Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4518/21.3T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: DANO DE PRIVAÇÃO DO USO DE BENS OU VALORES
PENHORA DE VALORES/SALDOS BANCÁRIOS
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DAS CALDAS DA RAINHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 212.º, 1; 496.º, 1 E 4 E 566.º, 3, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 412.º, 1; 607.º, 3 A 5; 615.º, 1, C); 662.º, 1 E 2; 758.º; 760.º; 764.º E SEG.S; 772.º; 780.º E 783.º, DO CPC
Sumário: 1. - Havendo divergências jurisprudenciais quanto à determinação/caraterização do dano da privação do uso de um bem/valor, parece mais adequada e justa a posição que defende que, a mais da privação da disponibilidade do bem (perturbação da possibilidade de uso/utilização), só haverá dano efetivo, como tal indemnizável, se ocorrer perda das vantagens concretas e determinadas que o gozo da coisa proporciona, embora se admita, atenta a natureza e circunstâncias do prejuízo, um juízo probatório menos exigente, em termos de complemento quanto à repercussão concreta da privação na esfera patrimonial da pessoa privada do bem.
2. - Provado, no caso, que os autores, por via de ilícita penhora desencadeada pela contraparte, ficaram privados, durantes vários anos, de valores/saldos bancários penhorados, que lhes pertenciam e com que faziam face às necessidades, obrigações e compromissos da sua vida, e que, por isso, deixaram de poder usar, ao ponto de terem de recorrer a empréstimos e de lhes ser recusada a venda de bens que pretendiam adquirir, é de concluir estar verificado um dano real/efetivo de privação do uso, que, pela sua gravidade e consequências, merece a tutela do direito no campo ressarcitório.

3. - A equidade, como justiça do caso, mostra-se apta a temperar o rigor de certos resultados de pura subsunção jurídica, na procura da justa composição do litígio, fazendo apelo a dados de razoabilidade e equilíbrio, tal como de normalidade, proporção e adequação às circunstâncias concretas, sem cair no arbítrio.

4. - A indemnização por aquele dano da privação do uso, não se mostrando viável uma fixação exata ou um cálculo aritmético quanto ao concreto dano ocorrido, deve ser fixada equitativamente, nos termos do disposto no art.º 566.º, n.º 3, do CCiv., sem relegação para ulterior incidente de liquidação, se não se mostrar que existem provas complementares que possam ainda vir a fazer luz sobre a expressão quantitativa do dano.

5. - Perante decisões recorridas fundadas na equidade, é adequado um critério de revogação apenas das soluções que excedam manifestamente determinada margem de liberdade decisória, sendo então de verificar o padrão de equidade aplicado em concreto, pelo que, a situar-se a indemnização no quadro de um exercício razoável e equilibrado do juízo de equidade, não se justificará, em regra, a revogação.

6. - É de manter, por equitativa, a arbitrada reparação de € 3.000,00 – montante já atualizado – por danos não patrimoniais decorrentes da ilícita penhora daqueles valores/saldos bancários, que perdurou por vários anos, por conduta culposa da contraparte (uma entidade bancária), vendo os lesados, inesperadamente, as suas contas cativas, com as dificuldades e os incómodos daí decorrentes, sem que tivessem contribuído para a ocorrência da situação, mas suportando humilhação e vergonha perante estranhos e conhecidos e vendo afetados o seu bem-estar e a sua qualidade de vida.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:



***

I – Relatório

AA e mulher, BB, com os sinais dos autos,

intentaram ([1]) ação declarativa condenatória, com a forma de processo comum, contra

«Banco 1..., C.R.L.», também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação da R. a pagar aos AA.:

a) «(…) a título de danos patrimoniais, uma indemnização no montante de € 17.460,77» (pela privação do uso dos saldos bancários penhorados);

subsidiariamente (caso assim não se entendesse),

b) «(…) a título de danos patrimoniais, uma indemnização no montante de € 12.850,70»; e, por outro lado,

c) «(…) a título de danos não patrimoniais, uma indemnização em montante nunca inferior a € 5.000,00 (…)»;

d) «(…) em multa em quantia a determinar pelo (…) Tribunal dentro dos limites legalmente prescritos» (art.º 858.º do NCPCiv.);

e) a que acrescem «(…) juros de mora, vencidos e vincendos, desde a citação até efetivo e integral pagamento».

Alegaram, para tanto, em síntese, que:

- em 17/09/2002, a R. celebrou com CC um acordo, denominado “compra e venda e abertura de crédito com hipoteca e fiança”, no qual os AA. se constituíram fiadores e principais pagadores do comprador (aquele CC), e ao qual foi atribuído o n.º ...02;

- posteriormente, no dia 22/12/2005, foi celebrado um novo acordo, de “empréstimo garantido por hipoteca”, entre a R. e o mesmo referido CC, a que foi atribuído o n.º ...72, âmbito este em que os AA. não prestaram qualquer garantia, nem se obrigaram por qualquer forma;

- o acordo n.º ...02 foi liquidado e, por isso, a fiança prestada extinguiu-se;

- no dia 10/05/2013, a R. instaurou contra os AA. uma ação executiva, para pagamento de quantia certa, referente ao empréstimo celebrado em 22/12/2005, âmbito em que as contas bancárias dos aqui AA. foram penhoradas, o que, durante cerca de quatro anos, os impediu de utilizar os respetivos fundos/saldos, com os consequentes danos, no âmbito peticionado (retenção e impossibilidade de movimentação dos seus saldos bancários, o que constitui um dano autónomo e, como tal, indemnizável, independentemente, pois, «da prova cabal da perda de rendimentos» ([2]) que obteria com a coisa objeto de privação do uso);

- por efeito da penhora, a A. mulher viu recusadas operações de pagamento, com cartões de crédito e de débito, de compras que pretendia efetuar, chegando a ter de deixar todas as compras mensais na caixa do hipermercado, levando os AA. a terem de recorrer a empréstimos da familiares e amigos para fazerem face às suas necessidades de subsistência;

- os ora AA. deduziram embargos de executado e a aqui R., antevendo a procedência dessa oposição, desistiu da execução.

A R. apresentou contestação:

- esgrimindo que a fiança prestada pelos AA. no quadro do acordo de 17/09/2002 visava garantir obrigações futuras a contrair pelo dito CC e que, nesse pressuposto, abarcava o empréstimo de 22/12/2005, razão pela qual foi instaurada a execução contra os AA.;

- reconhecendo que desistiu da execução em relação aos AA., não tendo obtido qualquer vantagem com as penhoras a que aqueles se referem;

- porém, com exceção da possibilidade de movimentação e mobilização dos valores penhorados, os AA. mantiveram todos os direitos e interesses inerentes aos mesmos;

- impugnando a restante factualidade alegada na petição, concluem pela improcedência dos pedidos – não arbitramento de qualquer indemnização – ou, se assim não for entendido, pela redução da indemnização a «um valor adequado ao dano sofrido».

Tramitados os autos ([3]), procedeu-se à audiência final, após o que foi proferida sentença (datada de 23/06/2023), com o seguinte dispositivo:

«(…) decide-se:

I. Julgar improcedente o pedido (principal) dos autores de condenação dos réus no pagamento da quantia de €17.460,77 (…);

II. Julgar procedente o pedido (subsidiário) dos autores e, em consequência, condenar a ré (…) a pagar aos autores (…):

i. a quantia de €12.850,50 (doze mil oitocentos e cinquenta euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde o dia 17.12.2021, e nos vincendos, até integral pagamento;

ii. a quantia de €3.000,00 (três mil euros) calculada de forma actualizada, com recurso à equidade, à data da prolação da presente sentença, 22.06.2023, acrescida de juros vincendos, até integral pagamento e sem prejuízo do destino que os autores vierem a dar ao referido montante.

III. Absolver a ré do demais peticionado;

IV. Condenar os autores e a ré no pagamento das custas da acção, na proporção do respectivo vencimento, o qual se fixa para os primeiros em 1/3 e, para a segunda, em 2/3» (destaques subtraídos).

Da sentença veio a R., inconformada, interpor recurso – a versar sobre matéria de facto e de direito –, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões ([4]):

«1 – A mera privação do uso não gera obrigação de indemnizar;

2 – A questão da ressarcibilidade da privação do uso não pode ser resolvida e apreciada em abstracto, aferida pela mera impossibilidade objectiva da utilização da coisa;

3 – Uma coisa é a privação do uso e outra que conceptualmente não coincide necessariamente com ela, será a privação da possibilidade de uso;

4 – Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso um prejuízo, se realmente a pretender usar e a utilizasse caso não fosse a impossibilidade dela dispor;

5 – Não pretendendo fazê-lo, apesar de também não o poder, está-se perante uma mera privação de possibilidade de uso, sem repercussão económica, que só por si, não revela qualquer dano patrimonial indemnizável.

6 – Bastará, porém, que a realidade processual mostre que o lesado usaria normalmente a coisa, vendo frustrado esse propósito, para que o dano exista e a indemnização seja devida.

7 – Os apelados nada alegaram a respeito da utilização que pretendessem fazer dos valores que lhes foram penhorados;

8 – Nada disseram quanto, por exemplo, ao prejuízo que tiveram por não terem podido vender acções cotadas em bolsa que lhes foram penhoradas, aproveitando uma sua valorização que lhes tivesse proporcionado um ganho de mais valias que, desse modo, perderam;

9 – Também não alegaram, por exemplo, que perderam uma oportunidade negocial, que teriam de identificar, por não poderem utilizar os valores que estavam imobilizados em consequência da penhora que incidiu sobre os seus referidos bens, tendo por isso uma perda, provocada pela conduta ilícita da apelante que assim, e nessa medida, os teria de indemnizar.

10 – Nada tendo invocado quanto à intenção de utilizarem esses montantes, não puderem também provar que da privação do uso dos valores penhorados tivessem tido qualquer dano, pelo que não tendo provado um prejuízo, não podia a sentença recorrida ter condenado a apelante no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais.

11 – Nesta parte, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 483.º, 487.º, 562.º, e 566.º, do Código Civil.

12 – Não carecem de prova os factos que sejam notórios, devendo-se como tal considerar todos aqueles que são do conhecimento geral;

13 – Constitui facto notório e, portanto, até dispensado de ser alegado, que as acções cotadas em bolsa geram dividendos a quem deles é titular e que os depósitos à ordem são remunerados com uma taxa de juro;

14 – Toda a gente, sabe disto que constitui matéria do conhecimento comum da generalidade dos cidadãos;

15 – Estando provado no processo – facto 40 da decisão da matéria de facto – que “todos os valores mobiliários e os saldos das contas de depósito dos autores penhorados supra referidos em 18, 20 e 22, mantiveram-se ainda que penhorados, nas contas das instituições de crédito em que estavam depositadas, não tendo sido transferidos para a conta da agente de execução”, é incontroverso e do domínio do comum das pessoas, que esses bens continuam a gerar os rendimentos que sempre geraram, tendo os respectivos dividendos e os juros dos depósitos das contas à ordem, sido creditados nas contas bancárias em que as carteiras de títulos estavam guardadas e nas contas de depósitos à ordem que tinham sido objecto de penhora;

16 – Aliás, o que o senso comum nos diz a este respeito é que se não tivesse acontecido os autores não teriam deixado de referir;

17 – É que gerando as aplicações financeiras dos autores rendimentos e juros, e não tendo os valores penhorados sido transferidos para contas da agente de execução, em algum lado teriam de ser creditados os dividendos associados às aplicações financeiras dos autores e os juros, por muito insignificantes que fossem dos saldos das suas contas à ordem, já que nem as empresas cotadas retiveram para si os dividendos nem os Bancos ficaram ou se apropriaram dos juros correspondentes aos saldos das contas de depósito, nem os relativos aos produtos financeiros que subscreveram;

18 - Ou seja, apesar dos referidos valores terem sido penhorados, eles continuam a gerar os rendimentos que lhes são inerentes, e de que os apelados beneficiaram, mesmo que também eles estivessem abrangidos pela penhora dos saldos das contas penhoradas e onde foram creditados depois de deduzido o Imposto Sobre Aplicação de Capitais;

19 – Assim, independentemente das importâncias que os apelados tivessem recebido a título de remuneração das suas aplicações financeiras, o Tribunal não podia ter considerado como não provado, como consta da alínea c) dos factos não provados, “que os valores penhorados depositados nas contas dos autores, ainda que a sua movimentação ou mobilização não pudesse ser feita, continuam a ser remunerados com os dividendos que lhes couberam e as contas de depósito fossem elas à ordem ou a prazo, continuaram a receber os juros que eram devidos”;

20 – Esta resposta deve, assim, ser modificada de não provado, para provado, por ser do conhecimento da generalidade das pessoas que assim é e, portanto, constitui facto que não carece de ser alegado, nem provado;

21 – Ao considerar como não provado o facto em questão, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 412.º, do Código de Processo Civil, devendo essa resposta ser alterada, no sentido proposto, de harmonia com o previsto no seu artigo, 662.º, nº 2, al. c) e 640.º, n.º 1, alíneas a) b) e c);

22 – Na circunstância, que apenas se admite por mera necessidade de argumentação, de este Tribunal de recurso perfilhar o entendimento de que basta a privação do direito de uso para justificar a obrigação de indemnização, e alterando de não provado, para provado o facto notório da alínea c) dos factos julgados como não provados, obviamente que se não pode cumular aos rendimentos gerados pelos valores penhorados, e de que os apelados beneficiaram, um juro, a uma taxa, no caso a de 4%, que é a que corresponde aos juros civis;

23 – Ao fazê-lo, e a manter-se nesse domínio a decisão recorrida, resulta ostensivo que ela lhes proporciona um enriquecimento ilegítimo, porque adiciona aos rendimentos que sempre tiveram uma vantagem suplementar, que consiste numa indemnização a um juro de 4%, o que configura um enriquecimento ilegítimo, porque excessivo e sem causa, que a Lei não tolera;

24 – Mais. A entender-se que a mera privação do dinheiro dá origem a um dano que de ser ressarcido, independentemente da prova que se faça, quanto ao prejuízo que, em concreto, os lesados tiveram, bem como da intenção que tinham ou não de utilizar os bens imobilizados pela penhora, e a considerar-se também que os valores penhorados não geraram rendimentos, assim se mantendo a resposta da alínea c), dos factos não provados, então, o que seria justo e conforme a Lei e o Direito, seria, uma vez que o que foi penhorado foram valores mobiliários e saldos de contas bancárias, era relegar para incidente de liquidação, os montantes que os apelados efectivamente teriam recebido de dividendos e de juros, relativos aos saldos das contas de depósito e dos dividendos, pelo período de tempo em que eles estiveram imobilizados;

25 – E assim, porque os apelados baseiam a sua causa de pedir exclusivamente na privação do direito de uso, e não em outros prejuízos que eventualmente pudessem ter tido;

26 – Logo, ao decidir fixar a indemnização a atribuir aos apelados com base numa taxa de juro anual de 4%, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 562.º, do Código Civil, já que a indemnização arbitrada excede “o dano” tido pelos autores, indo para além do prejuízo que tiveram, assim como violou o disposto no artigo 609.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, pois, ao invés de ter recorrido, ainda que ilegitimamente como adiante se verá, ao regime da equidade, deveria ter antes condenado a apelante no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais, que tivesse por limite o valor que resultaria da aplicação às quantias penhoradas da taxa de juro de 4%, pelo período de tempo da imobilização, conforme pedido subsidiariamente, mas a liquidar em incidente de liquidação, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 2, do mesmo Código.de Processo Civil;

27 – Efectivamente, o recurso ao regime da equidade estava-lhe vedado, porque a Lei, no artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil, estabelecer que, no caso da indemnização em dinheiro e se não se puder averiguar o valor exacto dos danos, é que o Tribunal poderá julgar segunda a equidade, dentro dos limites que tiver por provados;

28 – No caso dos autos, o Tribunal recorrido considerou que a privação do uso da coisa penhorada constituía um dano indemnizável, não tendo sido alegado, nem provado, qual o dano, em concreto, que os apelados sofreram no seu património;

29 – Embora os autores apelados não tivessem quantificado o valor do seu dano, porque optaram por pedir o pagamento de uma quantia correspondente à aplicação de uma taxa de juro, como se fosse esse o valor equivalente ao seu prejuízo, o que fizeram quer a título principal quer a título subsidiário;

30 – É óbvio, dada a natureza do processo e o entendimento, com que se não concorda, de que a privação de uso origina por si só uma obrigação de indemnizar, o Tribunal recorrido deveria ter observado o disposto no artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, relegando o valor da indemnização a atribuir aos apelados, para liquidação posterior, com base nos prejuízos efectivos por eles tidos, ou, se não se pudessem averiguar o valor exacto dos danos, o que não era o caso do processo, em que essa determinação era fácil de efectuar, é que julgaria de acordo com as regras da equidade, como lhe permitia o artigo 566.º, do Código Civil, dentro dos limites que tivessem sido provados e, que, convenhamos, não eram nenhuns;

31 – A sentença proferida violou, nesta parte, estas duas disposições legais;

32 – Por um lado, a indisponibilidade dos valores penhorados que ficou provada, apenas terá dado origem a um prejuízo aos autores, à falta de outros elementos provados, equivalente aos rendimentos que deixaram de receber pela privação dos bens que foram penhorados;

33 – Sendo, portanto, determinável o valor do prejuízo, já que, recorde-se, se considerou não provado que os apelados tenham recebido dividendos e juros das quantias penhoradas, então a reintegração do seu prejuízo, como determina o artigo 562.º, do Código de Processo Civil, tinha de ser o equivalente a essa privação de rendimento, o que impediria o recurso à equidade.

34 – Não havendo no processo elementos que permitissem ao Tribunal determinar o valor do dano, mas sendo ele determinável, então a Sr.ª Juiz que proferiu a sentença em recurso, deveria ter recorrido ao previsto no artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

35 – O que estava legalmente impedida de fazer era julgar, segundo a equidade;

36 – Mas ainda que o pudesse ter feito, julgar a causa, segundo os critérios da equidade, seria fazer um julgamento justo, equilibrado, e não julgar procedente o pedido subsidiário que foi formulado, como se a decisão equitativa a que recorreu, permitisse fazê-lo, ou tivesse esse propósito;

37 – Ou seja, ao julgar procedente o pedido subsidiário, sem sequer fundamentar a razão pela qual considerava equitativa essa solução, agiu como se de o recurso à equidade pudesse resultar numa solução a que também se chegaria julgando-se procedente um concreto pedido formulado;

38 – Resultou, assim, da decisão proferida uma inegável ambiguidade surpreendida pela aplicação de dois regimes ou soluções que se excluem mutuamente, já que a equidade se aplica quando não é possível determinar em concreto o valor da indemnização, segundo refere o artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, mas, ao que parece a M.ª Juiz, não teve dúvidas em julgar procedente o pedido subsidiário, o que afasta a hipótese de julgar segundo a equidade, mas que fez, segundo a sentença revela.

39 – É que para julgar procedente o pedido subsidiário, não tinha de invocar a equidade para o fazer, e se pretendia julgar segundo a equidade, não podia ter condenado a apelante nos exactos termos pedidos no pedido subsidiário.

40 – Essa contradição ou ambiguidade, gera a nulidade da sentença, nesta parte, o que se invoca apenas e se, o Tribunal, o que não se espera que aconteça, comungue do entendimento da indemissibilidade da privação de uso, independentemente do prejuízo que ele cause.

41 – Os danos não patrimoniais que foram considerados na sentença, são também objecto de controvérsia.

42 – É que tanto se consideram provados certos factos, como imediatamente a seguir se julgam esses mesmos factos como não provados;

43 – É o caso dos factos provados nos pontos 34, 36 e 37 da decisão proferida quanto à matéria de facto, enquanto na alínea i) dos factos não provados, se desdiz e contaria o que se considerou provado;

44 – Essa contradição insanável, fruto de uma precipitada análise da prova produzida, conduz a que os factos 34, 36 e 37, e o facto não provado da alínea i), se anulam reciprocamente, não podendo ser utilizados como prova o que esteja em contradição com o que se não considerou provado na alínea i;.

45 – Assim e quanto aos danos morais, resta provada a consternação dos autores por não poderem movimentar os valores penhorados, circunstância já incluída no valor atribuído na indemnização por danos patrimoniais e que não pode ser objecto da duplicação, a menos que se considere, como se espera, que não seja arbitrada qualquer indemnização aos apelados, por danos patrimoniais, por não terem alegado em que é que esses danos consistiram, que as penhoras realizadas afectaram a credibilidade comercial e financeira do autor AA, o que, tal como o facto provado no ponto 35, são meramente conclusivos, porque não se deu como provado, em que é que essas circunstâncias se traduziriam negativamente para os autores, assim como é inócuo o facto provado no ponto 38, já que para além de não se ter feito a compra do televisor, nada foi referido quanto ao desgosto ou contrariedade sofrida pelo autor AA, por o não ter adquirido, nem se provou que o vendedor tivesse sabido que a compra se não fizera porque as suas contas bancárias tinham sido penhoradas,

46 – Como no capítulo dos danos morais só são indemnizáveis aqueles que pela sua relevância mereçam a tutela do direito, considera-se que, no acaso, não há lugar a indemnização por danos dessa natureza, ou, se assim se não entender, que foi excessiva a indemnização a esse título fixada.

47 – Violou, neste aspecto, a sentença recorrida, o disposto no artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil.

Termos em que e, com o douto suprimento de V. Excªs, deve ser dado provimento à apelação, como o que se fará

JUSTIÇA!».

Não foi junta contra-alegação de recurso.


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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e com efeito meramente devolutivo, após o que foi ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foram mantidos tais regime e efeito fixados.


***

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([5]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, importa conhecer do seguinte ([6]):

a) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto:

- por erro de julgamento de facto quanto à matéria da mencionada al.ª c) do quadro dado como não provado, que «não poderia julgar-se não provada», devendo, pois, passar a integrar os factos provados, com fundamento na circunstância de se tratar de «facto notório» (com apelo, apenas, ao “senso comum”, aos dados do normal acontecer, ou a notoriedade fáctica de determinada situação) – cfr. conclusões 18.ª a 21.ª;

- por invocada “contradição insanável” entre julgar provados os factos 34, 36 e 37, por um lado, e não provada a al. i), por outro (conclusões 42.ª a 44.ª);

b) Impugnação de direito, quanto:

- à reapreciação do invocado dano decorrente da privação do uso;

- à alteração de montantes arbitrados em sede indemnizatória, tendo em conta o que vem impugnado no âmbito recursivo, mormente no que se refere ao dano da privação do uso – e inerente recurso à equidade ou relegação para ulterior incidente de liquidação – e ao dano de cariz não patrimonial (conclusões 22.ª e segs. e 41.ª e segs.);

c) Subsidiariamente (assim formulado pela Apelante), nulidade da sentença, por ambiguidade (conclusões 37.ª a 40.ª).

***

III – Fundamentação

         A) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto

1. - A Recorrente, inconformada com a decisão referente à matéria fáctica, começa por se insurgir contra o juízo negativo no concernente à invocada al.ª c) do factualismo considerado não provado (cfr. conclusão 19.ª), esta, todavia, com o seguinte teor:

«c) Que a ré só juntou o acordo celebrado no dia 17.09.2002 ao requerimento executivo do processo supra referido em 8., para mover a execução contra os autores;».

Na verdade, refere que ocorreu erro de julgamento de facto nesta parte, devendo a matéria dessa al.ª c) passar a integrar os factos provados, invocando, para tanto, tratar-se de «facto notório» (apela ao “senso comum”, aos dados do normal acontecer, ou a notoriedade fáctica de determinada situação).

Porém, a mesma parte transcreve, de seguida, textualmente, a factualidade que, afinal, pretende impugnar: «que os valores penhorados depositados nas contas dos autores, ainda que a sua movimentação ou mobilização não pudesse ser feita, continuam a ser remunerados com os dividendos que lhes couberam e as contas de depósito fossem elas à ordem ou a prazo, continuaram a receber os juros que eram devidos».

Trata-se, então, não da invocada al.ª c), mas da al.ª e), da factualidade dada como não provada – manifesto lapso de escrita, que aqui se releva –, razão pela qual se sindicará a resposta negativa a tal al.ª e), e não outra [al.ª c)].

Importa apreciar.

Vejamos, desde logo, a fundamentação a respeito do Tribunal recorrido, o qual se exprimiu assim:

«Quanto aos factos julgados como não provados nas alíneas c) a r), tal resultou da total ausência de prova sobre a sua ocorrência, quer porque nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento o esclareceram, quer porque dos elementos documentais juntos aos autos não se alcança que tal tenha sucedido, razão por que foram julgados como não provados.».

Trata-se, pois, de uma situação de «total ausência de prova» materializada/produzida, o que a Recorrente não põe em causa, antes invocando, como remédio, a notoriedade do facto probando e as chamadas presunções judiciais (apelo ao “senso comum” e aos dados do normal acontecer).

Ora, é seguro não carecerem de prova, nem de alegação, os factos notórios, devendo entender-se como tais «os factos que são do conhecimento geral» (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Como referido, entre outros, no Ac. TRC de 24/02/2015 ([7]):

«A caracterização doutrinária é no sentido de que “factos notórios apenas aqueles que sejam do conhecimento geral, ou seja, os que sejam do conhecimento da massa dos cidadãos portugueses regularmente informados, isto é, com acesso aos meios normais de informação” ( A. REIS, CPC Anotado, III, pág. 261 ).

O carácter notório para o juiz advém da circunstância de estar colocado na posição de cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem juízos presuntivos (cf., por ex., C MENDES, Do Conceito de Prova, pág.711, VAZ SERRA, Provas, BMJ 110, pág.61).

Para o critério da notoriedade não releva o facto, em si mesmo, mas a sua cognoscibilidade, pressupondo-se “uma ideia de publicidade, implicando a extensão e difusão do conhecimento à grande maioria dos cidadãos, de modo que o facto apareça revestido de um carácter de certeza” (Ac STJ de 26/9/95, BMJ 449, pág.293), não sendo, por isso, suficiente qualquer conhecimento, por ser indispensável “um conhecimento de tal modo extenso e difundido que o facto apareça como evidente, revestido de um carácter de certeza resultante do conhecimento do facto por parte da massa dos portugueses que possam considerar-se regularmente informados por terem acesso aos meios normais de informação” (Ac STJ de 25/10/2005, em www dgsi.pt).».

Factos notórios são «os que sejam de conhecimento e de experiência comum, de acordo com os padrões médios da coletividade de um determinado tempo e lugar», sendo que, «na esfera pessoal, o facto notório tem de constar como certo ou falso para a generalidade de pessoas de cultura média, entre as quais se encontra o juiz» ([8]).

São, pois, «os factos do conhecimento geral, isto é, conhecidos ou facilmente cognoscíveis pela generalidade das pessoas normalmente informadas de determinado espaço geográfico, de tal modo que não haja razão para duvidar da sua ocorrência», sendo, «por definição, indiscutível a sua verificação», ocasionando que um facto notório não seja carecido de prova nem seja «suscetível de prova contrária», apenas podendo «impugnar-se a sua notoriedade».

Perante este enquadramento sumário, não pode dizer-se, salvo o devido respeito, que estejamos perante facto(s) notório(s).

Com efeito, não é de ter como indiscutível (para a generalidade das pessoas normalmente informadas de Portugal) que valores depositados em contas bancárias, mas objeto de penhora, continuam a ser remunerados com os dividendos que lhes couberem e as contas de depósito, à ordem ou a prazo, continuam a receber os juros que eram devidos.

Na verdade, não se trata aqui de factos do conhecimento comum, por (con)sabidos pela generalidade das pessoas, as quais, no seu dia a dia, não se defrontam com penhoras de contas bancárias e inerentes consequências.

O que é sabido, por resultar da lei – logo, matéria de direito e não de facto – é que a penhora de móveis se realiza nos moldes previstos nos art.ºs. 764.º e segs. do NCPCiv., relevando especialmente o art.º 780.º, por regular a penhora de depósitos bancários.

Sabido é também que a administração dos bens cabe, por regra ao depositário (art.ºs 760.º, 772.º e 783.º, todos do NCPCiv.), enquanto as quantias bloqueadas no caso de penhora de depósitos bancários, só podem, também por regra, ser movimentadas pelo agente de execução (art.º 780.º, n.ºs 4 e 10, do NCPCiv.).

A penhora abrange, por regra, os «frutos, naturais ou civis», sendo frutos civis os juros (cfr. art.º 758.º, n.º 1, ex vi art.ºs 772.º e 783.º, todos do NCPCiv., e art.º 212.º, n.º s 1 e 2, do CCiv.).

O que interessava provar, no caso, era que, não obstante a penhora, os aqui AA. continuaram efetivamente a receber os dividendos e os juros como se não tivesse ocorrido penhora. Porém, como visto, tal prova não foi feita, razão pela qual é inconsequente pretender usar a notoriedade de um facto de que não se conseguiu fazer prova positiva, notoriedade essa, por sua vez, claramente questionável.

Em suma, cabia à Recorrente provar o que aconteceu em concreto: se, no caso, os AA. receberam os frutos/juros, ainda que só depois de levantada a penhora, como se as quantias bloqueadas não tivessem sido penhoradas.

Esta prova – reitera-se – não foi feita.

Por outro lado, é sabido que a invocação das «regras da experiência» nos remete para a prova por presunções judiciais, por referência ao que é lógico, consentâneo com o normal acontecer e aderente ao comum sentido de adequação, probabilidade e razoabilidade ([9]).

Parecendo ser neste horizonte que a Recorrente vem, ainda, equacionar a questão ao aludir ao “senso comum” e aos dados do normal acontecer, importará, então, verificar se, nesta parte, se decidiu ao arrepio do normal e avisado/diligente proceder/acontecer, contra aquelas regras da experiência.

Com efeito, as presunções judiciais – ou presunções simples ou de experiência – são as que «assentam no simples raciocínio de quem julga», inspirando-se «nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana», sabido, embora, que as presunções – em que se supõe a prova dum facto conhecido (base da presunção), para dele se inferir um facto desconhecido – «são meios de prova por sua natureza falíveis, precários, cuja força persuasiva pode, por isso mesmo, ser afastada por simples contraprova» ([10]).

Ora, assim sendo, cabe dizer que no caso também não pode dar-se o aludido facto como provado por via de uma presunção judicial, posto se desconhecer se houve, ou não, frutos, mormente juros, e qual o seu destino, designadamente se reverteram, e em que termos/medida, para os aqui AA. como se não tivesse ocorrido penhora ([11]) ([12]).

Em suma, improcede nesta parte a impugnação da decisão de facto.

2. - Resta a invocada “contradição insanável” entre julgar provados os factos 34, 36 e 37, por um lado, e não provada a al. i), por outro (conclusões 42.ª a 44.ª).

É a seguinte a redação desses pontos fácticos dados como provados:

«34. As penhoras realizadas junto das instituições financeiras com que os autores se relacionavam afetou o seu nome e a sua credibilidade comercial e financeira;

(…)

36. A penhora dos saldos e contas bancárias dos autores, sem prévio conhecimento da execução ou das penhoras, colocou os autores em situação de humilhação e de vergonha não só perante estranhos como de conhecidos;

37. A situação afectou o bem-estar e a qualidade de vida dos autores;» ([13]).

E a questionada al. i) configura-se pelo seguinte modo:

«i) Que a imagem pública, o bom nome e a consideração dos autores foram profunda e gravemente afetados com o conhecimento da execução e das respetivas penhoras;».

Aludindo a “contradição insanável” (conclusões 42.ª a 44.ª), pareceria que a Recorrente pretenderia invocar a nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª c), do NCPCiv., embora sem invocação, neste conspecto, no acervo conclusivo, desta norma.

É certo que o art.º 615.º, n.º 1, do NCPCiv. comina, quanto às suas al.ªs b) e c),  com a nulidade da sentença as situações em que, respetivamente, (i) faltem os fundamentos da decisão ou (ii) estes, existindo, estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Trata-se de normação inovadora apenas quanto ao fundamento de nulidade da sentença traduzido na existência de ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, pois que no anterior art.º 668.º, n.º 1, al.ª c), do CPCiv. revogado apenas se aludia ao vício de oposição entre os fundamentos e a decisão e na al.ª b) desse dispositivo do Cód. revogado apenas se previa, como agora, a não especificação dos fundamentos, de facto e de direito, justificativos da decisão.

Em qualquer caso, serão vícios internos da decisão, no plano dos respetivos fundamentos e decorrente dispositivo, constituindo anomalia a extrair da leitura da sentença – vista em si própria –, ante a forma como se mostra elaborada (plano formal).

Como é consabido, por ser orientação dos Tribunais Superiores, a nulidade da decisão (sentença ou despacho), tal como prevista no dispositivo citado – a problemática a considerar é sempre, com efeito, a dos fundamentos da decisão, seja pela sua falta ou contradição ou ainda por falta de sintonia com o dispositivo –, segundo o qual “a sentença é nula quando os fundamentos estejam em manifesta oposição com a decisão, sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença. Como se sabe, a sentença deve conter os fundamentos, devendo o Juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes (art. 659º, nº2, do CPC). Ora, constituindo a sentença um silogismo lógico-jurídico, de tal forma que a decisão seja a conclusão lógica dos factos apurados, aquela nulidade – como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência – só se verifica quando das premissas de facto e de direito se extrair uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído” ([14]).

Assim sendo, como a Recorrente apenas invoca contradição entre segmentos fácticos – não contradição com o dispositivo da sentença –, afastada sempre estaria, logo por isso, a causa de nulidade consubstanciada em oposição/contradição entre fundamentos e decisão/dispositivo.

Ora, na sequência do já referido, o problema colocado tem de ser centrado na esfera em que efetivamente releva, o dos vícios na decisão da matéria de facto, com aplicação, então, do disposto no art.º 662.º, n.ºs 1 e 2, al.ª c), do NCPCiv., preceito que permite, se preenchida a respetiva previsão legal, a anulação da decisão (por razões que se prendem com a modificabilidade da decisão de facto, designadamente pelo vício de decisão contraditória sobre pontos determinados da matéria de facto).

Com efeito, o julgamento da matéria de facto, plasmado nos factos dados como provados e nos considerados como não provados, não contende com as causas de nulidade da sentença (plano formal), mas com eventual erro de julgamento de facto – a ter de ser sindicado em sede de impugnação da decisão relativa à matéria de facto – ou com a necessidade de ampliação da matéria de facto ou até com eventuais respostas deficientes, obscuras ou contraditórias sobre pontos determinados da matéria de facto, caso em que opera o preceituado naquele art.º 662.º, referente já à modificabilidade da decisão de facto, a poder levar à alteração pela Relação da matéria de facto (em caso de verificação de erro de julgamento de facto, à luz do n.º 1 daquele art.º) ou mesmo à anulação da decisão [cfr. n.º 2, al.ª c), do mesmo preceito legal]. Mas não à formal nulidade da sentença, à luz do disposto no art.º 615.º do NCPCiv..

Porém, nem neste plano haverá (verdadeira) contradição.

Na mencionada al.ª i) dá-se como não provado que tenha ocorrido uma afetação “profunda e grave”, o que – a mais do nítido aspeto conclusivo desta formulação – não impede que tenha havido alguma afetação, como dado por provado naqueloutros factos do elenco julgado provado.

Assim, o enunciado “profunda e gravemente afetados” é conclusivo (destituído, pois, de conteúdo/dimensão fáctico), pelo que, em rigor, nem deveria constar da parte fáctica da sentença, ainda que do elenco dos factos não provados (art.º 607.º, n.ºs 3 a 5, do NCPCiv.).

Donde, pois, que improcedam as conclusões da Apelante em contrário também nesta parte, subsistindo inalterado – e, como tal, definitivo – o quadro de factos provados da sentença, aqueles a considerar para efeitos de recursiva aplicação do direito.

B) Matéria de facto

1. - Após sindicância da Relação, é a seguinte a factualidade julgada apurada ([15]):

«1. A ré tem como objeto social, entre outros, “o exercício de funções de crédito agrícola a favor dos seus associados e a prática dos demais actos inerentes à actividade bancária e, ainda, (...) efectuar operações de crédito com finalidades distintas”;

2. No dia 17.09.2002, a ré no exercício da sua atividade celebrou com CC um acordo escrito denominado “Compra e Venda e Abertura de Crédito com Hipoteca e Fiança”, no qual os autores se constituíram “(…) fiadores e principais pagadores (…) garantindo expressa e pessoalmente o bom e pontual pagamento (…) obrigando-se solidariamente (...) e como principais pagadores, pessoalmente perante a Caixa (…)”;

3. No dia 22.12.2005, a ré e CC celebraram um acordo escrito denominado “Contrato de Empréstimo Garantido por Hipoteca” nos termos do qual a ré declarou emprestar a CC a quantia de €114.000,00 (cento e catorze mil euros) tendo o referido empréstimo sido concedido “(…) para consolidação de todas as responsabilidades em curso”;

4. No acordo de empréstimo celebrado a 22.12.2005, os autores não se constituíram “fiadores e principais pagadores (…) garantindo expressa e pessoalmente o bom e pontual pagamento (…) obrigando-se solidariamente (...) e como principais pagadores, pessoalmente perante a Caixa (…)”;

5. O acordo supra referido em 2. ficou associado ao empréstimo n.º ...02;

6. O acordo supra referido em 3. ficou associado ao empréstimo n.º ...72;

7. O acordo com o n.º ...02 foi liquidado a 22.12.2005;

8. No dia 10.05.2013, a ré instaurou uma acção executiva para pagamento de quantia certa contra os autores, na qualidade de executados, processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ..., Juiz ..., com n.º 1062/13....;

9. A ré no processo referido em 8. estava representada por advogado;

10. No requerimento executivo do processo supra referido em 8., consta que “pretende a Exequente receber pela presente reclamação, além da quantia mencionada no art.º 16, os juros de mora à taxa contratual de 7,435% ao ano que se vencerem sobre o capital em dívida de €99.353,61 até efetivo e integral pagamento (…)”;

11. No requerimento executivo do processo supra referido em 8. consta que os juros remuneratórios são à taxa contratual de 5,435%;

12. No requerimento executivo do processo supra referido em 8., consta que: “16. No que concerne ao empréstimo ora reclamado o ora Executado apenas entregou à ora Exequente por conta do capital o montante de €14.646,39 pelo que continua em dívida a esse título a quantia de €99.353,61”;

13. No requerimento executivo do processo supra referido em 8., consta que: “Ao abrigo das escrituras Públicas de Abertura de Crédito com Hipotecas - juntas como docs. 1 e 3”, o executado CC solicitou e obteve o empréstimo;

14. No requerimento executivo do processo supra referido em 8., consta que a ré, ali exequente, “13. (…) concedeu no contrato de empréstimo garantido por hipoteca celebrado em 22/12/2005 um empréstimo no montante de €114.000,00”;

15. No requerimento executivo do processo supra referido em 8., consta ainda que “o executado CC só pagou €14.646,39, encontrando-se em dívida a quantia de €99.353,00”;

16. A dívida reclamada na acção executiva do processo supra referido em 8. diz respeito unicamente ao empréstimo celebrado em 22.12.2005;

17. A ré sabia e tinha obrigação de saber que o declarado pelos autores no acordo supra referido em 2. não se transmitia automaticamente para o acordo celebrado a 22.12.2005;

18. No decurso da acção executiva do processo supra referido em 8., a agente de execução DD, no dia 11.10.2016, procedeu à penhora eletrónica dos seguintes saldos bancários que os autores detinham junto do banco Banco 2...:

i. Conta de valores mobiliários n.º ...57 ---------------------------- €2.919,77;

ii. Conta de valores mobiliários n.º ...12 ------------------------ €1.730,46;

iii. Conta de valores mobiliários n.º ...14 --------------------------- €2.112,61;

iv. Conta de valores mobiliários n.º ...14 ------------------------------ €42,87;

v. Conta de valores mobiliários n.º ...57 ---------------------------- €2.163,45;

vi. Conta de valores mobiliários n.º ...57 ---------------------------- €1.956,75;

vii. Conta de valores mobiliários n.º ...57 --------------------------------- €2,44;

viii. Conta de valores mobiliários n.º ...57 ------------------------------ €520,36;

ix. Conta de valores mobiliários n.º ...57 -------------------------------€185,50;

x. Conta de valores mobiliários n.º ...57 ---------------------------- €2.145,00;

xi. Conta de valores mobiliários n.º ...57 -----------------------------€4.281,71;

xii. Conta de valores mobiliários n.º ...57 ------------------------------ €620,95;

xiii. Conta de valores mobiliários n.º ...57 -------------------------- €19.818,75;

19. A penhora dos saldos bancários dos autores junto do Banco 2... foi levantada pela agente de execução DD no dia 17.08.2020;

20. No dia 30.09.2016, a agente de execução DD procedeu à penhora eletrónica dos seguintes saldos bancários que os autores detinham junto do Banco 3...:

i. Conta de Depósitos à Ordem n.º ...23 ---------------------- € 3.432,92;

21. A penhora dos saldos bancários dos autores junto do Banco 3... foi levantada pela agente de execução DD no dia 05.03.2020;

22. No dia 28.09.2016, a agente de execução DD procedeu à penhora eletrónica dos saldos bancários que os autores detinham junto à Banco 4...:

ii. Conta de valores mobiliários n.º ...63 ------------------------- €105,20;

iii. Conta de valores mobiliários n.º ...63 ---------------------- €5.000,00;

iv. Conta de valores mobiliários n.º ...63 --------------------- €22.724,20;

v. Conta de valores mobiliários n.º ...63 ---------------------- €1.497,73;

vi. Conta de valores mobiliários n.º ...63 ------------------------- €500,50;

vii. Conta de valores mobiliários n.º ...63 ------------------------- €432,12;

viii. Conta de valores mobiliários n.º ...63 ------------------------- €335,32;

ix. Conta de valores mobiliários n.º ...63 ------------------------- €226,50;

x. Conta de valores mobiliários n.º ...60 ---------------------- €6.643,57;

xi. Conta da autora BB ---------------------------------------- €4.500,00;

23. A penhora dos saldos bancários dos autores junto da Banco 4... foi levantada pela agente de execução DD, nas seguintes datas:

i. Em 03.03.2020 foi levantada a penhora sobre as contas de valores mobiliários n.º ...63, no montante de €225,00 e n.º ...60, no montante de €6.643,57;

ii. Em 21.07.2020 foi levantada a penhora sobre a conta de valores mobiliários n.º ...63, no montante de €23.127,78;

iii. Em 27.07.2020 foi levantada a penhora sobre a conta de valores mobiliários n.º ...63, no montante de €104,00;

iv. Em 29.07.2020 foi levantada a penhora sobre a conta de valores mobiliários n.º ...63, no montante de €425,04;

v. Em 05.08.2020 foi levantada a penhora sobre a conta de valores mobiliários n.º ...63, no montante de €1.508,94;

vi. Em 10.08.2020 foi levantada a penhora sobre a conta de valores mobiliários n.º ...63, no montante de €5.000,00;

24. No dia 23.11.2020, a Banco 4... inquiriu a agente de execução sobre a manutenção e libertação dos saldos que continuavam penhorados;

25. Os restantes saldos penhorados junto da Banco 4... foram desbloqueados no dia 27.11.2020;

26. Com a execução supra referida em 8. e o subsequente bloqueio dos saldos bancários, os autores ficaram impedidos de utilizar os seus cartões de débito e de crédito;

27. Com a execução supra referida em 8. e o subsequente bloqueio dos seus saldos bancários, os autores tiveram de contrair empréstimos em nome de terceiros nomeadamente em nome da sociedade A... para fazer face ao cumprimento das suas obrigações e compromissos já assumidos;

28. Por vicissitudes e irregularidades na citação dos executados, só no dia 14.01.2020 foi possível aos autores deduzirem embargos de executado;

29. As irregularidades na citação dos executados permitiram a efetivação da penhora dos saldos das contas bancárias dos autores sem a prévia citação dos executados;

30. No dia 21.02.2020 a ré desistiu da execução supra referida em 8.;

31. No dia 03.03.2020, a agente de execução notificou os autores da extinção da execução contra eles movida;

32. A retenção e a impossibilidade de movimentação dos saldos bancários foi causa suficiente para infligir consternação aos autores;

33. O autor AA é um conhecido empresário do mundo do futebol, por representar treinadores e jogadores de primeiro plano nacional e internacional sendo uma figura pública conhecida no panorama desportivo;

34. As penhoras realizadas junto das instituições financeiras com que os autores se relacionavam afetou o seu nome e a sua credibilidade comercial e financeira;

35. Com a execução supra referida em 8. e o subsequente bloqueio dos seus saldos bancários, os autores viram ser agravado o risco de incumprir os seus compromissos bancários;

36. A penhora dos saldos e contas bancárias dos autores, sem prévio conhecimento da execução ou das penhoras, colocou os autores em situação de humilhação e de vergonha não só perante estranhos como de conhecidos;

37. A situação afectou o bem-estar e a qualidade de vida dos autores;

38. O autor AA viu recusada, no estabelecimento comercial onde habitualmente adquiria bens, a venda de um televisor por recusa de todos os meios de pagamento que apresentou;

39. Os autores estiveram impossibilitados de movimentarem os valores penhorados;

40. Todos os valores mobiliários e os saldos das contas de depósito dos autores penhorados supra referidos em 18, 20 e 22., mantiveram-se, ainda que penhoradas, nas contas das instituições de crédito em que estavam depositadas, não tendo sido transferidos para a conta da agente de execução.».

2. - E vem julgado não provado:

«a) Que o declarado pelos autores no acordo de 17.09.2002, supra referido em 2. se destinava a garantir o bom e pontual pagamento do empréstimo concedida a CC no dia 22.12.2005;

b) Que a ré considerou que o declarado pelos autores no acordo de 17.09.2002, supra referido em 2. se estendia ao empréstimo contraído por CC no dia 22.12.2005;

c) Que a ré só juntou o acordo celebrado no dia 17.09.2002 ao requerimento executivo do processo supra referido em 8., para mover a execução contra os autores;

d) Que a ré sabia que os autores não eram parte passiva legítima na execução;

e) Que os valores penhorados depositados nas contas dos autores, ainda que a sua movimentação ou mobilização não pudesse ser feita, continuaram a ser remunerados com os dividendos que lhes couberam e as contas de depósito fossem elas à ordem ou a prazo continuaram a receber os juros que eram devidos;

f) Que o nome dos autores foi inscrito ou ficou a constar do registo da Central de Responsabilidade de Crédito do Banco de Portugal, por responsabilidade da ré;

g) Que na decorrência da execução supra referida em 8. e o subsequente bloqueio dos saldos bancários, os autores passaram pela humilhação de ter que deixar as compras mensais na caixa do hipermercado, por não aceitação de todos os meios de pagamento que até então dispunham;

h) Que os autores com a execução supra referida em 8. e o subsequente bloqueio dos saldos bancários viram-se obrigados a recorrer a empréstimos de familiares para fazer face às suas despesas ordinárias e quotidianas;

i) Que a imagem pública, o bom nome e a consideração dos autores foram profunda e gravemente afetados com o conhecimento da execução e das respetivas penhoras;

j) Que a autora BB depois de tentar utilizar os vários cartões de crédito e débito de que dispunha e que sabia terem provisão teve de deixar todas as compras mensais na caixa do hipermercado, após repetidamente a funcionária da caixa afirmar em tom perfeitamente audível, para quem se encontrava na fila, de que a operação de pagamento tinha sido recusada, situação que envergonhou e humilhou a autora perante todos os clientes, alguns conhecidos e vizinhos que aguardavam a sua vez para pagamento;

k) Que os sentimentos de revolta e de humilhação da autora se agravaram não só por ter que justificar aos seus filhos o porquê de não trazer as compras de que a família necessitava como também por os autores terem de recorrer a empréstimos de familiares e amigos para poderem fazer face às suas necessidades de subsistência;

l) Que o aparato inerente à recusa da aquisição do bem supra referido em 38. e a circunstância de ter sido na presença de clientes e vizinhos que nos locais se encontravam humilhou e vexou profundamente os autores;

m) Que com a execução supra referida em 8. e o subsequente bloqueio dos saldos bancários, os autores passaram pela humilhação da recusa de venda de eletrodomésticos por não aceitação de todos os meios de pagamento que até então dispunham;

n) Que os autores eram tidos por todos que com eles até então lidavam como pessoas de fino trato, de ética e moral irrepreensíveis, pessoas que honram os seus compromissos e sempre cumpridoras das suas obrigações;

o) Que a execução supra referida em 8. e o subsequente bloqueio dos saldos bancários deixou sequelas profundas aos autores;

p) Que a execução supra referida em 8. e o subsequente bloqueio dos saldos bancários esmoreceu a alegria e a paz quotidiana dos autores, estados de espírito que se refletiram também nos seus filhos menores;

q) Que a execução supra referida em 8. e o subsequente bloqueio dos saldos bancários infligiu comportamentos nos autores totalmente estranhos e contrários à sua maneira de ser, naturalmente calmos, serenos, discretos e bem-dispostos;

r) Que a situação provocou aos autores algumas discussões conjugais e dificuldades em adormecerem, quer fruto da ansiedade, quer na procura de soluções para a complicada situação financeira em que as penhoras os colocaram.».

***

C) Substância jurídica do recurso

1. - Da errada consideração do dano decorrente da privação do uso

Na sentença considerou-se – aderindo a determinada corrente jurisprudencial – verificados os pressupostos da responsabilidade extracontratual, incluindo o dano, importando agora o dano da privação do uso dos bens/valores/montantes penhorados, âmbito em que ali foi entendido que tal dano é indemnizável, «independentemente da finalidade atribuída ao bem paralisado» [indemnização, sem mais, da (simples) privação do uso, como dano autónomo e consumado].

Por sua vez, a Recorrente, seguindo outra corrente jurisprudencial, defende que a mera privação do uso não gera obrigação de indemnizar (não constitui um dano em si), sendo ainda necessária uma avaliação em concreto, de que resulte que o efetivo prejuízo, traduzido em alguém pretender realmente usar a coisa «e [que] a utilizasse caso não fosse a impossibilidade [de] dela dispor», visto poder haver casos, que não seriam indemnizáveis, em que a pessoa não pretendesse usar, situação em que se estaria «perante uma mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica», a não revelar, por isso, um dano que devesse ser ressarcido pelo direito.

Assim, teria de resultar apurado, para haver direito a indemnização, que «o lesado usaria normalmente a coisa, vendo frustrado esse propósito», sendo que os AA./Recorridos «nada alegaram a respeito da utilização que pretendessem fazer dos valores que lhes foram penhorados», o que obriga ao naufrágio da respetiva pretensão indemnizatória nesta parte (conclusões 1.ª a 11.ª).

Que dizer?

Desde logo, cabe referir, como na sentença, que não tem havido unanimidade na jurisprudência sobre o “dano da privação do uso” e seu ressarcimento, havendo, realmente, três posições jurisprudenciais diversas sobre a matéria, desde aquela que defende que a privação do uso do bem configura, sem mais ([16]), um dano é indemnizável (em si), passando pela que, de forma mais exigente, não prescinde, para demonstração do dano, da prova de que o lesado usava, efetivamente, o bem ou pretendia consistentemente usá-lo, com a inerente perda de vantagens/prejuízos, até àquela que, embora considerando necessária a prova da repercussão negativa/limitadora sobre o património do lesado (não bastando a “mera” privação de uso), envereda por uma menor exigência nessa prova (prescindindo de uma “demonstração minuciosa”, substituída por “algum alívio probatório”), em termos de se entender, mormente no campo indemnizatório por acidentes de viação, que «os danos decorrentes de tal privação, dimanam, desde logo – perante a premência da necessidade do automóvel na moderna sociedade –, das regras da lógica e da experiencia comum» ([17]).

Aliás, as teses em confronto – mesmo fora do âmbito da privação do uso de veículo automóvel, horizonte este onde a questão tem sido mais debatida – encontram-se paradigmaticamente retratadas no Ac. STJ de 17/11/2021, Proc. 6686/18.2T8GMR.G1.S1 (Cons. António Barateiro Martins), em www.dgsi.pt ([18]), tendo em conta, quanto a privação do uso de um prédio, também o voto de vencido ali exarado pelo Cons. Ricardo Costa (enquanto primitivo Relator/vencido).

Em tal voto de vencido foi ponderado, todavia, que o denominado «dano da “privação de uso” resulta da impossibilidade temporária de usar e fruir», traduzindo-se num «impedimento de utilização de um bem integrante do património do titular afectado e que foi objecto da ofensa-lesão», daí se partindo para a conclusão de que «o dano só é susceptível de ser indemnizado quando se concretiza em perda das vantagens concretas e determinadas que o gozo da coisa proporciona, ocorrida depois do evento lesivo. Não se basta com a perturbação (…) das possibilidade(s) abstracta(s) (ou hipotética(s)) de uso ou utilização (…), enquanto faculdades jurídicas secundárias inerentes ao direito perturbado (…), sem tradução numa determinada situação de perda e/ou ablação numa necessidade específica (neste sentido, um dano abstracto).».

Em suma, «Só aquele dano real, visualizado na “privação de concretas vantagens de uso” (…) e não logo “a perturbação da faculdade de utilização que integra o direito “afectado”, é um dano patrimonial (susceptível de avaliação pecuniária), que, ao emergir com autonomia da ilicitude que se reconhece à ofensa directa do objecto do direito e à consequente subtracção da abstracta possibilidade de uso, se torna ressarcível – a privação em abstracto é fonte possível de dano mas não é ainda dano que se possa ressarcir» ([19]) ([20]).

Tudo ponderado, não vemos razões para nos desviarmos do entendimento que vimos adotando em casos de indemnização pela privação do uso – de veículo automóvel ou de outro bem (como in casu, em que estão em causa saldos bancários indevidamente penhorados) –, ou seja, a posição que – diversamente da adotada na decisão recorrida – defende a necessidade de demonstração, pelo lesado, do dano efetivo/real, não bastando “a perturbação da faculdade de utilização», sem mais, embora com aliviadas exigências probatórias, por ser expetável que, em situações de normalidade, da perturbação da faculdade de utilização (impossibilidade de uso) decorram danos para o património do visado.

Todavia, tal diversa perspetiva do dano não nos levará a um resultado diverso do alcançado na sentença, por, no caso, dever ter-se como demonstrado, nos moldes exigíveis, esse dano concreto/efetivo/real.

É que vem provado, com relevância, que, por força da penhora e decorrente bloqueio dos saldos bancários, os AA. ficaram impedidos de utilizar os seus cartões de débito e de crédito (facto 26), vendo-se até na necessidade de contrair empréstimos em nome de terceiros para fazer face ao cumprimento das suas obrigações e compromissos já assumidos (facto 27).

Mais. Impossibilitados de movimentar os valores penhorados (facto 39), os AA. sofreram as inerentes consequências, como sofreria qualquer outro cliente bancário, em condições de normalidade, por impossibilidade de acederam aos seus fundos/saldos bancários ([21]), com o A. marido – um conhecido empresário do mundo do futebol, por representar treinadores e jogadores de primeiro plano nacional e internacional (facto 33) – a ver-se, naturalmente, limitado na sua vida diária, quanto ao dito cumprimento de obrigações/compromissos, bem se compreendendo que a situação tenha deixado afetada a sua credibilidade comercial e financeira (facto 34).

Os AA. viram até ser agravado o risco de incumprir os seus compromissos bancários (facto 35), sujeitos mesmo a situação de humilhação e de vergonha perante estranhos e conhecidos (facto 36), com afetação do seu bem-estar e qualidade de vida (facto 37), tanto mais que o A. marido chegou a ver ser-lhe recusada, em estabelecimento de que era cliente, a venda de um televisor, por recusa de todos os meios de pagamento que apresentou (facto 38).

Em suma, os AA. quiseram usar, na sua vida diária, como seria normal, os seus cartões de débito e crédito para fazer as suas compras e pagamentos – ou outras operações bancárias –, o que deixaram de poder fazer, de um dia para o outro, por força do bloqueio dos fundos de que eram titulares e se encontravam depositados em entidades bancárias [é comum, reitera-se, que as pessoas tenham as suas economias em contas bancárias e façam os pagamentos através de cartão bancário (de débito ou de crédito), em vez de guardarem o dinheiro em casa, situação em que, bloqueadas as contas bancárias, por penhora, o titular ficará impedido de movimentar tais contas, não podendo usar os respetivos fundos, o que o impede de utilizar os cartões e fazer pagamentos ou outras operações bancárias, podendo, então, no limite, ficar em situação de não poder comprar nada, designadamente alimentos, necessários à sobrevivência (do próprio e da respetiva família, se a tiver), ao ponto, como ocorreu no caso, de obrigar a pessoa a contrair empréstimos, se lhe derem crédito para tal, para fazer face a compromissos já assumidos e, em último grau, à própria sobrevivência].

Neste horizonte, não nos restam dúvidas de que, para além da demonstrada privação do uso (por penhora e decorrente bloqueio de saldos bancários), se apura situação em que os AA. pretendiam mesmo usar – e necessitavam de o fazer – mas ficaram, realmente, impedidos de o fazer.

Situação bem diversa, pois, daquelas em que o privado do uso não pretendia usar, decompondo-se, assim, numa mera perturbação da faculdade de uso, sem outras consequências (no campo do dano).

Ao invés, os aqui AA. queriam usar, necessitavam de o fazer, e ficaram impedidos, temporária mas prolongadamente, de qualquer possibilidade de utilização/benefício na sua vida diária, ao ponto de terem de contrair empréstimos em nome de outrem, por não poderem usar os seus próprios recursos financeiros.

Tudo visto, no caso está provado o dano indemnizável da privação do uso, à luz de qualquer das teses jurisprudenciais aludidas – também, pois, à luz da tese que temos defendido e que não prescinde da demonstração de um dano real/efetivo –, mostrando-se preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, assistindo aos AA./lesados um direito indemnizatório, na vertente de dano patrimonial.

Assim, improcede quanto a esta questão a apelação.

2. - Da alteração de montantes indemnizatórios

2.1. - Por danos patrimoniais

Pretende a Recorrente a alteração de montantes arbitrados em sede indemnizatória, desde logo quanto ao dano patrimonial, no que tange ao dano da privação do uso, contestando, nesse âmbito, o adotado recurso à equidade, através do qual se arbitrou o montante de capital de € 12.850,50, por entender dever a opção correta ser a de relegação para ulterior incidente de liquidação.

Terá razão?

Vejamos.

Esgrime a Apelante que, tendo-se mantido os valores/saldos penhorados nas contas bancárias da titularidade dos AA., onde se encontravam depositados, sem transferência, pois, para a conta do agente de execução – o que resultou provado (facto 40) –, e gerando os mesmos dividendos/juros, deveria a 1.ª instância ter relegado para ulterior incidente de liquidação o apuramento desses benefícios (dividendos/juros), tal como auferidos ao longo do tempo de permanência da penhora, em vez de partir para o imediato arbitramento indemnizatório no quadro das coordenadas da equidade, com a consequência de se ter feito um uso indevido/inadequado dos critério equitativos (usados sem o devido apuramento fáctico).

Porém, este argumento não pode proceder.

É que essa matéria de alegados benefícios já foi julgada, no plano fáctico, pelo Tribunal recorrido, o qual julgou não se ter provado [cfr. al.ª e) respetiva], como visto:

«Que os valores penhorados depositados nas contas dos autores, ainda que a sua movimentação ou mobilização não pudesse ser feita, continuaram a ser remunerados com os dividendos que lhes couberam e as contas de depósito fossem elas à ordem ou a prazo continuaram a receber os juros que eram devidos;».

Juízo esse de “não provado” que não veio a ser alterado na instância recursiva, razão pela qual os factos a que alude a Recorrente – que a mesma pretenderia ver sujeitos a prova e apreciação em ulterior incidente de liquidação – já foram objeto de julgamento (efetivo e negativo), razões não havendo, por isso, para voltar a sê-lo, tratando-se, ao invés, de matéria já resolvida/decidida.

Com efeito, não se trata aqui de factos que, uma vez alegados, não tenham sido objeto de juízo probatório do Tribunal recorrido e que, por relevantes, ainda devessem ser objeto de prova ulterior, na perspetiva de se ter provado um facto concreto a quantificar (no caso, aqueles dividendos/juros), mas não o respetivo montante/quantum, o qual ainda pudesse vir a ser alcançado, com novas provas, mais tarde (a jusante, no dito âmbito incidental, em nova oportunidade à parte a quem essa factualidade aproveitasse).

Ao invés, trata-se de materialidade já julgada como não provada, o que inviabiliza, logicamente, um novo incidental julgamento posterior (sobre o que já foi julgado como não provado e, por isso, não poderia depois ser julgado novamente, nem diversamente).

Com efeito, pode dizer-se, precisando melhor, relativamente à adoção dos critérios de equidade na sentença da causa, que, in casu, não se apura a existência de recebimento dos invocados dividendos/juros, razão pela qual não haveria uma obrigação de indagação acrescida (quanto ao respetivo montante).

Não se trata, pois, de uma situação em que resultasse apurado esse recebimento, mas se ignorasse ainda o correspondente montante/quantum, o qual houvesse, então, de ser apurado – em derradeira oportunidade à parte – em ulterior incidente de liquidação.

Diversamente, não provado o dito recebimento, não se justificaria, por contraditório, relegar para momento posterior (incidente de liquidação) a respetiva quantificação, ou seja, um valor/quantitativo de um recebimento/benefício não apurado ([22]) ([23]).

Donde a improcedência das conclusões da parte apelante em contrário.

2.2. - Por juros moratórios

Discorda a Apelante da fixação de juros moratórios, à taxa anual de 4% ao ano, com referência à quantia da condenação por danos patrimoniais – dito montante de € 12.850,50 –, considerando que a indemnização (pela mora) excede o dano, argumento que se funda, ainda agora, na circunstância pressuposta de o capital penhorado ter produzido juros/vantagens que deveriam ser deduzidos, por recebidos pelos AA./Apelados.

Porém, como visto, o argumento improcede, por não demonstração de terem sido auferidos tais juros/vantagens, razão pela qual não poderia proceder-se a qualquer dedução a este título.

2.3. - Por não apuramento de concretos danos patrimoniais sofridos

Defende a Recorrente que não ficaram apurados danos concretos emergentes da ocorrida privação do uso.

Porém, não se concorda – como se pode depreender do já exposto – com tal conclusão.

O dano patrimonial ocorreu efetivamente, embora os AA. pudessem ter procedido a um maior e mais pormenorizado esforço de concretização/determinação fáctica.

Assim, não há dúvidas sobre a existência do dano patrimonial sofrido em consequência da penhora, esta de cariz ilícito e imputável à Apelante.

O que não ficou cabalmente apurado, em concreto, foi o montante do respetivo dano, na sua expressão monetária.

Por isso, abriam-se dois caminhos ao Tribunal recorrido: decidir de imediato, de acordo com critérios de equidade, ou relegar a determinação do quantum indemnizatório para posterior liquidação incidental.

Foi entendido aplicar a equidade na sentença e fixar, à sua luz, desde logo, o montante considerado adequado.

Já se viu que, para tal tipologia de casos, provado o dano invocado, mas não apurado o seu exato montante/quantum, a opção pela adoção imediata, no âmbito do arbitramento indemnizatório, de um juízo de equidade é adequada se der mais garantias de se mostrar ajustada à realidade, como ocorre quando não se perspetive como possível atingir a quantificação pretendida com recurso a prova complementar sobre o montante exato ou muito próximo do dano real.

No caso, não se vê que outras provas complementares pudessem fazer luz, em ulterior incidente de liquidação, sobre tal montante exato ou aproximado do dano real suportado: apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se a determinação do seu montante exato, nem se vislumbra forma de o poder atingir com prova complementar quantificadora.

Por isso, o meio adequado é a equidade – a aplicar desde logo –, julgando-se em conformidade com o disposto no art.º 566.º, n.º 3, do CCiv., dentro dos limites que o tribunal tivesse disponíveis para o efeito, como foi feito pela 1.ª instância, sem violação, portanto, daquele preceito legal (cfr. o vertido nas conclusões 26.ª a 31.ª e 32.º e segs. da Apelante, que não podem merecer acolhimento).

Por outro lado, o valor indemnizatório encontrado, visto à luz da equidade ([24]), tendo em conta os montantes em presença – os objeto de penhora – e o significativo tempo de privação para os lesados, que viram afetada, prolongada e inesperadamente, a sua vida económico-financeira, parece razoável para efeitos do ressarcimento pretendido.

Neste contexto, havendo de julgar-se sem factos exatos em termos de montantes – por não ter sido possível alcançá-los em concreto –, resta, então, dizer que o juízo de equidade adotado pela 1.ª instância não se perfila fora da margem de adequação que é possível nestes casos, afastando – como também é imperioso – qualquer juízo de arbítrio.

Ademais, concorda-se, quanto à equidade, que pode emergir uma dimensão subjetiva inerente a cada julgador, potenciadora de soluções divergentes para casos similares, razão pela qual a aplicação, em concreto, da equidade obriga a especial ponderação, de molde a, numa perspetiva objetivista do juízo equitativo, evitar soluções que, afetando a certeza e segurança do direito, sejam portadoras de injustiça.

Neste âmbito, pode entender-se que os tribunais superiores devem adotar um critério prudencial que apenas considere como censurável e suscetível de revogação uma solução que, de forma manifesta e intolerável, exceda certa margem de liberdade decisória que permite considerar como ainda ajustado e razoável um montante reparatório situado dentro de determinados limites.

Haverá, pois, de sindicar-se o critério de equidade concretamente aplicado, pelo que, a situar-se a reparação fixada no quadro de um exercício razoável do juízo de equidade, designadamente à luz da prática jurisprudencial e atendendo às diferenças nas circunstâncias de cada caso, não será de revogar a decisão recorrida ([25]).

In casu, não se vê, ante os dados disponíveis, que tenha o Julgador a quo divergido daquele exercício razoável do juízo de equidade, num âmbito em que não poderia deixar, em derradeiro acertamento, de fixar um determinado quantum, o que fez de forma equilibrada.

Nada, pois, a alterar à decisão recorrida neste particular, assim improcedendo as conclusões em contrário da Apelante.

2.4. - Por via de ambiguidade geradora de ininteligibilidade e decorrente nulidade da sentença

Esta causa de nulidade da sentença foi invocada – expressa e subsidiariamente – para o caso de o Tribunal ad quem entender, em confirmação da posição vertida na sentença a respeito, ser de indemnizar a privação de uso independentemente do prejuízo daí adveniente (cfr. conclusão 40.ª).

Ora, não foi esse, como visto, o entendimento adotado por esta Relação, razão pela qual, e visto o já anteriormente exposto a respeito, a matéria se haverá de ter, liminarmente, por prejudicada, dela por isso agora não se conhecendo.

2.5. - Por danos não patrimoniais

A Recorrente invocou, nesta vertente recursiva, “contradição insanável” no seio do julgamento da matéria de facto (vide conclusões 41.ª a 44.ª), vício que já se viu ser inexistente [cfr., supra, III-, A), 2-], o que, logicamente, muito prejudica a argumentação subsequente da R./Apelante, não podendo acolher-se os argumentos que aquela pretende extrair desse imputado, mas não verificado, vício/anomalia.

No mais, considera a Apelante que não deve haver indemnização por danos não patrimoniais, por não merecerem a tutela do direito, ou, assim não se entendendo, que deve o montante arbitrado, por excessivo, ser reduzido.

Ora, a 1.ª instância fixou o montante – já atualizado – de € 3.000,00, inferior aos € 5.000,00 peticionados pelos AA..

Ponderou, para tanto, o seguinte condicionalismo:

«(…) considera-se que as penhoras a que a ré sujeitou os autores, a grandeza dos valores penhorados e o longo período de tempo em que os autores estiveram sujeitos a que as suas contas estivessem cativas, com as dificuldades daí decorrentes e com todos os incómodos assim sofridos, bem como, a circunstância de os autores em nada terem contribuído para a ocorrência desta situação, tudo ponderado, justificam o montante de €3.000,00, que se afigura proporcional e equitativo, tanto mais que importa, através dessa indemnização, censurar e punir a ré pela sua conduta seriamente negligente (…).».

E tem razão o Tribunal recorrido no seu recurso aos critérios de equidade para determinação indemnizatória por danos não patrimoniais, sendo patente, por outro lado, que a gravidade do dano provocado não é, de todo, negligenciável, antes impondo a tutela do direito (cfr. art.º 496.º, n.ºs 1 e 4, do CCiv.).

Neste âmbito, não merece censura, salvo o devido respeito, a ponderação efetuada por aquele Tribunal, nem o juízo a que chegou no âmbito do arbitramento indemnizatório e respetivo quantum.

Como já dito – e se reitera –, prevalecendo aqui a equidade, haverá a Relação de sindicar, somente, o critério de equidade concretamente aplicado, pelo que, a situar-se a reparação no quadro de um exercício razoável do juízo equitativo, não é de revogar a decisão recorrida.

Ante o que vem apurado, deve dizer-se, também aqui, que o Julgador não divergiu daquele exercício razoável do juízo de equidade, fixando um valor de reparação que deve ter-se por equilibrado, na ponderação da gravidade do facto e das suas consequências, tal como do grau de culpa da lesante e da capacidade económica da mesma.

Nada, pois, a alterar à decisão recorrida também neste particular, assim improcedendo as conclusões em contrário da Apelante, sendo que não se mostra verificada qualquer imputada violação de lei.

(…)
***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida, embora com fundamentação em parte diversa.

Custas da apelação pela R./Apelante, já que vencida no recurso (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).


Coimbra, 06/02/2024

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (Relator)

Carlos Moreira (1.º Adjunto)

                                     
Fonte Ramos (2.º Adjunto)


([1]) Em 03/12/2021, no Juízo Local Cível ... do Tribunal Judicial ....
([2]) Cfr. art.ºs 44.º e 89.º a 91.º da petição.
([3]) Com audiência prévia, saneamento do processo, enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova, bem como despacho de admissão de provas.
([4]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([5]) Excetuando, logicamente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([6]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([7]) Proc. 528/13.2TBPBL.C1 (Rel. Jorge Arcanjo), em www.dgsi.pt.
([8]) Cfr. Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 485.
([9]) Cfr., inter alia, o Ac. TRC de 10/10/2023, Proc. 1185/18.5T8CTB.C1, subscrito pelos aqui Relator e 1.º Adjunto, em www.dgsi.pt.
([10]) Assim, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, ps. 312 e seg..
([11]) Importava saber em que regime ficaram, concretamente, esses bens/valores/saldos penhorados, quais os frutos (juros ou dividendos recebidos nesse período de penhora) e em que medida/montante e esfera temporal os AA. deles beneficiaram. Não se pode presumir, desde logo, quanto auferiram, o que teria de ser provado – sem o que não pode ser considerado –, nem quanto aufeririam sem penhora (não sendo, pois, possível proceder a um juízo comparativo entre as vantagens auferidas com penhora e as que seriam auferidas sem tal penhora), mesmo tendo em conta o facto provado 40, de que resulta – apenas – que os valores/saldos penhorados (quantias bloqueadas) se mantiveram nas contas em que estavam depositados, sem transferência para a conta do agente de execução.
([12]) Tome-se até por referência, para aferição da instabilidade/volatilidade deste campo/matéria, o que ocorreu nos anos mais recentes em Portugal quanto a taxas de juro nos depósitos bancários a prazo, em que, durante anos, as taxas de juros praticadas pela banca eram inexistentes ou irrelevantes, quadro que somente agora dá mostras de poder mudar (um pouco), mas sempre de forma instável/periclitante.
([13]) Por sua vez, o facto 35 – não objeto de impugnação recursiva – tem o seguinte teor: «Com a execução supra referida em 8. e o subsequente bloqueio dos seus saldos bancários, os autores viram ser agravado o risco de incumprir os seus compromissos bancários».
([14]) Cfr., por todos, o Ac. Rel. Lisboa, de 01/10/2013, Proc. 4638/08.0TCLRS.L1-7 (Rel. Maria do Rosário Morgado), em www.dgsi.pt. No mesmo sentido os Acs. do STJ, de 14/01/2010, Proc. 1885/04.7TBMTS.S1 (Cons. Alberto Sobrinho), da mesma data mas no Proc. 2299/05.7TBMGR.C1.S1 (Cons. Oliveira Vasconcelos) e de 25/03/2009, Proc. 09B0412 (Cons. Maria dos Prazeres Beleza), todos em www.dgsi.pt.
([15]) Destaques retirados.
([16]) Independentemente da sua utilização efetiva.
([17]) Cfr., quanto a esta última posição, o Ac. TRC de 05/05/2020, Proc. 3852/18.4T8VIS.C1 (Rel. Carlos Moreira, aqui 1.º Adjunto), em www.dgsi.pt, e demais jurisprudência ali citada, enunciando assim: «Na verdade, a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil depende da existência de danos e pressupõe a verificação do nexo de causalidade entre eles e o facto ilícito lato sensu  -artº 563º do CC. // Assim, a simples privação da possibilidade de uso do veículo  não é fator de atribuição de equitativa indemnização,  sendo ainda necessário demonstrar a concreta utilização que o lesado daria ao mesmo durante o período em que não o pode utilizar, a não ser que alegue outros prejuízos para além dessa privação. (…) // A referida regra de cálculo da indemnização em dinheiro, inspirada pelo princípio da diferença patrimonial, não dispensa o apuramento de factos que revelem a existência de dano ou prejuízo na esfera patrimonial da pessoa afetada. // Assim a mera privação do uso de um veículo automóvel é insuscetível de, só por si, fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil, pois que pode não ter qualquer repercussão negativa no património do lesado, ou seja, dela não resultar um dano específico, emergente ou na vertente de lucro cessante. (…) // Donde que seja um ónus do lesado não apenas a alegação em abstrato de danos decorrentes da privação da viatura por falta de reparação da entidade responsável, sendo necessária a alegação e prova concreta das situações em que a viatura deixou de ser fruída, mesmo que essa fruição ou gozo se traduza em atividades não lucrativas e se enquadre em aspetos úteis, lúdicos ou beneméritos. // Isto, repete-se, sem prejuízo de entendermos que a prova a efetivar pelo lesado deve ser algo aliviada, não devendo exigir-se como reportada a factos minuciosos, pois que efetivamente, as regras da experiencia e da normalidade das coisas nos inculcam a ideia que, nos dias que correm e atenta a hodierna organização económico-social, a perda do uso de um veículo automóvel, por regra, acarreta afetações negativas e até prejuízos para o seu dono (…)».
([18]) Em cujo sumário pode ler-se: «I- A ilícita privação do uso de um prédio rústico (um campo de cultura arvense e de regadio) configura, só por si, enquanto prejuízo resultante da impossibilidade temporária de usar tal bem, um dano autónomo. // II- Dano este que é indemnizável ainda que não se tenha provado que utilidade ou vantagem concreta o proprietário teria retirado do bem durante o período de privação. // III- Indemnização que, em tal hipótese, face às dificuldades de prova que existem em matéria de quantificação da indemnização por equivalente, deve ser fixada equitativamente (cfr. art. 566.º, n.º 3, do CC).».
([19]) Ou seja, nesta perspetiva, tal dano atendível «precisa de ser efectivo e não apenas ficcionado», pelo que, «ainda que sendo temporário, tem que se consubstanciar em vantagens e/ou ganhos (investimento) que teriam podido ser fruídas e/ou obtidos mediante a disponibilidade material do bem de que se ficou privado – assim, de um “lucro cessante” normal (art. 564º, 1, 2ª parte, CCiv.) – ou, num outro cenário também admissível, resultar da impossibilidade de aplicação do bem na satisfação imediata de necessidades do lesado sem outra alternativa (com diminuição patrimonial em relação ao estado existente no momento pré-evento danoso)  – neste contexto, de um verdadeiro “dano emergente” à luz da 1ª parte desse mesmo preceito do CCiv.».
([20]) Nessa senda, invocado foi ainda, sempre no dito voto de vencido – para além de outros argumentos –, que «o princípio da proibição do enriquecimento sem causa do lesado por força do facto lesivo obsta a que se atribua uma indemnização em dinheiro superior aos prejuízos reais (como seria a hipótese de indemnizar quem se vê afectado na utilização mas nunca utilizaria em concreto o bem ou logrou a substituição por outro bem sucedâneo), o que naturalmente suporta a “justiça prática dos resultados”».
([21]) É consabido que, na atualidade, as pessoas, comummente, são clientes de um banco, onde depositam os seus dinheiros (geralmente, em contas à ordem ou a prazo), âmbito em que, portadoras de cartão bancário (de débito e/ou crédito), com ele procedem a pagamentos, transferências e outras operações, por via eletrónica, assim fazendo face às despesas normais da sua vida diária e mensal (prescindindo, frequentemente, do uso de numerário/“dinheiro vivo”), para além de, do mesmo modo, poderem proceder a tais operações on-line, mas sempre, nesses casos, no uso de montantes depositados em banco(s), com movimentação eletrónica, razão pela qual a penhora – e decorrente bloqueio – dos fundos pode deixar, por idoneidade para tanto, a pessoa visada sem possibilidade de fazer face a quaisquer pagamentos/obrigações/compromissos, ao ponto de lhe poder paralisar toda a vertente financeira da sua vida pessoal, profissional e familiar.
([22]) A situação não se enquadraria, por isso, no lugar paralelo do art.º 566.º, n.º 3, do CCiv., segundo o qual, “se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, nada impedindo, aí, que o recurso à equidade tenha lugar, se necessário, na própria fase de liquidação, sendo, ademais, sabido – cfr. Ac. do STJ de 11/12/2012, Proc. 549/05.9TBCBR-A.C1.S1 (Cons. Fernando Bento), in www.dgsi.pt. – que “a fixação dos danos segundo juízos de equidade constitui matéria de direito”.
([23]) Cfr., por todos, o Ac. do STJ de 03/02/2009, Proc. 08A3942 (Cons. Mário Cruz), in www.dgsi.pt, cujo sumário, por pertinente, em parte se transcreve: “I. Quando fiquem provados danos mas não tenha sido possível estabelecer a sua quantificação, a opção entre equidade e liquidação prévia em fase posterior, deve obedecer àquela que dê mais garantias de se mostrar ajustada à realidade. // II. Assim, se apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se na fase que vai até à Sentença um valor exacto para a sua quantificação, mas seja admissível que ainda é possível atingi-lo com recurso a prova complementar sobre o montante exacto ou muito próximo dos danos reais, não deve passar-se para a fase executiva na parte em que a condenação ainda não esteja líquida, sendo o instrumento adequado o incidente de liquidação (…). // III. Se, pelo contrário, apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se a determinação do seu montante exacto, nem se veja forma de o poder atingir com prova complementar sobre a quantificação dele, o meio adequado para o estabelecer é utilizar desde logo a equidade – art. 566.º-3 do CC. (entre outras razões por racionalidade de meios), dentro dos limites que o tribunal tenha disponíveis para o efeito. (…) // V. Nada obsta que a equidade funcione como último critério no incidente de liquidação (arts. 47.º-5 e 378.º-2 do CPC) se nem nessa fase foi possível determinar a quantificação do dano concreto. // VI. A equidade tem de ser justificada, sob pena de a atribuição de uma indemnização a esse título corresponder a uma indemnização arbitrária”.
([24]) Esta, como escrito no Ac. do STJ de 07/07/2009, Proc. 704/09.9TBNF.S1 (Cons. Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt, «é um “Termo de procedência latina (aequitas) com o significado etimológico e corrente de “igualdade”, “proporção”, “justiça”, “conveniência”, “moderação”, “indulgência”, é utilizado na linguagem da ética e das ciências jurídicas sobretudo para designar a adequação das leis humanas e do direito às necessidades sociais e às circunstâncias das situações singulares (a equidade é, por assim dizer, a “justiça do caso concreto”)».
([25]) Veja-se o Ac. TRE, de 22/10/2015, Proc. 378/10.8TBGLG.E1 (Rel. Mário Mendes Serrano), em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “Os tribunais superiores devem apreciar as decisões de 1ª instância sobre a fixação de montantes indemnizatórios com apelo à equidade segundo uma perspectiva de intervenção que assente na aferição da calibragem do critério de equidade concretamente aplicado. Daqui decorre que quando a indemnização fixada se situar ainda dentro do quadro de um exercício razoável do juízo de equidade, não assiste ao tribunal ad quem razão para revogar a decisão da 1ª instância: só o deverá fazer quando haja uma concretização flagrantemente desajustada ou arbitrária do juízo de equidade pelo tribunal a quo.”. Sobre a matéria, cfr. ainda o Ac. STJ de 29/06/2017, Proc. 976/12.5TBBCL.G1.S1 (Rel. Lopes do Rego), disponível igualmente em www.dgsi.pt.