Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2749/09.3TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
CONTEÚDO DA SERVIDÃO
MÁQUINAS AGRÍCOLAS
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
Data do Acordão: 02/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.1543, 1547, 1548, 1565, 1568 CC, 662 CPC
Sumário: 1. A Relação poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

2. Na vida rural da segunda metade do séc. XX, sobretudo, a partir da década de 70, passaram a ser utilizados modernos instrumentos de trabalho, designadamente, tractores e outras máquinas agrícolas, com o progressivo desaparecimento dos meios rudimentares do passado em que o gado domesticado desempenhava papel fundamental.

3. Tal realidade, também presente no meio rural do concelho de Viseu dos anos 60, 70 e 80 do séc. XX - a utilização do tractor teve um grande impulso na década de 70, acentuando-se nas décadas seguintes, à medida que desaparecia por completo (ou quase) a utilização de animais nos trabalhos agrícolas (ao ponto de, hoje, e desde há vários anos, dificilmente se poder encontrar aldeia, povo ou lugar onde ainda exista uma junta de bois!) -, permite fazer alguma (mas suficiente) luz sobre o caso sub judice, e é fundamental para a correcta apreciação e valoração da prova pessoal, afirmando a factualidade com maior grau de verosimilhança e mais próxima do “curso ordinário das coisas”.

4. Numa visão hodierna e razoável da problemática do conteúdo das servidões de passagem, constata-se e afirma-se que, hoje em dia e desde há várias décadas, para colher e fruir todas as utilidades dos seus prédios (seja qual for a natureza deles) as pessoas passam a pé e mediante a utilização de tractores, máquinas agrícolas e outros veículos motorizados, mesmo em meios rurais.

Decisão Texto Integral:




                               
               Sumário do acórdão:       

1. A Relação poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

2. Na vida rural da segunda metade do séc. XX, sobretudo, a partir da década de 70, passaram a ser utilizados modernos instrumentos de trabalho, designadamente, tractores e outras máquinas agrícolas, com o progressivo desaparecimento dos meios rudimentares do passado em que o gado domesticado desempenhava papel fundamental.

3. Tal realidade, também presente no meio rural do concelho de Viseu dos anos 60, 70 e 80 do séc. XX - a utilização do tractor teve um grande impulso na década de 70, acentuando-se nas décadas seguintes, à medida que desaparecia por completo (ou quase) a utilização de animais nos trabalhos agrícolas (ao ponto de, hoje, e desde há vários anos, dificilmente se poder encontrar aldeia, povo ou lugar onde ainda exista uma junta de bois!) -, permite fazer alguma (mas suficiente) luz sobre o caso sub judice, e é fundamental para a correcta apreciação e valoração da prova pessoal, afirmando a factualidade com maior grau de verosimilhança e mais próxima do “curso ordinário das coisas”.

4. Numa visão hodierna e razoável da problemática do conteúdo das servidões de passagem, constata-se e afirma-se que, hoje em dia e desde há várias décadas, para colher e fruir todas as utilidades dos seus prédios (seja qual for a natureza deles) as pessoas passam a pé e mediante a utilização de tractores, máquinas agrícolas e outros veículos motorizados, mesmo em meios rurais.         


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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em 08.9.2009, A (…) e mulher T (…), M (…), P (…), F (…) e mulher P (…), A (…) e mulher C (…), por si e na qualidade de representantes da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de R (…) e J (…) instauraram a presente acção de processo comum contra J (…) e mulher J (…) e J (…) pedindo a condenação dos Réus a: a) reconhecerem e respeitarem que os prédios identificados nos art.ºs 2º e 3º da petição inicial (p. i.) pertencem à herança aberta por óbito de R(…) e J (…) b) reconhecerem que os AA. são co-proprietários desses prédios; c) os 1ºs Réus, à sua conta e no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença: i. retirarem todos os objectos e animais descritos em 22º e 23ºda p. i., bem como o lixo que vêm depositando na parte sul e poente do prédio identificado no art.º 2º da p. i.; ii. retirarem a malha de aço identificada em 24º da p. i.; iii. demolirem as paredes poente e norte da sua casa na parte ligada a cimento e que ocupa os muros em pedra de vedação dos prédios identificados em 2º e 3º da p. i.; iv. retirarem a parte da parede norte da sua casa que invade o prédio identificado no art.º 3º da p. i.; v. retirarem o portão colocado na entrada poente do prédio identificado no art.º 2º da p. i.; vi. a não mais invadir com animais, objectos ou materiais ou a passar de carro pelo prédio identificado em 2º da p. i.; d) indemnizarem os AA. na quantia global de € 7 500, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhes causaram, acrescida de juros de mora até integral liquidação; e) ser declarado nulo e sem qualquer efeito o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre os Réus e que incidiu sobre o prédio ou parte do prédio identificado no art.º 2º da p. i..

Alegaram, em resumo: os falecidos R (…) e J (…) eram donos e legítimos possuidores dos prédios que identificaram em 2º e 3º (inscritos na matriz sob os art.ºs 238 e 235, respectivamente) e que integram a herança ilíquida e indivisa dos falecidos; os 1ºs Réus são donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 15º - inscrito na matriz sob o art.º 237 - e que para acederem, a pé, ao prédio deles sempre atravessaram o seu (da herança) prédio/art.º 238 pela passagem com cerca de 40 m de comprimento e 80 cm de largura, sentido poente-nascente e em linha recta até à entrada nascente do prédio art.º 237; os 1ºs Réus invadiram os limites poente e sul do prédio 238, numa área de cerca de 1400 m2, arrancando árvores - corte que lhes causou um prejuízo de cerca de € 5 500 - e desta forma alargando o caminho para cerca de 4 m de largura em toda a extensão, altura em que também alargaram a abertura, colocando portão com essa largura; nessa mesma faixa de terreno os 1ºs Réus vêm depositando os objectos identificados em 23º, tendo também colocado malha de aço por cima do muro indicado; os 1ºs Réus construíram, há cerca de 2 anos, uma casa de habitação no limite poente do seu prédio, usando para tanto os muros de vedação indicados, avançando em cerca de 30 cm de largura e 2, 5 m de altura e numa extensão de cerca de 3 m a parede norte da casa para dentro do prédio inscrito sob o art.º 235; estes comportamentos dos 1ºs Réus têm-lhes causado desgostos e mágoa; os Réus celebraram entre si contrato-promessa de compra e venda cujo objecto é uma parcela do prédio inscrito sob o art.º 238, aí figurando como promitente vendedor o 2º Réu - filho dos falecidos R (…) e J (…) e irmão e cunhado dos AA. - e promitente compradores o 1º Réu, sabendo todos os Réus que os prédios em causa não haviam sido partilhados, fazendo constar o contrário do contrato.

Os 1ºs Réus contestaram e deduziram reconvenção. Impugnaram o direito de propriedade sobre os imóveis afirmando que o 2º Réu lhes prometeu vender o imóvel dos autos, arrogando-se perante si como seu legítimo possuidor, tendo-lhes o mesmo conferido a posse mas apenas de uma área de cerca de 460 m2 e que possuem desde a outorga de tal contrato; admitindo serem proprietários do prédio 237 e que sempre ao mesmo acederam ao mesmo pelo terreno 238, negam já que a passagem em causa fosse apenas de pé, dizendo que também por aí acediam de carro de bois e de tractor e que a mesma tem a largura de 2,5 m em toda a sua extensão e que no início do caminho sempre existiu uma abertura com um portão em ferro e cancela em madeira com cerca de 4 m de largura; após terem entrado na posse do imóvel substituíram a cancela de madeira por um portão em ferro e arranjaram o caminho, melhorando o prédio em causa, nele desenvolvendo os actos descritos nos art.ºs 28º e seguintes da contestação; colocaram a rede em arame no prédio, para protecção da bicharada; reconstruiram um barracão que já existe há mais de 50 anos na propriedade, dentro dos limites do seu prédio; o muro de suporte de terras sito a norte do seu prédio pertence-lhes exclusivamente.

Em sede reconvencional, invocaram o direito de propriedade sobre o prédio do art.º 237, reiterando que para se aceder ao mesmo sempre passaram, a pé, de carro de bois e tractores, pelo prédio 238, por uma faixa de terreno com cerca de 40 m de comprimento e 2,5 m de largura, sendo este o único acesso ao seu prédio, que por si é usado para tratar do mesmo, invocando seguidamente e de forma expressa a aquisição, por usucapião, de servidão nos termos alegados; procedendo a acção, devem ser indemnizados pelas despesas por si suportadas com o prédio e pelas benfeitorias que aí introduziram, no montante de € 2 125. Terminam pedindo a sua absolvição dos pedidos contra si deduzidos e a procedência da reconvenção com a consequente condenação dos AA./reconvindos a: a) reconhecê-los como donos e legítimos possuidores do prédio inscrito na matriz sob o art.º 237; b) reconhecerem que o prédio inscrito na matriz sob o art.º 238 se encontra onerado com uma servidão de passagem de pé, carro de bois e tractor a favor do prédio inscrito sob o art.º 237, com as dimensões que descreveram; c) respeitarem o direito de servidão de passagem dos Réus e a absterem-se de violar ou impedir tal passagem. Sem prescindir, e em caso de procedência parcial da acção, pediram ainda a condenação dos AA. a pagar-lhes a quantia de € 2 125, a título de indemnização devida pelas despesas e benfeitorias introduzidas no prédio.

Respondendo, os AA./reconvindos mantiveram o alegado na p. i., impugnando não só as áreas da passagem que os 1ºs Réus invocaram como ainda que essa passagem fosse feita de carro de bois e tractor. Impugnaram as alegadas melhorias e invocaram a má fé dos Réus contestantes, pedindo a sua condenação a este título, pedido a que os 1ºs Réus se opuseram, “aproveitando” para formular idêntico pedido de condenação dos AA..

No seguimento da comunicação do falecimento da Ré, foi declarada a suspensão da instância, por despacho de 17.5.2011, que se manteve até 03.5.2018 (fls. 149, 187 e 192)![1]

Foi proferido despacho saneador, que identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

Foram apresentados e admitidos os meios probatórios, e junto o relatório de peritagem de fls. 266.

Realizada a audiência de julgamento, a Mm.ª Juíza a quo, por sentença de 30.01.2020, julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu: a) Condenar os 1ºs Réus a reconhecerem e respeitarem que os prédios identificados em 2. a) e 2. b) dos factos provados integram e pertencem à herança aberta e indivisa deixada por óbito de R (…) e J (…). b) Condenar os 1ºs Réus a retirarem todos os objectos, animais e lixo que tenham depositado na parcela de terreno indicada em 11. dos factos provados. c) Condenar os 1ºs Réus a retirarem os tubos de lusalite e rede de arame indicados em 16. dos factos provados. d) Condenar os 1ºs Réus a retirarem o portão indicado em 14. dos factos provados. e) Condenar os 1ºs Réus a não invadirem com animais, objectos ou materiais o prédio descrito em 2. a) dos factos provados e a não passarem de carro por este mesmo prédio. f) Condenar os 1ºs Réus a entregarem aos AA., na qualidade de representantes da herança aberta por óbito de R (…) e J (…) e a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos com o corte de árvores no prédio indicado em 2. a), a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, com o limite máximo de € 7 500. g) Absolver todos os Réus dos demais pedidos contra si formulados.

E julgou a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu: a) Condenar os AA./reconvindos, na qualidade de representantes da herança aberta por óbito de R (…) e J (…), a reconhecerem que os 1ºs Réus são donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 8. dos factos provados. b) Condenar os AA., na qualidade de representantes da herança aberta por óbito de R(…) e de J(…), a reconhecerem que o prédio descrito em 2. a) dos factos provados se encontra onerado com servidão de passagem a pé e com carro de bois/vacas a favor do prédio rústico indicado em 8., com as características descritas em 9. e 10. dos factos provados. c) Condenar os AA., na qualidade de representantes da herança aberta por óbito de R (…) e J (…), a respeitarem o direito de servidão indicado sob a antecedente al. b) e a absterem-se, por qualquer forma, de violar ou impedir a sua passagem nos termos também indicados na al. b) antecedente. d) Condenar os AA., na qualidade de representantes da herança aberta por óbito de R (…) e J (…), a autorizarem o levantamento das videiras e árvores indicadas em 22. dos factos provados. e) Absolver os AA. dos demais pedidos contra si formulados.

Inconformado, o 1º Réu interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

1ª - O apelante não se conforma com esta decisão que, em síntese, restringe o uso da servidão de passagem constituída por usucapião, ao acesso a pé e com carros de bois/vacas, excluindo o acesso com tratores e que, de forma aleatória, limitou a largura da servidão de passagem em cerca de 1,45 m, o que, na prática, impede a utilização dessa servidão de passagem por qualquer outro meio que não seja a pé.

2ª - Existe erro notório na apreciação e decisão da prova produzida em audiência de julgamento, sendo manifesta a desconformidade dos factos dados como provados e não provados, com os meios de prova disponibilizados nos autos.

3ª - Atendendo à prova produzida em julgamento, depoimentos de parte e testemunhal, relatório pericial, inspeção judicial ao local, conjugada com toda a prova documental carreada nos autos, o Tribunal a quo julgou incorretamente os factos atinentes aos pontos 9., 10., 12., 13., 25., 27. e 28. da matéria de facto provada.

4ª - De igual modo, o Tribunal a quo julgou incorretamente os factos insertos nas alíneas l), m), u) e v) da matéria de facto não provada.

5ª - Os meios probatórios que constam dos autos, concretamente, a prova testemunhal e depoimentos de parte que estão gravados em registo áudio e a resultante da inspeção judicial ao local, conjugada com as fotografias de fls. 356, 357 e 358 dos autos, impunham uma decisão sobre a matéria de facto diversa dos pontos assinalados na 4ª conclusão e das alíneas mencionadas na 5ª conclusão deste recurso.

6ª - O Tribunal a quo decidiu mal os pontos 9., 27. e 28. da matéria de facto provada, ao decidir que caminho de servidão de passagem que onera o prédio rústico identificado em 2. a) – art.º 238 – dos factos provados para acesso ao prédio rústico dos 1ºs réus – art.º 237 – é apenas a pé e com carros de vacas, excluindo o acesso com tratores ou com quaisquer outros veículos motorizados.

7ª - Em virtude dessa decisão errada, o Tribunal a quo deu como não provados os factos constantes das alíneas m), u) e v) da matéria de facto não provada, que incluía a utilização de tratores na servidão de passagem que onera o prédio rústico identificado em 2. a) dos factos provados para o acesso ao prédio rústico dos 1ºs réus/reconvintes de forma a satisfazer todas as necessidades normais e previsíveis deste prédio rústico.

8ª - Sobre esta matéria de facto, revelam o depoimento de parte do apelante e os depoimentos das testemunhas (…) considerados credíveis, isentos e desinteressados pelo Tribunal a quo e que impõem decisão diferente da recorrida.

9ª - Destarte, a decisão sobre a matéria de facto dos pontos 9., 27. e 28. da matéria de facto provada deve alterada, nos seguintes termos:

9. O acesso a pé, com carros de vacas e com tratores a este prédio dos 1ºs réus (237) sempre se fez através do prédio identificado em 2. a) – art.º 238 – com início numa passagem que antigamente se iniciava numa cancela de madeira, posteriormente substituída por um portão em ferro e arame, existente no referido limite do prédio indicado em 2. a).

27. Os 1ºs réus sempre utilizaram, de pé, com carros de vacas e com tratores, a passagem referida supra para transportar estrumes e adubos, lavrar, fazer as sementeiras no seu terreno, sulfatar, podar as videiras, oliveiras e as árvores frutícolas, recolher e transportar as colheitas produzidas, tais como, batatas, cebolas, feijão, cenouras, milho, tomates, hortaliças e outros produtos hortícolas, as uvas e as frutas, mondar e regar as culturas que cultivam no seu terreno – 237.

28. Os 1ºs réus, por si e seus antepossuidores, utilizam a referida passagem, a pé, com carros de vacas e com tratores, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, ao longo de todo o ano, consecutivamente, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos, o que fazem na convicção de exercerem um direito próprio e sem que alguma vez tenham sido interpelados ou estorvados de o fazer.

10ª - Em consequência da alteração da decisão sobre a matéria de facto dos pontos transcritos na conclusão anterior, este Tribunal deve ser julgar como provada a factualidade vertida nas aludidas alíneas m), u) e v) da matéria de facto não provada.

11ª - No sentido de que a servidão de passagem causa nestes autos deve abranger também a utilização de tratores, cita-se a pacifica, unânime e mais recente jurisprudência nesta matéria.

12ª - No que concerne à largura da servidão de passagem, o Tribunal a quo decidiu, de forma aleatória e sem qualquer sustentação na prova produzida que a servidão de passagem tem uma largura de cerca de 1,45 metros em toda a sua extensão.

13ª- Esta decisão errada do Tribunal a quo não se estribou em qualquer prova concreta produzida em audiência de julgamento, quer testemunhal, quer na inspeção judicial ao local onde foi possível ver os sinais visíveis e permanentes da largura da servidão de passagem que estão retratados nas fotografias de fls. 356, 357 e 358.

14ª - Relativamente à prova produzida em audiência de julgamento, atentemos aos depoimentos do apelante, do A. (…) e da testemunha (…) de que se procede à transcrição dos excertos relevantes para que a decisão sobre a largura da servidão de passagem seja de 2,5 m e não de cerca de 1,45 m.

15ª - Acresce que o réu/reconvinte, recorrente, requereu a inspeção judicial ao local para que o Tribunal pudesse verificar as dimensões, comprimento e largura, do caminho de servidão de passagem e as suas características que tinham sido alegadas na contestação/reconvenção.

16ª - Na contestação/reconvenção foram juntas fotografias sob os Docs. 8, 9 e 10, que correspondem às fotografias de fls. 356, 357 e 358 e que retratam os sinais visíveis e permanentes da servidão de passagem que foi constituída por usucapião.

17ª - Os mesmos sinais são visíveis em duas fotografias do relatório pericial de fls. 266 a 274.

18ª - Contudo, o Tribunal a quo quando realizou a inspeção judicial ao local entendeu, a nosso ver mal, não tirar quaisquer medidas das dimensões, comprimento e largura, do caminho de servidão de passagem.

19ª - O Tribunal a quo também não tirou quaisquer medidas da largura da entrada do prédio rústico identificado em 2. a) – art.º 238 – dos factos provados, onde está colocado o portão em ferro e arame e onde se inicia a servidão de passagem.

20ª - Apesar de ter feito constar na sentença recorrida a fls. 24, primeiro parágrafo, que: “E mostra-se ainda contrariado pela concreta medida que o portão que se situava no início do prédio 238 apresentava, medida essa que impedia o acesso a tractores e ou outros veículos motorizados (…), a verdade é que Tribunal a quo não tirou quaisquer medidas do portão em ferro e arame que está colocado à entrada do prédio rústico identificado em 2. a) (art.º 238).

21ª - Se o Tribunal a quo tinha dúvidas sobre a largura da servidão de passagem, podia e devia na inspeção judicial ao local ter procedido à medição da largura da servidão de passagem, atendendo aos sinais visíveis e permanentes existentes no prédio serviente, o que optou por não fazer.

22ª - Ademais, o Tribunal a quo tem o poder-dever de realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer, ao abrigo do disposto no art.º 411º do CPC.

23ª - A largura de cerca de 1,45 m da servidão de passagem em toda a sua extensão que foi, aleatoriamente, decidida pelo Tribunal a quo, é manifestamente insuficiente para o pleno exercício do direito de servidão de passagem, constituída por usucapião, para o acesso com tratores que sejam capazes de satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio rústico dos 1ºs réus que se prendem com o seu cultivo e colheita, melhor descritas no ponto 27. dos factos provados.

24ª - Com efeito, é um facto notório que um trator com atrelado e mesmo um carro de vacas carregado não cabe num caminho com uma largura de cerca de 1,45 m.

25ª - No caso em apreço é de realçar que a servidão de passagem se desenvolve, após os primeiros 3 m, encostada ao muro de suporte de socalco superior e ao longo de 40 m, em linha reta até atingir a entrada nascente do prédio dos 1º Réus, o que também por esse facto reforça a necessidade de que a largura mínima da servidão de passagem seja de 2,5 m em toda a sua extensão.

26ª - Acresce que, o Tribunal a quo deu como provada a factualidade inserida nos pontos 12. e 13., no que respeita às supostas medidas atuais da servidão de passagem e da abertura da passagem, sem qualquer sustentação na prova produzida, quer testemunhal, quer por medição in loco.

27ª - Assim, face aos meios probatórios constantes do processo, a decisão sobre a matéria de facto dos pontos 10., 12., 13. e 25. da matéria de facto provada deve ser alterada por este Venerando Tribunal, nos seguintes termos:

10. E que se desenvolve, após os primeiros 3 metros, encostada ao muro de suporte de socalco superior e ao longo de 40 metros, com uma largura de 2,5 metros em toda a sua extensão, no sentido poente-nascente e em linha reta até à entrada nascente daquele prédio dos 1ºs réus.

12. – Não provado.

13. – Não provado.

25. As características que o trilho da passagem apresenta – concretamente “despido” de qualquer vegetação e em terra batida – devem-se ao calcorrear de pessoas, incluindo dos 1ºs réus, animais, carros de vacas e aos rodados da passagem de tratores.”

28ª - Em consequência desta alteração da decisão sobre a matéria de facto dos pontos transcritos na conclusão antecedente, este Tribunal deve julgar com provados os factos constantes da alínea l), que o Tribunal a quo decidiu dar como não provados.

29ª - Em resultado da alteração da decisão da matéria de facto pugnada neste recurso, a decisão de direito proferida pelo Tribunal a quo é incorreta e, por isso, deve ser corrigida de acordo com as normais legais aplicáveis.

30ª - A servidão constitui uma restrição ao direito de propriedade, sendo um direito real de gozo, que pode ter por objeto quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, desde que suscetíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor, nos termos do disposto no art.º 1544º do Código Civil (CC).

31ª - Apenas as servidões aparentes, isto é, as que revelam por sinais visíveis e permanentes, é que são suscetíveis de constituição por usucapião (art.ºs 1548º e 1293º, al. a) do CC).

32ª- In casu ficou provado que os 1ºs réus, por si e seus antepossuidores, utilizam o caminho de servidão de passagem que onera o prédio rústico identificado em 2. a) dos factos provados, que se inicia onde atualmente existe um portão em ferro e arame e se desenvolve, após os primeiros 3 metros, encostado ao muro de suporte de socalco superior e ao longo de 40 metros, com a largura de 2,5 metros em toda a sua extensão, no sentido poente-nascente em linha reta até atingir a entrada nascente do prédio rústico dos 1º réus (artigo 237), com os sinais visíveis e permanentes que constam do ponto 25. dos factos provados, nele passando a pé, com carros de bois/vacas e com tratores para satisfazer as necessidades descritas no ponto 27. dos factos provados, o que fazem há mais de 20, 30, 40 e 50 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, com a convicção de exercerem um direito próprio, pelo que, tal servidão de passagem foi constituída por usucapião.

33ª - Sobre a extensão e modo de exercício da servidão estabelece o art.º 1565º do Código Civil que: “1 O direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação. 2 Em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente.

34ª - No caso sub judice verifica-se que a servidão de passagem a pé e com carros de bois/vacas, com a largura de cerca de 1,45 m em toda a sua extensão, que o Tribunal a quo decidiu que onera o prédio rústico identificado em 2. a) dos factos provados (art.º 238) a favor do prédio rústico dos 1ºs réus (art.º 237) é incompatível com a utilização de veículos de tração mecânica, tratores, e insuficiente para que os 1ºs réus possam as suas necessidades normais e previsíveis de cultivo e colheita do seu prédio, melhor descritas no ponto 27. dos factos provados.

35ª - Deste modo, a decisão do Tribunal a quo deve ser alterada/revogada por este Tribunal no sentido de que a servidão de passagem que está constituída por usucapião abrange também a utilização de veículos motorizados, como tratores, e que tem a largura de 2,5 m em toda a sua extensão.

36ª - A sentença recorrida violou ou fez uma incorreta interpretação e aplicação, entre outras, das normas dos art.ºs 1543º, 1544º, 1547º, 1548º, 1564º e 1565º do CC.

Remata pugnando pela referida modificação da decisão sobre a matéria de facto e, em consequência, a revogação da sentença, julgando totalmente procedentes por provados os pedidos formulados nas alíneas b) e c) da reconvenção.

Os AA. responderam e apresentaram recurso subordinado, com as seguintes conclusões:

1ª - Não deve o presente recurso ser admitido porquanto a causa que teve vencimento e da qual se recorre não tem valor superior à alçada do tribunal de que se recorre nos termos e em respeito ao veiculado no art.º 629º n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC).

2ª - Caso assim não se entenda e a ser apreciada a matéria de facto, deverá ser totalmente improcedente o recurso interposto porquanto não foi feita qualquer prova no sentido do alegado e pretendido pelo Recorrente e, ao invés,

3ª - Deverá ser alterado o facto provado n.º 9 passando a constar: O acesso a pé a este prédio dos 1ºs réus (237) sempre se fez através do prédio identificado em 2. a) – artigo 238 – com início numa passagem que antigamente se iniciava numa cancela de madeira, posteriormente substituída por um portão em ferro e arame, de apenas 1 folha, com cerca de 1 m de altura existente no referido limite do prédio indicado em 2. a).

4ª -  E deverá ainda ser alterado o facto provado n.º 10 passando a constar “E que se desenvolve, após os primeiros 3 m, encostada ao muro de suporte de socalco superior e ao longo de cerca de 40 m, com uma largura de cerca de 80 cm[2] em toda a sua extensão, no sentido poente-nascente e em linha recta até à entrada nascente daquele prédio dos 1ºs Réus.

5ª - Na sequência do que a decisão II b) deve ser alterada passando a constar que o acesso se faz apenas a pé.

O 1º Réu respondeu concluindo pela improcedência do recurso subordinado.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto dos recursos, importa apreciar e decidir: a) Como questão prévia, que de decidirá de imediato, se estamos perante decisão recorrível à luz do disposto no art.º 629º, n.º 1 do CPC; b) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); c) decisão de mérito, cuja modificação dependerá, sobretudo, do sucesso daquela impugnação.

Decorre dos autos, e é salientado na parte final da sentença, que os 1ºs Réus obtiveram “ganho parcial de causa, na parte em que o objecto da acção se mostrava verdadeiramente controvertido” (sublinhado nosso), ou seja, relativamente à problemática da servidão de passagem («servidão de passagem de pé, carro de bois e tractor a favor do prédio inscrito sob o art.º 237, com as dimensões que descreveram»).

Sabemos que numa situação como a dos presentes autos importava determinar o proveito ou comodidade que para o prédio dominante representa a existência da servidão (vide, designadamente, J. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, Vol. 3º, Coimbra Editora, 1946, pág. 612), pois que o litígio centra-se na questão da existência/inexistência de uma servidão de passagem.

Essa realidade, cremos, não encontrou a melhor expressão no despacho que fixou o valor da causa, de 25.3.2011, na base, é certo, do aparente posicionamento das partes levado aos articulados conjugado com o relatório pericial de 140.

A alçada é, em regra, “obstáculo à interposição de recursos ordinários; mas não impede a interposição dos recursos extraordinários”; constitui o “limite de valor até ao qual o tribunal julga sem recurso ordinário”.

O valor da acção (€ 18 685) e o valor da reconvenção (€ 17 050) ultrapassam em muito o valor da “alçada do tribunal de que se recorre” (€ 5 000/cf. art.º 24º, n.º 1 da LOFTJ, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13.01, na redação do art.º 5º do DL n.º 303/2007, de 24.8).

A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção (cf. n.º 3 do mesmo art.º).

É razoável considerar que o que subsiste em sede de recurso (principal e subordinado) continua a assumir particular relevo no contexto do litígio das partes, objecto de uma “acção de servidão”.

Daí - admitindo, é certo, que se trata de matéria não isenta de dificuldades -, podemos/devemos considerar (independentemente do valor de € 5 000 que ao “interesse” em causa foi indicado pelos 1ºs Réus no seu requerimento de 07.12.2010 e dos € 500 encontrados no mencionado relatório pericial atendendo, apenas, “ao valor da área de terreno envolvido na servidão”) que a decisão impugnada é desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (ou seja, superior a € 2 500; não sendo, porém, defensável - face a todos os valores sugeridos, ponderados e atendidos - que ultrapasse o dobro desse valor), e que, considerando-se porventura existir fundada dúvida acerca do valor da sucumbência[3], então, será de atender, apenas, ao valor da causa (€ 35 735) (art.º 629º, n.º 1 do CPC).

Estão, pois, preenchidos os pressupostos processuais da recorribilidade da decisão estabelecidos no art.º 629º, n.º 1 do CPC (valor da causa e da reconvenção superior à alçada do tribunal da 1ª instância/€ 5 000 e valor da sucumbência também superior a metade do valor dessa alçada).

A decisão em causa admite recurso para a Relação.


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

1) R (…) e marido J (…) faleceram, respectivamente, em 28.9.1997 e 24.01.1999.

2) Enquanto vivos, e sempre há mais de 20 anos, R (…) e J (…), possuíram os seguintes prédios rústicos:

a) Terreno de cultura com videiras e oliveiras no sítio do (...) limites de (...), inscrito na matriz predial rústica da freguesia de (...) sob o art. 238, cujas confrontações, descritas na inscrição matricial, são do (…)

b) Terreno de cultura com videiras e árvores de fruto no (...) limites de (...), inscrito na matriz predial rústica da freguesia de (...) sob o art.º 235, cujas confrontações, descritas na inscrição matricial, (…) o que sempre fizeram na plena convicção de que estarem a exercer um direito de propriedade, de boa fé, neles semeando e colhendo batatas, vinho, azeitona, o que sempre fizeram à vista de toda a gente, sem oposição e continuadamente.

3) Os falecidos R (…) e J (…) deixaram como seus únicos herdeiros os seus filhos: a) J (…), aqui 2º réu; b) J (…), entretanto falecido em 15.11.2000; c) F (…), já falecido em 29.9.1998 e d) A (…) aqui 1º A..

4) O falecido F (…) não deixou descendentes, nem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como seu único e universal herdeiro, o seu pai, J (…).

5) O falecido J (…) deixou como seus únicos herdeiros a sua esposa e os seus filhos: a) M (…), esposa; b) P (…), c) F (…), d) A (…).

6) Os imóveis acima identificados ainda não foram partilhados, com o esclarecimento que entretanto pende junto do Cartório Notarial de Viseu, da Notária (…), o processo de inventário n.º 5(…)/18, onde figuram como inventariados os falecidos R (…) e J (…) e onde figura como requerente e cabeça de casal o aqui 2º Réu, que aí prestou compromisso de honra e declarações de cabeça de casal no dia 28.3.2019, conforme documento de fls. 283-287.

7) Os aqui autores e 2º Réu vêm também possuindo os imóveis descritos em 2. praticando os actos aí também descritos, o que fazem há mais de 20 anos, por si e pelos seus antepossuidores.

8) Os 1ºs Réus são donos e legítimos possuidores no sítio do (...), limites de (...) de um terreno de cultura, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de (...) sob o artigo 237 e cujas confrontações, descritas na inscrição matricial, são (…)

9) O acesso a pé e com carros de vacas a este prédio dos 1ºs Réus (237) sempre se fez através do prédio identificado em 2. a) – artigo 238 – com início numa passagem que antigamente se iniciava numa cancela de madeira, posteriormente substituída por um portão em ferro e arame, de apenas 1 folha, com cerca de 1 m de altura existente no referido limite do prédio indicado em 2. a).

10) E que se desenvolve, após os primeiros 3 m, encostada ao muro de suporte de socalco superior e ao longo de cerca de 40 m, com uma largura de cerca de 1,45 m em toda a sua extensão, no sentido poente-nascente e em linha recta até à entrada nascente daquele prédio dos 1ºs Réus.

11) Os 1ºs Réus, em data não concretamente apurada mas sita em meados do ano de 2008, passaram a ocupar uma parcela do prédio inscrito na matriz sob o artigo 238 – a parcela referida no contrato promessa indicado em 18. e 19. – numa área de cerca de 700 m 2, tendo daí arrancado videiras e árvores de fruto, como oliveiras, macieiras, pessegueiros e abrunheiros.

12) Ao arrancarem as ditas árvores e videiras os 1ºs Réus alargaram a passagem do caminho que até então tinha cerca de 1,45 m de largura para cerca de 4 m em toda a sua extensão.

13) Nessa mesma data os 1ºs Réus alargaram também a abertura da passagem indicada em 9., a qual passou igualmente a ter 4 m de largura.

14) E colocaram um portão com 4 m de largura, com o esclarecimento que aproveitaram o à data já existente, aumentando-o.

15) Os 1ºs Réus, em data não concretamente apurada mas contemporânea ou posterior à indicada em 11., colocaram canis na parcela também indicada em 11., onde mantiveram cães presos.

16) Os 1ºs Réus colocaram por cima do muro de suporte de socalco superior referido em 10. e a cerca de 17 m no sentido poente – nascente a partir o portão referido tubos de lusalite com rede de arame, ao longo de cerca de 12 m e com cerca de 2 m de altura.

17) Antes do alargamento referido em 12. os cerca de 3 m que desde então passaram também a ser utilizados como passagem eram terreno lavradio com cordões de videiras e em carreiras.

18) Os Réus celebraram entre si o contrato promessa de compra e venda constante de fls. 94 a 97, datado de 14.8.2008.

19) Nesse contrato figura como promitente vendedor o aqui 2º Réu e como promitente comprador o 1º Réu, aí se tendo exarado, além do mais, o seguinte: (…) Pressupostos: I – No Serviço de Finanças Viseu-2, encontra-se inscrito em nome de J (…), pai do promitente vendedor, um prédio rústico composto por um terreno de cultura com videiras e oliveiras, sito ao (...), limite e freguesia de (...), concelho de(…), inscrito na matriz predial sob o artigo 238 da freguesia de (...) e omisso na Conservatória do Registo Predial de(…). II – Por partilhas verbais efectuadas entre os únicos e universais herdeiros de J (…) e mulher R (…), pais do primeiro outorgante, há mais de 10 anos, aqueles herdeiros fizeram a divisão e demarcação duma parcela do terreno descrito no pressuposto I., o qual está autonomizado e demarcado do restante terreno por muro em pedra a toda a volta, passando a ser um prédio autónomo. III – Esta parcela de terreno é composta por uma terra de cultura com videiras e oliveiras, com um poço, com a área aproximada de 1000 m2, que (…), foi adjudicada ao ora promitente vendedor. Cláusulas: Primeira – O primeiro outorgante é dono e legitimo possuidor de um terreno de cultura com videiras e oliveiras, com um poço, com a área aproximada de 1.000 m2, sito ao (...), freguesia de (...), concelho de (…), (…), inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 238 e omisso na Conservatória do Registo Predial de(…). Segunda – O primeiro outorgante promete vender ao segundo outorgante, que por sua vez, o promete comprar, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades (…), pelo preço de € 3.000. (…). Quarta – O primeiro outorgante obrigava-se a realizar a escritura pública de compra e venda, no prazo máximo de 60 dias após ter sido interpelado para esse efeito pelo segundo outorgante, (…)”. Quinta – A escritura pública será marcada pelo primeiro outorgante, num dos Cartórios Notariais de Viseu, ficando este obrigado a comunicar ao segundo outorgante, com antecedência mínima de 24 horas, o dia, hora e o local da realização da mesma. Sexta – O primeiro outorgante investiu o segundo outorgante na posse efectiva do terreno que é objecto do presente contrato promessa, autorizando-o a nele praticar todos e quaisquer actos inerentes ao exercício pleno do direito de propriedade, nomeadamente, podendo cultiva-lo, apanhar os seus frutos, plantar árvores e videiras, abrir poços para rega, conservar o muro de vedação do terreno. (…)”.

20) Os AA. tomaram conhecimento da existência do contrato identificado em meados de Agosto de 2009.

21) A partir da data da ocupação da parcela do prédio inscrito na matriz sob o art.º 238 os 1ºs Réus passaram a cortar o silvado que aí havia, a lavrar, estrumar e adubar o prédio.

22) E plantaram também 8 cepas novas de vidreiras, com o que despenderam € 23,20, e árvores de fruto, concretamente: 3 figueiras, 5 pessegueiros, 2 aveleiras, 1 nespereira, 1 pereira, 8 oliveiras, com o que despenderam € 100.

23) Nele semeando também batatas, cebolas, couves, feijão, tomates, cenouras e outros produtos hortícolas de regadio.

24) Os 1º Réus reconstruiram, em 2005/2006, um barracão que existia no seu prédio – 237 – há mais de 50 anos.

25) As características que o trilho da passagem referida apresenta – concretamente “despido” de qualquer vegetação e em terra batida – devem-se ao calcorrear das pessoas, incluindo dos 1ºs Réus, animais e carros de vacas e ainda, actualmente e desde a data em que os 1ºs Réus alargaram a passagem para 4 m, devido à passagem de tractores, actualmente e desde a data do dito alargamento calcado com dois sulcos paralelos causados pelos rodados dos tractores.

26) O prédio rústico inscrito no art.º 237 não confina nem nunca confinou com a via pública.

27) Os 1ºs Réus sempre utilizaram, de pé e com carros de vacas, a passagem referida supra para transportar estrumes e adubos, lavrar, fazer as sementeiras no seu terreno, sulfatar, podar as videiras, oliveiras e as árvores frutícolas, recolher e transportar as colheitas produzidas, tais como, batatas, cebolas, feijão, cenouras, milho, tomates, hortaliças e outros produtos hortícolas, as uvas e as frutas, mondar e regar as culturas que cultivam no seu terreno – 237.

28) Os 1ºs Réus, por si e seus antepossuidores, utilizam a referida passagem, a pé e com carros de vacas, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, ao longo de todo o ano, consecutivamente, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos, o que fazem na convicção de exercerem um direito próprio e sem que alguma vez tenham sido interpelados ou estorvados de o fazer.

29) Com o corte, limpeza e preparação do terreno – parcela do 238 – os 1ºs Réus despenderam cerca de € 65.

30) Os 1ºs Réus lavraram e fresaram o terreno, com o que despenderam cerca de € 30.

31) Por forma a torná-las produtivas os 1ºs Réus mandaram limpar e podar dez oliveiras e uma pereira, com o que despenderam cerca de € 11.

32) Os 1ºs Réus limparam e repararam o poço e a mina existentes no prédio 238, com o que despenderam € 150.

33) Os 1ºs Réus, por forma a tornar o terreno produtivo, aplicaram no solo herbicida, adubo e estrume, com o que gastaram cerca de € 100 durante o ano.

34) Após o plantio das videiras e das árvores frutícolas os 1ºs Réus têm feito a sua poda, limpeza e cura com pesticidas com o que despenderam cerca de € 150.

35) Com os tubos de lusalite e rede arame mencionados em 16., e sua colocação, os 1ºs Réus despenderam € 270.

36) Com a colocação e aumento do portão mencionado em 14., incluindo mão-de-obra, os 1ºs Réus despenderam € 60.

2. E deu como não provado:

a) Os 1ºs Réus arrancaram do prédio inscrito na matriz sob o art.º 238 duzentos pés de videiras.

b) Os 1ºs Réus, desde a data indicada em 11., vêm colocando na parte poente e sul do prédio inscrito na matriz sob o art.º 238 pneus velhos, paus, ferros, tubos de lusalite, tijolos e lixo vário.

c) Por cima do muro indicado em 16. os Réus colocaram malha de aço.

d) A área de terreno que os 1ºs Réus vêm ocupando ascende a cerca de 1400 m2.

e) Os 1ºs Réus, com a destruição dos pés de videira, das oliveiras, macieiras, pessegueiros, abrunheiros causaram um prejuízo de € 5 500.

f) Os 1ºs Réus, há cerca de 2 anos contados desde a data da instauração da acção, construíram casa de habitação no limite poente do seu prédio, inscrito na matriz sob o art.º 237, utilizando para tanto o antigo muro em pedra de vedação da estrema nascente do terreno identificado em 2. a) e sobre o mesmo, construíram e cimentaram numa extensão de cerca de 11 m a parede poente dessa sua casa.

g) E utilizaram ainda, para a construção da casa de habitação, o muro de vedação da estrema sul, agora do prédio indicado em 2. b), e por cima do mesmo, ao longo de cerca de 16 m, construíram e cimentaram a parede norte dessa sua casa.

h) No sentido poente-nascente a cerca de 5 m da estrema poente desse muro, para dentro dos limites do prédio identificado em 2. b), ou seja, para norte, os 1ºs Réus avançaram a parede norte da casa em cerca de 30 cm de largura numa altura de cerca de 2,5 m e numa extensão de cerca de 3 m.

i) Os Réus, ao agirem conforme descrito supra, causaram aos autores profundos desgostos e irreparável mágoa, que sempre tiveram o maior gosto em conservar, tal como vinham já de seus pais, esses seus prédios.

j) O 1º Réu, antes da outorga do contrato promessa indicado, contactou o 1º A. para uma eventual compra do prédio inscrito na matriz 238, o que este recusou.

k) O 2º Réu prometeu vender ao 1º Réu o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o art.º 238, com uma área de 460 m2, o qual se encontra devidamente demarcado com um muro em pedra a toda a volta.

l) O caminho existente no prédio inscrito na matriz predial rústica sob o art.º 238 e que os Réus sempre utilizaram para acederem ao seu prédio, inscrito na matriz predial rústica sob o art.º 237, teve sempre e em toda a sua extensão a largura de 2,5 m.

m) Os 1ºs Réus, por si e seus antepossuidores, utilizam, com tractor e durante todo o ano, esse caminho de servidão de passagem há mais de 20, 30 e 50 anos.

n) A abertura que existia no inicio do caminho, desde que a memória dos vivos alcança, era constituída por um portão em ferro e uma cancela em madeira com cerca de 4 metros de largura.

o) Após lhes ter sido concedida a posse do terreno - 238 - os 1ºs Réus limitaram-se a substituir a cancela de madeira, que estava em muito mau estado, por um portão em ferro com rede de arame e deram apenas um arranjo ao caminho.

p) O poço e a mina existentes no prédio - 238 - estavam atulhados e a desmoronarem-se, tendo os aqui 1ºs Réus procedido à sua limpeza e reparação.

q) Os 1ºs Réus tiveram cães presos junto ao barracão que reconstruiram, no seu prédio 237.

r) A reconstrução do barracão indicado em 24. foi feita dentro dos limites do prédio dos 1ºs Réus - 237.

s) O muro de suporte de terras que existe no lado norte do prédio inscrito no art.º 237 tem 13,70 m e localiza-se totalmente dentro dos limites do prédio referido - 237.

t) O prédio inscrito na matriz sob o art.º 235, contíguo ao 237, está ao completo abandono, não passando dum silvado e matagal.

u) Os 1ºs Réus sempre entraram com tractor pelo prédio 238, atravessando-o numa extensão de 40 m de comprimento por 2,5 m de largura.

v) Os 1ºs Réus, por si e seus antepossuidores, utilizam a referida servidão de passagem com tractor à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, ao longo de todo o ano, consecutivamente, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos, o que fazem na convicção de exercerem um direito próprio e sem que alguma vez tenham sido interpelados ou estorvados de o fazer.

w) Para a execução dos trabalhos indicados em 29. os 1ºs Réus contrataram duas pessoas, que demoraram 6 dias a executá-los, tendo pago a cada um dos trabalhadores € 35 por dia, despendendo com tais trabalhos a quantia de € 420.

x) Os trabalhos indicados em 30. mostraram-se necessários face ao estado de completo abandono do terreno, que assim esteve mais de 10 anos, tendo os 1ºs Réus despendido com o tractorista € 250.

y) Com a limpeza e poda das oliveiras e pereira os 1ºs Réus dependeram € 250, com um trabalhador a € 50 ao dia x 5 dias.

z) O poço e a mina referidos em 32. estavam atulhados e a desmoronar-se.

aa) Os 1ºs Réus tiveram de aplicar no terreno 238 herbicida, adubo e estrume por causa do seu estado de pousio.

bb) Com a plantação e enxertia das videiras os 1ºs Réus despenderam cerca de € 100.

cc) Os 1ºs Réus plantaram no terreno (238) 3 macieiras, 1 cerejeira e 1 abrunheiro, tendo despendido a quantia de € 120.

dd) Com a poda, limpeza e cura com pesticidas das videiras e árvores frutícolas os 1ºs Réus despenderam cerca de € 250.

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

a) O 1º Réu/recorrente insurge-se, principalmente, contra a decisão sobre a matéria de facto, sendo que da sua eventual modificação poderá resultar a afirmação do direito de servidão configurado na reconvenção; os AA., no recurso subordinado, pedem também a modificação do decidido visando restringir o conteúdo da servidão.

Importa assim averiguar se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto à factualidade provada aludida em II. 1. 9), 10), 12), 13), 25), 27) e 28) e à factualidade não provada dita em II. 2. alíneas l), m), u) e v), supra, pugnando o 1º Réu pela resposta (diversa) indicada nas “conclusões 9ª, 10ª, 27ª e 28ª”, ponto I., supra, e, os AA., pela resposta referida nas “conclusões 3ª e 4ª” do recurso subordinado, baseando-se, para o efeito, nos depoimentos/declarações dos Réus e do A. A(…) e nos depoimentos de nove testemunhas, tudo, conjugado com alguns dos documentos (sobretudo, fotografias) juntos com a p. i..

b) Esta Relação procedeu à audição integral da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental.

c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efectivação do princípio da imediação[4], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que se verifique se os depoimentos e as declarações de parte foram apreciados de forma razoável e adequada.

            Na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[5], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

d) Depois de precisar que o Tribunal a quo atendeu à “totalidade da documentação junta aos autos”, a todos os depoimentos e declarações prestados em audiência de julgamento, à peritagem de fls. 266 e ao resultado da inspecção judicial realizada no decurso do julgamento, “tudo valorado de forma conjugada entre si e de forma crítica, lógica e de acordo com as regras da lógica e experiência comum”, a Mm.ª Juíza procedeu à análise da prova, principalmente, da prova pessoal, explicitando as razões que a levaram a destacar certos depoimentos e declarações em detrimento doutros, tidos por menos credíveis ou fiáveis.

Pensamos que é precisamente a diversa, e justificada, valoração/apreciação dos depoimentos e declarações em causa que permitirá encontrar a solução conforme à realidade da vida rural da segunda metade do séc. XX, em particular, na Beira Alta e no concelho de Viseu, a que o caso em análise não será estranho, podendo e devendo o julgador lançar mão, inclusive, das denominadas presunções de facto ou naturais - «o juiz…, com base em regras de experiência, considera existente a alta verosimilhança de certo curso das coisas e, com isso, produzida a prova».[6]

Sabemos que, atingida a 1ª metade do séc. XX, o sector agrícola em Portugal era muito importante para a Economia e para a subsistência da População, sobretudo, dos meios rurais; porém, em geral, continuavam a ser utilizados instrumentos e recursos rudimentares (e primitivos), sendo escassos os meios mecânicos.

Ainda em fase de reconstrução da Europa do pós-Guerra, principalmente da Alemanha e da França, muitos milhares de Portugueses seguiram o caminho da emigração, realidade bem presente, sobretudo, nas décadas de 60, 70 e 80 do séc. passado.

Regressados a Portugal, muitos deles passaram a utilizar modernos instrumentos de trabalho, designadamente, tractores e outras máquinas agrícolas, deixando de utilizar os meios rudimentares do passado em que o gado domesticado desempenhava papel fundamental. Naturalmente, procedimento idêntico tiveram os que, mais abonados no plano económico e que permaneceram no País, puderam adquirir idênticos hodiernos utensílios e meios de produção.

Ora, esta realidade, também presente no meio rural do concelho de Viseu dos anos 60, 70 e 80 do séc. XX, permite fazer alguma (mas suficiente) luz sobre a realidade do caso sub judice, e é fundamental para a correcta apreciação e valoração da prova pessoal, em sentido parcialmente diverso do pugnado pela Mm.ª Juíza a quo.

Sabemos que a matéria não é isenta de dificuldades e tudo nos diz que a Mm.ª Juiz fez um assinalável esforço na busca da verdade material. Porém, salvo o devido respeito por opinião em contrário, cremos que não lhe foi possível divisar aquela que se antolha ser a factualidade com maior grau de verosimilhança e mais próxima do “curso ordinário das coisas”, do nosso passado recente, que também contém ou inclui o caso presente.

e) Atentando, agora, na prova pessoal especialmente indicada em sede de recurso, destacamos:

- Depoimento/declarações do 1º Réu (fls. 331; 68 anos):

Os terrenos todos eram da nossa família (dos AA. e Réus)”. “O terreno era tudo igual, o terreno era o mesmo, só que depois houve as partilhas e cada um ficou com o seu”: (…) o caminho entrava-se, antigamente, num carrinho de bois, está lá o caminho, é o que lá está, é o que era, um carro de bois, ultimamente acabaram, bois e vacas, que os meus pais e está ali um amigo que ia lá que dava-se bem com os meus pais e iam lá com os bois; “(…) aquilo tem aí uns 40 metros, eu até medi aquilo em tempos já mais tarde, quando comprei aquilo talvez”, “é de poente para nascente”; “à entrada tem uma parte mais larga aí talvez com 3,5 metros e depois faz uma curvazinha e depois é todo direito até à parte que hoje é minha, que eu depois fiquei com aquilo dos meus pais, (…) 3,5 metros, se calhar 4” (…), e depois vai aí a 2,5 metros até ao fundo; “(…) a curva é à entrada só (…) ” e depois “em linha recta”; a largura de “2,5 mais ou menos”, “o portão fui eu que o pus depois de fazer o contrato com o Sr. (…)”: “as medidas da largura é as que estão, passava-se e era a largura, só que agora o piso torna-se o chão, o solo onde se passa, mais largo, porque é trator e carrinhas e carros, eu vou lá todos os dias, é onde eu passo um bocaditos para me entreter (…)”; “a passagem é sempre a todo o comprimento (…)”; “a largura é a largura que tinha para passar um carro de bois e agora é um trator e uma carrinha (…); (…) a largura é aí de 2 metros, 2 metros e tal, talvez, (…) é a largura de um trator, um carro de bois”; “(…) então os carros de bois acabaram (…), quem é que hoje tem carro de bois? (…); (…) aquilo eram silvas (silvado com 4 a 5 metros de altura) (…) aquilo cortaram-se as silvas, limpou-se e depois sempre foi, sempre teve a dimensão para entrar as viaturas e sucessivamente (…); (…) a cancela eram uns pinheiros que se punham, umas tábuas e um pinheiro (…); a cancela era o pinheiro, (…) só para marcar que aquilo que tinha dono, porque aquilo iam por ali abaixo…; (…) eu nunca tive tractor (…), passava de carro, passava de carrinha, que tenho uma ´4L´; antes, (…) passávamos de carro (…), às vezes, o meu pai à frente dos bois e das vacas e eu cima do carro de bois; (…) há dez anos talvez não, se calhar já era tractor, (…) têm as outras pessoas para me lá irem lavrar…”. Usavam aquele caminho (único acesso para o terreno dos Réus) “para tudo, para levarem estrumes, para cultivar, (…) levavam batatas para semear, lavavam feijão, levavam estrumes, levavam o motor de rega (…)”; o seu terreno  era lavrado “com carro de bois, a partir de que veio os tractores, começou a ser lavrado com tractores; (…) aquilo era tudo família, aquilo era tudo de irmãos…”.

- Depoimento do A. (…) (fls. 331; 67 anos):

O 1º Réu “tem um prédio ao lado, porque isso era já herança que vinha dos nossos avós”; o acesso ao prédio, “o caminho”, tinha a largura de “mais ou menos 80 cm”; “(…) a medida desse caminho está lá bem visível num portão que o J(…) (1º Réu) alterou, que aumentou, mas o portão antigo continua lá junto, portanto, colado ao outro, soldado às outras partes”; o 1º Réu “aumentou a área significativamente, (…) passa lá um carro à vontade, portanto sei lá, deve ter para aí 2 m, 2 m e qualquer coisa” (…); antigamente eram cerca de 80 cm”; anteriormente, o acesso ao terreno “era a pé e, por vezes, podiam levar um carrito de mão, ou as coisas, ou as mercadorias à cabeça, antigamente entravam bois pela parte frontal onde está agora a carreira…, normalmente abria-se ali as videiras que existiam, abriam-se ali os arames e os bois passavam por ali (…)”; acediam ao terreno do 1º Réu (art.º 237) “a pé”, com as coisas à cabeça ou num “carrito de mão”; “por aí nunca iam de carro de bois, e tractores também não”; “(…) nunca entraram por ali carros para as fazendas de baixo…”. O 1º Réu “(…) cortou o que lhe interessava cortar e começou a fazer caminho de carro, (…) limpou aquela parte toda, (…) e começou a usar carro sim, antigamente só ia a pé”; agora, “o caminho deve ter para aí 2 metros, a largura do carro, do rodado de um carro, será isso mais ou menos”.

- Depoimento/declarações do 2º Réu (fls. 342 verso; irmão do A. e primo do 1º Réu; 78 anos):

 “(…) o meu terreno nunca foi limpo por ninguém, a não ser pelo J(…), antes e depois do contrato-promessa (reproduzido a fls. 94)”; “(…) um caminho, tinha um socalco de pedra com um muro e dava passagem para os outros terrenos…; “(…) o caminho era de 80 cm depois tinha o terreno, todo o terreno;  (…) era de pé, entrada de carro de bois e tractor; (…) antes não havia, era carro de bois pronto, pela entrada principal do terreno; (…) aquilo é um terreno direito, a passagem, e depois tinha o terreno; (…) que entrava por esse portão principal, portão, que não era portão nenhum, era dois paus ao alto e um em cima, tirava-se os paus e entrava-se por ali com o carro de bois; (…) ele agora é que mudou essa entrada, o J(…) é que melhorou essa entrada”; o caminho “estava aberto,  não tinha cancela nenhuma”; a propriedade tinha uma cancela com cerca de 3 m “(…) que dava acesso a todos os terrenos (inclusive, com carro de bois)”, há mais de “50, 70 anos (…)”; “o caminho que eu me referia é nivelado com o terreno, para as pessoas não passarem no meio do terreno, passam por aquele caminho, (…) demarcado (pelo) muro de pedra, e em baixo era um caminho de passagem”; para o terreno que hoje dizem pertencer ao depoente ou ao 1º Réu “quando abriam o portão ou as cancelas, se é que as tinha, entrava carro de bois e entrava quem quisesse passar, nos tempos dos meus pais, entrava lá muitas vezes com estrume para adubar as terras, (…) era aí que entrava o carro de bois, (…) e depois ia para o terreno do Sr. J(…), com umas cestas é que iam levar para os diversos lados, era o chamado estrume, mais ou menos a meio do meu/dele, terreno (…)”.

- A (…) (fls. 360; 69 anos):

Era tractorista lá no Povo”. O 1º Réu contratava-o para lavrar a terra, já há muitos anos (há mais de 30 anos; tenho quase 37 anos de tractorista) eu ia lá lavrar e fresar, e também o fazia ao pai dele, quando ele deixou de ter vacas”. “Passava pelo caminho de quem vem de (...) até ao campo da bola para lá e entrava para dentro e cultivava, fresava a terra e lavrava e vinha-me embora”. O terreno “está junto a um caminho, a um caminho velho vá, (…)” que “passa”, “primeiro, pelos (…) outros vizinhos, (…) depois é que se entrava para o portal do Sr. (…)”; “(…) sempre lá passei com o tractor”. Depois da morte do Sr. J (…) “havia silvado pegado (…), ninguém cultivava, ficou silvado”. “(…) ia só lavrar ali e ia-me embora, ia ao F(…).” Nunca passou nos terrenos do Sr. (…), passava “num caminho…”; trabalhou o terreno que pertencia ao pai do 1º Réu, hoje pertença do 1º Réu.

- A (…) (fls. 360 verso; irmão do 1º Réu; 63 anos):

“(…) Esses dois terrenos do meu irmão, que é (…)a e do Sr. J (…) vá, eram terrenos da minha avó. Foi uma partilha que houve da minha mãe e da minha tia neste caso.” “(…) O caminho normal mais perto, (…) pelo lado do Campo de Futebol, praticamente é directo. (…) é alcatroado até entre 800 a 1000 metros, depois é macadame. (…) aquilo passando por várias pessoas que têm ali os terrenos à volta, portanto, (…) o último terreno é do meu irmão, é dos meus familiares, vá, dos meus primos, neste caso que são herdeiros e do meu irmão; (...) o terreno dos meus pais fica atrás do terreno, neste caso do Sr. A (…) dos herdeiros. O meu irmão para passar para o terreno dele tem que passar no terreno do Sr. A (…) que era o mesmo terreno, faziam parte do mesmo grupo que era da minha avó. Automaticamente quando fizeram as partilhas da minha avó que ficou para os meus pais e para os pais do Sr. (…), portanto, tinha que ter caminho, o terreno de dentro tínhamos que passar por algum terreno e seria o terreno que pertencia à minha avó, neste caso. Essa partilha já foi aproximadamente 60 anos. (…) Entravam a pé e entravam de carro (…), aquilo tinha culturas lá, semeavam batatas, (…) semeavam tudo. Na altura era carro de bois, não havia os tractores que hoje há. Depois com o desenvolvimento, com o andamento, claro, deixaram, os bois foram ficando ultrapassados e foram os tractores. (…) Para lavrar as terras, para colher, para tirar as batatas, para tirar os vinhos, para tirar o azeite, inclusive, a azeitona e por aí fora. O caminho tinha “2 m e meio, 3 m (de largura)” e “(…) talvez 40 a 50 m (de comprimento) (…) É recto, tem um muro de suporte de terra e o caminho era encostado por ali fora.(…) é aos socalcos e conforme são os socalcos assim são as paredes de suporte”; “(…) a única coisa que se fez ali foi vedar o terreno e fazer aquela entradita que ele tem lá à entrada onde acaba o terreno e começa a estrada, começa o caminho...”; “(…) Os tractores pode não ser há 30, mas aproximadamente. (…) há mais de 30 anos, desde que os meus pais começaram a cultivar as terras era com os animais que lavravam as terras. Quando os animais começaram a deixar de trabalhar e as pessoas a deixarem de os ter, foram os tractores que começaram a lavrar, (…) 30 ou há mais de 30 (anos). (…) Depois de os animais começarem a desistir, não desistiram, mas pronto, deixaram de trabalhar, começaram os tractores a fazer o serviço; os meus pais não tinham, alugavam (…) era quem os tinha. (…) A(…) é o único tratorista de hoje, há 30 anos haveria (outros tractoristas). O Sr. J(…) que é lá meu vizinho, que já tem 90 e tal anos. (…) Ele há 50 anos já tinha tractor. (…) algumas das vezes os meus pais iam lá e lavravam-lhes as terras. (…)  nessa altura, com 10 ou 15 anos (idade do depoente à data, ou seja, há cerca de 50 anos), ainda eram os animais que faziam aquilo. (…) acabaram os animais vieram os tratores. (…) Era com um carro de bois, então. (…) era por lá que entravam, passava pelo caminho. (…) nós em certa e determinada altura nós passávamos de bois, nem eram bois até eram vacas (…). (…) E depois mais tarde as vacas, os meus pais as forças também começaram a faltar, começaram a fazer as terras com os tractores. (…) Poderia ter 3, poderia ter 2 e meio (metros de largura).  Os animais passavam por ali com o carro. (…) Os animais estão jungidos, (…) os animais, portanto, os que nós tínhamos eram animais e aqui usava-se era dois animais, um ao lado do outro.” Os meus pais tinham de passar pelas terras da minha tia para ir para lá (para o terreno que hoje pertence ao 1º Réu)”. “(…) Encostado ao caminho, era o caminho e não havia videira nenhuma (“aonde se passava”). (…) o caminho pode não estar igual. (…) há mais de 15 anos talvez (que o seu irmão começou a tratar das terras que eram do Sr. (…)). (…) o caminho sempre esteve livre, (…) o caminho tinha de o manter limpo para passar (…)”.

- M (…) (fls. 360 verso; mulher da anterior testemunha; 63 anos):

“(…) Eu já conheço isso há mais de 40 anos, esses terrenos. (…) O que era dos meus sogros não testa mesmo no caminho público. (…) Passavam pelo terreno que era do Sr. (…), no tempo dos meus sogros. (…) Nós passávamos lá, algumas vezes eu lá fui, (…) trabalhava numa fábrica, mas pelo menos aos sábados às vezes eu ia lá com o meu sogro e com a minha sogra e ia ajudar e ele levava as vacas com o carro, com os estrumes e passávamos por ali. Uma das vezes, prontos, um sábado qualquer, Deus me livre eu me estar agora a lembrar de tal coisa, uma das vezes sei que a D.ª R (…)  até pediu aos meus sogros se lhe arranjava um estrume para as terras e o meu sogro levou e descarregou o estrume lá nesse dito, nesse caminho para onde a gente passava para as terras dos meus sogros e ela depois levava o estrume lá para as terras dela. (…) a gente chama ali a rua Quinta do (...), não sei; ia-se por esse caminho, passava-se ali rente ao muro, que aquilo até tem assim um murinho que divide a terra. Aquilo era tudo do mesmo dono, mas aquilo tem um murinho, que a terra é assim mais alta, aquele terreno era mais baixo e a gente passava por ali em direcção aos outros terrenos. (…) ao entrar aquilo não havia nada, aquilo na altura tinha um, era um buraco, não havia porta, não havia nada. Era uma entrada. (…) Ele não tinha bois, era vacas. E passávamos por ali. Levavam os estrumes. E na altura eles lavravam, não havia tractores naquela altura. Tinham uma grade com discos de ferro também para lavrarem as terras e aquelas partes mais pequeninas ele deitava o estrume e cavava à enxada. E semeavam. (…) Tinham macieiras, pereiras e oliveiras. E videiras também tinham, tinham muitas, ainda lá estão muitas (…). (…) e continuou no tempo do meu cunhado que ficou com os terrenos. (…) os meus sogros chegaram a uma certa idade e não, as vacas acabaram - depois quem lá ia era o tractor. Quando o meu cunhado precisava dizia ao tratorista e ele ia. (…) eu não sei a largura, mas naquela altura era a largura de passar o carro de bois (…); o caminho era quase em linha recta; (…) ele (1º Réu) já cultivava com os pais, (…) quando os pais começaram a ficar mais com certa idade ficou ele com aqueles terrenos (…). (…) Eu disse ao meu marido ´os terrenos do teu pai não vale a pena virem para nós`. Eu tenho tanto terreno e o meu cunhado ficou com eles para ele. (…) íamos ajudar”. (…) o caminho apresenta um “trilho, conforme passam o tractor e passam os carros”; (…) o caminho é do carro dos bois, (…) o chão era o chão da terra, (…) tinha ervas e tinha aquele triado de passarem os carros. (…) Quando precisavam de lá ir ou levar alguma coisa para lá por exemplo, ou ir buscar as palhas quando tinham os centeios, que era no carro de bois que era transportado, das vacas, que era transportado. Tapavam (a entrada) com um pau”. Os sogros da depoente não tiveram tractores, “só tiveram vacas (…).

- M (…) (fls. 360 verso; irmã da anterior testemunha; 60 anos):

“(…) conheço aquilo (o terreno do 1º Réu) há muitos anos, já do tempo do Sr. (…), que eram os pais do Sr. (…) J (…) (1º Réu). (…) Eles tinham uma quinta aqui ao pé do Hospital onde passou aquela avenida, mas cultivavam aquele terreno aí. E nós como habitual e antigamente nas aldeias a gente tinha o hábito de ajudar uns aos outros. (…) fui morar para aquela quinta com 15 anos, tenho 60. (…) a Sr.ª D (…) e o Sr. J (…) tinham lá um barracão, (…) lembra-me tão bem, iam sempre com o carro de vacas, eram vacas, não eram bois (…). (…) ia uma vaca de um lado e outra do outro e lá ia o tio J (…) à frente a puxar as vacas e a tia D (…) muitas vezes ia sentada no carro e outras vezes levavam estrumes e passavam às vezes parte dos dias lá. Faziam lá a comidita nesse barracão que lá tinham e depois cultivavam as batatas, que era o que a gente ajudava muitas das vezes. (…) Aí é que tinham todos os animais. (…) na altura o Sr. J (…) utilizava as vacas, com a charrua ou lá como se chama aquilo e era o arado e a grade (…). Quando lavravam ia-se com a sachola picar, chamava-se picar a leiva ou como era e depois semeavam o milho, se era milho e depois com a grade é que alisava. (…) Videiras, tinha umas oliveiras e árvores de fruto (…); (…) Era uma entrada de carros de bois. (…) Entrava o carro de bois (…) à vontade.  (…) os bois já desistiram sei lá há quanto tempo, depois já foram os tractores. (…) já depois do Sr. J (…) sei lá, para aí uns 20 anos que já o tractor lá entra. No tempo dos velhotes (…) íamos ajudar muitas vezes, a minha mãe era viúva, (…) ajudávamos os velhotes e assim, depois quando ficou o Sr. J(…) claro, as vacas isso acabou por desistir. Acabaram por desistir e nem eles tinham condições de ir a pé daqui ao pé do hospital para lá, que ainda é um pedaço, mais de um quilómetro”. O 1º Réu cultivou o terreno ainda “em vida dos pais (…) porque o pai tinha muitos problemas de saúde e a mãe também era uma pessoa muito doente e o maior desgosto que tinham era deixar aquilo tudo de monte. E então o Sr. F (…) dedicou-se a ir para lá.” O caminho “(…) está mais, mais arranjado. O piso. (…) era um carro de bois que passava, agora é um tractor. “(…) ele (1º Réu) é que utilizava o caminho, ele é que cultivava, ele é que andava lá sempre. (…).

f) É evidente que as fotografias juntas aos autos dão-nos conta do estado e configuração actuais do local, caminho e entrada aludidos nos autos [cf., sobretudo, fls. 241-A, 267, 270, 271, 351, 356, 357, 358 e 366 (o carreiro aqui evidenciado nada terá a ver com o caminho em causa)].

g) Salvo o devido respeito, discorda-se do afirmado pela Mm.ª Juíza sobre a data a partir da qual o 1º Réu e progenitores passaram a utilizar tractores, porquanto as duas testemunhas que (melhor) demonstraram conhecer tal realidade (A (…) e mulher[7]) afirmaram, sem contradição alguma, que, quando os progenitores daquele, devido à idade avançada e/ou à doença, viram reduzidas as suas forças, e já com o auxílio do(s) filho(s), “começaram a fazer as terras com os tractores”, “chegaram a uma certa idade, as vacas acabaram… - depois quem lá ia era o tractor”.

Pelos elementos disponíveis, será de admitir que à entrada da última década do séc. XX os pais do 1º Réu seriam já septuagenários, pelo que o começo da utilização de tractor (máxime, o aluguer dos serviços de tractorista) poderá ter ocorrido em finais dos anos 80/princípio da década de 90 (e não, apenas, a partir de Agosto de 2008), sabendo-se que, em toda a Região, a utilização do tractor teve um grande impulso na década de 70, acentuando-se nas décadas seguintes, à medida que desaparecia por completo (ou quase) a utilização de animais nos trabalhos agrícolas (ao ponto de, hoje, e desde há vários anos, dificilmente se poder encontrar aldeia, povo ou lugar onde ainda exista uma junta de bois[8]!).

Dir-se-á, mesmo, que os referidos depoimentos se ajustam, perfeitamente, àquela que foi, e é, a realidade do nosso mundo rural.[9]

Por outro lado, os declarantes F (…) (45 anos de idade e neto dos falecidos J (…) e R (…)) e M (…) (66 anos de idade e esposa do 1º A.) trouxeram versões dos factos não acolhidas pelos seus “pares” declarantes e que, como bem assinalou a Mm.ª Juíza a quo, «possuem um mais remoto e aprofundado conhecimento dos prédios dos autos».

Quanto à largura do caminho releva, sobretudo, o que decorre das declarações do 1º Réu e do depoimento da testemunha (…) - o caminho tinha cerca de 2,5 m de largura.

4. Face ao que se deixa exposto, procede-se à seguinte modificação da decisão de facto:

 - 9) O acesso a pé, com carros de vacas e com tractores a este prédio dos 1ºs Réus (237) sempre se fez através do prédio identificado em 2. a) – art.º 238 – com início numa passagem que antigamente se iniciava numa cancela de madeira, posteriormente substituída por um portão em ferro e arame, existente no referido limite do prédio indicado em 2. a).

- 10) E que se desenvolve, após os primeiros 3 m, encostada ao muro de suporte de socalco superior e ao longo de 40 m, com uma largura de 2,5 m em toda a sua extensão, no sentido poente-nascente e em linha recta até à entrada nascente daquele prédio dos 1ºs Réus.

- 25) As características que o trilho da passagem apresenta - concretamente “despido” de qualquer vegetação e em terra batida - devem-se ao calcorrear de pessoas, incluindo dos 1ºs Réus, animais, carros de vacas e aos rodados da passagem de tractores.”

- 27) Os 1ºs Réus sempre utilizaram, de pé, com carros de vacas e com tractores, a passagem referida supra para transportar estrumes e adubos, lavrar, fazer as sementeiras no seu terreno, sulfatar, podar as videiras, oliveiras e as árvores frutícolas, recolher e transportar as colheitas produzidas, tais como, batatas, cebolas, feijão, cenouras, milho, tomates, hortaliças e outros produtos hortícolas, as uvas e as frutas, mondar e regar as culturas que cultivam no seu terreno – 237.

- 28) Os 1ºs Réus, por si e seus antepossuidores, utilizam a referida passagem, a pé, com carros de vacas e com tractores, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, ao longo de todo o ano, consecutivamente, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos, o que fazem na convicção de exercerem um direito próprio e sem que alguma vez tenham sido interpelados ou estorvados de o fazer.

- A factualidade dita em II. 2. alíneas l), m), u) e v), supra, é assim dada como provada, na forma ora indicada, enquanto os factos descritos em II. 1. 12) e 13), supra, se consideram não provados.

Procede, pois, integralmente a impugnação deduzida pelo 1º Réu (art.º 662º, n.º 1 do CPC - a Relação poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa), improcedendo totalmente a apresentada pelos AA..

5. A servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia), sendo certo que o dono do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão (art.ºs 1543º e 1568º, n.º 1 do CC).

O direito de servidão (predial) é um ius in re aliena, um direito real de gozo limitado (menor) - o encargo (sobre o prédio onerado/serviente) é imposto em proveito de outro prédio pertencente a dono diferente (prédio dominante), verificando-se, assim, uma restrição ou limitação ao conteúdo do direito de propriedade sobre o prédio onerado.[10]

6. Colocada como objecto do recurso está a questão do concreto conteúdo da servidão que foi declarada ter sido constituída por usucapião como encargo do prédio dito em II. 2) a), supra, em benefício do prédio dos 1ºs Réus.

Perante a modificação introduzida à matéria de facto, o 1º Réu/recorrente viu atendida a sua versão dos factos, concluindo-se que a invocada servidão aparente se acha devidamente configurada e constituída, por usucapião - servidão de passagem a pé, com carros de vacas e com tractores, pelo caminho com as características e dimensões dadas como provadas em 9) e 10) (cf. II. 4., supra, e, nomeadamente, art.ºs 1547º, 1548º e 1565º do CC) - pelo que o pedido reconvencional incluído nas alíneas “b)” e “c)” encontra agora integral acolhimento.

7. Procedem, assim, as “conclusões” da alegação de recurso do 1º Réu, improcedendo as demais “conclusões” da alegação do recurso subordinado.


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            III. Pelo exposto, procedendo o recurso principal (e improcedendo o recurso subordinado), acorda-se em revogar parcialmente a decisão recorrida, modificando-se a decisão sobre a matéria de facto como se indica em II. 4., supra, e condenando-se os AA./reconvindos, na qualidade de representantes da herança aberta por óbito de R (…) e J (…), a reconhecerem que o prédio inscrito na matriz sob o art.º 238 se encontra onerado com uma servidão de passagem de pé, carro de bois e tractor a favor do prédio inscrito sob o art.º 237, com as características descritas em 9) e 10) dos factos provados, e, ainda, a respeitarem o referido direito de servidão de passagem dos Réus e a absterem-se de violar ou impedir tal passagem, mantendo-se no mais o decidido.

Custas do recurso principal e do recurso subordinado a cargo dos AA..


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09.02.2021

Fonte Ramos ( Relator )

Alberto Ruço

Vítor Amaral



[1] Os herdeiros da Ré foram declarados habilitados (para com eles prosseguirem os termos da demanda, em substituição da falecida) por sentença de 15.02.2018 proferida no apenso A.
[2] Rectifica-se lapso manifesto.
[3] E temos como inteiramente correcta a asserção que, em sede de “questão prévia”, os AA. atribuíram a aresto desta Relação, com o seguinte teor: «(…) esta sucumbência não se deva aferir apenas através da comparação do que foi pedido e o que foi decidido, devendo também operar uma segunda comparação entre o que foi decidido e o que é pedido no recurso interposto. Na verdade, não se deve considerar que o recorrente sucumbiu naquela parte em que, apesar da decisão lhe ter sido desfavorável, se conformou com ela, dela não recorrendo

[4] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[5] Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[6] Vide Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), citando, sobretudo, a doutrina alemã, in BMJ, 110º, págs. 79 e seguinte, nota (29).

[7] Diz a Mm.ª Juíza, com inteiro acerto, que esta testemunha «depôs de forma precisa, esclarecida, isenta e desinteressada, evidenciando também inequívoco conhecimento dos factos em análise».

[8] Dois bois que são jungidos e trabalham juntos - utilizados para desenvolver trabalhos em actividades rurais como puxar um carro ou um arado. As juntas de bois são unidas por uma canga, que assenta na nuca dos bois, prendendo-os pelo pescoço - vide, nomeadamente, Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, 2001, pág. 2198.

[9] Com alguma similitude com a situação dos autos e mostrando-nos uma visão hodierna e razoável da problemática do conteúdo das servidões de passagem, cf., principalmente, o acórdão do STJ de 05.11.2015-processo 1859/11.1TBBCL.G1.S1, citado nas alegações [Pires da Rosa/Salazar Casanova/Lopes do Rego, constando da respectiva fundamentação, nomeadamente: «Só que a forma como os proprietários colhem e fruem de todas as utilidades dos seus prédios, utilizando o caminho para a eles acederem, é hoje radicalmente diferente do que era há vinte anos e muito mais anos atrás./ De modo que a normalidade e previsibilidade - veja-se o n.º 2 do art.º 1565º - dessa fruição não tem nada a ver, hoje, com o que ficou assinalado e delimitado no solo em toda a sua extensão, de forma visível - a passagem de pessoas e carros de bois./ Hoje as pessoas passam, para colher e fruir todas as utilidades dos seus prédios (seja qual for a natureza deles) a pé, de tractor, em veículos automóveis ou motociclos - é assim que as pessoas se deslocam hoje, mesmo em meios rurais que ainda restam no país./ Os bois, “nobres e mansos, os boizinhos” que encheram os campos (e a poesia!) do país, foram afastados pela evolução tecnológica no modo de vida das populações, ainda que rurais, de modo que a servidão dos novos tempos já não pode «consubstanciar-se na passagem a pé e com carro de bois» mas é exercitada, sem que isso possa ser considerado um agravamento não normal e previsível, por máquinas agrícolas ou veículos motorizados, sejam automóveis sejam motociclos. É assim que as pessoas se deslocam para os seus afazeres, e assim deve ser hoje entendido o conteúdo de uma qualquer servidão de passagem. (…) O QUE SE DECIDE E ACEITA tem a ver, apenas e tão só, com o diferente modo de uso e fruição de qualquer prédio, que a vida vivida tem demonstrado que mudou radicalmente no quadro vivencial português.» e sendo tirado o seguinte sumário: «I - A servidão quando se constitui por usucapião há-de ter o desenho que teve na data de início da posse onde se estriba a aquisição – art.ºs 1547º e 1288º do CC. II - Tendo estado na génese da aquisição da servidão por usucapião um caminho marcado e delimitado, em toda a sua largura e extensão, pela passagem de pessoas e carros de bois, a forma como os proprietários colhem e fruem todas as utilidades dos seus prédios, utilizando o caminho para a eles acederem, há-de todavia ser hoje radicalmente diferente do que era há 20 e muitos mais anos atrás. III - A servidão dos novos tempos já não pode consubstanciar-se na “passagem a pé e com carros de bois” mas é exercitada por máquinas agrícolas ou veículos motorizados, sejam automóveis ou motociclos; é assim que deve ser hoje entendido o conteúdo de uma qualquer servidão de passagem.» (sublinhados nossos)], publicado no “site” da dgsi.
[10] Vide, designadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, III, 2ª edição, 1987, págs. 613 e seguintes.