Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
529/08.2TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: CONTRATO DE CONSIGNAÇÃO
IMPUGNAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
CONCLUSÕES
Data do Acordão: 04/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 405, NºS 1 E 2, 875 E 879 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Em caso de impugnação da decisão da matéria de facto, não se torna necessário que o impugnante nas conclusões de recurso indique novamente (tendo-o feito nas alegações que as precedem) a prova em que suporta tal impugnação, o mesmo já não sucedendo, porém, no que concerne à matéria de facto impugnada, cuja indicação ou especificação se torna ali obrigatória e por referência expressa (havendo-a) aos pontos concretos da base instrutória de cuja resposta se discorda, sob pena de rejeição liminar do recurso na parte referente a tal impugnação.

II – Só pode haver contradição entre os factos provados quando os mesmos sejam absolutamente incompatíveis entre si, de tal modo que não possam coexistir uns com os outros.

III – O contrato de consignação, também designado por estimatório ou de venda à consignação, caracteriza-se essencialmente pela entrega de coisas móveis pelo consignante ao consignatário para que as venda, ficando o último com a obrigação de lhas pagar ou, caso não as venda e não opte por ficar com elas, de lhas restituir.

IV – Neste tipo de contrato a transmissão da propriedade do consignante para o consignatário não ocorre logo com a celebração do contrato, o mesmo sucedendo com a obrigação de pagamento do preço, que não é um efeito essencial ou necessário do contrato, mas tão só um efeito alternativo à obrigação da devolução das coisas entregues.

V – Integra-se em tal figura contratual a proposta apresentada por um representante da autora à ré, e aceite por esta, na sequência da qual a ré se comprometeu a vender no seu estabelecimento comercial, em regime de exclusividade, roupa infantil fornecida pela autora, devendo, após a sua venda, a ré pagar à autora o valor facturado pela mercadoria vendida e devolver-lhe a mercadoria que não lograsse vender.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. A autora, A...., Sociedade Unipessoal, Lda, com sede na Zona Industrial de ..., veio intentar (em 4/5/2008) contra os réus, B....e seu marido C...., residentes em ...., a presente acção declarativa condenatória, sob a forma de processo sumário.

Para o efeito alegou, em síntese, o seguinte:

No âmbito da sua actividade comercial forneceu à ré diversos artigos de vestuário, descriminados nas 3 facturas que identificou e juntou com o articulado da petição inicial, devendo a liquidação do respectivo preço ser feita no prazo de 90 dias a contar da data da emissão de cada uma delas.

Do preço global de € 24.647,63 em que importaram tais artigos, encontra-se ainda em dívida a quantia de € 6.316,51, que a ré se tem recusado a pagar, não obstante a autora a ter interpelado, por diversas vezes, para o efeito.

A tal importância acrescem agora os juros de mora, à taxa legal supletiva em vigor para as empresas comerciais, os quais há data da instauração da acção importavam já em € 3.153,00.

Por tal dívida é também responsável o réu marido já que a mesma foi contraída pela ré em proveito comum do casal.

Pelo que terminou pedindo a condenação dos RR. a pagarem-lhe aquela quantia de € 6.316,51, acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, vencidos – no referido montante de € 3.153,00 – e vincendos, até ao seu integral pagamento.

2. Citados os RR., contestou apenas a ré, defendendo-se, em síntese, por excepção, por impugnação e contra-atacando por via de reconvenção, nos seguintes temos:

Que foi acordado com a A. que os pagamentos dos artigos que esta lhe fornecesse, tal como sucedeu com aqueles descriminados nas facturas que a mesma juntou, teriam apenas lugar aquando da venda dos mesmos e que os produtos não vendidos poderiam ser sempre devolvidos, sendo certo que para garantia de cada fornecimento a R. entregaria à A. cheques no valor de cada factura, que depois esta lhe devolveria aquando a ré procedesse ao pagamento dos respectivos produtos ou então à devolução dos mesmos.

Mais tarde, e devido às dificuldades sentidas pela R. em vender tais artigos, a A. aceitou fazer-lhe um desconto de 35% sobre o valor constante de duas daquelas facturas.

Como essas dificuldades persistissem a ré acabou por encerrar o estabelecimento comercial que explorava, do que deu previamente conta à A., manifestando-lhe a intenção de lhe pagar o preço daquela mercadoria que vendeu entretanto (no valor de € 2.144,06) e devolver-lhe a restante mercadoria que não logrou vender, com a entrega por parte da A. dos cheques que lhe entregara como garantia, ao que a mesmo se recusou.

Na sequência de tal, a ré contratou uma empresa de transportes para proceder à entrega à A., nas instalações desta, daquela mercadoria não vendida, a qual, todavia, se recusou a receber a mesma.

Perante tal recusa, a ré, depois de ter entregue as chaves das instalações do estabelecimento encerrado e ter dado ordem ao banco do cancelamento dos cheques entregues como garantia à A., viu-se obrigada a ter que armazenar aquela mercadoria (não vendida) na sua residência, ocupando com ela totalmente uma das suas divisões interiores.

A privação dessa divisão da casa causa-lhe transtornos e incómodos que devem ser compensados no valor global de € 6.200,00, ao que deve acrescer ainda a quantia que teve de pagar com o referido transporte de mercadoria (no valor de € 119,00 €).

Desse modo, compensando esse seu crédito (no valor global de € 6.319,00) com o crédito que a A. tem sobre si (no valor de € 2.144,06), fica o crédito da ré reduzido à quantia de € 4.174,94.

Pelo que terminou pedindo:

a) Que se reconheça que o crédito que a A. tem sobre si é apenas no valor € 2.144,06.

b) Que, por via da procedência da reconvenção, se reconheça ser credora da A. na quantia € 6.319,00, ficando esse seu crédito, por efeito da respectiva compensação de créditos, reduzido ao montante de € 4.174,94.

c) Que a A. seja condenada, assim, a pagar-lhe a quantia de € 4.174,94, acrescida dos respectivos juros moratórios, contados a partir da notificação àquela do pedido reconvencional.

3. Respondeu a A., contraditando, no essencial, a matéria de excepção e da reconvenção alegada pela R., pugnando, no final, pela improcedência da reconvenção e pela procedência da acção.

4. No despacho saneador, afirmou-se a validade e a regularidade da instância, após o que se procedeu-se à selecção da matéria de facto, que se fixou sem qualquer reclamação.

5. Mais tarde, procedeu-se à realização do julgamento – com a gravação dos depoimentos prestados em audiência.

6. Seguiu-se a prolação da sentença, que, a final, decidiu nos seguintes termos:

a) Julgar a acção parcialmente procedente e em consequência condenar os RR. no pagamento do valor correspondente às mercadorias vendidas entre 10/12/2002 e 15/01/2003, em número e valor não concretamente apurados mas correspondente ao valor resultante da subtracção do valor das peças não vendidas ao valor de 2.283,82€, quantia esta a liquidar em execução de sentença (artigo 661º do Código de Processo Civil);

b) Condenar os RR. no pagamento de juros à taxa comercial e supletiva sobre a quantia que vier a ser liquidada, vencidos e vincendos a contabilizar desde a data da citação e até integral pagamento;

c) Absolver os RR. do restante que vem peticionado;

d) Julgar o pedido reconvencional parcialmente procedente e em consequência condenar a A. a pagar aos RR. a quantia de 2.619€, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos à taxa legal sobre a quantia de 119€ a contar da data de notificação para contestar o pedido reconvencional e da data da presente sentença quanto à quantia de 2.500€ e até integral pagamento;

e) Absolver a A. do mais que vem peticionado em sede de reconvenção;

f) Determinar a compensação de créditos entre A. e RR., a concretizar após a liquidação do crédito da A., condenando quem se vier a revelar devedor a pagar o valor correspondente.

Custas de acção e reconvenção, na parte liquidada por A. e RR., nas proporções dos

respectivos decaimentos.

7. Não se conformando inteiramente com tal sentença, a A. dela apelou, tendo concluído as suas respectivas alegações de recurso nos seguintes termos:

[……………………………………..]

8. A ré não contra-alegou.

9. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação


A) De facto.

Pelo tribunal da 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

[………………………………..]


***

B) De direito.
1. Do objecto do recurso.

1.1 É sabido (num entendimento pacífico que continua a manter-se com a actual a reforma introduzida pelo DL nº 303/2007 de 24/8 - artºs 684, nº 3, e 685-A, nº 1, da actual versão do CPC e aqui aplicável) que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o seu objecto, exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (cfr. nº 2 – finé - do artº 660 do CPC).

1.1.2 A propósito da fixação do objecto do presente recurso, convirá, antes de demais, referir e sublinhar (numa espécie de questão prévia) o seguinte:

Calcorreando as alegações de recurso, ou seja, a parte motivatória do recurso, verifica-se que, de forma algo confusa (e salvo sempre o devido respeito) a A./apelante se insurge contra a decisão da matéria de facto, no que concerne ao facto descrito como assente sob o nº 6 a sentença, o qual resultou da resposta dada pelo tribunal a quo ao quesito ponto 5º da base instrutória, defendendo, desde logo, que o mesmo deveria, ao contrário do que ali se fez, ser dado como não provado, indicando inclusive o depoimento (gravado) de uma testemunha para suportar essa sua defesa.

Como resulta do que supra se acabou de deixar exarado, é hoje entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o objecto dos mesmos.

Ora, compulsando as conclusões das alegações do presente recurso (que acima deixámos transcritas na sua integra) verifica-se que delas não é feita de, forma expressa e concretizada, qualquer referência à impugnação da decisão da matéria de facto, e mais especificamente no que diz respeito à resposta que foi dada ao ponto ou quesito 5º da base instrutória (e ao facto nele inserto).

Diga-se que a única referencia que, a tal respeito, ali é feita é aquela que consta da conclusão IX, e que é do seguinte teor: “A sentença recorrida deveria ter julgado, atento o disposto nos artigos 874º e o disposto nos artigos 394º e 351º todos do Código Civil, procedente a acção face à prova testemunhal e documental trazida para os autos pela A.” (sublinhado nosso)

Mas isso é, para além de se apresentar demasiado vago, manifestamente pouco.

Mesmo que tal fosse de aceitar (e que essa impugnação é ali feita, pelo menos, de forma implícita), verifica-se, todavia, que não foi dado cumprimento ao disposto no artº 685-B nº 1 al. a) do CPC, pelo que sempre, à luz desse normativo legal, tal impugnação seria então de rejeitar.

É que muito embora venha hoje constituindo entendimento dominante que, caso de impugnação da decisão da matéria de facto, não se torna necessário que o impugnante nas conclusões de recurso indique novamente ali (se já o fez nas alegações que as precedem) a prova em que suporta tal impugnação (e a localização do registo da prova testemunhal que serve de fundamento à mesma), todavia, o mesmo já não sucede quanto à exigência da indicação ou especificação dos factos ou pontos concretos da base instrutória cuja resposta ou decisão pretende ver alterada e em que sentido.

E nessa medida vem constituindo entendimento prevalecente que a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto deve ser feita (também nas conclusões das alegações de recurso) por referência expressa (havendo-a, como sucede no caso dos autos) aos pontos concretos da base instrutória, de cuja resposta se discorda, sendo que a falta dessa indicação não impõe, antes da rejeição liminar da impugnação, o prévio convite ao recorrente para proceder à especificação de tais pontos (vidé ainda, por todos, e no sentido defendido, Ac. do STJ de 06/10/2005, in “Rec. Agravo nº 1336/04, 2ª sec.”; Acs. do STJ de 11/10/2005, de 5/2/2004, de 20/3/2003 e de 9/7/2003 in www.dgsi.pt/jstj, Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil, 3ª ed., pág. 466” e Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 466”).

Termos, pois, que pelas razões expostas, se decide rejeitar o recurso no que concerne à a impugnação da decisão da matéria de facto, não incluindo a mesma no objecto do presente recurso.

1.1.3 Porém, mesmo que assim não se entendesse e se considerasse não ser de rejeitar o recurso, naquela parte, sempre teríamos de concluir pela improcedência do recurso, quanto a tal questão, e por aquilo que, ainda de forma mais perfunctória (face à 1ª conclusão a que atrás chegámos), passaremos a adiantar.

No ponto ou quesito 5º da base instrutória acima referido, contra cuja resposta (de provado) dada pelo tribunal a quo a A./apelante se insurge, perguntava-se “se as mercadorias não vendidas seriam devolvidas à A?”.

Começaremos por salientar que no caso em apreço não estamos perante nenhuma situação de prova vinculada (cfr. artº 655, nº 2, do CPC).

Vem constituindo entendimento prevalecente da doutrina e jurisprudência que, em tal apreciação, não se deverá deixar de ter em consideração o principio da liberdade do julgador na apreciação das provas e na formação da sua convicção (plasmado no artº 655, nº 1, do CPC), sendo ainda certo que é o julgador da 1ª instância quem está em condições privilegiadas para a apreciação da prova, dado o princípio da imediação da produção das provas e dado que, como é sabido, existe todo um manancial de situações que podem ocorrer na fase dessa produção e que são intraduzíveis ou incaptáveis através do simples sistema de registo da gravação dos depoimentos. E daí que se venha defendendo uma certa cautela quando se trate de alterar a matéria de facto fixada pela 1ª instância, a qual só deverá ocorrer, em princípio, quando se verificar existir erro grosseiro na apreciação das provas pelo tribunal a quo, ou seja, só quando as provas produzidas levem inequivocamente a uma resposta diversa da dada na 1ª instância é que deve o tribunal superior alterar tais respostas. (vidé, por todos, Michel Taruffo, in “La Prueba De Los Hechos, Editorial Trotta, 2002, págs. 435 e ss”; Ac. da RC de 17/02/2002, in “Rec. Apelação nº 3380/2002 - 3ª Sec.”, e Ac. da RC de 2006/12/2005, in “Rec. Apelação nº 411/2002. C1 – 3ª sec.”).
Na verdade, e contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se posa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão.
De resto, a lei determina a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (cfr. artº 653, nº 2, do CPC).

Nessa perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

Compulsando a da decisão da matéria de facto, verifica-se que a srª juiz a quo fundamentou a formação da sua convicção, no que concerne a tal resposta do quesito 5º (em conjunto ainda com as dadas aos quesitos 2º e 4º), essencialmente com base no depoimento prestado pela da testemunha D...., o que justificou nos seguintes termos:

[………………………………………..]

Tendo procedido à audição da gravação dos depoimentos prestados em audiência, verificamos que sobre o facto em questão depuseram as seguintes (e únicas) testemunhas):

[………………………………………..]

Ora, perante tal - e dado que a demais prova documental junta aos autos não se revela nem vinculativa (impondo-se a toda a demais) e nem, a tal propósito, de todo esclarecedora – facilmente se é conduzido à conclusão de que a decisão em causa, do tribunal a quo, se encontra suportada pela prova produzida, encontrando, pois, nela respaldo.

Desse modo, tendo sempre em conta o princípio da liberdade do julgador na apreciação das provas e na formação da sua convicção (ínsito no já citado artº 655, nº 1, do CPC), também por aí se não vislumbrariam razões suficientemente válidas para alterar a matéria de facto no que concerne ao sobredito ponto a que nos vimos referindo, ou seja, para censurar a decisão do tribunal a quo no que a tal diz respeito.

[………………………………………]

1.1.4. Por fim (e sempre dentro da hipótese referida em 1.1.3) refira-se ainda o seguinte:

Embora tal não conste das conclusões de recurso, das suas alegações que as precedem extrai-se a insinuação de que o facto contido na resposta dada ao quesito 5º da base instrutória estaria, de alguma forma, em contradição com os factos insertos na als. C) e D) dos factos assentes da selecção da matéria de facto.

[………………………………………….]

Como vem hoje sendo dominantemente entendido só poderá haver contradição entre os factos provados quando os mesmos sejam absolutamente incompatíveis entre si, de tal modo que não possam coexistir uns com os outros (vidé, por todos, Acs. da RC de 22/2/2000, in “CJ, Ano XXV, T1 – 29” e de 9/11/2004 e 24/10/2006, respectivamente, in “Recs. Apelação nºs 1387/04 e 224/99.C1, desta secção).

Ora, salvo o devido respeito, do confronto de tais factos com aquele outro acima referido que resultou da resposta dada ao quesito 5º, não vislumbramos qualquer incompatibilidade entre os mesmos, e muito menos que, a existir, ela seja absoluta.

Diga-se ainda que a A., nas suas alegações de recurso, fala de um alegado contrato de seguro feito por si com a Companhia de Seguro de Crédito, E...., para justificar o pagamento que, através dela, lhe foi feito de parte dos fornecimentos que fez à ré. Só que se desconhece o teor do alegado contrato de seguro (e das condições em que o mesmo foi celebrado), já que não se encontra junto aos autos, sendo certo ainda que nem sequer a sua existência consta dos factos assentes (o que, aliás, nem sequer foi alegado expressamente).

Daí que, por tudo o exposto, seja de manter intangível a matéria de facto fixada pela 1ª instância.

1.2 Nesses termos, como objecto do recurso (a aferir pelas conclusões das suas respectivas alegações), a verdadeira questão que importa aqui e agora analisar pretende-se fundamentalmente com a caracterização da relação negocial estabelecida entre a autora e a ré, e mais concretamente com a qualificação jurídica do contrato celebrado entre elas.

Na sentença sob recurso qualificou-se tal relação contratual como sendo de venda à consignação, e portanto como se tratando de um contrato de (venda à) consignação aquele que as partes estabeleceram entre si, assumindo a autora a qualidade de consignante e a ré de consignatária.

Sendo a partir dessa qualificação, e com base nela, que depois na sentença se ergueu e desenvolveu toda a construção jurídica que conduziu à decisão final acima transcrita.

É contra tal qualificação que se insurge a autora, defendendo ter sido um verdadeiro contrato de compra e venda aquele que ambas as partes celebraram entre si, e daí que, com base nessa qualificação e dos efeitos decorrentes dessa figura contratual, defenda a revogação da sentença recorrida, com a condenação da ré a pagar-lhe a quantia por si inicialmente peticionada.

Importa, pois, partir para a qualificação da relação negocial estabelecida entre a autora e a ré, já que é aí que está a base da discórdia da apelante em relação à sentença recorrida e bem assim a chave para solução final neste litígio que opõe as partes.

Celebraram as partes um verdadeiro contrato de compra e venda (neste caso de natureza comercial) ou um contrato de venda à consignação?

Vejamos.

Como é sabido, vigora na nossa ordem jurídica o princípio da liberdade contratual, que permite que, dentro dos limites da lei, as partes possam fixar livremente o conteúdo dos contratos, possam celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil, possam, incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver, podendo ainda, por último, reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei (artº 405, nºs 1 e 2, do Código Civil, e a cujo diploma pertencerão os demais normativos que se venham a indicar sem a menção da sua fonte).

As declarações negociais que conduzem à formação de tais contratos podem ser expressas (quando a manifestação de vontade nesse sentido é exprimida de forma directa, nomeadamente através de palavras ou por escrito) ou tácitas (que acontece quando tal manifestação de vontade se exprime de forma indirecta, nomeadamente através de factos que, com toda a probabilidade, a revelam), sendo que mesmo nos contratos de natureza formal isso não impede que tais declarações possam ser emitidas tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz (artº 217, nºs 1 e 2).

Dentro dos contratos legalmente tipificados na nossa ordem jurídica, encontra-se, como é sabido, o contrato de compra e venda (cfr. artº 874).

Contrato esse que é, sem grande margem de dúvidas, o mais importante de todos aqueles que se encontram tipificados, não apenas em virtude da função económica que desempenha, mas também porque a sua regulação se apresenta com paradigmática em relação aos restantes contratos, tendo assim a maior relevância no âmbito da construção dogmática dos contratos em especial.

A compra e venda encontra-se definida naquele preceito legal como “contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou de outro direito, mediante um preço.”

Dessa definição resulta que a compra e venda consiste essencialmente na transmissão de um direito contra o pagamento de uma quantia pecuniária, constituindo economicamente a troca de uma mercadoria por dinheiro. Muito embora o Código refira como exemplo paradigmático de transmissão do direito a transferência da propriedade, porém, a compra e venda não se restringe a esta situação, podendo abranger também a transmissão de qualquer outro direito real e inclusivamente de direitos que não sejam reais, entre os quais haverá que destacar os direitos de crédito (cfr., entre outros, e para maior desenvolvimento, o prof. Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações, Vol. 3º, contratos em especial, 3º ed., Almedina, 2005, pág. 12 e ss.”).

Singelamente dir-se-á que o contrato de compra e venda tem um misto de natureza real e obrigacional, já que, por um lado, através dele se transmite a propriedade da coisa ou da titularidade do direito e, por outro, impõe para o vendedor a obrigação de entregar a coisa e para o comprador a obrigação de pagar o respectivo preço estipulado por ela (nisso se consubstanciando os efeitos essenciais de tal contrato – artº 879).

Trata-se, pois, assim, de contrato bilateral, sinalagmático, oneroso e tendencialmente consensual (ainda que por vezes a lei o sujeite a forma especial – cfr. artº 875).

Como uma das subespécies ou variante do contrato compra e venda, que não se encontra tipificada legalmente (ao contrário do que sucede com outros ordenamentos jurídicos, tais como o Italiano – cfr. artº 1556 e ss do respectivo Código Civil) mas que dela aparece autonomizada, vem a doutrina aludindo ao contrato de consignação, também designado por estimatório ou de venda à consignação.

Contrato que, em termos gerais, é referido na doutrina como o contrato “nos termos do qual uma das partes remete à outra tantas unidades de certa mercadoria, para que esta as venda, com direito a uma participação nos lucros e a obrigação de restituir as unidades não vendidas” (cfr. o prof. Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil, 2ª ed. actualizada, Coimbra Editora, pág. 404”).

Debruçando-se mais exaustivamente sobre tal figura contratual (inominada), o prof. Carlos Ferreira de Andrade (in “Contratos II, Almedina, 2007, pág. 142”) refere-se a ela nos seguintes termos:

“O contrato estimatório (ou contrato de consignação) caracteriza-se pela entrega de coisas móveis (por exemplo, livros, jóias, artigos de vestuário), mediante a obrigação de pagamento ou de restituição, à escolha de quem as recebe. Pode ser visto como um contrato de compra e venda (à consignação) sob condição suspensiva (da revenda) ou sob condição resolutiva (da devolução). Nesta hipótese, surgirá como subtipo simétrico da compra e venda a retro. Mas pode também ser construído, mesmo nos direitos que não têm tipificação legal, como um tipo diferente dos contratos de compra e venda, em consequência de a obrigação de preço não ser um efeito necessário mas apenas alternativo da obrigação de devolução. A qualificação, no direito português, depende da interpretação. Em qualquer caso, não estará excluída a aplicação, directa ou analógica, do regime de compra e venda.” (sublinhado nosso)

Como se depreende da noção que se deixou expandida, em tal tipo de contrato verdadeiramente não ocorre (pelo menos com efeito automático da sua celebração), ao contrário do que sucede com o contrato de compra e venda (puro), transmissão da propriedade do consignante para o consignatário, ficando este apenas obrigado a entregar o preço da mercadoria vendida ou, então, a devolver a mercadoria que não vendeu. Resulta, assim, também de tal que a obrigação do pagamento pelo consignatário do preço acordado pelo fornecimento da mercadoria pelo consignante não é, ao contrário do que sucede com o contrato de compra e venda, um efeito essencial ou necessário do contrato, mas tão só um efeito alternativo à obrigação da devolução da mercadoria (não vendida). Ou seja, a obrigação do pagamento do preço não se impõe, imediatamente ao consignatário, com a celebração do contrato, em relação a toda a mercadoria fornecida, mas só em relação àquela que vier a vender, pois quanto à não vendida fica tão só sujeito à obrigação de a devolver (sem ter que pagar o respectivo preço, e isso para o caso de não querer ficar com ela). Neste sentido vidé ainda acórdão da RLx de 11/5/2006, processo 3461/2006-6, in www.dgsi.pt/jtrl.

Aqui chegados, e tomando por base as considerações de cariz téorico-técnico que se deixaram expandidas, focalizemo-nos, agora, no caso em apreço.

Ora, calcorreando a matéria factual dada como assente, e especialmente aquela que se encontra descrita sob os nºs 1, 2, 4, 5 e 6, e aplicando-lhe as considerações de cariz téorico-técnico que acima se deixaram expandidas, temperadas com as regras da hermenêutica interpretativa e integrativa dos negócios consagradas no artº 236 e ss, somos levados à conclusão de que a relação negocial estabelecida entre as partes foi na base de um contrato de venda à consignação.

É essa, a nosso ver, a solução que juridicamente melhor se ajusta, perante tal factualidade apurada (sem embargo de reconhecermos que não se apresenta de forma completamente cristalina), ao caso sub júdice.

Conclusão, pois, idêntica àquela a que chegou tribunal a quo.

E daí que se encontre justificada a decisão tomada pelo mesmo tribunal no sentido de só condenar a ré a pagar à autora a quantia correspondente ao valor do preço das mercadorias por si vendidas, e não também daquelas que a mesma, após o encerramento do seu estabelecimento comercial, procurou devolver à A., mas que esta se recusou a aceitar.

Como a partir daí justificadas se encontram, à luz dos factos apurados e do direito, as subsequentes decisões tomadas pelo tribunal a quo, e nomeadamente daquelas que recaíram sobre o pedido reconvencional da ré, e que aqui nos abstemos de comentar e analisar pormenorizadamente, já que, como supra deixámos referido, não foram objecto ou alvo de crítica directa no recurso em apreço, pois que a apelante neste seu recurso limitou-se a “apontar as baterias” da sua censura para a qualificação jurídica da relação contratual que foi fixada por aquele tribunal, “apostando” na alteração da mesma para conseguir, a partir daí, a revogação da sentença recorrida e almejar, assim, alcançar os desígnios por si perseguidos com a instauração da presente acção.

Termos, pois, em que, por tudo o exposto, se decide julgar improcedente o recurso, e confirmar a sentença da 1ª instância.


***

III- Decisão


Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença da 1ª instância.

Custas (do recurso) pela A./apelante.