Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1142/09.2TJCBR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO
ADMINISTRADOR
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 5.º JUÍZO CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 20.º, 51.º, 60.º DO CIRE, PORTARIA N.º 51/05, DE 20/01; ARTIGOS 19.º E 20.º DA LEI 32/2004, DE 22/07 (ESTATUTO DE ADMINISTRADORES DA INSOLVÊNCIA)
Sumário: 1. O critério fundamental para a fixação da remuneração variável a que o administrador de insolvência tem direito é o montante apurado na realização do activo da massa insolvente. Depende, pois, em primeira linha, do resultado da liquidação.

2. Não tem direito à remuneração variável o administrador da insolvência cuja massa seja apenas constituída por um depósito bancário feito por um seu representante para pagar aos credores.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            “A..., Lda, veio requerer a insolvência de “B..., L.da”, já ambas identificadas nos autos, cf. respectiva petição inicial, aqui junta de fl.s 17 a 22, alegando um crédito sobre a requerida, que a mesma não liquidou, bem como outros a favor de diversas entidades e organismos, encontrando-se a requerida numa situação que não lhe permitia solver tais débitos.

            Conforme sentença proferida em 21 de Abril de 2009, aqui junta, por cópia, de fl.s 45 a 51, foi decretada a insolvência da requerida, tendo sido, entre outras coisas, nomeada como administradora da insolvência a Dr.ª C... e declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência com carácter pleno.

            No prosseguimento dos autos, teve lugar a Assembleia de Credores, em 02 de Julho de 2009, cf. respectiva acta, aqui junta de fl.s 61 a 65, na qual se dá nota de que a requerente informou ter recebido da reclamada o pagamento dos créditos reclamados, pelo que por despacho aí proferido (cf. fl.s 63 e 64), se ordenou fosse tida em conta tal declaração, mormente para efeitos de graduação e verificação de créditos.

            Mais se determinou, no que a este recurso interessa, que não se afigurando viável qualquer plano de insolvência que os autos aguardassem o processamento dos ulteriores termos da liquidação do activo, com início após o encerramento da dita assembleia, prosseguindo termos o incidente de liquidação do activo (no caso circunscrito a cobrança de créditos), para o que se concedeu o prazo de 60 dias.

            Conforme decisão, aqui junta de fl.s 73 a 76, foi qualificada a insolvência como fortuita, tendo-se dispensado a Administradora de Insolvência da apresentação de contas e da elaboração do auto de apreensão de bens.

            Como resulta da mesma decisão, o único bem que se encontra apreendido a favor da massa insolvente é a quantia de 62.000,00 €, que está depositada na conta bancária da referida massa e que resultou de depósito efectuado pelo gerente da requerida, Carlos Alberto Godinho Simões, para pagamento dos créditos reclamados, como resulta das actas de fl.s 66 e 67, 68 a 70 e 71 e 72, que aqui se dão por reproduzidas.

            Através do requerimento de fl.s 77 e cálculo de fl.s 78, a Administradora da Insolvência, veio apresentar o montante da sua remuneração, requerendo o respectivo pagamento, que mereceu o acordo do MP (cf. fl.s 79).

            A decisão de tal pretensão, conforme despacho de fl.s 80, foi relegada para momento posterior, por o resultado da liquidação ainda, então, não estar apurado.

            Mais se acrescentou ser duvidoso que tivesse “havido, stricto sensu uma liquidação nos presentes autos, para efeitos do normativo que prevê a fixação de uma remuneração variável”.

            A que se seguiu a junção de novo requerimento da Administradora de Insolvência (fl.s 81 e 82), em que a mesma apresenta novo cálculo da sua remuneração variável, requerendo, ainda, que fosse autorizado o respectivo pagamento através da conta da massa insolvente.

            O MP, mais uma vez, nada opôs (cf. fl.s 83).

            Sobre este requerimento versou a decisão de fl.s 84 a 86 (a aqui recorrida), que se passa a transcrever:

“Folhas 211:

Vem a Sr.ª AI requerer que lhe seja autorizado o pagamento, através da conta da massa insolvente, da remuneração variável, juntando para tanto os cálculos por si efetuados. Ouvido o Ministério Público, o mesmo declarou nada ter a opor.

Cumpre apreciar e decidir:

A remuneração do/a Sr./ª administrador/a da insolvência nomeado/a compreende duas partes:

- a primeira corresponde a uma remuneração fixa no montante de €

2.000,00 (art. 20, nº 1, do CIRE, e art. 1 da Portaria nº 51/05, de 20.1) que é paga em duas prestações de igual montante, vencendo-se a primeira na data da nomeação do administrador e a segunda seis meses após essa nomeação, mas nunca após a data de encerramento do processo (art. 26, nº 2 do Estatuto), a qual já se encontra paga nos presentes autos.

- A segunda parte corresponde a uma remuneração variável em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor é o fixado na tabela constante da referida Portaria nº 51/05, de 20.1 (art. 20, nº 2, do Estatuto). Considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa (em que se inclui, designadamente, a remuneração fixa do administrador, despesas, custas apuradas em conta - tudo na definição do art. 51º do CIRE), com exceção da remuneração variável e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência (art. 20, nº 3,do Estatuto).

O valor alcançado da remuneração variável nos moldes referidos é ainda majorado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da mesma Portaria nº 51/05 (art. 20, nº 4, do Estatuto).

Esta componente variável da remuneração do administrador da insolvência é, nos termos do art. 26, nº 3, do Estatuto, paga a final, vencendo-se na data de encerramento do processo.

Assim sendo, cumpre referir que nos presentes autos de insolvência não se poderá dizer que tenha havido stricto sensu, uma “liquidação” para os efeitos do normativo que prevê o pagamento de uma remuneração variável à Sr.ª AI, houve sim pagamentos efetuados aos credores da insolvente, por um devedor da insolvente, os quais foram efetuados “extra-insolvência”, não chegando integrar a massa da insolvente tal crédito, pelo que a satisfação dos credores não se pode considerar que tenha sido efetuada pelo produto da massa.

Nestes termos, e por falta de fundamento legal, indefere-se o ora requerido pela Sr.ª AI.”.

                       

Inconformada com tal decisão, interpôs recurso a Administradora da Insolvência, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida em separado, de imediato e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 87, finalizando as respectivas alegações, com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso vai interposto sobre o douto despacho que recaiu sobre o pedido de pagamento da remuneração variável efectuado pela recorrente como sendo devida nos termos do Art.20ºnºs.1, 2 e 3 da Lei 32/2004 de 22/07.

2. Entendendo-se, assim, na primeira instância que estes autos de insolvência não sofreram actos de liquidação, na interpretação que o instituto legal mereceu no despacho recorrido.

3. A Assembleia de Credores efectuada no dia 02/07/2009 deliberou prosseguirem os autos de insolvência com vista à liquidação do activo (no caso circunscrito à cobrança de créditos);

4. No seguimento de tal deliberação a AI solicitou benefício de apoio judiciário e nomeação de patrono com vista à cobrança de créditos da massa, tendo a tramitação subsequente levado à interposição das respectivas acções.

5. O devedor accionado, sob a possibilidade de ser penhorado e sob a “sombra” da possibilidade de qualificação da insolvência como culposa, transaccionou com a massa no sentido de liquidar todas as custas, despesas, créditos reconhecidos e remuneração variável da AI, recorrente, tendo para o efeito entregue e depositado a quantia de €62.000,00.

6. Esse montante foi de imediato apreendido a favor da massa e irá servir, efectivamente, para a recorrente, na qualidade de AI, proceder ao pagamento dos créditos reconhecidos, custas e despesas, bem como da sua remuneração variável (nesta parte, caso proceda a presente motivação).

7. O tribunal recorrido não integra esta actividade supra descrita como sendo de liquidação e como tal, entende não ser devido o pagamento da remuneração variável à recorrente – entendimento que, agora, e com o respeito devido, se entende colocar à consideração e julgamento de V. Exas.; Mmos. Juízos Desembargadores.

8. Na verdade, actos de liquidação serão todos os actos praticados pela AI com vista à satisfação dos créditos reclamados e reconhecidos na sentença de graduação de créditos, sejam actos de apreensão de bens materiais, móveis ou imóveis, sejam actos de apreensão de bens imateriais, como títulos, créditos, quotas ou outros e a sua posterior venda ou cobrança.

9. Actos de liquidação do activo serão, assim, todos os actos desenvolvidos pela A.I. com vista ao apuro do máximo de liquidez para satisfação / pagamento do máximo de créditos possível.

10. Assim terá também, julga-se, entendido o legislador, ao premiar a actuação do A.I. com o aspecto da remuneração variável.

11. Na verdade, o propósito do sistema de remuneração variável criado pelo legislador é (de acordo com o confessado objectivo escrito na proposta de lei) criar um sistema de prémios cujo montante varia em função da efectiva satisfação dos créditos, incentivando e premiando o exercício da actividade do administrador, sendo condição da atribuição da remuneração variável que o AI tenha contribuído para o resultado da liquidação, seja apreendendo bens, seja procedendo à sua venda, seja cobrando créditos, seja arrecadando outras cobranças para a massa.

12. A serem as coisas como se vem de expor, como está a recorrida convencida que são, assistirá à recorrente o direito de ser paga a título de remuneração variável, uma vez que a actividade que desenvolveu no âmbito da massa foi decisiva para a defesa dos interesses dos credores.

13. Assim, por via desta actividade, os credores da massa irão receber a totalidade dos seus créditos reclamados e reconhecidos, as custas serão integralmente pagas e até a remuneração variável, assim seja decidido ser devida, será integralmente paga através deste valor e ainda será devolvido o excedente, tal como acordado, ao insolvente.

14. O douto despacho recorrido lavra ainda em dois erros manifestos e contra a realidade dos autos que, salvo o devido respeito, se entendem como mero lapso:

15. Escreve o despacho recorrido que houve pagamentos efectuados “por fora” ou extra insolvência, quando nenhum desses pagamentos foi considerado pela AI para efeitos de cálculo da remuneração variável e considerado como satisfação pela massa de créditos da massa insolvente. Em nenhum “lugar” / documento dos autos ressalta, é visível ou sequer indiciada essa realidade como tendo sido considerada pela AI. Em suma, forma absolutamente desconsiderados pela AI na realidade do processo, todos os pagamentos que o devedor efectuou extra processo de insolvência.

16. Como essa realidade não pode ser ignorada para satisfação de créditos reclamados, a AI não os considerou para efeitos de créditos reclamados, não fazendo parte da realidade deste processo de insolvência.

17. Por outro lado, escreve ainda o despacho recorrido que o montante de €62.000,00 não chegou a integrar a massa insolvente.

18. Ora, tal afirmação não corresponde à verdade, uma vez que esse montante está depositado à ordem da massa, tendo sido apreendido a seu favor, incumbindo à AI efectuar o pagamento de custas e créditos, de acordo com a sentença, através deste valor.

Desta forma, mostrando-se violadas as normas supra mencionadas, Arts.156º e sgts do CIRE, bem como o Art.20º da Lei 32/2004 de 22/07, pugna a recorrente pela revogação do despacho recorrido, substituindo-se por outro que defira o requerido pela AI e lhe conceda o direito a ser paga de acordo com o critério legal para a satisfação da remuneração variável, fazendo-se a costumada justiça.

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a única questão a decidir é a de saber se a Administradora da Insolvência tem direito a receber a por si peticionada remuneração variável, pelo exercício de tal cargo.

            Os factos a considerar para a decisão do presente recurso, são os que constam do relatório que antecede.

Passando à análise da questão de saber se a Administradora da Insolvência tem direito a receber a remuneração variável que peticionou pelo exercício do respectivo cargo, desde já se adianta que a resposta a tal questão é negativa, não se vislumbrando razões que infirmem o decidido em 1.ª instância.

Efectivamente, nos termos do disposto no artigo 60.º, n.º 1, do CIRE (dado que se trata de administrador da insolvência nomeado na sentença que decretou a insolvência, como se colhe de fl.s 49), o Administrador da Insolvência tem direito à remuneração prevista no seu estatuto.

Estatuto, este, que se rege pela Lei 32/2004, de 22/7, a qual, no seu artigo 19.º estabelece que:

“O administrador da insolvência tem direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento das mesmas.”.

Acrescentando, no seu artigo 20.º que tal remuneração, na sua vertente fixa, é determinada em portaria.

Para além desta, como se infere dos n.os 2 e 3 deste preceito, o administrador de insolvência aufere ainda uma remuneração variável em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor é igualmente fixado na portaria a que se refere o seu n.º 1.

Especificando-se no seu n.º 3 que se considera resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com excepção da remuneração referida no número anterior e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência, a que pode acrescer a majoração, tal como previsto no n.º 4 do mesmo preceito.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE, Anotado, Reimpressão, Vol. I, Quide Juris, Lisboa, 2006, a pág. 277, por “montante apurado para a massa insolvente”, deve entender-se o montante apurado na realização do activo da massa insolvente e a que subjaz (ao cálculo da remuneração em apreço) a intenção de estimular a diligência do administrador da insolvência no sentido de obter para os bens da massa insolvente o valor mais alto possível.

Ou, como escreve Catarina Serra, in O Novo Regime Português Da Insolvência, Uma Introdução, 4.ª Edição, Almedina, 2010, a pág. 40 um “regime de prémios em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos (…) o que constitui uma motivação para o bom exercício da actividade.”.

            O único caso em que a remuneração variável poderá ser fixada em desacordo com os critérios enunciados é o de a mesma exceder a quantia de 50.000,00 €, caso em que, como determinado no n.º 5 do artigo a que nos vimos referindo, o juiz a pode reduzir, no que exceda tal montante, tendo em conta os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue no exercício das funções.

            Ou seja, o critério fundamental para a fixação da remuneração variável a que o administrador de insolvência tem direito é o montante apurado na realização do activo da massa insolvente. Depende, pois, em primeira linha, do resultado da liquidação.

            Mas daqui resulta também que tal montante apurado, o resultado da liquidação, tem de ser correspectivo de uma actividade própria do administrador da insolvência (trata-se, como se referiu de um prémio que visa promover a sua boa diligência na obtenção de resultados benéficos para a massa insolvente) com vista a obter um montante apurado mais elevado, que é o resultado do trabalho e diligência do administrador da insolvência.

            Como se refere no Acórdão da Relação do Porto, de 20/09/2011, Processo 153/06.4TBSTS-E.P1, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrp, há “um pressuposto essencial, implícito no próprio conceito de remuneração, sem o qual, crê-se, ao administrador da insolvência não é lícito reclamá-la: que o montante apurado para a massa insolvente corresponda ao produto da venda de bens por si apreendidos ou que, de todo o modo, tenha sido determinado em função de actos por ele praticados.”.

            Ora, no caso dos autos, o único bem apreendido é a quantia de 62.000,00 €, resultante de um depósito efectuado pelo legal representante da insolvente, com vista ao pagamento dos créditos reclamados (cf. fl.s 74), sendo que como consta de fl.s 63, a requerente já havia declarado ter recebido da reclamada o pagamento dos seus créditos.

            Nada dos autos consta ou resulta que tal pagamento e depósito seja resultado da actividade da administradora da insolvência, pelo que tais quantias não podem ser consideradas como montantes apurados para a massa insolvente, para efeitos da fixação da remuneração variável a que tem direito, nos moldes aí previstos, o administrador da insolvência.

            Sendo que, em rigor, nem se pode falar da liquidação do activo, tal como regulamentada no artigo 156.º e seg.s do CIRE.

            Consequentemente, impõe-se concluir que não se verificam os pressupostos legais para que a Administradora de Insolvência tenha direito à peticionada remuneração variável.

Assim sendo, é de manter a decisão recorrida, improcedendo o presente recurso.

Nestes termos se decide:

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Arlindo Oliveira (Relator)

Emídio Francisco Santos

António Beça Pereira