Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/05.3IDCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
SOCIEDADE COMERCIAL
EXTINÇÃO DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL
Data do Acordão: 03/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (INST. CENTRAL – SECÇÃO CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.146.º E 160.º DO CSC; ART. 81.º DO CIRE
Sumário: I - A sociedade, dissolvida pela declaração de insolvência, entra em liquidação, não se extingue. A extinção só acontece mais tarde, com o registo do encerramento da liquidação.

II - Há um período na vida útil da sociedade em que coexistirão duas entidades que validamente representam a sociedade, o administrador da insolvência circunscrito aos aspectos de carácter patrimonial que interessem à insolvência e os gerentes quanto ao mais, embora cada uma no seu campo de intervenção específico que não se sobrepõem.

III - No caso, as sociedades comerciais recorridas, não obstante terem sido declaradas falidas, continuam a manter intactas a responsabilidade criminal de pessoas colectivas, até porque não há conhecimento de que se tenha verificado o registo do encerramento da sua liquidação.

IV - A falência não determina a extinção da responsabilidade penal própria, das sociedades.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra



O Ministério Público, não se conformando com o despacho proferido pela Mma Juiz a 23 de maio de 2014, que julgou extinta a responsabilidade criminal das sociedades arguidas “A... Lda e B..., S.A.”, vem dele interpor recurso para este tribunal, sendo que na respectiva motivação formulou as seguintes conclusões:
A. Nos presentes autos foram as sociedades arguidas " A... , Lda." e " B... , S.A." condenadas por decisão judicial transitada em julgado em 23 de novembro de 2011, em cúmulo jurídico, nas penas de 300 dias de multa e de 600 dias de multa à taxa diária de € 5,00, respetivamente;
B. No âmbito do processo n.º 294/04.2TBTBU-C que correu termos na Secção Única do Tribunal Judicial de Tábua foi a sociedade " B... , S.A." declarada falida por sentença datada de 26.09.2007, transitada em julgado em 11.10.2007 já tendo sido proferido despacho de encerramento da liquidação;
C. No âmbito do processo n.º 207/04.1TBTBU-C que correu termos na Secção única do Tribunal Judicial de Tábua foi a sociedade " A... , Lda." declarada falida por sentença datada de 23.04.2009, transitada em julgado em 08.06.2009. Por despacho de 08.01.2013 foi determinada a extinção dos autos de liquidação neste processo de falência;
D. Das certidões comerciais das sociedades " A... , Lda." e " B... , S.A." juntas aos autos não consta o averbamento no registo comercial do encerramento da liquidação destas sociedades arguidas;
E Por despacho proferido a 23 de maio de 2014o Tribunal a quo declarou extinta a responsabilidade criminal das sociedades arguidas " A... , Lda." e " B... , S.A.", sem que constasse dos autos informação sobre o registo do encerramento da liquidação destas;
F. O Código Penal consagra no artigo 11.º a responsabilidade das pessoas coletivas, sendo que o artigo 7º do R.G.I.T. também consagra a responsabilização destes entes; e que o artigo 127.º, n.º 1 do Código Penal consagra como causa de extinta da pessoa singular a morte;
G. Ao apelar à similitude de situações (aplicando a mesma linha de pensamento e raciocínio) não poderemos olvidar que a extinção da pessoa coletiva (o “sistema organizativo” de que fala o Tribunal a quo) - uma criação instrumental do mundo normativo - não determina automaticamente a extinção da sua responsabilidade criminal;
H. No caso das sociedades comerciais, o substrato patrimonial e pessoal das mesmas desaparece com o termo da sua personalidade jurídica que ocorrerá apenas aquando do registo do encerramento da liquidação, conforme consta do artigo 160.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais;
I. Pelo que a responsabilidade criminal das sociedades comerciais não se extingue com a declaração de insolvência ou falência, nem como o encerramento da liquidação do património que ocorre no âmbito dessa ação, não obstante a existência de uma eventual impossibilidade factual de agir sobre a entidade criminalmente responsabilizada na execução da pena que lhe foi aplicada;
3. Na verdade, não se pode considerar que as sociedades arguidas " A... , Lda." e " B... , S.A." se encontram juridicamente extintas e muito menos que as mesmas já não são criminalmente responsáveis;
K. Pelo que foram violados aquando da emanação do Despacho judicial de 23.05.2014, a fls. 3156 e seguintes dos autos os artigos 141°, n.º 1, alínea e), 146.1, n.º 2 e 160.º, n.º 2, do C.S.C., artigos 11.º, 127º, n.º 2 e 128.0 do Código Penal e artigos 7.º e 105.º do R.G.I.T.. e artigo 475.º do Código de Processo Penal.
Nestes termos e nos demais de Direito o Tribunal a quo ao proferir o Despacho que declarou a extinção da responsabilidade criminal das sociedades arguidas " A... , Lda." e " B... , S.A.", violou o disposto nos artigos 141.°, n.º 1, alínea e), 146º, n.º 2 e 160.º, n.º 2, do C.S.C., nos artigos 11.º, 127.º, n.º 2 e 128.º do Código Penal e nos artigos 7.º e 105.º do R.G.I.T. e no artigo 475.º do Código de Processo Penal, pelo que deverá ser o mesmo revogado e substituído por outro no sentido de considerar que a responsabilidade criminal das sociedades arguidas não se encontra extinta, julgando o recurso ora interposto procedente por provado.


Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Nos presentes autos foram as sociedades arguidas " A... , Lda." e " B... , S.A." condenadas por decisão judicial transitada em julgado em 23 de novembro de 2011, em cúmulo jurídico, nas penas de 300 dias de multa e de 600 dias de multa à taxa diária de € 5,00, respetivamente;
No âmbito do processo n.º 294/04.2TBTBU-C que correu termos na Secção Única do Tribunal Judicial de Tábua foi a sociedade " B... , S.A." declarada falida por sentença datada de 26.09.2007, transitada em julgado em 11.10.2007 já tendo sido proferido despacho de encerramento da liquidação;
No âmbito do processo n.º 207/04.1TBTBU-C que correu termos na Secção única do Tribunal Judicial de Tábua foi a sociedade " A... , Lda." declarada falida por sentença datada de 23.04.2009, transitada em julgado em 08.06.2009. Por despacho de 08.01.2013 foi determinada a extinção dos autos de liquidação neste processo de falência;
Das certidões comerciais das sociedades " A... , Lda." e " B... , S.A." juntas aos autos não consta o averbamento no registo comercial do encerramento da liquidação destas sociedades arguidas;
Por despacho proferido a 23 de maio de 2014 o Tribunal a quo declarou extinta a responsabilidade criminal das sociedades arguidas " A... , Lda." e " B... , S.A.", sem que constasse dos autos informação sobre o registo do encerramento da liquidação destas;

O art. 81º do CIRE (Código da Insolvência e Recuperação de Empresas) dispõe, no nº 1, que «a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência».
Para além disso, decorre da lei que uma das causas de extinção da sociedade é a declaração da sua insolvência - art. 141º, nº 1, al. e), do diploma. Esgotada que seja a sua função social, a sociedade é dissolvida.
No entanto, a sociedade dissolvida não se extingue de imediato.
A sociedade, dissolvida pela declaração de insolvência, entra em liquidação, não se extingue - art. 146º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
A extinção só acontece mais tarde, com o registo do encerramento da liquidação, conforme determina o n.º 2 do art. 160º do CSC, ao dizer que «a sociedade considera-se extinta … pelo registo do encerramento da liquidação».
A dissolução, por exemplo decorrente da declaração de insolvência, abre uma nova fase na vida da sociedade: a fase de liquidação e partilha.
Mas a sociedade em liquidação não passa a ser uma nova sociedade. A sociedade é a mesma mantendo, nomeadamente, a personalidade de que gozava antes de dissolvida - nº 2 do art. 146º do CSC. Só com o registo da liquidação, é que a sociedade se extingue. E se só com o registo da liquidação é que a extinção ocorre, então até lá tudo decorre com a normalidade possível, embora com as limitações impostas pela lei.

Portanto, a dissolução não determina a extinção da responsabilidade penal.
E que dizer quanto à representação da sociedade após o trânsito da declaração de insolvência?
Um dos efeitos desta declaração é a assunção, pelo administrador da insolvência, da representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência – art. 81º, nº 4, do CIRE.
Nos termos do art. 252º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, a sociedade é representada pelo gerente.
Por outro lado, com a declaração de insolvência é o administrador que passa a representar o devedor. Mas esta representação, di-lo a lei, circunscreve-se aos aspectos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. Ou seja, tudo o que extravase os aspectos patrimoniais relativos à insolvência não cabe nos poderes de administração do administrador.
Já se viu que não é a declaração de insolvência que extingue a sociedade. Portanto, ainda há um período na vida útil da sociedade em que coexistirão duas entidades que validamente a representam, embora cada uma no seu campo de intervenção específico que não se sobrepõem.
Ora, um dos aspectos que extravasa o âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência são todas aquelas relativas a processos-crime. Assim, em todas estas questões a representação da sociedade caberá, portanto, ao respectivo gerente [Neste sentido vide Luís Carvalho Fernandes-João Labareda, Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência anotado, 1999, pág. 392], também ac. daRPorto de 15/5/2013 relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Elsa Paixão no rec nº 15312/09.01DPRT.P1 e que vamos seguir de perto.
Tenhamos ainda presente que, se é certo que na empresa declarada insolvente ocorrem algumas limitações quanto às suas regras de funcionamento, a mesma continua a ter existência até ao encerramento da sua liquidação.
«A extinção da pessoa colectiva não implica a extinção da respectiva responsabilidade criminal. A extinção do procedimento criminal contra a pessoa colectiva só se verifica com o registo do encerramento da sua liquidação, porquanto as penas pecuniárias devem ser levadas em conta no momento da sua liquidação. Isto é, a declaração de falência da sociedade não pode ser equiparada à morte para efeitos da extinção do procedimento criminal (acórdão STJ, de 12.10.2006, in CJ, Acs. do STJ, XIV, 3, 207, acórdãos do TRP de 10.3.2004, in CJ XXIX, 2, 201; de 29.6.2005, in CJ XXX, 3, 219 e de 9.5.2007, in CJ XXXII, 3, 205).»

Por tudo o exposto, verificamos que no caso as sociedades comerciais recorridas, não obstantes terem sido declaradas falidas, continuam a manter intactas a responsabilidade criminal de pessoas colectivas, até porque não há conhecimento de que se tenha verificado o registo do encerramento da sua liquidação.
Diga-se, pois, que a falência não determina a extinção da responsabilidade penal própria, das sociedades.


Nesta conformidade, decidem os juizes desta Relação em, dando provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que considere a responsabilidade criminal das sociedades arguidas.

Sem tributação                                           

Coimbra, 4 de Março de 2015
           
(Alice Santos - relatora)

(Belmiro Andrade - adjunto)