimento, essa pena de prisão deveria ser efetiva.

Alega para o efeito, no essencial, o seguinte:

- Para suspender a execução da pena de prisão considerou que o arguido não voltará a praticar novos crimes por se encontrar em tratamento de desabituação do consumo de estupefacientes, a trabalhar e tal pena de substituição se restabelece a paz jurídica comunitária abalada pelo crime;

- Porém, o arguido beneficiou já anteriormente à presente condenação de duas prévias suspensões da execução da pena de prisão, pelo mesmo crime, com a mesma condição de suspensão: realizar tratamento de desintoxicação de consumo de produtos estupefacientes.

- Por outro lado, cometeu o crime em causa nos autos ainda no decurso do período da suspensão da execução da pena de prisão determinada na última suspensão;

- O arguido denota, assim, uma total insensibilidade às duas anteriores condenações em penas de prisão, suspensas nas respetivas execuções, demonstrando que se frustraram também os programas de desintoxicação e tratamento determinados no âmbito dos anteriores respetivos regimes de prova.

- Não sendo possível formular, in casu, um juízo de prognose favorável ao arguido e sendo acentuadas as necessidades de prevenção geral face ao flagelo associado a esta problemática, deverá ser revogada a sentença recorrida na parte respeitante à suspensão da execução da pena de prisão e aplicar-se ao arguido pena de 14 meses de prisão efetiva.

Vejamos.

Os pressupostos da suspensão da execução da pena vêm enunciados no art.50.º, n.º1 do Código Penal.

Nos termos deste preceito legal, na redação vigente à data dos factos, « O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida , à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição .».

O pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão é apenas que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos.

O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o Tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

No juízo de prognose deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida (inserção social, profissional e familiar, por exemplo), à sua conduta anterior e posterior ao crime (ausência ou não de antecedentes criminais e, no caso de os ter já, se são ou não da mesma natureza e tipo de penas aplicadas), bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como as motivações e fins que levam o arguido a agir).

A prognose exige a valoração conjunta de todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, pois a finalidade político-criminal visada com o instituto da suspensão da pena é o afastamento da prática pelo arguido, no futuro, de novos crimes.[4]

As finalidades das penas, designadamente das penas de substituição, é « a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.» (art.40.º, n.º1 do Código Penal). 

A proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais, implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, positiva ou de integração, servindo para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na  tutela de bens jurídicos e , assim , no ordenamento jurídico-penal.

A reintegração do agente na sociedade, outra das finalidades da punição, está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes , que reincida.

Todavia, no entendimento do Prof. Figueiredo Dias, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada, mesmo em caso de conclusão do tribunal por um prognóstico favorável ( à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização), se a ela se opuserem as finalidades da punição (art.50.º, n.º 1 e 40.º , n.º1 do Código Penal), nomeadamente  considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois que « só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto…».[5]

A suspensão da execução da pena é, sem dúvidas um poder vinculado do julgador, que terá de a decretar sempre que se verifiquem os respetivos pressupostos. Deste modo, o tribunal, quando aplicar pena de prisão não superior a 5 anos deve suspender a sua execução sempre que, reportando-se ao momento da decisão, possa fazer um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido.

No presente caso, tendo em conta que o arguido A... foi condenado neste processo numa pena de 14 meses de prisão, portanto não superior a 5 anos de prisão, o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão encontra-se verificado.

Vejamos se também o pressuposto material de aplicação da mesma pena de substituição se verifica, tendo em conta a factualidade dada como provada na sentença.

Da factualidade dada como provada na sentença, particularmente do CRC para que se remete no ponto n.º 17 – que deveria ali ter-se reproduzido –, resulta que o arguido A... apresenta os seguintes antecedentes criminais:

- por acórdão proferido em 06-10-2010, no Processo Comum Coletivo n.º 259/09.8PBCVL do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, foi condenado na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na execução, por igual período, sob condição de frequentar o programa de tratamento de toxicodependência iniciado, inscrever-se no centro de emprego a fim de iniciar o exercício de atividade profissional remunerada, pela prática, em 03.09.2009, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no art.21.º do DL 15/93 de 22.01. A pena foi extinta em 14.05.2015;

- por sentença proferida em 19-11-2010, no Processo Comum Singular n.º 47/09.1PBCVL do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, foi condenado na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00, pela prática, em 13.02.2009, de um crime de furto, p. e p. no art.203.º, n.º 1 do Código Penal. A pena foi extinta, pelo pagamento, em 7-9-2012; e

- por acórdão proferido em 17-12-2014, no Processo Comum Coletivo n.º 252/08.8PBCVL do Juízo Central Criminal de Castelo Branco, foi condenado na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, sob condição de efetuar novo tratamento de desintoxicação caso se demonstre ser toxicodependente, pela prática em 03.08.2008, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado e tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade p. e p. nos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, al. b) e 25.º todos do DL 15/93 de 22.01 o qual transitou em julgado em 02.02.2015.

Do exposto, resulta que anteriormente à presente condenação, para além da condenação numa pena de multa pela prática de um crime de furto, o arguido A... fora já condenado, por duas vezes, pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes: uma por acórdão de 06-10-2010 e outra por acórdão de 17-12-2014.

Em ambas as condenações as penas de prisão foram-lhe substituídas, por suspensão na execução, e sempre com a condição de efetuar tratamento à toxicodependência.

Dos factos dados como provados extraia-se que desde 2009 e até ser detido em 13-05-2016, vem o arguido A... vendendo e cedendo produto estupefaciente a terceiras pessoas, de forma mais ou menos regular, pelo que dúvidas não há de que foi insensível não só às anteriores condenações em penas de prisão suspensas na execução, pela prática de crimes da mesma natureza do que está agora em causa, como ainda praticou os factos dados como provados durante o período de suspensão de execução da pena aplicada no Processo Comum Coletivo n.º 252/08.8PBCVL, que ainda se encontrava a decorrer, uma vez que o acórdão condenatório transitou em 02.02.2015.

Como bem anota o recorrente, face á descrita conduta do arguido, frustraram-se também os programas de desintoxicação e tratamento determinados naqueles acórdãos condenatórios.

Se é verdade que está dado como provado que o arguido se encontra em tratamento no programa de metadona (ponto n.º 16), também se dá como provado que o mesmo é consumidor de estupefacientes (ponto n.º 15).

É medianamente claro, da factualidade dada como provada, designadamente dos pontos n.ºs 3, 7, 10, 11 e 12 da sentença, que a obtenção de lucros económicos, pelo menos para satisfação do seu consumo de estupefacientes, é a motivação para a prática do crime em causa.

Como conduta posterior aos factos, relevando também para o conhecimento da personalidade do arguido, realçamos a confissão dos factos, com alguma relevância – o que se retira da fundamentação da matéria de facto da sentença –, pese mesmo tenha sido detido em flagrante delito no dia 13-5-2016, e a sua inserção no mundo do trabalho, uma vez que foi dado como provado que aufere o salário mínimo nacional. Vive em casa arrendada.  

Considerando todo o exposto, o Tribunal da Relação considera que a personalidade do arguido A... vem-se revelando refratária, desde há alguns anos atrás, a uma normal convivência social, ao respeito das regras do direito, pelo que a prognose sobre o seu comportamento à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização é claramente negativa.

As exigências de prevenção geral nos crimes de tráfico de estupefacientes são muito elevadas, pois, por um lado, o tráfico de estupefacientes é das atividades que mais preocupa e alarma a nossa sociedade pelos seus múltiplos e nefastos efeitos e, por outro lado, é praticado com muita frequência no País.

Numa situação como esta, de várias condenações penais, designadamente por tráfico de estupefacientes, em que já beneficiou anteriormente da suspensão de execução da pena de prisão por duas vezes, em que o crime neste processo é cometido durante o período da suspensão da execução de pena de prisão, e em que, apesar de se encontrar inserido em programa de tratamento à toxicodependência por metadona mantém o consumo de produtos estupefacientes, o sentimento jurídico da comunidade na validade e na força de vigência da norma jurídico-penal violada pelo arguido ficaria afetado pela substituição, novamente, da pena de 14 meses de prisão por suspensão de execução da pena de prisão, mesmo que sujeita a condições.[6]

Não existindo um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, violou o Tribunal a quo o disposto no art.50.º, n.º1 do Código Penal ao decretar, mais uma vez, a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido, mesmo que sujeita a condições

Não podendo subsistir a suspensão de execução da prisão , impõe-se averiguar se a pena de 14 meses de prisão fixada na sentença recorrida , pode ser substituída por outra pena.

Dentro das penas de substituição da prisão, em sentido próprio, para além da suspensão de execução da prisão ( art.50.º do C.P.), encontram-se a pena de multa, a que alude o art.43.º do Código Penal e a de prestação de trabalho a favor da comunidade ( art.58.º do C.P.).

Há ainda que contar, à data dos factos, com as penas de substituição detentivas como o regime de permanência na habitação (art.44.º do C.P.), a prisão por dias livres (art.45.º do C.P.) e a prisão em regime de semidetenção ( art.46.º do C.P.).

Por baixo de uma aparente multiplicidade e diversidade de critérios legais na escolha da substituição da pena de prisão, é mais ou menos pacifico que consegue divisar-se um critério ou cláusula geral de substituição da pena de prisão: são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e especial, não de compensação da culpa, que justificam e impõem a preferência por uma pena de substituição e sua efetiva aplicação.

Considerando os pressupostos formais da pena de multa de substituição a que alude o art.43.º do Código Penal, do regime de permanência na habitação a que alude o art.44.º, n.º 1 do mesmo Código (não se verificam no caso os pressupostos do n.º 2 do art.44.º), da pena de prisão por dias livres enunciada no art.45.º do C.P., e da prisão em regime de semidetenção a que alude o art.46.º do mesmo Código, estava afastada a aplicação ao arguido A... destas penas de substituição, à data da elaboração da sentença recorrida, porquanto a pena a substituir é superior a 1 ano de prisão.  

Restava, assim, à data da elaboração da sentença, decidir se a pena de 14 meses de prisão poderia ser substituída pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, pois o pressuposto formal desta pena é a aplicação de uma pena de prisão em medida não superior a dois anos  - além da aceitação pelo condenado da sua substituição pelo trabalho a favor da comunidade.

O Tribunal a quo decidiu na sentença recorrida afastar a aplicação ao arguido A... da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, a que alude o art.58.º do Código Penal,  porquanto “no caso as exigências de prevenção especial são muito elevadas , pelo que se mostra necessária a aplicação de pena de prisão.”

Estamos de acordo com a decisão sobre a não substituição da pena de aplicação da prestação de trabalho a favor da comunidade.

A pena de trabalho a favor da comunidade tem na base a ideia de centrar o conteúdo punitivo na perda, para o condenado, de uma parte substancial dos seus tempos livres, sem por isso o privar de liberdade e permitindo-lhe consequentemente a manutenção íntegra das suas ligações familiares, profissionais e económicas, numa palavra a manutenção com o seu ambiente e a integração social; por outro lado, com não menor importância, o conteúdo socialmente positivo que a esta pena assiste, enquanto se traduz numa prestação ativa, com o seu consentimento, a favor da comunidade.      

Sendo o trabalho a favor da comunidade uma pena de substituição em sentido próprio, em princípio, não será de aplicar a mesma a quem vem reiteradamente praticando crimes e a prognose sobre o comportamento à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização é claramente negativa.

Ora, no caso, para além do arguido vir praticando desde há vários anos crimes de tráfico de estupefaciente, sem respeito pelas penas de suspensão da execução da prisão, a prognose sobre o seu comportamento à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização é claramente negativa, pois o arguido continua a ser consumidor de produtos estupefacientes e este é o motor que o leva a manter a atividade de tráfico em simultâneo com a sua inserção no trabalho.  

Posteriormente à prolação da sentença recorrida, a Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, que entrou em vigor a 21 de novembro, aditou ao art.58.º, n.º 1 do Código Penal, como causa expressa, que pode determinar a substituição da pena de prisão pela de trabalho a favor da comunidade, a «… idade do condenado,..».

No caso, o arguido A... está longe de ser um jovem ou uma pessoa idosa, pelo que não se vislumbram razões para, em face da nova lei, se alterar o já decidido sobre a não aplicação ao mesmo desta pena de substituição, em razão da sua idade.  

A Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, entre outras alterações introduzidas no Código Penal, passou a regular no art.43.º do Código Penal, o «regime de permanência na habitação», dispondo, designadamente, o seguinte:

« 1- Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:

     a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;».

Com a alteração do Código Penal, que entretanto entrou em vigor, o pressuposto formal do regime de permanência na habitação passa pela aplicação de uma pena de prisão em medida não superior a dois anos – para além de continuar a ser exigível o consentimento do arguido.

Tendo sido aplicada ao arguido A... uma pena de 14 meses de prisão, passou a verificar-se, relativamente a este, o pressuposto formal do regime de permanência na habitação.

Importa, assim, decidir se, no caso, se deve ter como verificado o pressuposto material desta pena de substituição, que é poder concluir-se que pela sua se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Avançamos desde já que a resposta é claramente negativa.

Como resulta medianamente claro dos pontos n.ºs 4 e 5 dos factos provados, o arguido exerce o tráfico de estupefacientes a partir da sua habitação.

Neste tipo de crimes e com a personalidade que o arguido A... vem demonstrando ao não se deixar intimidar com os contactos com a justiça e respetivas condenações, a substituição da pena de 14 meses de prisão pelo regime de permanência na habitação, mesmo que com fiscalização eletrónica, não realizaria de forma adequada e suficiente, nem as prementes finalidades de prevenção especial ou de ressocialização, nem as de prevenção geral, que devem presidir à execução da pena de prisão.

Assim, mais não resta que julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, revogando a suspensão da execução da pena de prisão, determinar que a pena de 14 meses seja efetiva.

       

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, revogando a douta sentença na parte em que suspendeu a execução da pena de 14 meses de prisão, condena-se o arguido A... na pena de 14 meses de prisão efetiva.

Sem custas.


*

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                           *

Coimbra,  29 de novembro de 2017

(Orlando Gonçalves – relator)

 (Inácio Monteiro – adjunto)

 

 


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[4] Cf. na doutrina, Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, as Consequências do Crime”, pág. 337 e ss, e Prof. Jescheck, “Tratado de Derecho Penal”, vol. I, Bosch, 1981, págs. 1154 e 1155. 

[5] Obra citada, pág. 344.
[6] Não podemos deixar de referir que, nos termos do art.52.º, n.º 3 do Código Penal, o Tribunal só pode determinar a sujeição do arguido a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, após ter obtido deste consentimento  prévio . No caso, não se vislumbra, nem dos factos provados na sentença, nem das atas das audiências de julgamento que o arguido A... tenha dado esse consentimento para lhe poder ter sido aplicada a condição de tratamento e mesmo de internamento.