Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1747/10.9TXCBR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 03/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - TEP
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 61º, N.º 2, AL. B), DO C. PENAL
Sumário: A compatibilidade da libertação do condenado com a defesa da ordem e da paz social, a que se reporta a al. b), do n.º 2, do art.º 61º, do C. Penal, deve ser aferida tendo em conta o meio social em que praticou o crime.
É esse o meio que verdadeiramente releva para aferir da eficácia da prevenção geral, pois é essencialmente aí que os factos são do domínio público, que o sentimento de repulsa pelo crime praticado se instalou e, consequentemente, será aí que os efeitos de prevenção geral de dissuasão deverão predominantemente operar, sob pena de perda de confiança da comunidade no funcionamento do sistema, decorrente duma ineficaz tutela dos bens jurídicos violados pela acção criminosa.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nos autos de concessão de liberdade condicional relativos à reclusa A... foi proferida decisão que lhe denegou a liberdade condicional.
Inconformada, recorre a arguida, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

A) Dos elementos colhidos nos autos, sustentados nos factos que constam dos pareceres, relatórios e informações bem como da audição do Conselho Técnico e da reclusa, resulta que esta interiorizou a censurabilidade da sua actuação criminosa.
B) Do próprio acórdão proferido pelo Tribunal de Figueira de Castelo Rodrigo resultou provado que a arguida mostrou arrependimento dos seus actos, tendo consciência da ilicitude dos mesmos. Logo por aqui se pode verificar, sem mais, que a arguida, desde o início, que interiorizou a censurabilidade da sua actuação criminosa, bem como as consequências da mesma para as vítimas e familiares.
C) A arguida cumpriu já metade da pena, sendo possível efectuar, fundadamente, um juízo de prognose favorável.
D) Resulta inequívoco dos autos e dos relatórios sociais a que a arguida tem sido sujeita ao longo do período em que esteve presa, que, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de forma socialmente responsável e sem cometer crimes. A arguida é uma pessoa pacata, capaz de conduzir a sua vida de forma recta, o que sempre fez até ao dia malfadado da prática do crime.
E) Durante o período em que esteve presa, a arguida desenvolveu vários projectos, tendo concluído o 9° ano de escolaridade, participa em actividades de trabalhos manufacturados e em colóquios informativos e mostra-se laboralmente activa, designadamente efectuando trabalhos de limpeza.
F) Os aspectos ligados à prevenção especial, no sentido de que há um fundamento razoável quanto à expectativa de que a arguida, uma vez posta em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, encontram-se assegurados.
G) A libertação da arguida não se revela incompatível com a defesa da ordem e da paz social. Em Aveiro, onde pretende residir com uma das suas filhas, não se verifica a situação de reactividade negativa da prática do crime, não sendo conhecidas quaisquer possíveis reacções negativas à sua libertação.
H) Encontram-se demonstrados os requisitos que permitem fazer funcionar o regime da Liberdade Condicional.
I) A decisão recorrida ao concluir contra toda a fundamentação fáctica, deverá ser revogada.
J) A decisão recorrida viola os artigos 61° e 62° do C. Penal as normas constantes da Lei 122/99 de 20 de Agosto
Nestes termos e mais de direito, revogando a douta decisão e concedendo a liberdade condicional à arguida (…).

O Ministério Público respondeu, pronunciando-se pela manutenção do decidido.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se pela negação de provimento ao recurso.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a única questão a decidir é a de saber se estão verificados os pressupostos da concessão da liberdade condicional à recorrente.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

A decisão recorrida tem o seguinte teor:
Nos presentes autos é apreciada a eventual concessão de liberdade condicional relativamente a A..., que havia requerido a colocação em período de adaptação à liberdade condicional.
Os autos foram devidamente instruídos.
Reuniu-se o Conselho Técnico, que emitiu parecer maioritariamente favorável à concessão da liberdade condicional, com voto desfavorável da Direcção do Estabelecimento Prisional.
Procedeu-se à audição da reclusa, que consentiu na sua eventual colocação em liberdade condicional e não requereu outros meios de prova.
O Ministério Público emitiu parecer desfavorável. O tribunal é competente.
O processo é o próprio.
Não há nulidades, questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
A reclusa A... cumpre a pena única de 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses de prisão, imposta no âmbito do processo comum com intervenção de tribunal colectivo n0110/04.5JAGRD, pela prática de um crime de homicídio e de dois crimes de ofensa à integridade física simples.
A reclusa foi detida em 01-07-2004, ficando em prisão preventiva e depois iniciando o cumprimento de pena, e estando, portanto, ininterruptamente privada de liberdade desde aquela data.
O meio da pena foi atingido em 01-10-2011, os dois terços serão atingidos em 01.03.2014, e os cinco sextos em 01.08.2016. O termo da pena ocorrerá em 01.01.2019.
A reclusa tem mantido um comportamento institucional adequado, sem registo de sanções disciplinares, e relaciona-se correctamente com as demais.
Mostra-se laboralmente activa, designadamente efectuando trabalhos de limpeza. No EP, frequentou e concluiu o 9° ano de escolaridade. Participa em actividades de trabalhos manufacturados, em colóquios informativos.
Gozou de medidas de flexibilização da pena, com avaliação positiva.
Beneficia de RAVI desde Julho de 2010.
Tem apoio familiar, designadamente das filhas e do seu ex-marido.
A prática dos crimes vale-lhe reactividade negativa no meio comunitário onde ocorreram, ainda hoje sentida com intensidade. Em Aveiro, onde pretende residir com uma das suas filhas, já esta situação não se verifica.
A reclusa assume a prática dos seus crimes, mas não se conclui ainda que possua a suficiente consciência crítica da gravidade dos mesmos e do desvalor da sua conduta, e, ponto muito importante, não se manifesta de forma inequívoca contrita relativamente às consequências das suas condutas para as vítimas.
A reclusa tem apoio familiar, por parte da mãe, dos filhos e do irmão, que também se propõe ajudá-la em relação à possibilidade de encontrar uma ocupação laboral.
O alarme social que o crime por si praticado deixa antever a rejeição da reclusa pela comunidade, sendo certo que há que ter em conta que da pena aplicada, a reclusa cumpriu metade.
Aliás, esta circunstância determina que a pretensão de colocação em período de adaptação à liberdade condicional fique ultrapassada.
E, em face do que ficou exposto, ainda não pode formular-se, com segurança, juízo de prognose favorável quanto à reinserção da reclusa à liberdade na sociedade livre.
Por todos estes motivos, e sopesados os factos assim apurados, não podem ter-se por verificados os pressupostos materiais da liberdade condicional (art. 61°, do Cód. Penal).
Assim, e pelo exposto, decide-se não conceder liberdade condicional à reclusa A....
Notifique ao recluso e comunique ao EP e à DGRS. Comunique ao processo da condenação.
Atenta a data na qual ocorrem os dois terços da pena, há lugar a renovação anual da instância, nos termos do art.180º, nº1, do Cód. Penal, a contar da data na qual é proferida a presente decisão.
Com referência a essa data, e antecedência até 90 dias, cumpra-se oportunamente o disposto no art°173°, nº 1, al. a) e b), sem prejuízo do disposto na al. c), do mesmo normativo.

* * *

A decisão recorrida considerou ser prematura a concessão de liberdade condicional por as circunstâncias verificadas não permitirem formular com a necessária segurança um juízo de prognose favorável quanto à reinserção social da reclusa uma vez restituída à liberdade. Em abono da posição assumida apontou o alarme social decorrente da natureza e gravidade do crime que fundamentalmente determinou a sua condenação. Na verdade, a reclusa cumpre pena na sequência de condenação pela prática de um crime de homicídio e de dois crimes de ofensa à integridade física simples.
Insurge-se a recorrente, invocando a verificação dos requisitos formais previstos na lei, sustentando que a sua libertação não se revela incompatível com a defesa da ordem e da paz social, tanto mais que em Aveiro, onde pretende residir com uma das suas filhas, não se verificaria a situação de reactividade negativa da prática do crime, não sendo conhecidas reacções negativas à sua possível libertação.

É certo que os pressupostos formais da concessão da liberdade condicional foram atingidos com o cumprimento de metade da pena e que existe parecer do Conselho Técnico favorável à concessão da liberdade condicional. Contudo, a concessão da liberdade condicional ao ½ da pena não depende da mera verificação de pressupostos formais, assim como a existência de parecer favorável do Conselho Técnico não constitui condição suficiente para o efeito. O mesmo se dirá relativamente ao modo como decorreram as saídas precárias de que a recorrente beneficiou.
O que essencialmente releva para a concessão da liberdade condicional é o juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do condenado, como claramente resulta da al. a) do nº 2 do art. 61º do Código Penal, coadjuvado ainda pelas expectativas de paz social decorrentes da libertação. Os pressupostos materiais enumerados no citado art. 61º para a libertação condicional após cumprida metade da pena são os seguintes:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social”.
Ou seja, na decisão em que se pronuncie sobre a liberdade condicional deverá o juiz ponderar:
- As circunstâncias do caso;
- A vida anterior do condenado;
- A personalidade do condenado e a evolução desta durante a execução da pena.
Se, ponderados estes elementos, for de considerar fundadamente que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes e se a libertação se mostrar compatível com a defesa da ordem e da paz social, estarão reunidas as condições para a libertação condicional do condenado.
No caso em análise, não se oferece como suficiente a evolução da personalidade da reclusa tal como se manifestou no seu comportamento ao longo da execução da pena de prisão. As acentuadas exigências de prevenção geral relativamente a crimes de homicídio, decorrentes do progressivo aumento que se vem verificando no que concerne a crimes que contendem com bens jurídicos eminentemente pessoais, com relevo para os que atentam contra a vida e a integridade física, conferem carácter excepcional à libertação antecipada pelo meio da pena.
É certo que a liberdade condicional foi historicamente gizada numa perspectiva de progressiva socialização do condenado a penas de prisão de média/longa duração, permitindo uma antecipação do momento da libertação sem, contudo, excluir definitivamente a possibilidade de cumprimento da pena remanescente – aí reside, aliás, o carácter verdadeiramente ressocializador do instituto – se o recluso, através do seu comportamento subsequente, infirmar o juízo de prognose favorável subjacente à concessão da liberdade condicional. Como refere Figueiredo Dias, “(…) a decisão sobre a liberdade condicional deve ser encontrada sob pontos de vista exclusivamente preventivos” - “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 541. Mas são ainda razões de prevenção que exigem e impõem a especial ponderação do alarme social resultante da concessão da liberdade condicional. A tutela dos valores subjacentes às normas violadas só é eficazmente assegurada se confortar as expectativas comunitárias. É ainda de Figueiredo Dias a afirmação de que “o reingresso do condenado no seu meio social, apenas cumprida metade da pena a que foi condenado, pode perturbar gravemente a paz social e pôr assim em causa as expectativas comunitárias n validade da norma violada. Por outro lado, da aceitação do reingresso pela comunidade jurídica dependerá, justamente, a suportabilidade comunitária da assunção do risco da libertação que, como dissemos, é o critério que deve dar a medida exigida de probabilidade de comportamento futuro sem reincidência” - Idem, págs. 540/541..
No caso vertente, o aspecto que mais releva – e que foi atendido na decisão recorrida – é a circunstância de a prática dos crimes implicar reactividade negativa no meio comunitário onde ocorreram, ainda hoje sentida com intensidade. Pouco importa que em Aveiro, local onde a arguida não residia e não era certamente conhecida à data dos factos, não haja reacções negativas à sua libertação, já que neste circunstancialismo estranho seria se as houvesse. Em contrapartida, evidencia-se que a sua libertação no cumprimento do meio da pena seria apta a geral surpresa e indignação no meio social em que praticou o crime. E é esse o meio que verdadeiramente releva para aferir da eficácia da prevenção geral, pois é essencialmente aí que os factos são do domínio público, que o sentimento de repulsa pelo crime praticado se instalou e, consequentemente, será aí que os efeitos de prevenção geral de dissuasão deverão predominantemente operar, sob pena de perda de confiança da comunidade no funcionamento do sistema, decorrente duma ineficaz tutela dos bens jurídicos violados pela acção criminosa. O mesmo é dizer que a ordem e a paz jurídicas ficariam irremediavelmente comprometidas.
Nesta medida, o apoio familiar de que a recorrente se poderá prevalecer uma vez em liberdade e a valorização escolar que obteve no decurso do cumprimento da pena são obviamente insuficientes para permitir afirmar sem mais que está socialmente reinserida e tem aptidão para conduzir futuramente a sua vida em conformidade com as expectativas do direito e da comunidade, conclusão esta acentuada ainda pelo seu reduzido sentido de autocrítica (não evidencia consciência crítica relativamente à gravidade dos factos que determinaram a sua condenação). Consequentemente, o conjunto de elementos reunidos nos autos não consente a formulação do juízo de prognose favorável subjacente à concessão da liberdade condicional, por não ser possível em face deles, com a necessária segurança, afirmar que a recorrente, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida com respeito pela comunidade e pelas regras do direito e, simultaneamente, que a sua libertação não contende com a ordem e a paz social.
Há, pois, que concluir que a Mmª Juiz do TEP equacionou devidamente todos os factores relevantes e decidiu em conformidade com o esperado pela ordem jurídica ao não conceder a liberdade condicional à ora recorrente.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam os juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 UC.


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Jorge Miranda Jacob (Relator)

Maria Pilar Oliveira