Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1655/10.3TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DA JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
LEGITIMIDADE PASSIVA
HERDEIRO
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
INTERVENÇÃO PROVOCADA
Data do Acordão: 02/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARAS MISTAS E J. CRIMINAIS DE COIMBRA - 1ª S
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 26, 28, 325, 326 CPC, 2091 CC
Sumário: 1. No processado que comporte despacho saneador, a intervenção principal provocada tem, sob pena de extemporaneidade, de ser deduzida antes da prolação deste despacho – artº 326º nº1 e 323º nº1 do CPC - e devendo a decisão atinente ser logo impugnada – artº 691º nº2 al. j) do CPC ainda vigente.

2 - Na acção de impugnação de escritura notarial, se o autor fundar o interesse da impugnação na sua qualidade de herdeiro, inexiste, para assegurar a sua legitimidade, necessidade de intervenção dos demais herdeiros, pois que não é caso de litisconsórcio – artºs 27º e 28º do CPC - nem existe a possibilidade de perda definitiva de bens da herança – artº 2091 do CC.

3- A não inclusão, por lapso material, no acervo factual da sentença, de factos anteriormente assentes e tidos por relevantes, não acarreta a nulidade desta – pois que não é totalmente omissa de factos e pode ser sindicada perante os aduzidos -, mas antes constitui uma nulidade processual que implica a sua anulação e dos actos subsequentes, nos termos do pretérito artº 201º do CPC.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.
 B (…) propôs contra  G (…),  ação declarativa, de condenação, sob aforma de processo comum ordinário.

Pediu:
- que se considere impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de doze de Novembro de dois mil e dez, referente à invocada aquisição pela Ré, por usucapião, do prédio por ele identificado.
- que declare nula, ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que a ré não possa, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação;
- que se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base na dita escritura aqui impugnada;
- que se declare que o prédio identificado no artigo 2.º desta petição pertence à herança aberta por óbito de C (…), avó dos Autores.
Alegou:
Os factos declarados pela ré na escritura de justificação ora impugnada não correspondem à verdade, porquanto tal prédio não veio à sua posse por doação verbal efetuada em 1985 por A (...), não o possui em nome próprio, nem procedeu ao pagamento dos impostos.
Em 1985 já A (…) tinha falecido há 6 anos, pelo que não podia aquela doar até porque o mesmo não lhe pertencia.
O prédio em causa fazia parte do património de M (…), de quem foram únicas herdeiras as suas duas filhas: A (…) e C (…)..
Este prédio foi, por acordo verbal celebrado entre as duas irmãs herdeiras, adjudicado a C (…)razão pela qual não foi partilhado na escritura de partilhas que veio a ser celebrada. Mais tarde, por acordo entre todos os herdeiros de C (…) foi o mesmo entregue à filha e herdeira MJ (…), que dele passou a cuidar, como se fosse coisa sua. A partilha dos bens de C (…) só não foi efetuada pelo facto de alguns dos herdeiros residirem por longos períodos no estrangeiro
A ré apenas está na posse de tal prédio porque foi autorizada pelo autor e pelos seus irmãos, que respeitaram a vontade da sua mãe, pessoa que tinha autorizado que a ré cultivasse tal terreno, que não tinha qualquer fonte de rendimentos.
MJ (…), mãe do autor, permitiu tal utilização, sem exigir renda, com o compromisso de a ré abandonar o terreno quando assim lhe fosse pedido.

Contestou a ré.
 Alegando que a doação ocorreu em 1975 e não em 1985, como ficou a constar da escritura de justificação.
 A partir desse momento passou a praticar os atos de posse, de forma pública, pacífica e à vista de toda a gente, na convicção de exercer um direito próprio.
Tal prédio apenas não foi levado à partilha dos bens por morte de A (…), porque esta já o tinha doado à ré. Antes dessa doação o prédio era cultivado pela ré, por o mesmo lhe ter sido arrendado pela respetiva proprietária.
Conclui pugnando pela improcedência da ação.

2.
Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual se decidiu:
«Julgo a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência:
- declara-se impugnado o facto justificado na escritura mencionada em 1. dos factos provados, declarando-se que o prédio aí identificado não pertence, nem nunca pertenceu à ré e que são falsas as declarações prestadas e que constam de tal escritura de justificação notarial;
- ordena-se o cancelamento de todo ou qualquer ato ou registo que tenha sido feito com base em tal escritura de justificação notarial;
- declara-se que o prédio identificado em 1. pertence à herança aberta por óbito de C (…) avó do autor.»

3.
Inconformada recorreu a ré.
Rematando as suas alegações com as seguintes (Perfeita/totalmente prolixas, posto que parcialmente corrigidas/sintetizadas) conclusões:
(…)

Contra-alegou o autor pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes, essenciais (e aqui bem sintetizados) argumentos:

(…)
4.
Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª - Ilegitimidade do autor.
2ª- Nulidade da sentença por falta de fundamentação.
3ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.
4ª -Improcedência da ação.

5.
Apreciando.
5.1.
Primeira questão.
5.1.1
A questão da necessidade de intervenção dos demais herdeiros foi suscitada pela ré já depois de proferido o despacho saneador e a título de intervenção principal provocada, nos termos dos artºs 325º e 326º nº1 do CPC.
Estatui este último semento normativo que: «o chamamento para intervenção só pode ser requerido, em articulado da causa ou em requerimento autónomo, até ao momento em que podia deduzir-se a intervenção espontânea em articulado próprio…»
Ora o momento em que se pode deduzir a intervenção espontânea em articulado próprio, se o processo comportar despacho saneador, como é (e foi), o caso, a intervenção espontânea só pode ser requerida antes de proferido tal despachoartº 323º nº1 do CPC.
Logo, a intervenção revelou-se extemporânea.
Acresce que, em tal requerimento de intervenção, a final, em sede de pedido, tout court,  a ré, algo inconsequentemente com o decorrente do respetivo introito, requer apenas que «o autor seja notificado para se habilitar na supra aludida qualidade de herdeiro, devendo proceder-se á intervenção provocada dos co-herdeiros».
Ou seja, a ré não concluiu e impetrou em conformidade  com o anteriormente alegado, designadamente tendo identificado os aludidos herdeiros, antes parecendo ter solicitado ao tribunal que convidasse o autor a regularizar a instancia.
E foi neste sentido que o Julgador entendeu o requerimento pois que despachou nestes termos: «no que respeita à intervenção principal provocada encontra-se ultrapassada a fase processual que permite o convite a suprir eventuais exceções dilatórias».
Assim sendo e seja qual for o título ou qualificação jurídica que se tenha por adequado – se efetivo impetramento de intervenção de terceiros, se mero apelo ao tribunal para que diligencie pela regularização da instância -, tal pretensão mostra-se já extemporânea.
Naquela vertente, como se viu, por virtude dos citados artºs 326º nº1 e 323º nº1 do CPC.
Nesta ótica ex vi do disposto no artº 508º nº1 al. a).
Ademais notificado do despacho de indeferimento a ré dele não recorreu, como podia e devia – artº 691º nº2 al. j) do CPC, então vigente e ainda aplicável.
Logo, tal despacho transitou em julgado e a questão a ele atinente ficou assente e definitiva no processo.
5.1.2.
Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, nem assim a presente pretensão procederia.
Na verdade, e como é consabido, a legitimidade afere-se em função do modo como o autor delineia/define a ação e o seu objeto, rectius  a causa de pedir e o consequente pedido – artº 26º nº3 do CPC – o qual consagrou a tese do Prof. Barbosa de Magalhães em detrimento da posição defendida pelo Prof. Alberto dos Reis.
Ora esta ação foi expressamente titulada pelo autor como ação de impugnação de justificação notarial.
E assim a qualificou o julgador e como tal a considera a própria recorrente – conclusão10.
Destarte, esta ação pode ser instaurada por qualquer interessado, independentemente de tal interesse lhe advir da sua qualidade de herdeiro.
Tal dimana do disposto no artº Artº 101º nº1 C Notariado:
«Se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado deve requerer simultaneamente ao tribunal a imediata comunicação ao notário da pendência da acção.».
In casu  o interesse do autor dimana, por acaso, de tal qualidade.
Mas não é esta que, direta e imediatamente, está em causa e constitui o cerne da questão.
A intervenção de todos os herdeiros, justifica-se, na perspetiva meramente formal da figura do litisconsórcio, pela conveniência de a questão ficar arrumada e não serem necessárias outras demandas para a justa-composição do litígio.
E, na vertente material do invocado artº 2091º do CC, pela necessidade de prevenir e acautelar a perda, dissipação ou oneração do património hereditário, por parte de um qualquer herdeiro.
Ora nenhuma destas conveniências e cautelas estão presentes e são exigíveis no caso vertente.
Na verdade e naquela perspetiva processual formal, não nos encontramos perante caso de litisconsórcio necessário.
 Nem ao abrigo do artº 28º nº1 do CPC - pois que a lei, para a ação de impugnação notarial, não impõe a intervenção de todos os possíveis e eventuais interessados.
Nem ao abrigo do nº2 - pois que a ação produz o seu efeito útil normal, já que, perante o pedido formulado, regula definitivamente a situação concreta das partes.
De outra banda não nos  encontramos perante um caso de litisconsórcio voluntário – artº 27º -, pois que a relação material controvertida - saber se os factos consubstanciadores da escritura de justificação são verdadeiros ou falsos -, não respeita a várias pessoas, mas apenas à ré e ao autor, já que apenas este invocou a falsidade.
Obviamente que se o autor tiver ganho de causa, tal poderá beneficiar os outros herdeiros, mas isso é apenas um efeito indireto, mediato ou reflexo que não releva para se concluir pela necessidade, ou, até, conveniência, da intervenção destes.
Em todo o caso sempre não estaria presente o pressuposto e cautela de cariz substancial perspetivados pelo artº 2091º, pois que, ganhando a ação, o autor poderá beneficiar a herança; porém, mesmo que a perca, não a prejudica, já que ela não ficará mais diminuída do que já neste momento está.
Até porque, neste caso, não fica vedado aos demais herdeiros de através das admissíveis ações – porventura outra de igual jaez da presente – diligenciarem no sentido de o bem em causa reverter para a herança.
5.2.
Segunda questão.
5.2.1.
Nos termos do artigo 205º, nº1 do Constituição:
«As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».
E estatui o artº 158º do CPC:
1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.
A necessidade da fundamentação prende-se com a garantia do direito ao recurso e tem a ver com a legitimação da decisão judicial.
Na verdade a fundamentação permite fazer, intraprocessualmente, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz.
Ela é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões.
Porque a decisão não é, nem pode ser, um ato arbitrário, mas a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional, as partes, maxime a vencida, necessitam de saber as razões das decisões que recaíram sobre as suas pretensões, designadamente para aquilatarem da viabilidade da sua impugnação.
É que, uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos, .pois que estes destinam-se a convencer que a decisão é conforme à lei e à justiça, o que, para além das próprias partes a sociedade, em geral, tem o direito de saber – cfr. Alberto dos Reis, Comentário, 2º, 172 e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1982, 3º vol., p.96.
Mas se assim é, dos textos legais e dos ensinamentos doutrinais se retira que apenas a total e absoluta falta de fundamentação pode acarretar a nulidade.
Na verdade a lei não comina com tão severo efeito uma motivação escassa, ou, mesmo deficiente. E onde a lei não distingue não cumpre ao intérprete distinguir.
Nem tal exigência seria de fazer considerando a «ratio» ou finalidade do dever de fundamentação supra aludidos.
O que a lei pretende é evitar é a existência de uma decisão arbitrária e insindicável. Tal só acontece com a total falta de fundamentação. Se esta existe, ainda que incompleta, errada ou insuficiente tal arbítrio ou impossibilidade de impugnação já não se verificam.
O que nestes casos apenas sucede é que a própria decisão pode convencer menos, dada a debilidade ou incompletude dos seus fundamentos. Mas pode ser sempre atacável e modificável.
Assim sendo, a grande maioria da nossa jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que só a carência absoluta de fundamentação e não já uma motivação escassa, deficiente, medíocre, incompleta ou errada, acarreta o vício da nulidade da decisão – cfr. Entre outros, Ac. do STA de 18.11.93, BMJ, 431º, 531 e Acs. do STJ de 26.04.95, CJ(stj), 2º, 57, de 17.04.2004 e de 16.12.2004, dgsi.pt.
5.2.2.
Na sequência de reclamação das partes quanto à seleção da matéria de facto foi proferido o seguinte despacho:
«Aditam-se aos factos assentes as seguintes alíneas:
E)
No dia 22.7.1999 foi outorgada a escritura de partilha dos bens deixados por M (…), tal como consta do doc. de fls. 40 e ss, e nos quatro bens que foram partilhados não consta o prédio identificado em A).
F)
Sob o artº 261º da matriz predial rústica da freguesia de S (...), em Coimbra, encontra-se descrito o prédio rústico de semeadura com 25 oliveiras, localizado em F (...); o prédio tinha como titular inscrito A (…) (doc. de fls. 53).».
Ora vista a sentença, tais factos nela não se alcançam plasmados em sede de fundamentação factual.
Nem se vislumbra, na parte da mesma em que é invocado e aplicado o direito, que a respetiva análise jurídica tenha tido em consideração tais factos.
Ora como é bom de ver, se o julgador acedeu, na sequência da reclamação, em aditar tais factos aos já constantes nas anteriores alíneas, é porque os considerou relevantes para a boa decisão da causa.
O que também este tribunal corrobora, pois que, efetivamente, como ressumbra das alegações das partes ao longo do processo, inclusive das alegações recursivas da ré, os factos de tais alíneas podem relevar para a decisão da casa.
 Pois que se atêm à titularidade/propriedade do bem por parte dos ascendentes do autor e, consequentemente, à (im)possibilidade de o bem ter sido, ou não, doado à ré.
Não obstante e versus o defendido pela recorrente, não nos encontramos perante a nulidade da sentença por falta da sua fundamentação.
Na verdade e como se viu, esta só emerge quando existe uma total falta de fundamentação, ou uma fundamentação que não permita intuir o sentido da análise e decisão do juiz.
Não é o caso sub judice, pois que na sentença apenas não constam alguns factos que deviam constar e, certamente, por lapsus calami.
Nesta conformidade, encontramo-nos não perante uma nulidade da sentença, mas antes perante uma nulidade processual.
O ato (omissivo) foi produzido em sede de sentença, na sentença, mas não se atém a ela em termos materiais/substanciais/idiossincráticos, ou seja, não é da sentença.
Mas antes, como se disse, se reporta a uma atuação  de erro material, mais lata, que extravasa o âmbito/âmago da decisão e se expande e inclui na atuação do juiz nos autos, lato sensu.
É, pois, ainda uma situação subsumível na previsão do, à data, artº 201º do CPC.
Verificada esta nulidade e sendo a sua arguição tempestiva, importa anular a sentença e processado subsequente e ordenar a prolação de nova decisão que tenha em consideração os mencionados factos.
E procedente que é esta questão no sentido ora definido queda prejudicada a apreciação das restantes.

6.
Sumariando.
I - No processado que comporte despacho saneador, a intervenção principal provocada tem, sob pena de extemporaneidade, de ser deduzida antes da prolação deste despacho – artº 326º nº1 e 323º nº1 do CPC - e devendo a decisão atinente ser logo impugnada – artº 691º nº2 al. j) do CPC ainda vigente.
II - Na ação de impugnação de escritura notarial, se o autor fundar o interesse da impugnação na sua qualidade de herdeiro, inexiste, para assegurar a sua legitimidade, necessidade de intervenção dos demais herdeiros, pois que não é caso de litisconsórcio – artºs 27º e 28º do CPC - nem existe a possibilidade de perda definitiva de bens da herança – artº 2091 do CC.
III - A não inclusão, por lapso material, no acervo factual da sentença, de factos anteriormente assentes e tidos por relevantes, não acarreta a nulidade desta – pois que não é totalmente omissa de factos e pode ser sindicada perante os aduzidos -, mas antes constitui uma nulidade processual que implica a sua anulação e dos atos subsequentes, nos termos do pretérito artº 201º do CPC.

7.
Deliberação.
Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, anular a sentença e atos subsequentes, devendo ser prolatada nova decisão com consideração dos factos omitidos.

Custas pela parte vencida a final.

Coimbra, 2014.02.18.



Carlos Moreira ( Relator )
Anabela Luna de Carvalho
Moreira do Carmo