Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5892/10.2TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: CASO JULGADO
FACTOS PROVADOS
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
Data do Acordão: 11/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA, LEIRIA, JUÍZO LOCAL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 620.º DO CPC
Sumário: Tendo sido dado como provado, em decisão transitada em julgado proferida no âmbito de uma acção de reivindicação, que o prédio dos réus é aquele que confina com o dos autores, a nascente do mesmo, tal facto não tem necessariamente de se ter como provado na presente acção, que visa a demarcação entre os prédios em causa, por não se verificar a excepção de caso julgado.
Decisão Texto Integral:

           

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

No decurso dos autos principais, de acção declarativa de condenação, com processo comum, que A... e mulher B... , movem a C... e mulher D... , já todos identificados nos autos, vieram os réus, apresentar articulado superveniente, alegando, em resumo, que o prédio que os autores referem confinar com o dos autores, não é o identificado nos autos, concluindo que a acção “assenta num erro de identificação de prédios”.

Respondendo, os autores, reiteram que os prédios que identificam nos autos, como pertença de autores e de réus são, de facto, confinantes.

Realizou-se a produção de prova arrolada quanto à discussão deste incidente, finda a qual, foi proferida a decisão de fl.s 12 v.º a 17, que decidiu, no que ora interessa:

- admitir o referido articulado superveniente;

- aditar aos temas de prova, a atender em audiência de julgamento, se existe confinância entre o prédio pertença dos autores, alegadamente correspondente ao artigo matricial n.º 00... e o prédio dos réus correspondente ao artigo matricial n.º 11... :

- apurar qual o prédio rústico dos autores que física ou materialmente confina com o prédio dos réus correspondente ao artigo matricial 11... ;

- apurar se o prédio correspondente ao artigo 00... , descrito na p.i., diz respeito, na sua realidade física, ao prédio descrito na verba n.º 15 da relação de bens partilhados (artigo matricial 22... ) ou ao prédio descrito na verba n.º 33... do mesmo documento (pinhal e mato sito no (...) ou (...) ) e;

- ordenar a realização de uma perícia, tendo como objecto esclarecer a realidade e localização física, confrontações, correspondência com as respectivas matrizes prediais, com vista a determinar os limites de cada um de tais prédios, sua localização e denominação por referência aos lugares em que se encontram.

Inconformados com a mesma, interpuseram recurso os autores A... e mulher B... , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 2), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

20. O despacho recorrido ofende os direitos substantivos dos autores, uma vez que se pronuncia em termos diametralmente opostos e, por isso, incompatíveis, com o anteriormente sentenciado em decisão transitada em julgado.

21. Nos termos da sentença transitada em julgado junta aos presentes autos como doc. n.º 15 da p. i. aperfeiçoada, foram dados, entre outros, como provados os seguintes factos:

“O prédio dos Réus, identificado em C) dos Factos Assentes, é aquele que confina com o dos AA a nascente do mesmo (…).”.

Cf. artigo 8.º da fundamentação de facto da sentença transitada em julgado, em 23 de Abril de 2009, no âmbito da acção sumária de reivindicação n.º 1098/08.9TBLRA, que correu termos pelo 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de (...) .

22. O Tribunal recorrido, no despacho ora posto em crise, ignorou, inexplicavelmente,  a sentença proferida nessa outra acção, da qual resulta evidente a confinância entre os prédios rústicos pertencentes aos AA e RR (…).

23. É por isso notória e crassa, a violação do caso julgado material.

24. O Tribunal a quo desconsiderou, de forma manifestamente inexplicável e ilegal, o teor daqueloutra decisão, sendo que tal foi alegado expressamente pelos AA (…) no âmbito do incidente espoletado pelos RR (articulado superveniente), cuja admissibilidade viola o caso julgado material.

25. Ao Tribunal recorrido estava vedada a decisão de admitir o aludido articulado superveniente, o qual visa tão só pôr em causa algo que já está – há muito – assente e sentenciado pela decisão transitada em julgado.

26. A demonstrar o que foi exposto está a decisão do Tribunal a quo em aditar aos temas de prova, a atender em sede de audiência final de julgamento, a matéria referida no Ponto 16 supra.

27. Toda a matéria que o Tribunal a quo pretende aditar aos temas de prova foi, como se demonstrou, decidida por decisão transitada em julgado, constituindo um articulado superveniente um expediente para contornar o caso julgado material.

Terminam, peticionando a procedência do recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida, decidindo-se pela inadmissibilidade do articulado superveniente deduzido pelos RR, bem como a inutilidade da ordenada perícia.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigo 635, n.º 4 e 639.º, n.º1, do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se verifica, ou não, a invocada excepção de caso julgado.

A matéria de facto a ter em conta para a apreciação do recurso é a que consta do relatório que antecede.

Se se verifica, ou não, a invocada excepção de caso julgado.

 Como resulta do exposto, circunscreve-se o objecto do presente recurso à questão de averiguar se, em virtude de na acção de reivindicação identificada na conclusão 21.ª, se ter dado como provado que “O prédio dos RR identificado em C) dos Factos Assentes, é aquele que confina como dos AA a nascente do mesmo”, tal facto, também, tem de se ter como provado, na presente acção, que visa, a demarcação entre os prédios em causa.

Sendo de esclarecer que, cf. certidão de fl.s 31 a 35 (sentença proferida na aludida acção de reivindicação, n.º 1098/08), o prédio referido em C), é o prédio dos ali réus ( C... e D... ), sito em Lagoa, freguesia de (...) , concelho de (...) , inscrito na respectiva matriz predial rústica, sob o n.º 11... .

 Ao passo que, na sequência da dedução do mencionado articulado superveniente, se coloca em crise que se verifique a confinância deste prédio com o dos aqui autores, o que se pretende definir através da ordenada perícia.

A questão da excepção de caso julgado “lato sensu”, já foi apreciada em Acórdão deste Tribunal da Relação, junto de fl.s 79 a 93, no qual se considerou que a mesma não se verifica, resumidamente, porque é diferente o objecto/pedido de uma acção de reivindicação e a de demarcação, não obstante a sobreposição de vários elementos de facto que estão na origem dos pedidos, sendo, por isso, diversos os pedidos efectuados, em cada uma delas.

Assim sendo, está, definitivamente, assente no âmbito dos presentes autos que não se verifica a excepção de caso julgado, por inexistir identidade de pedidos entre ambas as acções ora referidas – cf. artigo 620.º do CPC.

A questão, está, agora, em averiguar se o caso julgado da decisão proferida na acção de reivindicação, abrange o facto na mesma dado como provado e descrito no item 8.º dos factos provados; ou seja, se o prédio dos réus, descrito no artigo matricial da freguesia de (...) , com o n.º 11... é aquele que confina com o dos autores, a nascente do mesmo.

Como dispõem os artigos 580.º e 581.º do CPC, a excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, tendo por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior.

Para o que se exige uma tríplice identidade: identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, consistindo esta na repetição do mesmo facto jurídico que subjaz ao pedido formulado; sendo que, nas acções reais, a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real.

O pedido, é o efeito jurídico que se pretende obter com a acção.

Quanto à identidade do pedido, há que atender ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem, designadamente, a decisão proferida exclui as situações contraditórias com a que por ela (isto é, pela decisão em si, não pelos fundamentos) é definida – cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC, Anotado, Vol. 2.º, 3.ª Edição, Almedina, Julho de 2017, pág.s 593 e 594.

De considerar, ainda, que o que aqui releva é o designado como caso julgado material, por via do qual, transitada a sentença que conheça do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele – cf. artigo 619.º do CPC.

Como refere Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Março/Julho de 1996, pág. 339, “o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.

Acrescentando que a excepção de caso julgado possui um valor enunciativo, já que tem a eficácia de excluir implicitamente toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada.

Todavia, quanto aos fundamentos de facto, acrescenta a pág. 340 que “Em regra, o caso julgado não se estende aos fundamentos de facto. Ou melhor: esses fundamentos não adquirem um valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial.

(…)

Portanto, pode afirmar-se que os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, o valor de caso julgado. Esses fundamentos não valem por si mesmos, isto é, não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta”, concluindo que os fundamentos de facto relevam para uma correcta interpretação da sentença, mantendo essa função interpretativa da sentença, mas sem estarem “integrados no caso julgado”.

A esta regra, assinala duas excepções, em que os fundamentos de facto considerados em si mesmos, ou seja, considerados em si mesmo e, portanto, desligados da respectiva decisão, adquirem valor de caso julgado: relações de prejudicialidade e as relações sinalagmáticas entre prestações (cf. ob. cit., pág.s 341 a 343).

Verificando-se uma relação de prejudicialidade quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação de um outro objecto de uma acção posterior, ao passo que as relações sinalagmáticas se referem a prestações de cumprimento simultâneo.

Ora, no caso em apreço, como é óbvio, não se trata de um caso de relações sinalagmáticas nem estamos perante um fundamento de facto constante da acção de reivindicação que condicione o objecto da acção de demarcação.

Naquela apenas se tratava de averiguar da existência do direito de propriedade sobre um determinado imóvel, a que se arrogavam os ali autores, ao passo que na acção de demarcação, o que releva é a propriedade (assente e aceite) sobre os prédios, confinantes e a indefinição ou falta de elementos que permitam a delimitação entre eles, com base em qualquer dos fundamentos previstos na lei, incluindo o residual, previsto no artigo 1354.º, n.º 2, do Código Civil.

E se a confinância é um dos requisitos exigidos para exercer o direito á demarcação entre dois prédios, menos certo não é que a confinância em nada releva para a reivindicação, pelo que o que consta do item 8.º dos factos provados na acção de reivindicação, acima já identificada, relativamente ao prédio aí referido como confinante, não pode ser autonomizado da decisão em que se integra e, por isso, nos termos expostos, não está integrado/abrangido pelo caso julgado da decisão ali proferida.

De resto, para que se possa proceder a uma efectiva, eficaz e real demarcação entre os prédios em questão, o que releva é a real localização e identificação dos prédios em causa (o que implica que a descrição que deles se faz nos autos corresponda à realidade), sob pena de assim não sendo, a decisão a proferir nos presentes autos de demarcação, vir a ser inútil, de nada valendo proceder à definição de uma linha divisória, se os prédios descritos nos autos não equivalerem à realidade predial, física, de cada um deles, designadamente, composição, configuração e localização, em que se incluem as respectivas confrontações.

Em suma, não se resolveria o litígio que as partes submetem à apreciação do Tribunal, se assim não for.

Assim, improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas, pelos apelantes.

Coimbra, 28 de Novembro de 2017.