Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2302/23.9T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
NULIDADES PROCESSUAIS
DECISÕES NOTARIAIS
CASO ESTABILIZADO
OBJETO DO RECURSO
IMPUGNAÇÃO DO EXCESSO DE LICITAÇÃO
CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2.º, N.º 4, 195.º, N.ºS 1 E 2, 644.º, N.º 3, E 1123.º, N.ºS 4 E 5, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 10.º E 12.º DO ESTATUTO DO NOTARIADO, APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 36/2004, DE 04-02
Sumário:
I – De harmonia com modelo de reponderação pelo qual se orienta o nosso sistema de recursos, o objecto do recurso é uma decisão – e não a questão sobre que incidiu essa decisão, e o recurso visa apreciar se a decisão recorrida é aquela que ex-lege devia ter sido proferida, i.e., destina-se a controlar e corrigir os erros da decisão recorrida.

II – Como o objecto do recurso é, sempre, uma decisão impugnada, o tribunal de recurso não conhece isoladamente de nulidades processuais – com excepção daquelas cujo prazo de arguição esteja em curso no momento da expedição do processo em recurso, caso em que a arguição pode ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição – mas apenas de decisões que dispensem actos obrigatórios ou que imponham a realização de actos proibidos e das consequências noutras decisões ou noutros actos da eventual ilegalidade de dispensa ou da realização do acto – ou, evidentemente, da decisão do notário ou do juiz a quo que tiver julgado improcedente a reclamação através da qual se tenha impugnado uma nulidade processual.

III – As decisões do notário que, seja qual for o motivo, sejam insusceptíveis de impugnação adquirem o valor de caso decidido ou de caso estabilizado, material ou meramente formal, que se traduz na inadmissibilidade da substituição ou modificação dessas decisões, quer pelo notário, quer pelo juiz, em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por via do recurso, tornando, assim, indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo notário, ou seja, o conteúdo da decisão desse órgão decisório do inventário notarial.

IV – Se na notificação convocatória do interessado para a conferência de interessados tiverem sido observadas as formalidades dispostas na lei – designadamente as cominações aplicáveis para a falta de comparecimento presencial ou de representação por mandatário com poderes especiais – não é exigível, na notificação para a continuação dessa conferência, a repetição daquelas formalidades.

V – A impugnação do excesso de licitação deve, sob pena de preclusão, ser deduzida na conferência de interessados.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Relator: Henrique Antunes
1.º Adjunto: António Marques da Silva
2.ª Adjunta: Cristina Neves

Proc. n.º 2302/23.9T8ACB.C1

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 

1. Relatório.

AA instaurou, no dia 8 de Fevereiro de 2021, no cartório notarial ..., a cargo do Sr. Notário Dr. BB, contra o ex-cônjuge, CC, inventário para partilha do patrimonial conjugal comum, consequente à cessação, por divórcio, das relações patrimoniais entre ambos, no qual a primeira exerce as funções de cabeça-de-casal.

Decidida a reclamação contra a relação de bens, o Sr. Notário, por despacho de 8 de Fevereiro de 2022, determinou a forma da partilha e designou o dia 30 de Março de 2022, para a realização da conferência de interessados, designação que foi transmitida aos Srs. Mandatários das partes e a estas através da notificação com o conteúdo seguinte:


Nesta conferência, por os interessados não terem chegado a acordo e pretenderem a avaliação, por único perito, dos bens imóveis relacionados, o Sr. Notário ordenou essa avaliação e declarou a suspensão do processo, para prosseguir com a continuação da conferência de interessados, assim que estivesse concluída a diligência de avaliação.

O interessado CC requereu a junção de um atestado médico – datado de 22 de Novembro de 2022 - no qual o facultativo subscritor atesta que aquele se encontra doente e impossibilitado de comparecer no dia 22 de Novembro de 2022 no Ministério Público – e requereu prazo de suspensão e adiamento de diligência no inventário, que conforme atestado em anexo o interessado por motivos de saúde terá que se ausentar do país para tratamentos médicos, por tempo ainda não determinado, mais informando que o processo que logo que se encontre com a sua saúde restaurada e após tratamentos, informará os autos de inventário, de disponibilidade de data, para a próxima diligência, em virtude de não prescindir da sua presença na mesma.

Sobre este requerimento recaiu, no dia 18 de Novembro de 2022, este despacho do Sr. Notário, notificado aos Exmos. Mandatário das partes:

O requerido CC veio requerer a suspensão e adiamento de diligência no Inventário por não poder estar presente, tendo junto um atestado médico que o impossibilita de estar presente no dia 22/11/2022. Foi realizada a Conferencia de Interessados no dia 30/03/2022, a qual foi suspensa por ter sido requerida a avaliação das verbas 4 e 5. Feita a avaliação, foi enviado pelo Cartório para os mandatários, como costuma ser hábito para conciliar agendas, um email a sugerir datas para a continuação da Conferência, não estando ainda agendada qualquer data em concreto.

Releva-se o facto do requerido, por motivos de saúde, não poder comparecer no dia 22/11 no Cartório. Mas o processo não pode ficar suspenso por período indeterminado. Na impossibilidade de estar presente da próxima diligência, o requerido pode, tal como previsto na lei, fazer-se representar por mandatário com poderes especiais para esse ato.

Assim, realizada a avaliação, deverá ser agendada data para a Continuação da Conferência de Interessados.

O Sr. Notário, por despacho de 22 de Dezembro de 2022, designou para a conferência de interessados o dia 1 de Março de 2023, pelas 14.30 horas, despacho que foi comunicado aos Srs. Mandatários das partes e a estas por notificação elaborada nessa mesma data.

Entretanto, o Exmo. Advogado do interessado CC atravessou um requerimento no qual declara renunciar ao mandato que lhe foi conferido por aquele e que lhe remeteu carta registada com aviso de recepção dando-lhe conhecimento da renúncia.

O Sr. Notário proferiu, no dia 23 de Fevereiro de 2023, o despacho seguinte, cuja notificação às partes foi elaborada na mesma data:

O mandatário do requerido CC renunciou ao mandato que lhe foi confiado.

Nos termos do artigo 1090.º do CPC, a constituição de mandatário no processo de inventário apenas é obrigatória para suscitar ou discutir questões de direito ou para interpor recurso.

O requerido CC foi notificado, através de carta enviada para a morada para a qual foi inicialmente citado, da data da conferência. A procuração que tinha sido conferida ao mandatário que agora renunciou não incluía poderes especiais para a Conferência de Interessados pelo que o requerido teria a obrigação de, querendo, estar presente ou fazer-se representar com poderes para o ato.

Não é assim impeditivo a realização da conferência de interessados já agendada, mantendo-se o dia 01/03/2023 às 14:30 horas para a sua realização.

No dia 1 de Março de 2023, o interessado CC atravessou um requerimento, subscrito pelo ele mesmo, apresentando justo impedimento de comparência.

Naquele mesmo dia, teve lugar a continuação e conclusão da conferência de interessados, sem a presença do interessado CC, para a acta da qual o Sr. Notário proferiu este despacho:

Prevê o artigo 1110.º n.º 7 do CPC que se faltar algum dos convocados, a conferência pode ser adiada, por determinação do “notário”, uma só vez e desde que haja razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões com a presença de todos os interessados.

Em novembro de 2022, aquando da marcação da presente Conferência, o interessado CC já havia informado que por motivos de saúde se iria ausentar para tratamentos médicos por tempo indeterminado. Conforme se referiu no despacho de 18/11/2022, o processo não poderia estar suspenso por período indeterminado, podendo o interessado fazer-se representar por mandatário com poderes especiais para o ato.

Iniciados os trabalhos da conferência, e tendo a co-interessada, interpelada para o efeito, declarado que houve já tentativas de acordo, tendo inclusive havido propostas em cima da mesa que nunca foram aceites por parte do interessado CC pelo que não existe possibilidade de acordo e pretende que o processo prossiga, procedeu-se, designadamente, ao acto de licitação, tendo aquela interessada licitado as verbas n.ºs 3, 4 e 5, por € 4 000,00, € 174 600,00 e € 56 000,00, respectivamente. O Sr. Notário, acto contínuo, proferido este outro despacho:

Ficou apenas por licitar e, por conseguinte, adjudicar o bem da verba dois. Nos termos do artigo 1117.º, e tratando-se de um bem da mesma espécie e natureza do bem identificado na verba três, que foi objeto de licitação, o mesmo poderá ser adjudicado ao interessado CC para compor o seu quinhão.

Por requerimento apresentado por carta registada no correio no dia 17 de Abril de 2023, o interessado CC invocou a nulidade da continuação da conferência de interessados e pediu que a continuação da conferência fosse considerada nula e todos os actos subsequentes anulados.

Fundamentou a arguição no facto de com a notificação da apresentação de proposta do mapa de partilha ter tomado conhecimento de que a continuação da conferência de interessados tinha efectivamente ocorrido e que tinham ocorrido licitações dos bens, de em momento algum ter sido notificado para que, na sua ausência, a continuação da conferência iria decorrer e que os seus efeitos o vinculariam, inexistindo cominação expressa de que a sua ausência não obstaria à realização da mesma e designadamente quanto à realização de licitações em caso de falta de acordo na composição dos quinhões e que as decisões aí tomadas se aplicariam a este, e de todo o processo ter sido decidido sem o exercício do contraditório, interferindo directamente na decisão da causa, preterição de tal formalidade que implica a nulidade da conferência de interessados e todo o aí processado.

Sobre este requerimento recaiu, no dia 5 de Maio de 2023, este despacho do Sr. Notário:

O requerido CC veio requerer a nulidade da continuação da Conferência de interessados por entender que não foi notificado que na sua ausência os efeitos da Conferência de Interessados o vinculariam.

A Conferência de Interessados foi agendada, numa primeira data, para o dia 30/03/2022. As notificações para a conferência foram feitas no dia 08/02/2022.

Consta dessas notificações, para além de outra informação obrigatória, que as “deliberações realizadas pelos interessados presentes vinculam os interessados que não compareceram” e que na “falta de acordo procede-se na própria conferência à abertura de licitações dos bens a partilhar entre os interessados.

O requerido teve conhecimento de tal notificação e esteve presente nessa sessão da Conferência de Interessados. E teve também conhecimento da data designada para a sua continuação.

Assim, não é verdade que o requerido não tinha conhecimento do que alega no seu requerimento e por conseguinte não deverão os atos ocorridos na Conferência ser considerados nulos com esse fundamento.

O interessado CC notificado deste despacho, invocando ter sido notificado da não nulidade da continuação da conferência por se entender ter sido notificado, logo atravessou outro requerimento, que denominou de resposta, insistindo que a conferência de interessados deve ser considerada nula e todos os actos subsequentes anulados, requerimento sobre o qual o Sr. Notário proferiu este despacho:

O requerido CC veio juntar ao processo resposta ao despacho de 05/05/2023 que não considerou nulos os atos da Conferência de Interessados de 01/03/2023.

Salvo melhor entendimento, tal despacho não admite resposta.

Nos termos do artigo 1123.º do Código do Processo Civil prevê o regime de recursos aplicável ao processo de inventário, remetendo para as disposições gerais do processo de declaração, nomeadamente no que respeita à sua admissibilidade (quer em termos de matéria quer em termos de prazos), efeitos, tramitação, julgamento dos recursos.

Era esse o meio adequado que o requerido poderia, ou poderá se ainda estiver em tempo, socorrer-se. Tal como consta do despacho de 23/02/2023, notificado ao requerido, a constituição de mandatário no processo de inventário é obrigatória para interpor recurso.

Não tendo sido apresentada qualquer reclamação quanto ao mapa da partilha, notifique-se o interessado CC, para nos termos do artigo 1121.º n.º 1 do CPC reclamar o pagamento das tornas.

Remetido, enfim, o processo para o Juízo de Família e Menores ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, para se submeter ao Sr. Juiz de Direito, para homologação, a partilha constante do mapa, aquele Magistrado homologou-a, adjudicando as verbas 3, 4 e 5 à interessada AA e a verba 2 ao interessado CC, com tornas a prestar ao interessado CC no valor de 116.800,00€, e nos termos definidos e consignados no mapa da partilha.

E esta sentença homologatória que o interessado CC impugna no recurso – no qual pede se declare a nulidade da continuação da Conferência de Interessados de 01/03/2023 e de todos os atos subsequentes, como são as licitações, o mapa de partilha e a sentença homologatória – tendo rematado a sua alegação com estas conclusões:

(…).

Na resposta, a interessada AA - depois de obtemperar, designadamente que a questão da alegada nulidade foi apreciada pelo Sr. Notário através do despacho datado de 5 de Maio de 2023, despacho que não foi impugnado judicialmente, pelo que transitou em julgado – concluiu pela improcedência do recurso.

O relator corrigiu o efeito – extraprocessual – suspensivo atribuído, por erro, ao recurso, no despacho que, na 1.ª instância, o admitiu, fixando-lhe o efeito meramente devolutivo.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

Os factos procedimentais que relevam para o conhecimento do objecto do recurso, relativos ao conteúdo das notificações feitas aos interessados e ás vicissitudes verificadas no tratamento processual do processo de inventário, são os que, em síntese apertada, o relatório documenta.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635.º n.ºs 2, 1.ª parte, 3 a 5 do CPC).

No caso, a decisão directamente impugnada no recurso é a sentença do Sr. Juiz de Direito do Juízo de Família e Menores ... que julgou a partilha levada a cabo no processo de inventário notarial. Mas a impugnação da sentença homologatória da partilha é meramente instrumental relativamente à questão que, verdadeiramente, constitui objecto do recurso: uma vicissitude processual – scilicet, uma nulidade processual inominada secundária – ocorrida no decurso do processo de inventário, na fase em que o respectivo dominus ou decisor é o notário, do que decorre que a impugnação da sentença homologatória da partilha tem por finalidade conspícua assegurar a arguição e o conhecimento, pelo tribunal ad quem, daquela invalidade processual. Assim, caso se deva prover aquela arguição, a procedência do recurso e a revogação da sentença que homologou a partilha é uma fatalidade inevitável. Mas o inverso também é verdadeiro: se se negar provimento àquela arguição, seja qual for a razão que, para o efeito, seja encontrada,  a improcedência do recurso da sentença que julgou a partilha é meramente consequencial[1].

Maneira que, considerando os parâmetros da competência decisória ou funcional desta Relação, assim delimitados, a – fundamental - questão concreta controversa colocada à sua atenção são as de saber se no processo de inventário notarial se verificou, no tocante à notificação do apelante para a continuação da conferência de interessados, uma nulidade processual secundária inominada essencial.

Simplesmente, como tal nulidade foi arguida, logo no contexto do inventário notarial e aí decidida por despacho do Sr. Notário – como a apelada logo salientou na sua resposta ao recurso - a resolução da questão enunciada vincula, irrecusavelmente, à ponderação da eficácia ou valor daquela decisão caso se deva entender que não foi ou não é – adequadamente – impugnada.

3.2. Eficácia ou valor de decisão não impugnada do notário.

 Quanto ao objecto do recurso, o nosso direito inclina-se para o modelo de reponderação pelo que o objecto do recurso é uma decisão – e não a questão sobre que incidiu essa decisão, e o recurso visa apreciar se a decisão recorrida é aquela que ex-lege devia ter sido proferida, i.e., destina-se a controlar e corrigir os erros da decisão recorrida.

O recurso ordinário é um meio de impugnação de uma decisão, pelo que o seu objecto é constituído por um pedido - a revogação da decisão impugnada e se o recurso se orientar segundo um modelo de substituição, a substituição daquela decisão por uma outra – e um fundamento – um qualquer vício de procedimento (error in procedendo) ou de julgamento (error in iudicando), quer da matéria de direito, quer da matéria de facto. As conclusões com que o apelante deve fechar a alegação do seu recurso têm por finalidade a especificação, sintética e contida, dos fundamentos do recurso, destinada a delimitar o seu objecto (art.º 635.º, n.º 3, do CPC).

Como o objecto do recurso é, sempre, uma decisão impugnada, o tribunal de recurso não conhece isoladamente de nulidades processuais – com excepção daquelas cujo prazo de arguição esteja em curso no momento da expedição do processo em recurso, caso em que a arguição pode ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição, e das oficiosamente cognoscíveis que não devam considerar-se sandadas – mas apenas de decisões que dispensem actos obrigatórios ou que imponham a realização de actos proibidos e das consequências noutras decisões ou noutros actos da eventual ilegalidade de dispensa ou da realização do acto – ou, evidentemente, no caso de inventário notarial, da decisão do notário ou do tribunal a quo que tiver julgado improcedente a reclamação através da qual se tenha impugnado uma nulidade processual (art.ºs 195.º, 198,º 2, e 199.º, n.º 3, do CPC).

O meio de impugnação da nulidade processual é a reclamação – e não o recurso, regra que confirma o aforismo jurisprudencial de que dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se (art.º 196.º, 2.ª parte, do CPC). Se a prática do acto tiver sido determinada por uma decisão – sentença ou despacho – a forma adequada de reacção não é alegação da nulidade processual – mas antes a impugnação daquela decisão por erro de julgamento. Isto é também assim, aliás de modo mais evidente, quanto à decisão que apreciar a reclamação contra uma nulidade deduzida pelo interessado: esta decisão também só é impugnável nos termos normais – através do recurso – e não, evidentemente, através da reiteração da reclamação, por via do recurso, no tribunal ad quem.

Se forem relevante, as nulidades só são apreciadas mediante reclamação da parte interessada na repetição ou eliminação do acto; o prazo da sua alegação é de 10 dias a contar de qualquer intervenção da parte na acção ou da sua notificação para qualquer termo do processo, sempre que a parte não esteja presente no momento em que foi proferida, devendo ser imediatamente julgadas pelo tribunal, após a resposta da contraparte (art.ºs 149.º, n.º 1, 196.º, 2.ª parte, 197.º. n.º 1, e 199, nºs 1 e 2, do CPC). Se não forem tempestivamente arguidas, as nulidades consideram-se sanadas, ficando irremediavelmente precludida a sua arguição em momento posterior.

Ora, o que pode ser impugnado no recurso, é uma decisão do notário ou do tribunal a quo anterior, pelo que é claro que a parte não pode aproveitar esse recurso para suscitar ex-novo uma qualquer questão que deveria ter colocado em momento anterior. Assim, no caso de nulidades cometidas, seja pelo notário seja pelo Tribunal de 1ª instância, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade – e não a nulidade ela mesma. Isto só não é assim – notou-se já - no tocante às nulidades cujo prazo de arguição comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades que sejam de conhecimento oficioso e de que seja lícito conhecer em qualquer estado do processo, enquanto não devam considerar-se sanadas, dado que estas últimas constituem objecto implícito do recurso, pelo podem ser sempre alegadas no recurso ainda que anteriormente o não tenham sido (art.º 199.º, n.º 3, do CPC). Mas, decerto, não é isso, que ocorre com a nulidade alegada no recurso.

Nitidamente, no caso, o objecto do recurso – tal como indubitavelmente resulta das conclusões com que o apelante rematou a sua alegação – é a nulidade, cometida no processo de inventário notarial, da sua notificação – dependente, dado que é relativa a processo pendente, e convocatória, visto que tem por fim chamar a parte para praticar determinado acto – para a continuação da conferência de interessados, concluída sem a sua presença. Nulidade que decorreria da circunstância de naquela notificação se ter omitido a formalidade da indicação de que era obrigado a comparecer pessoalmente ou a fazer-se representar, sob pena de multa, da cominação de que a conferência poderia ser concluída mesmo na sua ausência e de que as decisões nela tomadas pela co-interessada o vinculariam.

Porém, o recorrente, logo no contexto do inventário notarial, arguiu essa mesma nulidade, e por esse mesmo fundamento, por via de reclamação dirigida ao Sr. Notário – mas que este desatendeu. Arguição que o apelante, notificado da decisão do Sr. Notário que negou provimento à reclamação, reiterou qua tale, em requerimento que denominou de resposta, o que motivou nova decisão do Sr. Notário, no qual salientou que o meio adequado de reacção não era a réplica àquele despacho – mas o recurso.

A este processo de inventário notarial é aplicável, dada a data sua instauração, o regime do inventário judicial, com algumas especificidades que decorrem do facto de o respectivo decisor não ter a qualidade de magistrado judicial (art.ºs 2.º do Regime do Inventário Notarial – RIN - aprovado pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, e 11.º, n.º 1 e 15.º deste último diploma).

À generalidade das decisões proferidas pelo notário no decurso do processo de inventário notarial é aplicável, em matéria de recursos, adequadamente reconformado, o regime dos recursos disposto no processo de inventário judicial, regime que, sem prejuízo das especificidades que decorrem da natureza e da estrutura do processo de inventário é dado pela normas gerais sobre a admissibilidade  dos recursos de apelação e de revista  (art.º 1123.º do CPC, ex-vi art.º 4.º, n.º 2, do RIN, e 644.º, e ss., e 671, e ss. daquele Código). Por aplicação desse regime, a decisão que julgue improcedente uma reclamação por nulidade de uma notificação dependente convocatória não cabe apelação autónoma - dado que se trata de uma decisão interlocutória, i.e., respeitante a uma decisão não final proferida durante a tramitação do processo – e, portanto, o recurso deve ser interposto em conjunto com o recurso interposto – para o  Juiz de Direito - das decisões de saneamento do processo e determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha, ou se a decisão da reclamação for posterior à decisão do saneamento do processo, com o recurso interposto, para a Relação, da decisão judicial homologatória da partilha (art.ºs 2.º, n.º 4,  644.º, n.º 3, e 1123.º, n.ºs 4 e 5 do CPC).

Assim, no caso, uma vez que sobre a nulidade que constitui o objecto do recurso, foi proferida uma decisão do Sr. Notário, que negou provimento à reclamação correspondente, a atitude processualmente adequada era a de interpor, conjuntamente com o recurso interposto da sentença judicial que julgou a partilha, recurso daquela decisão – e não reiterar a reclamação contra essa mesma nulidade – como, aliás, o Sr. Notário fez notar ao recorrente na sequência da repetição, por este, perante ele, da arguição da nulidade, depois de notificado da decisão da improcedência da reclamação.

Maneira que, por força da vinculação temática desta Relação às conclusões extraídas pelo recorrente da sua alegação – e que delimitam, em concreto, a competência funcional ou decisória dessa mesma Relação – o objecto do recurso é constituído pela apontada nulidade e não pelo despacho do Sr. Notário que decidiu a reclamação deduzida – por duas vezes, aliás – contra essa mesma nulidade. Do que decorre que aquele despacho se deve ter por não impugnado e a questão de que conheceu – a apontada nulidade, cuja arguição julgou improcedente – se deve ter por irrepetível e definitivamente decidida.

As particularidades relevantes do inventário notarial não se situam, actualmente, no plano da tramitação do processo, antes decorrem da circunstância de o decisor ser um órgão não judicial – o notário - que sendo um profissional liberal e independente e apesar ser competente para tomar decisões que envolvem a resolução de conflitos de interesses – com excepção, evidentemente, daqueles que se inscrevam na reserva absoluta de juiz - não detém, todavia, as características constitucionalmente exigidas para a qualificação como órgão judicial, o que coloca o problema delicado da eficácia ou do valor adquirido pelas suas decisões que não tenham sido impugnadas através de recurso, seja para o Tribunal de 1.ª instância, seja para a Relação (art.ºs 10.º e 12.º do Estatuto do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36/2004, de 4 de Fevereiro).

Quanto a este problema, a orientação que se se tem por exacta é a de que as decisões do notário que, seja qual for o motivo, sejam insusceptíveis de impugnação adquirem o valor de caso decidido ou de caso estabilizado, que se traduz na inadmissibilidade da substituição ou modificação dessas decisões, quer pelo notário, quer pelo Tribunal de 1.ª instância, quer pela Relação,  tornando, assim, indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo notário, ou seja, o conteúdo da decisão desse órgão decisório do inventário notarial[2].

Desde que o notário não é um órgão judicial, as suas decisões são insusceptíveis de adquirir o valor de caso julgado, valor que se deve ter por exclusivo das decisões tomadas no exercício da função judicial,  mas como importa evitar uma permanente instabilidade das decisões do notário e obstar a que sobre a mesma situação recaiam decisões contraditórias, os valores da segurança e da certeza imanentes a qualquer ordem jurídica, exigem que àquelas decisões seja reconhecido um valor e uma função similares às do caso julgado e, portanto, a produção de um efeito negativo – a insusceptibilidade de o próprio notário que proferiu a decisão ou o juiz tomar a iniciativa de a modificar ou revogar – e um efeito positivo – a vinculação desse notário e do juiz à decisão proferida pelo primeiro. São estes efeitos processuais que com as expressões caso decidido ou resolvido ou caso estabilizado se visam por em relevo. Caso decidido ou estabilizado que possui também um valor enunciativo, dado que a sua eficácia exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão estabilizada ou resolvida. Na hipótese de aqueles efeitos processuais não serem respeitados - situação que origina casos decididos ou estabilizados contraditórios ou casos decididos ou estabilizados e casos julgados contraditórios na hipótese de a segunda decisão ter sido proferida pelo juiz – é aplicável a regra ou princípio da prioridade: vale a decisão que primeiramente tiver adquirido uma daqueles valores; a segunda é simplesmente ineficaz (art.º 625.º, n.ºs 1 e 2, por analogia ou interpretação extensiva, do CPC).

Perspectivado a partir do âmbito da sua eficácia, o caso decidido ou resolvido – tal como sucede com o caso julgado - deve separar-se entre o caso decidido material e o caso decidido formal: o caso decidido formal possuiu um valor estritamente intraprocessual, dado que só é vinculativo no próprio processo em que a decisão foi proferida; o caso decido material, além de uma eficácia intraprocessual, é susceptível de valer num processo diverso daquele em que foi proferida a decisão transitada.

As diferentes modalidades de caso decido relacionam-se com a diversidade do objecto sobre que estatuiu a decisão que adquiriu essa qualidade. Em regra, as decisões de forma – i.e., as decisões que incidem sobre aspectos processuais – apenas adquirem o valor de caso decidido formal, ao passo que as decisões de mérito – as decisões que apreciam, no todo ou em parte, a procedência ou improcedência da acção – são, em princípio, as únicas a adquirir a eficácia de caso decidido material.

Portanto, a diferente eficácia, num caso e noutro, das decisões proferidas no inventário notarial pendente, decorrente do caso decidido que sobre elas se forma, explica-se pela diferença do seu objecto. Dado que as decisões de forma recaem sobre aspectos processuais – v.g. sobre a competência ou a legitimidade das partes – a sua eficácia restringe-se ao processo onde foram proferidas; inversamente, as decisões de mérito, declararam ou constituem situações jurídicas que, no caso de prejudicialidade entre objectos processuais, podem ser relevantes para a apreciação ou constituição de situações jurídicas e não podem ser contrariadas ou recusadas noutro processo.

Assim, no caso, dado que o objecto do recurso – por decisão exclusiva do recorrente – não é a decisão do notário que negou provimento à reclamação por nulidade, mas esta mesma nulidade – há que concluir que sobre aquela decisão se formou caso decidido formal, que se impõe a esta Relação, tornando assim, intangível, para este Tribunal superior, aquela mesma decisão. O que daqui decorre para a improcedência do recurso é meramente consequencial.

Para evitar esta consequência drástica poderia pensar-se que, afinal, o problema é o do uso pelo recorrente de um meio processual impróprio, pelo que o caso seria assim de erro na qualificação jurídica do meio processual, que tem por única consequência, em princípio, a convolação, por determinação oficiosa, do meio processual impróprio no meio processual adequado, solução que surge claramente ordenada por uma ideia de máximo aproveitamento dos actos processuais, (art.º 193.º, n.º 3, do CPC)[3].  Diz-se em princípio, dado que aquela convolação está naturalmente sujeita a limites, uma vez que é necessário que a ela não obstem quaisquer outras circunstâncias, de que se destacam, desde logo, três: a extinção por caducidade do direito de praticar o ato convolado e a inaproveitabilidade do ato objeto de convolação, por não reunir os requisitos específicos exigidos para o acto para o qual seria convolado, ou por implicar o agravamento da posição processual da parte contrária aquela a quem a convolação aproveitaria. O poder de convolação é um poder oficioso que pertence também ao tribunal de recurso, por força do qual, por exemplo, o relator deve convolar a interposição de revista para reclamação para a conferência.

A convolação, porém, apenas é admissível quanto ao meio processual, quanto à qualificação errada do meio processual realizada pela parte – por exemplo, o juiz deve convolar a errada qualificação do meio de impugnação como reclamação, quando devia ser de recurso, ou como recurso, quando devia ser reclamação – mas já não quanto ao objecto do meio processual. Dito doutro modo: a convolação só pode referir-se ao meio processual, ao erro de qualificação deste meio – mas não quanto à situação jurídica objecto do instrumento processual utilizado em erro pela parte. No caso, o recorrente utilizou – desadequadamente – o recurso para arguir uma nulidade processual inominada secundária, aliás, já anteriormente decidida. A correcção daquele eventual erro importaria, no caso, a modificação do objecto do recurso – que passaria a ser constituído, não por aquela invalidade do acto de processo, mas pela decisão que a apreciou e a julgou não verificada – o que, por força da vinculação temática desta Relação à impugnação deduzida pela apelante, cujo âmbito é irrefragavelmente definido pelas conclusões da respectiva alegação, se tem por inadmissível.

Realmente, há aqui que ter em conta um princípio estruturante do processo civil: o da disponibilidade privada sobre o objecto do processo – da acção e do recurso. Por força deste princípio, são, em regra, as partes que livremente suscitam as questões e livremente articulam os factos em que o juiz se baseia para proferir a sentença, sendo-lhes lícito também restringir os fundamentos do recurso cujo conhecimento esteja dependente da sua vontade: o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação – embora, de harmonia com o princípio da limitação do conhecimento do tribunal ou da vinculação temática, mas não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, ressalvadas, evidentemente, as que forem de conhecimento oficioso (art.ºs 552.º, n.º 1, d), 608.º, n.º 2, 684.º, n.º 4, e 666.º, n.º 1, do CPC). São, portanto, as partes como corolário da liberdade e da responsabilidade em processo, que decidem sobre a delimitação da matéria a resolver, v.g., na instância de recurso, o que bem se entende, por uma razão prática: ninguém melhor que os titulares dos direitos e interesses pode saber como estes devem ser cuidados. E, no caso que nos ocupa, o objecto do recurso é, essencialmente, um só: a nulidade de que se encontra ferida, segundo o apelante, a notificação que lhe foi feita para a continuação da conferência de interessados. Nulidade cuja arguição o Sr. Notário negou provimento e que, por força do caso decidido ou resolvido que se constituiu sobre a decisão correspondente, que vincula esta Relação, se deve ter por irrepetível e definitivamente decidida.

Em qualquer caso, a verdade é que, na espécie sujeita, não se verifica, a nulidade acusada.

3.3. Nulidade da notificação convocatória do apelante para a continuação dos trabalhos da conferência de interessados.

Os principais actos do notário no processo de inventário notarial são, decerto, as decisões, que são actos que extraem uma consequência jurídica da matéria de facto e de direito apreciada por aquele decisor. Todavia, o notário também pode realizar actos que não são decisões. Esses actos podem referir-se, por exemplo, à comunicação de qualquer acto daquele notário. Os actos de comunicação são quanto às partes e aos particulares, a citação e notificação (art.º 219.º, n.ºs 1, 2 e 6, do CPC).

Os actos processuais são, em princípio, actos receptícios, i.e., actos que só produzem os seus efeitos quando se tornem conhecidos do seu destinatário. Note-se, porém, que casos importantes, a lei considera suficiente a mera presunção do conhecimento do acto pelo seu destinatário: é o que se verifica, por exemplo, nas notificações aos advogados das partes, regime que, por extensão legal, vale para as notificações às partes que não tenham constituído mandatário (art.º 247.º nºs 4 e 6, 248.º, n.º 1, e 249.º, n.º 1, do CPC).

As notificações dependentes, i.e., as notificações às partes relativas a processos pendentes podem exercer uma de duas funções: dar conhecimento à parte dum acto ou dum facto – notificação de um despacho ou de uma sentença, notificação do dia em que há-de realizar-se uma audiência de discussão, uma inquirição de testemunhas, uma conferência de interessados, etc.; chamar a parte a juízo para praticar determinado acto (art.º 247º n.º 2, do CPC). No primeiro caso, a notificação tem um fim informativo; no segundo tem um fim convocatório.

Na notificação convocatória, i.e., que tem uma finalidade convocatória, podem ainda distinguir-se duas modalidades: a parte pode ser convocada para praticar um acto de carácter pessoal, quer dizer, um acto em que não pode fazer-se substituir por mandatário, como por exemplo, a prestação de depoimento de parte ou de esclarecimentos; pode ser convocada para um acto em que lhe seja permitido fazer-se representar por advogado ou solicitador, ou por outra pessoa, desde que munida com os indispensáveis poderes especiais, como sucede, por exemplo, com a notificação para a conferência de interessados em processo de inventário (art.º 1110.º, n.ºs 5 e 6, CPC).

As notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais, que tanto pode ser o mandatário escolhido como o patrono nomeado no âmbito do apoio judiciário (art.ºs 247.º, n.º 1 do CPC, e 16.º, n.º 1 b), e 30.º, n.º 1 da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho). Quando, porém, a notificação tenha um fim convocatório e, portanto, se destine a chamar a parte para a prática de um acto pessoal, além de ser notificado o mandatário, deve também ser expedido aviso postal registado à própria parte, indicando a data, local e hora da comparência e, evidentemente, as cominações aplicáveis à falta de comparecimento pessoal ou à omissão de representação por mandatário investidos de poderes especiais de representação (art.º 247, n.º 2, do CPC).

De harmonia com a regra geral sobre as nulidades de processo, i.e., sobre a infracção de normas adjectivas, por três modos se pode violar a lei de processo reguladora dos actos: praticando-se acto que a lei não admita; omitindo-se acto que a lei prescreve; omitindo-se uma formalidade que a lei exija (art.º 195.º, n.º 1, do CPC).             

Praticando-se um acto que a lei não admite, omitindo-se um acto ou uma formalidade que a lei prescreve, comete-se uma infracção: mas nem sempre esta infracção é relevante, quer dizer, nem sempre produz nulidade. A nulidade só aparece, quando se verifica um destes casos: quando a lei especialmente a decreta; quando a irregularidade cometida possa influir no exame da causa (art.º 195.º nº 1, in fine, do CPC). As nulidades processuais estão, realmente, sujeitas ao princípio da essencialidade: a nulidade não se verifica se a prática ou a omissão do acto ou da formalidade não influir no exame ou na decisão da causa. O primeiro caso não levanta dúvidas. Já o caso em que a infracção formal tem relevância deixa ao juiz um largo poder de apreciação. É ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entenda que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame e na decisão da causa. Sempre que a violação da lei de processo não exerce qualquer influência sobre a apreciação ou conhecimento regular da causa, a instrução, discussão ou o julgamento dela, a lei autoriza o tribunal a declará-la irrelevante.

De outro aspecto, de harmonia com o princípio do aproveitamento dos actos processuais, a nulidade processual implica, apenas, a anulação da parte viciada, pelo que não afecta a parte viciada, nem os actos subsequentes dele não dependentes: utile per inutile non vitiatur (art.º 195.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC). Inversamente, a invalidade estende-se aos actos dependentes do acto nulo que dele dependam em absoluto (art.º 195.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPC).

 A conferência de interessados constitui um momento deveras essencial do processo de inventário. A esta conferência a lei assinala, desde logo, estas finalidades: a obtenção de acordo dos interessados sobre a partilha e sobre os quinhões, a deliberação sobre o cumprimento do passivo (art.º 1111.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Todavia, essa conferência opera uma verdadeira vis atractiva de muitas outras finalidades: a realização da partilha parcial, a abertura de licitações entre os interessados, o pedido de adjudicação de bens, a oposição ao excesso de licitações e, em princípio, a composição igualitária dos quinhões dos interessados não conferentes ou não licitantes (art.ºs 1112.º, 1113.º, 1115.º, 1116.º e 1117.º do CPC). Nitidamente, o novo modelo processual do processo de inventário orienta-se pelo princípio da concentração na conferência de interessados de todas as tarefas ou trabalhos necessários ao seu fim último: a partilha, i.e., a dissolução de uma universalidade e a sua substituição pela formação de quinhões ou quotas individuais e concretizadas.

O regime das licitações apresenta algumas alterações relativamente ao direito anterior. Assim, relativamente ao regime que constava do Código de Processo Civil de 1961, as licitações integram-se agora na conferência de interessados, deixando, assim, de constituir um acto ou diligência autónoma do termo da conferência como decorria daquele Código (art.º 1370.º, n.º 1, do CPC). Assim, na falta de acordo dos interessados sobre a partilha o sobre a composição dos quinhões - e na ausência de acordos parciais que compreendam a totalidade dos bens a partilhar - abre-se, sem necessidade de qualquer requerimento, a licitação dos interessados quanto aos bens a partilhar, licitações que permitem aos interessados directos na partilha a aquisição e integração no seu património de bens determinados, em concretização do seu quinhão hereditário, pelo valor que em lanços sucessivos entendam oferecer por eles – embora do acto de licitação apenas resulte uma expectativa de aquisição dos bens licitados, considerada a possibilidade da procedência da oposição à licitação excessiva, efeito aquisitivo que, portanto, só se consolida com a sentença homologatória da partilha (art.ºs 1111.º, n.ºs 1 2, 1116.º e 1122.º, n.º 1, do CPC).

A par desta função aquisitiva do acto de licitação, era comum assinalar-lhe também uma função correctiva do valor dos bens relacionados e mesmo a forma privilegiada de obter o real valor dos bens, suprindo a eventual subavaliação constante da relação de bens ou resultante de uma primeira avaliação deles, o que explicava a resistência da lei de processo – anterior à Reforma de 1994, instrumentalizada através do Decreto-Lei n.º 227/94, de 8 de Setembro – em admitir uma segunda avaliação dos bens, apenas a autorizando nos casos excepcionais que previa e circunscrevendo a reclamação ao excesso de avaliação dos bens (art.º 1369.º, n.º 1, do CPC de 1961). A atribuição, quase exclusiva, do apuramento do valor real dos bens relacionados ao acto de licitação poderia revelar-se perversa, do ponto de vista da equidade da partilha, dado que permitia aos interessados com maior poder económico a apropriação, por baixo preço, dos bens a partilhar mais significativos, em face da incapacidade económica dos demais interessados que os impedia de acompanhar os sucessivos lanços oferecidos pelo licitante. Esta perversidade foi, porém, minorada pela Reforma de 1994 que ampliou a faculdade de até ao início das licitações, se deduzir reclamação contra o valor dos bens relacionados, garantindo-se tendencialmente, por essa via, que a licitação partisse dos valores dos bens resultantes da perícia de avaliação (art.ºs 1362.º e 1369 do CPC de 1961). Manteve-se, no entanto, a faculdade de qualquer interessado deduzir oposição ao resultado da licitação, sempre que alguns dos interessados tivesse licitado uma pluralidade de bens superior ao necessário para preencher a sua quota (art.º 1377, n.ºs 2 e 4 do CPC de 1961). No novo modelo do processo de inventário, estas medidas correctivas dos eventuais abusos do exercício do direito de licitar mantiveram-se, ainda que reconformadas.

Assim, o procedimento equiparável à oposição ao excesso de licitação era regulado conjuntamente com o regime das tornas, o que tinha como consequência que aquele procedimento tinha lugar muito depois do termo da conferência de interessados e da efectivação das licitações, elas mesmas. Só no momento em que a secretaria organizava o mapa da partilha e o mapa informativo sobre o valor do excesso dos bens licitados é que era admissível deduzir o pedido de adjudicação das verbas licitadas em excesso por algum ou alguns interessados (art.ºs 1363.º, 1376.º, n.º 2,  e 1377, n.ºs 2 a 4, do CPC de 1961). Esta regulamentação era de todo contrária à eficácia, eficiência e celeridades processuais, dado que levava, muitas vezes, a que só muito depois de concluídas as licitações e já em plena elaboração do mapa organizativo da partilha se controvertesse o equilíbrio do resultado das licitações, com base em factos e argumentos que de modo nenhum se podiam considerar supervenientes relativamente ao acto de licitação. Fiel ao princípio da concentração pelo qual se orienta o novo modelo processual do inventário, o procedimento relativo à impugnação do excesso de licitação foi autonomizado relativamente ao pagamento das tornas e antecipado para momento processual anterior: aquele procedimento deve, actualmente, ter lugar na conferência de interessados, precedendo as diligências ordenadas para assegurar a composição igualitária dos quinhões dos não licitantes (art.ºs 1116.º e 1117.º do CPC). Assim, se algum interessado licitar em mais que uma verba ou lotes dos bens relacionados, cujo valor global exceda o necessário para o preenchimento do seu quinhão ou da sua quota, qualquer outro interessado pode opor-se a esse excesso de licitação requerendo que as verbas em excesso, ou algumas delas, lhe sejam adjudicadas pelo valor resultante da licitação, direito que, todavia, está condicionado à possibilidade do preenchimento em espécie da quota do não licitante, sendo certo que este não pode requerer a adjudicação de verbas que excedam a sua quota, mas apenas das necessárias para a composição dessa mesma quota (art.º 1116.º, n.º 1, do CPC). Mas este direito potestativo do não licitante, notou-se já, tem de ser exercido – sob pena de irremediável preclusão – na conferência de interessados.

Na espécie do recurso, a nulidade de que o recorrente se queixa consistiria, desde logo, em ter recepcionado a notificação para a continuação da conferência de interessados, designada para o dia 1 de Março de 2023, em 28 de Fevereiro de 2023, tornando impossível a sua deslocação, em tempo útil, da sua residência nos Estados Unidos para ..., até por estar impedido de viajar devido à deterioração do seu estado de saúde. Abstraindo mesmo da circunstância dos factos relativos à degradação do estado de saúde do recorrente e à sua residência efectiva naquele país da américa do norte não estarem demonstrados, vê-se, claramente da sequência ou tramitação processual que a notificação que diz ter recepcionado em 28 de Fevereiro de 2023 respeita ao despacho proferido pelo Sr. Notário sobre o requerimento atravessado pelo então Mandatário do apelante, no aquele declara renunciar ao mandato: a notificação do despacho que designou dia para a continuação da conferência, essa, teve lugar em Dezembro de 2022.

Os interessados devem ser convocados para a conferência com a menção do seu objecto e com a advertência de que devem, sob pena processual de multa, comparecer nela pessoalmente ou fazer-se representar por mandatário com poderes especiais ou confiar o mandato a qualquer outro interessado e que a conferência, por falta de qualquer dos convocados, só pode ser adiada uma única vez e desde que haja razões fundadas para crer que, com a presença de todos, há a probabilidade de ser obtido acordo sobre a composição dos quinhões, e que a deliberação dos interessados presentes vincula os ausentes, a menos que não tenham sido notificados com essa cominação (art.º 1110.º, n.ºs 4 a 7, do CPC). Esta última previsão compreende-se: o acordo sobre a partilha constitui um verdadeiro negócio jurídico processual e, por isso, exige a unanimidade de todos os interessados directos da partilha, quer compareçam – quer tenham faltado à conferência de interessados, dado que a deliberação dos interessados presentes vincula os ausentes, desde que tenham sido notificados com essa cominação (art.º 1111.º, n.º 4, do CPC).

De harmonia com a alegação do recorrente, a nulidade acusada resultaria, precisamente, de a notificação que lhe foi feita para a continuação da conferência de interessados, não conter as informações, advertências e cominação apontadas – o que até é exacto. Simplesmente, nessa notificação não eram – ou já não eram - exigíveis tais indicações. Efectivamente, essas indicações foram religiosamente observadas na notificação que foi feita ao recorrente para a conferência de interessados realizada no dia 30 de Março de 2022, na qual esteve presente, pelo que, sendo a diligência designada para o dia 1 de Março a simples continuação daquela conferência não se justifica a sua repetição dado que, por força daquela primeira notificação, o apelante ficou inteiramente ciente quer do objecto da conferência quer da obrigação de comparecer pessoal ou de se fazer representar por mandatário dotado de poderes especiais e, bem assim, da cominação aplicável no caso de falta de comparência presencial ou da falta de representação. Tanto assim é que o recorrente sentiu a necessidade de justificar a sua falta de comparência através de requerimento apresentado no dia da realização da continuação da conferência, invocando um justo impedimento que, todavia, de todo, não concretizou.

E foi pelo fundamento apontado que o Sr. Notário desatendeu a nulidade que o recorrente elegeu como objecto do recurso. Despacho do Sr. Notário que, assim, se deve ter por correcto e que, pelas razões oportunamente expostas, adquiriu o valor de coisa decidida ou resolvida. Conclusão que torna irrelevantes os argumentos que o recorrente extrai do excesso de licitação, dado que, como se observou, a impugnação desse excesso tem hoje lugar na conferência de interessados, oposição que, por virtude da falta de comparecimento do recorrente nessa conferência, foi irremissivelmente atingida pela preclusão.

Em absoluto remate: o recurso não dispõe de bom fundamento. Cumpre, consequentemente, recusar-lhe provimento.

Do percurso argumentativo percorrido, extraem-se como proposições conclusivas mais salientes, as seguintes:

(…).

O apelante sucumbe no recurso. Essa sucumbência torna-o objectivamente responsável pelo pagamento das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelo apelante.

                                                                                                                                     2024.04.09

[1] Ac. da RC de 07.11.2006, www.dgsi.pt.
[2] Acs. da RG de 09.03.2023 (622/22) e de 21.10.2021 (2682/21), da RL de 06.12.2018 (71/16) e da RC de 10.12.208 (9335/18).
[3] Ac. STJ 24.02.2022 (1238/20).