Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
505/12.0TBMLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: COMODATO
USO DETERMINADO
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
CONVOLAÇÃO
Data do Acordão: 05/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MEALHADA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 278, 1129, 1133, 1135, 1137, 1276, 1278, 1279 CC, 381, 385, 393, 395 CPC
Sumário: 1.- As partes podem convencionar que os efeitos do negócio jurídico cessem a partir de certo momento, pelo que, o contrato de comodato celebrado por toda a vida do comodatário é válido, porque o seu termo, embora incerto, é determinável.

2.- Falecido o comodante, é oponível aos herdeiros deste o contrato de comodato celebrado com o comodatário.

3.- De entre as obrigações do comodante ressalta aquela em que o mesmo se deve abster de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, podendo, por isso, o comodatário lançar mão dos meios de defesa possessórios colocados ao dispor do possuidor, nos termos do art. 1276º e segs. do CC.

4.- Do art. 1137º do CC resulta que o contrato de comodato cessa ou termina quando finde o prazo certo porque foi convencionado, ou, não havendo prazo certo, quando finde o uso determinado para que foi concedido, ou, não havendo prazo certo e nem uso determinado, quando o comodante o exija.

5.- Não tendo ainda findado ou terminado o uso determinado para que o dito prédio foi concedido à requerente - para sua habitação e ali viver -, uso delimitado no tempo – enquanto for viva - a requerente/comodante podia defender o seu direito pessoal de gozo, mediante o recurso à providência cautelar de restituição provisória de posse.

6.- Falhando um dos requisitos legais da providência cautelar de restituição provisória de posse pode a mesma convolar-se para procedimento cautelar comum, por efeito da conjugação dos arts. 395º e 381º, nº 1, do CPC.

7. Neste caso torna-se necessário que estejam também provados os requisitos legais próprios do procedimento cautelar comum, fixados no citado art. 381º, nº 1 CPC.

8.- O contraditório, previsto no art. 385º, nº 1, do CPC, a propósito do procedimento cautelar comum, não está dependente da iniciativa do requerente da providência, pois que mesmo que este o não tenha requerido os factos por si alegados podem levar o juiz a dispensar oficiosamente a audiência imediata do requerido.

9.- É permitido ao tribunal de 1ª instância ou de recurso efectuar aquela convolação, se estiverem reunidos os requisitos legais previstos no art. 381º, nº1, e for caso, a analisar em concreto, de dispensa do contraditório do requerido.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. C (…), residente em Coimbra, requereu providência cautelar de restituição provisória de posse contra M (…) por si e na qualidade de representante legal de seus filhos menores J (…) e F (…) , todos residentes em Coimbra, pedindo que seja decretada a restituição da posse do prédio urbano que identificou. Alegou, em síntese, que o prédio em questão, uma casa de habitação, foi construída num terreno que doou ao filho com a contrapartida de ficar a viver na casa que ele aí construísse, enquanto viva fosse, direito de habitação que não foi contemplado pois o Banco que mutuou o filho para o mesmo erigir a construção não aceitou tal ónus ou encargo. Todavia, após a construção da casa foi viver aí com o seu filho, que lhe assegurou que a casa lhe era emprestada para que a usasse e dela se servisse enquanto viva fosse. Falecido o seu filho, os seus herdeiros, os seus netos atrás referidos J (…) e F (…), e a mãe dos mesmos, sua ex-nora, tomaram a habitação, expulsando-a, de forma violenta, do local.

*

Posteriormente foi proferida decisão que julgou improcedente tal providência cautelar.

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2. A requerente interpôs recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. Inexistem contra-alegações.

II - Factos Provados

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da Mealhada sob o nº 3592/20060206, da freguesia de (...) , um prédio com área total de 680 m2, composto por casa de habitação, composta de cave, r/c, 1º andar e logradouro, registado a favor de J (…) e de F (…), sem determinação de parte ou direito, através da ap. 536, de 2010/05/27.

2. Por escritura outorgada em 4/4/2006, no Cartório da Notária Lic. (…)cuja escritura pública fora exarada a fls. 76 a fls.77 do livro de notas para escritura diversas nº 17-E, conforme documento de fls. 28 e dá por reproduzido, C (…) (ré) e marido S (….) declararam doar e o falecido F (…) declarou aceitar a doação do prédio urbano, composto por terreno destinado a construção urbana, com área de 680 m2, inscrito na respectiva matriz sob o nº 1901 (…) descrito na Conservatória sob o nº 3592, então registado a favor dos doadores.

3. Há mais de 10 anos a esta parte que requerente e seu cônjuge vivem uma relação de conflituosidade séria, razão pela qual a requerente teve necessidade de deixar o lar conjugal, facto que era de conhecimento do donatário.

4. O donatário não tinha dinheiro para custear as despesas da construção da casa e precisaria de contrair para tal, como contraiu, um empréstimo bancário.

5. Logo que a casa ficou habitável, o donatário chamou a sua mãe para ir viver com ele, tendo-lhe repetidamente assegurado que poderia viver nela enquanto fosse viva.

6. E de facto assim foi, tendo a requerente passado a habitar a casa objecto dos autos, sem o pagamento de qualquer contrapartida, conjuntamente com o seu filho e após o falecimento deste, nela dormindo, cozinhando, fazendo as lides de manutenção e limpeza, recebendo a sua correspondência, pagando a água e a luz.

7. A requerente continua sem voltar ao lar conjugal pelas razões aduzidas em 3.

8. M (…) foi casada com F (…) sendo o referido casamento dissolvido em data anterior ao óbito deste, no dia 2/1/2010, conforme consta da certidão de fls. 22, cujo teor se dá por reproduzido.

9. O dito F (…) faleceu intestado. 

10. Sucederam-lhe apenas os filhos J (…), nascido a 30 de Abril de 1996 e F (…) nascida a 17/10/2000, conforme certidões de nascimento e certidão de habilitação de herdeiros nº (...) da Conservatória do Registo Civil de Coimbra, de fls. 12, 16 e 25, que se dão por reproduzidas.     

11. A requerida M (…) e o menor J (…), no dia 26 de Setembro de 2012, pelas 15:30 horas, dirigiram-se ao prédio objecto dos autos onde entraram.

12. De forma não concretamente determinada, a requerida foi impedida de entrar ou permanecer na habitação, sendo que, num momento inicial, não lhe deram qualquer acesso a medicamentos, roupas ou outros bens pessoais.

13. A requerente não tem outro local a que tenha acesso e onde possa habitar.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 684º, nº 3, e 685º-A, do CPC).

Nesta conformidade a questão a decidir é a seguinte.

- Verificação dos requisitos da providência de restituição de posse.

- Convolação para procedimento cautelar comum.

2. São requisitos legais da providência cautelar de restituição de posse, conforme resulta do art. 393º do CPC: a) posse ou situação jurídica equivalente; b) esbulho; c) violência.

Entre as situações jurídicas equivalentes à verdadeira posse a lei faz equivaler à mesma a protecção de situações de defesa da posse em nome alheio, como é o caso do comodatário, facultando a este o acesso aos meios possessórios, mesmo contra o comodante, apesar de meros titulares de direitos pessoais de gozo, como decorre peremptoriamente do art. 1133º, nº 2, do CC, e arts. 1278º, nº 1, e 1279º do mesmo código.

A requerente/recorrente invocou a existência de um comodato como decorre cristalinamente dos arts. 14º e 15º da p.i.

Comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que dela se sirva, com obrigação de a restituir – vide art. 1129º do CC.

É um contrato de natureza de natureza real (quod constitutionem), já que só se considera constituído e perfeito com a entrega da coisa (móvel ou imóvel), não bastante para tal o simples acordo de vontades. É um contrato não formal ou consensual, já que a sua validade não está dependente da observância de qualquer forma (art. 219º do CC). É um contrato gratuito, dado que apesar de fazer surgir obrigações também para o comodatário, nenhuma delas, todavia, se apresenta como contrapartida pela utilização da coisa (art. 1135º do CC). É um contrato não sinalagmático, porque muito embora fazendo surgir obrigações para ambas as partes, todavia, não existe qualquer nexo de correspectividade ou relação de interdependência entre elas - vide A. Varela CC Anotado, Vol. II, 2ª Ed. págs. 580/582, e Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Contratos em Especial, Vol. III, 5ª ed. Almedina, págs. 366/367.

Contrato este que, fundamentalmente, se funda em razões de familiaridade, amizade, solidariedade, cortesia, favor ou gentileza do comodante a favor do comodatário (cfr. autores, obras e págs. citadas).

Por outro lado, sendo um contrato que, por natureza, é temporário, o nosso ordenamento jurídico não seguiu o caminho de estabelecer prazos de duração máxima do contrato, como ensina A. Varela (ob. cit., nota 2. ao art. 1137º, pág. 595).

Ora, é sabido que as partes podem, nos termos do disposto no art. 278º do CC, convencionar termo, ou seja, que os efeitos do negócio jurídico cessem (ou comecem) a partir de certo momento.

Deste modo, temos por bom o entendimento que o contrato de comodato celebrado por toda a vida do comodatário, ou seja, em que o comodante atribua, como aconteceu no caso em análise, o uso da coisa por toda a vida do comodatário, é um comodato válido, porque o seu termo, embora incertus quando, é determinável, pois a morte é certa, o dia da sua ocorrência é que é incerto (vide neste sentido, M. Leitão, ob. cit. pág. 380. nota 731, Ac. da Rel. Lisboa, de 25.5.2000, CJ, T. III, pág. 99 e Ac. desta Relação de Coimbra de 27.6.2006, CJ, T I, pág. 20).

Conjugando a exposição jurídica ora apresentada com a matéria factual dada como assente, concretamente os factos provados 5. e 6. (que são os emergentes da alegação da requerente nos aludidos 14. e 15. da p.i.), é de concluir que estamos na presença de um contrato de comodato celebrado entre a requerente e o seu filho (posteriormente falecido), relativo à casa de habitação por este construída.

De entre as obrigações do comodante ressalta aquela em que o mesmo se deve abster de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário (art. 1133º, nº 1, do CC). No caso os herdeiros do comodante, os netos da requerente, ainda menores, actuais donos do imóvel, através da actuação concertada do neto da requerente e da mãe deste, ex-nora da mesma requerente, esbulharam a mesma do uso da casa (cfr. factos provados 11. e 12.). Comodato que é oponível aos ditos herdeiros, com a morte do comodante, seu pai, como aconteceu no nosso caso, estando os mesmos obrigados a respeitar o prazo do comodato, e não a exigir de imediato a restituição da coisa, como defende M. Leitão (ob. cit., pág. 380) e nos parece a solução mais correcta. Só se o comodatário tivesse falecido haveria caducidade do contrato, como prevê o art. 1141º do CC (podendo também os herdeiros do comodante resolver o contrato com justa causa, nos termos do art. 1140º do CC).

Não tinham, pois, legitimidade substantiva os ditos herdeiros e a sua representante legal, a mãe, para desapossar a requerente da aludida casa de habitação, salvo se houvesse da parte desta obrigação de restituir a coisa, por estar findo o contrato (art. 1135º, h), do CC).

Estipula o art. 1137º, nº 1, que “Se os contraentes não convencionarem prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação”, e o nº 2 que “Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida”.

Pelo que o contrato de comodato cessa:

a) Ou quando finde o prazo certo porque foi convencionado;

b) Ou, não havendo prazo certo, quando finde o uso determinado para que foi concedido;

c) Ou, não havendo prazo certo e nem uso determinado, quando o comodante o exija.

No caso em apreço, os contratantes não convencionaram prazo certo para a restituição ou para o uso da coisa, o referido prédio urbano. Efectivamente o prédio urbano foi entregue à requerente para ela nele habitar enquanto fosse viva.

Acontece, também, que o comodato não se mostra caduco por morte da comodatária, nem se apurou que tivesse sido resolvido ou denunciado.

De maneira que não tendo ainda findado ou terminado o uso determinado para que o dito prédio foi concedido à requerente - para sua habitação e ali viver -, uso delimitado no tempo – enquanto for viva -, a requerente/comodante podia defender o seu direito pessoal de gozo, mediante o recurso à providência cautelar que apresentou. Está, assim, verificado o requisito legal da providência cautelar de restituição provisória de posse, acima elencado sob a).

E também está verificado o supra referido requisito elencado sob b), porquanto, como já atrás dissemos, está comprovado o esbulho, como emana dos factos provados 11. e 12. 

Quando ao mencionado requisito legal, elencado sob c), é que o caso muda de figura.

Como tem sido entendido, pela larga maioria da jurisprudência, a referida violência pode recair directamente sobre as pessoas, como ser produzida uma qualquer acção que recaia sobre coisas, e não directamente sobre pessoas, mas que indirectamente coage o possuidor a permitir o desapossamento, pois afecta-o na sua liberdade de determinação (art. 255º, nº 1 e 2, do CC).

Ora, não resulta da matéria provada, nomeadamente do facto provado 12., que o esbulho tivesse sido violento, nem directa nem indirectamente sobre a requerente.

Sendo indefensável, como pretende a recorrente, que in casu, se possa intuir que houve coacção sobre a mesma, a partir do momento em que a decisão recorrida, como a apelante bem sabe, deu como matéria não provada, e agora se transcreve:

“Factos Não Provados

(…)

- que no contexto aludido em 11., sem baterem à porta, os 1ª e 2º requerido destroncaram a fechadura através da utilização de um berbequim manobrado por homem a seu mando, e abriram a porta, e após entrarem pela casa adentro, ordenaram à requerente que saísse, que se o não fizesse a bem que o fazia a mal, sendo que perante a recusa da requerente em sair, agarraram-na por um braço, arrastaram-na e empurram-na para a rua, sem mais nada para além da roupa que trazia vestida.

- os requeridos trocaram a fechadura”.

O mesmo é dizer que não ficou comprovado a existência de qualquer coacção física ou moral exercida sobre a apelante.

E a fundamentação da decisão de facto neste aspecto é absolutamente compreensível e aceitável, pois nela se disse que:

“Motivação

(…)

Mais desconhecemos a concreta forma como os requeridos tomaram conta da morada. Desconhecemos se possuíam alguma chave, se no momento da entrada a requerente estava fora ou dentro da casa, que actos tiveram sobre o seu corpo. Não existem marcas visionadas na requerente ou nas suas roupas e apenas sabemos que, quando chegadas as testemunhas ao local, a requerente se encontrava do lado de fora da casa, com a sua carteira, não tendo sido deixada entrar – tendo a filha acabado por entrar em casa para ir buscar os mínimos bens pessoais.

(…)

Porque acorreu ao local no dia dos factos, atestou onde se encontrava a sua mãe, que tinha apenas a carteira na mão e que oposição lhe foi feita para entrar no local, no sentido de obter alguns pertences, o que só ocorreu depois, por via da ida da própria testemunha ao local”.

É impossível, pois, intuir qualquer juízo de coacção afirmativo sobre a recorrente, quando exactamente se deu por não provada que tal violência tivesse ocorrido.  

Por conseguinte, não se verificam todos os pressupostos para ser decretada a providência requerida.

3. Só que a análise do caso não fica por aqui.

Efectivamente, ao possuidor que seja esbulhado no exercício do seu direito, sem que ocorra a circunstância da violência é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum (art. 395º do CPC).

Dito de outra maneira, verificados os requisitos do procedimento cautelar comum, a providência cautelar de restituição provisória de posse pode convolar-se em restituição de posse, no quadro do procedimento cautelar comum, previsto no art. 381º, nº 1, do CPC.

Conjugando ambos os preceitos, são, assim, requisitos legais de tal tipo de providência: a) probabilidade da existência de uma situação de posse ou situação jurídica equivalente (fumus bonis júris); b) verificação de acto de esbulho não violento; c) perigo de ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora); d) a providência é adequada a remover o periculum in mora; e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quer evitar (decorrendo este último requisito do disposto no art. 387º, nº 2, do CPC) – veja-se neste entendimento cristalino L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 2º, 2ª Ed., nota 2 ao referido art. 395º, pág. 86, e A. Geraldes, Temas da Reforma do P. Civil, Vol. IV, 4ª Ed., nota 17. ao art. 395º, pág. 71/73, jurisprudência aí referida, e ainda os Acds. da Rel. do Porto, de 16.1.2003, Proc.0232878, e da Rel. Lisboa, de 4.8.2004, Proc.7004/2004-7, ambos em www. dgsi.pt).  

No caso em apreço, verifica-se o primeiro requisito, pois a requerente/recorrente tem a seu favor o comodato do mencionado prédio, como antes vimos. Também se verifica o segundo requisito, como atrás vimos, pois a apelante foi esbulhada do seu direito a gozar a dita casa. Igualmente se verifica o terceiro requisito, pois resultou provado no facto 13. que a requerente não tem outro local a que tenha acesso e onde possa habitar. Assim como se verifica o quarto requisito, visto que a providência de restituição de posse do mesmo prédio onde a apelante habita é idónea a remover o periculum in mora que agora se verrifica. Finalmente, ocorre o quinto requisito, já que os autos não demonstram que a restituição da posse de tal prédio à apelante que o habita vá causar prejuízo superior aos requeridos, nomeadamente aos netos da requerente.

Importa, todavia, enfrentar uma questão que o regime procedimental dos autos faz emergir. Na verdade, em termos de normalidade, no procedimento cautelar comum a regra é a da observação do contraditório, a audição dos requeridos, como emana do art. 385º, nº 1, do CPC, o que in casu não aconteceu, dado que a providência cautelar de restituição provisória de posse não pressupõe a audição da parte contrária (art. 394º do CPC). Mas aquela regra consente a excepção prevista no mesmo normativo, se a audiência puser em risco sério o fim ou eficácia da providência o tribunal não tem de ouvir o requerido.

Tem sido entendido, pacificamente, que na apreciação de tal risco da audiência do requerido o tribunal não está dependente da iniciativa do requerente da providência, pois que mesmo que este o não tenha requerido os factos por si alegados podem levar o juiz a dispensar oficiosamente a audiência imediata do requerido (ou vice-versa), posição doutrinal a que aderimos – cfr. A. Reis, CPC Anotado, Vol. I, pág, 688/690, L. Freitas, ob. cit., nota 1. ao apontado artigo 385º, pág. 27, e A. Geraldes, ob. cit., Vol. III, 4ª Ed., nota 49.6 ao mesmo artigo 385º, pág. 198.      

No nosso caso, quanto à questão do exercício do contraditório, atento os factos provados, nomeadamente os factos 5., 6., 11. a 13., inculca-se que quer a urgência do decretamento da providência, quer a sua relevância social e humana, justificam a sua apreciação sem audiência prévia dos requeridos.

E neste aspecto considera-se ser perfeitamente legal que quer o tribunal de 1ª instância quer o tribunal de recurso possam, no momento da decisão, dispensar o contraditório, analisado o caso e as circunstâncias em concreto, após convolação da providência cautelar de restituição provisória para procedimento cautelar comum (vide L. Freitas, ob. cit., nota 3. ao artigo 395º, pág. 87, e A. Geraldes, ob. cit., Vol. IV, notas 13.4 e 13.5 aos artigos 393º a 395º, págs. 59/61, e Ac. da Rel. Porto de 16.10.2006, Proc.0655160, em www.dgsi.pt). 

Do exposto resulta que o recurso é procedente, devendo ao abrigo do procedimento cautelar comum ser conferida a providência requerida.    

4. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC):

i) As partes podem convencionar que os efeitos do negócio jurídico cessem a partir de certo momento, pelo que, o contrato de comodato celebrado por toda a vida do comodatário é válido, porque o seu termo, embora incerto, é determinável;

ii) Falecido o comodante é oponível aos herdeiros deste o contrato de comodato celebrado com o comodatário; 

iii) De entre as obrigações do comodante ressalta aquela em que o mesmo se deve abster de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, podendo, por isso, o comodatário lançar mão dos meios de defesa possessórios colocados ao dispor do possuidor, nos termos do art. 1276º e segs. do CC;

iv) Do art. 1137º do CC resulta que o contrato de comodato cessa ou termina quando finde o prazo certo porque foi convencionado, ou, não havendo prazo certo, quando finde o uso determinado para que foi concedido, ou, não havendo prazo certo e nem uso determinado, quando o comodante o exija;

v) Não tendo ainda findado ou terminado o uso determinado para que o dito prédio foi concedido à requerente - para sua habitação e ali viver -, uso delimitado no tempo – enquanto for viva - a requerente/comodante podia defender o seu direito pessoal de gozo, mediante o recurso à providência cautelar de restituição provisória de posse;

vi) Falhando um dos requisitos legais da providência cautelar de restituição provisória de posse pode a mesma convolar-se para procedimento cautelar comum, por efeito da conjugação dos arts. 395º e 381º, nº 1, do CPC;

vii) Neste caso torna-se necessário que estejam também provados os requisitos legais próprios do procedimento cautelar comum, fixados no citado art. 381º, nº 1; 

viii) O contraditório previsto no art. 385º, nº 1, do CPC, a propósito do procedimento cautelar comum, não está dependente da iniciativa do requerente da providência, pois que mesmo que este o não tenha requerido os factos por si alegados podem levar o juiz a dispensar oficiosamente a audiência imediata do requerido;

ix) É permitido ao tribunal de 1ª instância ou de recurso efectuar aquela convolação, se estiverem reunidos os requisitos legais previstos no art. 381º, nº1, e for caso, a analisar em concreto, de dispensa do contraditório do requerido.   

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, assim se revogando a decisão recorrida, e, em consequência, decreta-se a restituição da posse do prédio identificado no facto provado 1. à requerente/recorrente.  

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Custas pela requerente (a atender a final, nos termos do art. 453º, nº 1 e 2, do CPC).

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Moreira do Carmo ( Relator )

Alberto Ruço

Fernando Monteiro