Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1229/14.0T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: COMPROPRIEDADE
PRESUNÇÃO DE IGUALDADE DE QUOTAS
PRESUNÇÃO
Data do Acordão: 09/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – ALCOBAÇA – JL CÍVEL – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1403º, Nº 2 DO C. CIVIL.
Sumário: I – O art.1403º, nº 2 do C.Civ. não consagra uma genuína presunção legal relativa (presunção juris tantum), mas antes de uma técnica legislativa de instituição de uma norma supletiva, sendo requisito de aplicabilidade a mera omissão de referência em contrário no título de constituição da compropriedade.

II - A parte beneficiada com a presunção não tem o ónus de provar o facto-base, pois a lei considera verificado o facto presumido, cabendo à contraparte a prova do contrário, sendo denominadas como “verdades interinas”.

III - A presunção de igualdade das quotas só pode ser afastada com recurso a elementos do próprio título de constituição, e não por elementos exteriores, sendo inadmissível a prova testemunhal para o efeito.

Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1.1.A Autora – R... - instaurou (7/1/2015) na Comarca de Leiria a presente acção de divisão de coisa comum, com forma de processo especial, contra contra o Réu – N...

Alegou, em resumo:

Autora e Réu, que viveram maritalmente entre Setembro de 1996 e Maio de 2009, são comproprietários de um prédio urbano (moradia individual) composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, um anexo destinado a garagem e logradouro, correspondente ao lote ..., e que foi adquirido por ambos na proporção e metade para cada um.

O bem imóvel não é divisível em substância, requerendo-se a fixação do valor da quota de cada um.

Contestou o Réu defendendo-se, em síntese, ao admitir que o imóvel não é divisível em substância, mas que as quotas não são iguais, pois tendo sido adquirido pelo preço de € 130.000,00 (e não apenas pelo preço de € 62.350,00 que consta da escritura de compra e venda), o Réu contribuiu com uma percentagem superior, ilidindo, assim, a presunção legal do art.1403 nº2 CC de acordo com a contribuição de cada um deles para o pagamento do respectivo preço.

1.2.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção procedente e a fixar na proporção de metade a quota-parte de cada um dos proprietários, Autora e Réu, sobre a coisa em comum em apreço nos autos.

1.3.- Inconformado, o Réu recorreu de apelação com as seguintes conclusões:

...

A Autora não contra-alegou.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.- O objecto do recurso

            A questão submetida a recurso, delimitado pelas conclusões, consiste em apurar a quantificação das quotas de cada uma das partes na compropriedade do prédio urbano, adquirido por ambos por escritura pública de 28 de Outubro de 2002.

            2.2.- Os factos provados

...

2.3.- A compropriedade e a fixação das quotas

Estando assente que Autora e Réu são comproprietários do prédio urbano, problematiza-se, contudo, a quantificação das quotas.

A sentença fixou as quotas na proporção de metade, com base nos seguintes tópicos de argumentação:

i)Não consta do título constitutivo, na escritura pública de compra e venda correspondente, outorgada em 28/10/2002, qualquer indicação, seja de forma expressa, seja de forma implícita, de que as quotas da Autora e do Réu na coisa comum fossem quantitativamente diferentes. Nomeadamente não resulta daquela escritura que foi desigual o montante desembolsado pela Autora e pelo Réu para a aquisição do prédio urbano em questão, pelo que tem aplicação a norma do art.1403 nº2 do CC, estabelecendo “presunção” de que as quotas dos comproprietários são quantitativamente iguais;

ii)O afastamento da “presunção” de igualdade das quotas, que decorre da previsão do nº2 do art. 1403 CC só poderá resultar dos elementos constantes do próprio título de aquisição e já não por elementos exteriores ao mesmo, sendo por isso inadmissível a produção de prova testemunhal para prova de que a comparticipação de um dos comproprietários na aquisição do imóvel foi superior à dos demais, porque, por ex. suportou uma parte superior do preço do mesmo;

iii)Muito embora se comprove que o Réu contribuiu efectivamente para o pagamento do preço numa proporção bastante superior à da Autora, a verdade é que a atribuição da percentagem da quota que cada um dos comproprietários na coisa comum fixa-se no momento da sua aquisição, independentemente das (eventuais) diferentes contribuições dos comproprietários para o pagamento do preço respectivo

iv) Mas mesmo que assim não se entendesse, haveria abuso de direito ( art.334 CC), pois “a pretensão do R. excede claramente os referidos limites na medida em que a aquisição em causa ocorreu durante a vida em comum que A. e R. partilharam, como se fossem marido e mulher; não foi feita qualquer menção na escritura de que os compradores adquiriram em proporções diferentes ou contribuíram de modo diverso para a liquidação do preço atinente (como podia ter sido feito, v.g., para acautelar o interesse ora defendido pelo R.); e só agora, após A. e R. terem terminado a relação pessoal que os unia, e no âmbito da presente acção, é que o R. vem propugnar a fixação de diferentes quotas-parte na compropriedade em apreço, frustrando a legítima percepção da A. de que comungam, em partes iguais, em tal compropriedade.”.

Concorda-se com a argumentação exposta na sentença.

O art.1403 nº2 do CC estatui que “ Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título executivo”.

Afora a referência a presunção ( “presumem-se, todavia, quantitativamente iguais”) não se trata, em bom rigor, de uma genuína presunção legal relativa, mas antes de uma técnica legislativa de instituição de uma norma supletiva.

Sendo assim, a parte que é beneficiada com a presunção não tem o ónus de provar o facto-base, visto que a lei considera verificado o facto presumido, cabendo à contraparte a prova do contrário, sendo denominadas como “verdades interinas”.

Enquanto que na presunção legal relativa (art.350 CC) ocorrendo o facto-base presume-se (presunção juris tantum) o facto presumido, nas presunções aparentes a lei dita a presunção do facto presumido.

Por conseguinte, o nº2 do art.1403 do CC não consagra uma verdadeira presunção legal relativa (presunção juris tantum), contrariamente ao alegado pelo Apelante, não tendo aplicação o art.350 nº2 CC, e nem sequer há lugar à produção da prova em contrário para além da decorrente do próprio título, estabelecendo uma norma supletiva, dependente da falta de estipulação em contrário no título constitutivo, sendo, por isso, requisito de aplicabilidade da norma supletiva a mera omissão de referência em contrário no título de constituição da compropriedade.

Em anotação, escreve Jacinto Rodrigues Bastos que “a 2ª parte do nº2 não representa um favor da lei para a igualização das quotas mas um critério usado para suprir a lacuna nos casos em que a fonte da comunhão não indique a medida da quota; mais do que uma presunção, trata-se de um preceito supletivo” ( Direito das Coisas, II, pág.141). No mesmo sentido, Luís Filipe Pires de Sousa ( Prova por Presunção no Direito Civil, pág.99 ).

A nível jurisprudencial, por ex. Ac RP de 26/9/2013 (proc. nº 848/11), disponível em www dgsi.pt.

Porém, a norma supletiva do art.1403 nº2 CC já não opera quando o título constitutivo fixe directa ou indirectamente a extensão da quota, e se a indicação em contrário não tem de ser expressa, ela haverá que reconduzir-se aos elementos constantes do título constitutivo.

Neste contexto, e como se justificou na sentença, a presunção de igualdade das quotas só pode ser afastada com recurso a elementos do próprio título de constituição, e não por elementos exteriores, logo é inadmissível a prova testemunhal para o efeito.

É também por isso que noutro entendimento se sustenta que o art.1403 nº2 do CC estabelece uma presunção inilidível (juris et jure)de que as quotas são iguais, interpretação resultante quer do elemento literal (ao fazer depender a aplicação da presunção de igualdade da inexistência de indicação em contrário no título constitutivo), quer do argumento histórico, pois a redacção lata do projecto  (BMJ 102, pág.182) não passou para a versão final (cf., neste sentido, José Alberto Vieira, Direitos Reais, pág.367; Ac RL de 8/5/2012 (proc. nº 2800/09), em www dgsi.pt ).

Na situação dos autos é inquestionável que o título de constituição da compropriedade, a escritura de 28/10/2002, não contém qualquer referência às quotas, logo por força do art.1403 nº2 CC a lei estabelece que as quotas são iguais.

Considera, no entanto, o Apelante que tendo pago um valor superior ao da Autora na aquisição do prédio, isso serve para provar a diferença das quotas e afastar a regra supletiva. Mas, com o devido respeito, não é assim, pois da escritura apenas resulta que Autora e Réu, ambos compradores, celebraram mútuo com hipoteca no valor de €30.000,00, na qual como mutuários se confessam solidariamente devedores, e como já se justificou, não pode socorrer-se de elementos externos ao título.

E não releva aqui a doutrina do Ac STJ de 2/7/2015 (proc. nº 899/10), em www dgsi.pt ,- ao uniformizar jurisprudência no sentido de que  “Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal”.

Não tem aplicação, desde logo porque uma coisa é a comunhão (enquanto património de afectação especial) outra a compropriedade, sendo até que a lei (art.1404 CC) estabelece o regime da compropriedade como subsidiário do da comunhão e não o contrário. Muito embora tenham vivido maritalmente, a união de facto não desencadeia direitos patrimoniais em relação a bens adquiridos na sua vigência, não se reconduzindo a património comum. Por outro lado, não está em causa apenas os interesses de ambos os comproprietários, mas também os de terceiros, visto tratar-se de um direito real de gozo, e a atribuição da quota tem de se fixar no momento da aquisição.

Dito isto, tal não significa que o Réu não tenha direito a ressarcir-se através do instituto do enriquecimento sem causa, mas em sede própria.

2.4.- Síntese conclusiva

a)O art.1403 nº2  do CC não consagra uma genuína presunção legal relativa (presunção juris tantum), mas antes de uma técnica legislativa de instituição de uma norma supletiva, sendo requisito de aplicabilidade a mera omissão de referência em contrário no título de constituição da compropriedade.

b)A parte beneficiada com a presunção não tem o ónus de provar o facto-base, pois a lei considera verificado o facto presumido, cabendo à contraparte a prova do contrário, sendo denominadas como “verdades interinas”.

c)A presunção de igualdade das quotas só pode ser afastada com recurso a elementos do próprio título de constituição, e não por elementos exteriores, sendo inadmissível a prova testemunhal para o efeito.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

2)

Condenar o Apelante nas custas.

            Coimbra, 12 de Setembro de 2017.


( Jorge Arcanjo )

( Isaías Pádua )

( Manuel Capelo )