Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1585/08.9TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: TESTAMENTO
MEAÇÃO
BENS COMUNS
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 09/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1685 CC, 524, 691 CPC
Sumário: 1. Se a A., na petição inicial, alegou facto principal, essencial para a boa decisão da causa e procedência da sua pretensão, protestou juntar documento comprovativo e o juiz decide de mérito em despacho saneador-sentença, julgando improcedente a acção, sem antes de proferir tal decisão notificar a A. para juntar o referido documento e sem na mesma decisão apreciar/considerar tal facto essencial, não se tendo, por isso, pronunciado sobre o mesmo no sentido de provado ou não provado, então em recurso a A. poderá juntar com as alegações o referido documento.

2. A disposição para depois da morte, por um dos cônjuges, que tenha por objecto coisa certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro, salvo se a disposição tiver sido autorizada pelo outro cônjuge no próprio testamento do disponente, caso em que pode ser exigida a coisa em espécie.

Decisão Texto Integral: Proc.1585/08.9TBMGR

I – Relatório

1. C (…), casada, residente na ..., intentou a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra L (…) e marido JM (…) residentes na ..., JA e mulher MC (…), residentes em ..., e MA (…), residente na ..., pedindo se declare o direito da A. a exigir em espécie dos restantes herdeiros dos inventariados (…)e (…) os ora RR, a entrega do prédio urbano correspondente à fracção B, constituída por 5 divisões, cozinha, casa de banho, sótão, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., em regime de propriedade horizontal, confrontando a Norte com caminho público, Nascente com JRL, Sul AA e Poente com LR, que se encontra inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...-B ½, e em consequência, reconhecer o direito de propriedade da A. sobre o referido imóvel, por o ter adquirido por sucessão testamentária de (…).

Alegou, para tanto, que ela e os RR são interessados no Inventário que corre termos no Tribunal Judicial da Marinha Grande, sob o nº .../2001, onde são inventariados os referidos (…)sendo ela e os RR (…), filhos dos inventariados, enquanto a (…) é viúva de (…), entretanto falecido, igualmente filho dos inventariados, e que por morte de (…), também filho dos inventariados, a herança deste foi deferida a seus pais, dessa herança fazendo parte o identificado prédio urbano, prédio esse que foi descrito no mencionado inventário como bem dos indicados inventariados, que a falecida (…) fez testamento em 25.2.1986, no qual legou à A. os bens imóveis que viesse a adquirir por herança do mencionado filho (…), herança que, como dito, incluía o dito prédio urbano, disposição testamentária esta que foi autorizada pelo marido/inventariado (…), pelo que pelo falecimento da (…) em Agosto de 1990, a A. adquiriu, por sucessão da mesma, a totalidade do prédio, direito que os interessados seus irmãos contestam, por entenderem que a A. apenas adquiriu metade do mesmo prédio, o que originou que no dito inventário as partes tivessem sido remetidas para os meios comuns.

A A. protestou juntar vários documentos para comprovativo do alegado.

Os RR L (…) e Marido e JA (…) e Mulher contestaram, dizendo que o direito que a A. reclama incide, apenas, sobre metade do indicado prédio.

Após despacho judicial, nesse sentido, a A. juntou aos autos diversos documentos que tinha protestado juntar.  

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Depois de efectuada tentativa de conciliação, foi proferido despacho saneador-sentença que julgou improcedente a acção e consequentemente absolveu os réus do pedido.

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2. A A. interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões que se sintetizam:

1ª) O Tribunal a quo não apreciou nem se pronunciou sobre o artigo 11º da p.i.;

2ª) O que era relevante para a boa decisão da causa, pois foi aí alegado que a (…) outorgou, em 25.2.1986, um testamento, no qual o marido (…) prestou o necessário consentimento, em que dispunha, a favor da A., dos bens imóveis que viesse a adquirir por herança do filho (…), ou seja o mencionado prédio urbano;

3ª) O que está comprovado através da cópia certificada do aludido testamento, que apresenta sob documento nº 1;

4ª) O próprio (…) no mesmo dia outorgou um testamento, no qual a (…) prestou o necessário consentimento, em que legava à A. os bens imóveis que viesse a adquirir por herança do filho (…), ou seja o mencionado prédio urbano;

5ª) Com o falecimento dos inventariados, da (…) em Agosto de 1990 e do (…) em Abril de 2001, abriu-se a sucessão, e os testamentos outorgados pelos mesmos reciprocamente autorizam o legado do bem em espécie, conferindo dessa forma à A./recorrente o direito de exigir o cumprimento dos legados;

6ª) Foi violado o art. 1685º, nº 3, b), do CC, devendo ser revogada a decisão recorrida e ser reconhecido o direito de propriedade da A. sobre o referido prédio urbano, como peticionado.

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Os RR não ofereceram contra-alegações, e nada disseram sobre tal documento.

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II - Factos Provados

A) Corre termos no 3.º Juízo deste Tribunal um processo de inventário com o n.º .../2001, em que são inventariados (…) e (…) e (…) (cfr. certidão de fls. 78, que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais).

B) (…) faleceu no dia 16 de Abril de 2001 (cfr. certidão de fls. 57, que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais).

C) (…) faleceu no dia 10 de Agosto de 1990 (cfr. certidão de fls. 58, que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais).

D) L (…), JA (…), A (…) e AA (…) são filhos de (…) e (…) (cfr. certidões de nascimento de fls. 55, 56, 59 e 61, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais).

E) AA (…) faleceu em 24 de Janeiro de 1986, no estado de viúvo (cfr. certidão de óbito de fls. 60, que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais).

F) (…) faleceu na pendência do inventário referido em A), no estado de casado com (…) (cfr. certidão de fls. 61, que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais).

G) Em testamento público outorgado em 25 de Fevereiro de 1986, no Cartório Notarial de Pinhel, consta que (…) "lega a sua filha C (…), casada, natural da dita freguesia de ..., e residente em ... ... por conta de quota disponível dos seus bens, os bens (móveis e imóveis) que vierem à sua posse por herança de AAS, já falecido", sendo que a esposa de (…) –(…) -declarou prestar o consentimento necessário à plena validade do acto, sendo casados no regime de comunhão geral (cfr. certidão do testamento de fls. 62 a 65, que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais).

H) Da herança de (…) fazia parte o prédio urbano, correspondente à fracção B, constituída por cinco divisões, cozinha, casa de banho, sótão, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., em regime de propriedade horizontal, confrontando a norte com caminho público, nascente com JRL, sul com AA e poente com LR, encontrando-se inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...-B 1/2.

I) Na sequência do falecimento de (…), a propriedade do prédio referido em H) foi inscrita, por devolução sucessória, a favor de (…) e (…)

J) Na relação de bens apresentada no âmbito do processo de inventário referido em A) foi descrito como bem da herança de (…) e (…)o prédio referido em H).

 

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 685º-A e 684º, nº 3, do CPC).

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Admissibilidade do documento oferecido pela A. com as alegações.

- Alteração da matéria de facto.

- Entrega do prédio urbano à A. e reconhecimento do respectivo direito de propriedade.

2. Na petição inicial a A., sob art. 11º da p.i., alegou que a (…) fez testamento em 25.2.1986, no qual legou à ora recorrente os bens que viesse a adquirir por herança do filho (…), ao tempo já falecido, nos quais se inclui o prédio urbano já atrás identificado. Além dessa alegação, protestou juntar documento comprovativo.

Logo de seguida, no art.12º da p.i., alegou que por se tratar de disposição especificada de um bem comum do casal (…) e (…), por força do regime de bens da comunhão geral, a dita disposição testamentária foi autorizada pelo marido (…).

Em despacho judicial, oportunamente proferido, foi ordenado à A. que juntasse aos autos os documentos comprovativos dos factos alegados na p.i., como protestara, tendo a mesma junto aos autos vários documentos, mas não o documento que protestara juntar comprovativo do alegado no art. 11º da p.i.

Apesar de se tratar da alegação de um facto principal, essencial para a boa decisão da causa, a Sra. Juíza avançou para a tentativa de conciliação sem nova ordem de junção do documento comprovativo desse facto alegado no dito art. 11º da p.i., como protestara. Frustrada a tentativa de conciliação, a Sra. Juíza avançou para a prolação de despacho saneador-sentença sem que antes tenha mandado juntar o aludido documento comprovativo, como a A. protestara. Mais estranhamente, ainda, proferiu-se saneador-sentença, com selecção dos factos considerados provados (são os acima indicados), mas omitiu-se por completo a apreciação desse facto alegado no art.11º da p.i., assim como do alegado no art.12º de tal articulado, não se tendo, por isso, a julgadora pronunciado sobre os mesmos, quer no sentido de provado ou não provado.

Face a tal omissão e atendendo à decisão proferida, de improcedência da pretensão da ora recorrente, a mesma, com as alegações, apresentou cópia certificada do aludido testamento. Do mesmo consta que, em 25.2.1986, a (…) legou a sua filha (…), por conta da quota disponível dos seus bens, os bens móveis e imóveis que vierem à sua posse por herança de (…) já falecido. E que o marido (…) prestou a sua (…) o consentimento necessário à plena validade de tal disposição (vide o referido documento nº 1, de fls.110 a 113). Como se referiu os RR nada disseram, sobre tal documento.

As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 524º, no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância e nos casos previstos nas alíneas a) a g) e i) a n) do nº 2 do artigo 691º (art. 693º-B do CPC).

Não se tratando de nenhuma das situações previstas no art. 524º, nem das especificamente contempladas na 3ª parte do preceito, é contudo aplicável o que o mesmo normativo dispõe na sua 2ª parte “no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.

Na verdade, a decisão proferida no despacho saneador-sentença pura e simplesmente não apreciou o facto essencial para a boa decisão da causa, alegado pela A. no art. 11º da p.i., tão-pouco considerou o adjuvante facto alegado no art. 12º da mesma peça processual, não se tendo, por isso, a julgadora pronunciado sobre os mesmos, quer no sentido de provado ou não provado. E isto apesar de a A. ter protestado juntar documento comprovativo, sem que, porém, tivesse havido despacho judicial a notificar a A. para esse concreto efeito.

Assim, perante a decisão de improcedência da acção proferida no despacho saneador, em processo que não seguiu deste modo para a fase da instrução, era imperioso, necessário, que face a tal julgamento proferido na 1ª instância a ora recorrente juntasse agora, em recurso, o dito documento.   

Uma vez que tal documento reveste manifesto interesse para a decisão da causa, por se reportar a factos principais, alegados pela recorrente, e essenciais para a boa decisão da mesma, deve o mesmo ser admitido.

3. Face ao ora decidido, e em consequência, ao abrigo do art. 659º, nº 3, “ex vi” do art. 713º, nº 2, do CPC adita-se aos factos provados, sob L) o seguinte:

L) Em testamento público outorgado em 25 de Fevereiro de 1986, no Cartório Notarial de Pinhel, consta que (…) "lega a sua filha (…), casada, natural da dita freguesia de ..., e residente em ... ... por conta de quota disponível dos seus bens, os bens (móveis e imóveis) que vierem à sua posse por herança de (…), já falecido", sendo que o marido (…) declarou prestar o consentimento necessário à plena validade do acto, sendo casados no regime de comunhão geral.

4. Tal como resulta do elenco dos factos provados, a testadora (…), em 25.2.1986, legou a sua filha (…), ora recorrente, por conta da quota disponível dos seus bens, os imóveis que viessem à sua posse por herança de (…), seu filho, já falecido nessa altura, tendo o marido (…) prestado o consentimento necessário à plena validade do acto, sendo casados no regime de comunhão geral (factos provados L) e E).

Da herança do (…) fazia parte o já identificado prédio urbano, prédio esse que (…) e o marido (…) vieram a herdar (factos provados H) e I).

Como princípio geral, dispõe o art. 1685º, nº 1, do Código Civil, que: Cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois a morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem prejuízo das restrições impostas por lei em favor dos herdeiros legitimários.

E o nº 2, mais particularmente, que: A disposição que tenha por objecto coisa certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro.

E o nº 3, mais concretamente, que: Pode, porém, ser exigida a coisa em espécie:

a)…

b) Se a disposição tiver sido previamente autorizada pelo outro cônjuge por forma autêntica ou no próprio testamento;

c)…  

Significa isto que, tendo um dos cônjuges disposto em testamento de bens em concreto do património comum dos cônjuges, tal disposição é válida.

Mas, apenas, confere o direito ao beneficiado a exigir o respectivo valor dessa coisa em dinheiro.

Ressalvadas as hipóteses previstas no citado nº 3, em que se pode exigir a coisa em substância (vide neste sentido o Ac. do STJ, de 14.4.1999, in C. J., T. 2, pág. 43).

A propósito deste regime ensina A. Varela, in CC Anotado, Vol. 4, 2ª Ed., nota 5. ao dito artigo, pág. 314, que se a intenção da lei ao impor a solução consagrada no nº 2 do preceito, conversão sistemática da disposição de coisa do património comum em legado pecuniário, teve como fundamento principal a ideia de não prejudicar os direitos ou as simples expectativas do outro cônjuge sobre o património comum, sobre os bens legados, é perfeitamente compreensível que a lei reconheça a validade da disposição em espécie, no caso do contitular dos bens ter aprovado a liberalidade, tal como ela foi concebida pelo disponente.    

Ora, no caso concreto o mencionado prédio urbano integrava o património comum da testadora (…) e de seu marido (…), visto serem casados em regime de comunhão geral de bens. A testadora (…)deixou a sua filha C (…) ora apelante, o dito prédio urbano. No testamento da (…) consta o consentimento expresso do seu marido (…).

Assim, com o falecimento da (…), em Agosto de 1990, abriu-se a sucessão desta e face ao referido consentimento do marido (…), a ora recorrente, a partir de tal data, passou a poder exigir a entrega em substância do indicado prédio urbano aos demais herdeiros e em consequência passou a ter o direito de propriedade sobre o referido imóvel.

O mesmo aconteceria, aliás, se víssemos o caso em apreço pelo ângulo do falecimento do (…), ocorrido em Abril de 2001. Também ele, no apontado dia, no seu testamento, fez igual disposição a favor de sua filha, ora apelante, e também no mesmo dia e mesmo testamento a sua mulher (…) prestou a necessária autorização (facto provado G).

Facto significativo e inequívoco de que quer a (…) primeiramente falecida, quer o (…), posteriormente falecido, pretendiam atribuir em espécie o mencionado imóvel a sua filha C (…), ora recorrente, e para salvaguardar esta vontade e este resultado, fizeram no mesmo dia, cada um, o seu testamento, com semelhante disposição a favor da filha e com idêntica prestação das necessárias autorizações.

Procede, pois, o recurso da A.   

5. Sumariando o Acórdão (art. 713º, nº 7, do CPC)

i) As partes podem juntar documentos às alegações de recurso no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância;

ii) Se a A., na petição inicial, alegou facto principal, essencial para a boa decisão da causa e procedência da sua pretensão, protestou juntar documento comprovativo e o juiz decide de mérito em despacho saneador-sentença, julgando improcedente a acção, sem antes de proferir tal decisão notificar a A. para juntar o referido documento e sem na mesma decisão apreciar/considerar tal facto essencial, não se tendo, por isso, pronunciado sobre tal facto no sentido de provado ou não provado, então em recurso a A. poderá juntar com as alegações o referido documento.

iii) A disposição para depois da morte, por um dos cônjuges, que tenha por objecto coisa certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro, salvo se a disposição tiver sido autorizada pelo outro cônjuge no próprio testamento do disponente, caso em que pode ser exigida a coisa em espécie.

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o presente recurso, assim se revogando a decisão recorrida, e em consequência declara-se o direito da A. a exigir em espécie dos restantes herdeiros dos inventariados (…) e(…), os ora RR, a entrega do prédio urbano correspondente à fracção B, constituída por 5 divisões, cozinha, casa de banho, sótão, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., em regime de propriedade horizontal, confrontando a Norte com caminho público, Nascente com JRL, Sul AA e Poente com LR, que se encontra inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...-B ½, e em consequência, reconhece-se o direito de propriedade da A. sobre o referido imóvel (por o ter adquirido por sucessão testamentária de (…)).

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Custas pelos RR.

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                                                                           Coimbra, 14.9.2010


Moreira do Carmo -Relator
Alberto Ruço
Judite Pires