Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
41053/10.7YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: EMPREITADA
DEFEITOS
RESOLUÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/24/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1154, 1155, 1207, 1208, 1218, 1222 CC
Sumário: 1. Entende-se como defeitos, no contrato de empreitada, quer vícios que excluam ou reduzam o valor da obra, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato, quer alterações/deformidades com que a obra for construída.

2. As características de uma obra não são, só por si e em regra, defeitos da mesma.

3. O ónus da prova de que a prestação não foi realizada nos termos acordados cabe ao que alega o cumprimento defeituoso.

4. Sem primeiro exigir ao empreiteiro a eliminação de defeitos, o dono da obra não pode resolver o contrato, ao abrigo do art. 1222 do CC.

5. A resolução de uma empreitada, ao abrigo do art. 1222 do CC, só é possível se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              C (…) – publicidade, lda, requereu, em 08/02/2010, a presente injunção contra S (…), lda, requeren-do o pagamento de 15.259,66€, sendo 14.940€ de capital, 143,16€ de juros de mora vencidos, 100€ de “outras quantias” e 76,50€ de taxa de justiça paga e ainda juros de mora vincendos até efectivo pagamento.

              Alegava para tanto ter prestado diversos serviços de fotografia e catálogo à requerida, de que ficou por liquidar o capital referido; a requerida, apesar de instada para proceder ao pagamento da quantia em dívida, de que nunca reclamou e que por isso reconhece, até hoje não o fez. Com o requerimento não foi junto qualquer documento.

              A requerida, notificada a 18/02/2010 (fls. 7 do processo electróni-co) deduziu oposição excepcionando, dizendo, em suma, que o resultado do trabalho da requerente apresentava defeitos e que por isso a requerida não aceitou; a requerente não alterou o trabalho apresentado, não corrigindo os defeitos; a requerida acabou por perder o interesse na prestação e solici-tou a elaboração do catálogo a uma outra empresa; e ainda impugnou: não sabe a que se referem os 100€ pedidos. Terminou pedindo a sua absolvição do pedido.

              Depois do julgamento foi proferida sentença, julgando improce-dente a acção e absolvendo a requerida do pedido.

              A requerente recorreu desta sentença, para que seja revogada e substituída por outra que condene a requerida ao pagamento do pedido, ter-minando as suas alegações com conclusões que no essencial têm a ver com a pretensão da alteração dos factos dados como provados em termos que adiante serão concretizados e com as considerações de que a obra não tinha defeitos; à requerente nunca foi apresentada qualquer proposta de alteração ou de eliminação de defeitos, nem prazo para proceder a essa alte-ração / eliminação; o art. 1222º/1 do CC, subordina o direito de resolução ao facto de os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina, o que não aconteceu no caso em apreço; o dizer-se que não se paga não constitui forma adequada à resolução; o trabalho efectuado sempre teria um valor que teria que ser pago sob pena de um enriquecimento sem justa causa à custa da requerente, sendo estas as questões que importa solucionar.

                                                                 *

              Foram os seguintes os factos dados como provados:
         1. A requerente é uma sociedade que se dedica à publicidade.
         2. A requerida é uma sociedade que se dedica ao comércio e aplicação de portas de madeira e roupeiros.
         3. [A requerente, no âmbito da sua actividade, prestou serviços de fotografia e catálogo à requerida com vista à concepção de um catálogo de roupeiros.
         4. O catálogo compreendia fotografias em estúdio dos vários roupeiros comercializados.
         5. Cada fotografia de roupeiro em ambiente custou 320€ e foram tiradas 27.
         6. Cada fotografia de pormenores custou 75€ e foram tiradas 30.
         7. A requerida pagou 35% do orçamento apresentado pela requerente, sinal esse no valor de 2.400€. Ou antes, como será determi-nado mais abaixo: A requerida pagou 35% do orçamento apresentado pela requerente para a concepção do catálogo, que era – o orça-mento - de 2.400€.
         8. Em Dezembro de 2009, a requerente apresentou à requerida o protótipo do catálogo.
         9. Protótipo esse que P (…), representante da requerida não aceitou, considerando não se adequar aos fins a que se destinava.
         10. Isto porque os cenários que constam do catálogo são repetidos em várias fotografias, bem como os elementos decorativos; em grande número de páginas a dobra da folha coincide com o roupeiro dividindo-o.
         11. No dia 18/12/2009 ocorreu uma reunião na sede da requerida na qual P (…) afirmou não aceitar o trabalho pelos motivos referidos em 10.
         12. A requerente recusou alterar os elementos referidos em 10.
         13. A requerida pretendia apresentar novo catálogo aos clientes no início de 2010, facto de que a requerente foi informada.
         14. A requerida mandou imprimir 500 catálogos antigos para entrega aos clientes e, posteriormente, solicitou a concepção de novo catálogo a outra empresa.
         15. Pelo serviço prestado, a requerente apresentou uma factura de 14.940€, Ou antes, como será determinado abaixo: Pelo que faltava pagar do serviço prestado, a requerente apresentou duas facturas com um valor global de 14.940€, incluindo IVA de 20%.
         16. Interpelada para pagar, a requerida ainda não o fez.

                                                                 *

                                        Do recurso quanto aos factos

              Um recurso quanto aos factos deve discutir, com precisão, os factos dados como provados [art. 685º-B/1a) do CPC], não os confundindo com as considerações de facto feitas para dar os factos como provados. Além disso, não deve esquecer que o juiz só se pode servir dos factos articulados pelas partes (art. 664 do CPC).

              Nada disto é observado pela requerente.

              De qualquer modo…

                                                  Quanto aos factos

              (…)

                                                                 *

              Afastados os vários argumentos contra a decisão daqueles pontos da matéria de facto, conclui-se que nada há a alterar quanto aos factos provados, pelo que nesta parte improcede o recurso da requerente.

                                                                 *

                                       Do recurso quanto do Direito

              A sentença recorrida julgou a acção improcedente com a seguinte fundamentação:
         Face aos factos 3, 13, 4, 5, 6 e 8 dos factos provados e ao disposto nos arts. 1154, 1155 e 1207, todos do Código Civil, considerou que no caso havia sido celebrado entre a requerente e a requerida um contrato de empreitada, relativo ao resultado concepção de um catálogo e que a requerente executou o resultado contratado.

              E depois continua (sublinham-se as passagens em que se fazem referência a factos que não estão dados como provados; os sublinhados são da responsabilidade deste acórdão do TRC):
         “Esclarecida esta questão, há agora que centrar a atenção na definição rigorosa da prestação debitória que cabia à requerente realizar, uma vez que esse é o cerne da acção.
         […] não é legítimo afirmar que a requerida já conhecia o “conceito da requerente” – em primeiro lugar, porque estava em causa apenas uma ideia de catálogo, desmaterializada; em segundo lugar, porque a própria requerida nunca tinha trabalhado nessa área (catálogos de roupeiros), como atestaram em tribunal as testemunhas por si arroladas.
         No fundo, só à medida que o trabalho se vai desenvolvendo é que o contratante fica em posição [de] definir, com rigor e objecti-vidade, o que pretende com o serviço e como deve ser moldada a prestação debitória.
         Tudo para dizer que, ainda que o legal representante da requerida tenha assistido à execução das fotografias e nada tenha apontado de negativo nesse momento, tal não pode ser entendido como uma aceitação tácita do catálogo cujo projecto ainda ia ser-lhe apresentado (uma espécie de “promessa de aceitação da obra”).
         Tais fotografias ainda haviam de ser retocadas; ainda haviam de ser incrementadas com elementos de decoração; ainda haviam de ser enquadradas com cenários, paredes, janelas, tectos, nada sendo mais do que o “esqueleto da obra”.
         Em bom rigor, só com a apresentação do protótipo do catálogo de roupeiros é que a requerida passou a conhecer a prestação que a requerente se propunha cumprir.
         No caso dos autos, o que é que a requerente entregou à requerida como obra por si realizada, em ordem à satisfação da prestação a que ficou adstrita?
         Entregou-lhe, efectivamente, uma catálogo projectado - [cfr. 08) dos factos provados], do qual a requerida não gostou, ou pelo menos, que não correspondeu às suas expectativas iniciais.
         Relevantíssimo, no entendimento do tribunal, não é a reque-rida achar que o projecto não era sóbrio e elegante, mas sim o facto de ter manifestado o seu desagrado à requerente e apontado os aspectos concretos que não queria na obra final, a saber, “os cená-rios que constam do catálogo são repetidos em várias fotografias, bem como os elementos decorativos; em grande número de páginas a dobra da folha coincide com o roupeiro dividindo-o” - [cfr. 10) dos factos provados].
         Relevantíssima é a recusa da requerente em fazer quaisquer alterações ao projecto, de modo a satisfazer o pedido do cliente, numa visão “egocêntrica” de que o trabalho era muito bom e não precisava de reparos.
         Mais grave ainda se ponderarmos que nenhum obstáculo material existia para que as alterações fossem concretizadas - [cfr. 12) dos factos provados].
         Pode agora dizer-se que se verifica uma desconformidade entre a prestação devida pela requerente e a prestação por si realizada, ficando esta aquém do que deveria ter realizado.
         A lei não dá a noção de “defeito da obra”. Mas, parece considerar que ele existe em dois casos: quando a obra não estiver nas condições convencionadas; e quando a obra apresentar vícios.
         É o que resulta indirectamente do disposto no art. 1218º do CC, ao postular que o dono da obra deve verificar, antes de a acei-tar, se ela se encontra nas condições convencionadas e sem vícios, disposição inserta na secção III que tem por epígrafe “defeitos da obra”.
         No caso dos autos, verifica-se o primeiro pressuposto, pois a “obra” entregue à requerida pela requerente não está de acordo com o convencionado, em virtude da recusa em conformar o pro-jecto à vontade da cliente quando tal lhe foi oportunamente solici-tado.
         É inadmissível conceber um qualquer projecto (um catálogo, um vestido de noiva, uma casa) cujo projecto não agrada ao clien-te; cliente este que requer alterações ao projecto de modo a cumprir o objectivo do serviço solicitado e, perante isso, haver recusa em fazer ajustamentos, impondo-se-lhe um produto desajustado à sua vontade.
         A requerida logo denunciou os defeitos da obra, mais concretamente, na reunião de 18/12/2009 - [cfr. 11) dos factos provados], aí manifestando a sua não aceitação nas condições em que se encontrava - [cfr. 09), 11) e 12) dos factos provados].
         Em conclusão, o que a requerente entregou à requerida, como sendo um protótipo de catálogo de roupeiros, em cumprimento do contrato acima aludido apresentava defeitos, tendo, por isso, havido um cumprimento contratual defeituoso.
         Perante a recusa da requerente em adequar a sua prestação, assistia à requerente o direito de resolver o contrato, conforme resulta expressamente do disposto no art. 1222º/1 do CC.
         Tal direito foi exercido na própria reunião de 18/12/2009, pois logo aí a requerida comunicou à requerente que, em face da situação, não pagaria o trabalho, terminando aí a sua relação comercial - em cumprimento do disposto no art. 436º/1 do CC.
         Tudo visto e ponderado, improcede, na totalidade, o pedido formulado pela requerente, não lhe assistindo o direito de exigir à requerida o pagamento […].”

              Perante isto diga-se em primeiro lugar que é impressionante a quantidade de factos utilizados na fundamentação de direito da sentença como se fossem factos provados, quando é manifesto que não o estão (são todos aqueles que constam acima como sublinhados). Inclusive, note-se, com remessa para os pontos de facto, onde não consta o que se diz constar (é o caso da parte sublinhada acima quando se remete para o facto 12, relativamente à inexistência de obstáculos).

              Seja como for…

              O essencial da fundamentação da sentença é, como decorre do que antecede, o seguinte: a) o resultado pretendido era a concepção de um catá-logo; b) a requerente fez o catálogo mas este apresentava defeitos; c) a requerida não aceitou o catálogo com defeitos e exigiu a alteração dos mes-mos; d) como a requerente recusou eliminar os efeitos, a requerida tinha o direito de resolver o contrato; e) direito que exerceu ao dizer que não paga-va.

              Vejam-se (até ser necessário) estes percursos um a um, à excepção do primeiro e da não aceitação do catálogo que não são postos em causa pela requerente:

              O catálogo concebido pela requerente tinha defeitos?

              Tendo em conta os factos que interessam a esta resposta, que são, no essencial, os sob 3 e 8 a 10, tudo o que se pode dizer é que a requerente se obrigou à concepção de um catálogo, fez essa obra e apresentou-a à requerida, e esta não a aceitou, considerando que os cenários que constam do catálogo são repetidos em várias fotografias, bem como os elementos decorativos e que em grande número de páginas a dobra da folha coincide com o roupeiro dividindo-o.

              Nos factos ainda consta que o catálogo não se adequava aos fins a que se desti-nava, mas trata-se, por si, de uma afirmação inócua, porque conclusiva, que só faz sentido conjugada com o que consta de 10, ou melhor só assim, conjugada com o que consta de 10, a afirmação tem conteúdo útil… Se não se fizesse esta conjugação, a afirmação em causa, porque utiliza directamente uma construção legal (parte final do nº. 1 do art. 1222 do CC), teria que ser considerada não escrita (art. 646/4 do CPC).

              O facto de os cenários e os elementos decorativos que constam de um catálogo serem repetidos em várias fotografias e o facto de, em grande número de páginas, a dobra da folha coincidir com o roupeiro dividindo-o, é um defeito desse catálogo?

              Entende-se como defeitos, no contrato de empreitada, quer vícios que excluam ou reduzam o valor da obra, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato (art. 1208 do Código Civil = CC), quer alterações/deformidades com que a obra for construída (art. 1214, nºs 1 e 2, do CC) - veja-se, por exemplo, o estudo de Rui Sá Gomes, Breves Notas Sobre O Cumprimento Defeituoso No Contrato de Empreitada, publicado na Ab Vno Ad Omnes, 75 anos da Coimbra Editora, Março de 1998, págs. 587/639, especialmente até à pág. 632.

              No caso, não é possível dizer, com os factos dados como provados, que a existência de repetições e de divisões nas fotografias excluam ou reduzam o valor da obra ou que excluam ou reduzam a aptidão dela para o uso ordinário.

              Assim, para se poder concluir que, no caso, essas repetições e divisões eram defeitos, tinha que se saber o que é que tinha sido convencionado, para o pôr em confronto com o que foi executado. Não se sabendo, não é possível esse confronto e, por isso, não se pode concluir pela existência de defeito.

              Dito de outro modo: pode ser que os usos e os costumes profissionais da área em questão pressuponham que os catálogos, todos eles ou só os de grande qualidade, não devam ter cenários ou elementos decorativos repetidos, nem divisões de fotografias. E que isso seja um factor de redução do valor de um catálogo. Mas se isso é assim ou não, não se sabe, porque não foi feita prova disso.

              Também pode ser que as partes tenham convencionado algo quanto ao catálogo, designadamente por a requerida ter mostrado algum à requerente, dizendo-lhe que era assim, ou mais ou menos assim, que o queria, ou que não o queria. Mas também nada disto foi alegado.

              Ora, o ónus da prova que um produto está defeituoso incumbe a quem alega o facto em seu benefício, isto é, para não o pagar precisamente porque está defeituoso (art. 342/1 do CC); dito de outro modo, o ónus da prova de que a prestação não foi realizada nos termos acordados cabe ao que alega o cumprimento defeituoso (por exemplo, Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Almedina, Teses, 1990, pág. 283), o que implica a alegação e prova dos termos em que o cumprimento devia ter sido efectuado e dos termos efectivos em que o foi.

              É também a posição de Carneiro Frada (Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador, revista O Direi­to, 1989, III, pág. 481: “deve o adquirente fazer (segundo, aliás, as regras gerais) a prova do defeito padecido pela coisa”.

              É o que também defende Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, Teses, 1994, págs. 357 e segs.: “Se o defeito é da coisa prestada, aquele que a recebeu terá de provar a desconformidade. Esta regra vale tanto para a prestação primeiramente efectuada, como para os casos em que a coisa foi reparada, mas o defeito permanece, ou a prestação foi substituída, sendo igualmente imperfeita”.

              Não se podendo concluir pela existência de defeitos e cabendo ao dono da obra a alegação e prova da existência dos mesmos, a conclusão é óbvia: não se pode falar de defeitos e tal corre contra a requerida, pelo que estando a conclusão da improcedência da acção baseada neles, desde já se pode concluir que a decisão está errada.

                                                                 *

              Acrescente-se, no entanto, ainda o seguinte:

              Também não se pode dizer, ao contrário do que fez a sentença, que tenha havido qualquer exigência de alteração dos defeitos.

              No facto 8 consta que a requerente apresentou à requerida o protótipo do catálogo. No facto 9 diz-se que a requerida não a aceitou. No facto 11 repete-se a não aceitação, reportada a uma data precisa. No facto 12 refere-se a recusa em alterar.

              Em lado algum consta que a requerida exigiu a eliminação dos “defeitos”. Também não consta que ela tenha manifestado o seu desagrado à requerente e apontado os aspectos concretos que não queria na obra final, ao contrário do que se diz na sentença. O que consta é que ela não aceitou a obra. Também não consta que a requerente se tenha recusado a conformar o projecto à vontade da cliente quando tal lhe foi oportunamente solicitado. Não consta, ainda, que a requerida tenha requerido alterações ao projecto de modo a cumprir o objectivo do serviço solicitado. O que consta é apenas a não aceitação da obra.

              Não consta dos factos provados nem tinha sido alegado pela requerida na sua oposição. E se esta [não] alegou assim os factos, sem fazer a ligação da “não aceitação” à “recusa em alterar”, ela lá sabe o porquê de não o ter feito, não podendo ser a sentença a suprir a falta de alegação de factos através de especulações. Não se falando em qualquer exigência de eliminação de defeitos, a recusa em alterar só pode ser vista como a constatação de que a requerente não alterou o protótipo de catálogo apresentado, não como uma resposta a uma pretensão não apresentada.

              Entretanto, note-se, quer na sentença quer na oposição da requerida, a constante invocação da pretensão de alteração. E chama-se a atenção para isso porque o regime da alteração da obra (arts. 1214 e segs do CC, secção II) nada tem a ver com o regime da eliminação dos defeitos (arts. 1218 e segs do CC, secção III). Pretender alterações nada tem a ver com pretender eliminação de defeitos…

              Em suma: como a requerida apenas dizia que não tinha aceite a obra – e não que só a aceitaria se fossem eliminados os defeitos ou se fosse alterada de modo a ficar como ela queria - e que a requerida se tinha recusado a alterá-la, e foi apenas isso o que ficou provado, a sentença não podia, na fundamen-tação de direito, ter como provado – sem sequer o dar como provado na parte da fundamentação de facto – que a requerida tinha pretendido a alteração, para depois concluir pela aplicação do regime da eliminação dos defeitos, para mais quando se tratam de coisas contraditórias.

                                                                 *

              Como não houve exigência da “alteração” de defeitos, também não se pode dizer que a requerente se recusou a “alterar” os elementos que eram ditos ser defeituosos, no sentido de recusa de uma proposta ou exigência de alteração.

                                                                 *

              Como não houve exigência de eliminação de defeitos – e a partir daqui não se vai referir mais que a sentença não fala de uma exigência de eliminação de defeitos, mas de uma pretensão de alteração da obra, apesar de aplicar a esta o regime daquela – e recusa de a satisfazer, a requerida não tinha o direito de resolver o contrato.

              Há muito que vem sentido dito, quanto às empreitadas que não sejam de consumo (como é o caso dos autos, pois que a requerida é uma sociedade comercial e a obra destinava-se ao exercício do seu comércio…; nas empreitadas de consumo, o regime é diferente, resultando da Lei 24/96, de 31/07, com as alterações do Dec. Lei 67/2003, de 8/4), que primeiro o dono da obra tem de exigir a eliminação dos defeitos, se eles puderem ser eliminados (art. 1221/1 do CC).

              Se o empreiteiro não o fizer, o dono da obra terá de pedir a condenação judicial do empreiteiro a eliminar os defeitos (art. 817 do CC). Obtida a decisão judicial favorável e continuando o empreiteiro a não cumprir, o dono da obra terá de executar tal decisão e no âmbito da execu-ção requerer que o facto seja prestado por outrem à custa do devedor (art. 828 do CC).

              Como diz Antunes Varela, CC anotado, Vol. II, 4ª edição, Out97, Coimbra Editora, pág. 896:

         “pode considerar-se seguro, no nosso direito, que este artigo [1221 do CC] não confere ao dono da obra o direito de, por si ou por intermédio de terceiro, eliminar os defeitos ou reconstruir a obra à custa do empreiteiro [...] O regime aplicável é pois o do art. 828 [do CPC], que aliás é o mais razoável na medida em que salvaguarda legítimos interesses do empreiteiro, sem prejudicar o direito fundamental do dono da obra. Só em execução se pode pedir que o facto seja prestado por outrem à custa do devedor. A lei supõe uma condenação prévia do empreiteiro, na sequência da qual o dono da obra pode exigir a eliminação do defeito ou a nova construção por terceiro, à custa do devedor ou a indemnização pelos danos sofridos. Não foi, assim, aceita a proposta de Vaz Serra, no sentido de permitir ao dono da obra proceder à eliminação dos defeitos e reclamar indemnização das despesas necessárias, logo que o empreiteiro se constitua em mora [...]. Pareceu que não se justificava, neste caso especial da empreitada, que se prescindisse da via judicial da condenação do empreiteiro, entrando-se directamente numa execução específica”.

              Só se tudo isto falhasse é que o dono da obra podia exigir a redução do preço ou resolver o contrato e mesmo assim só se os defeitos tornassem a obra inadequada ao fim a que se destinava (art. 1222 do CC).

              Neste sentido, veja-se ainda João Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Almedina, Novembro de 2001, páginas 94 e 95:

         “[...] diferentemente da compra e venda em que as pretensões são atribuídas em concorrência electiva e recorremos à boa fé para a sua ordenação (supra, nº 43), na empreitada a hierarquização dos direitos do dono da obra é feita pela lei de modo expresso, em termos que reputamos correctos: em primeiro lugar, 1) a eliminação dos defeitos ou, se não puderem ser eliminados, 2) a reconstrução da obra, salvo se as despesas ou custos para o empreiteiro forem desproporcionados em relação ao proveito do dono; só depois, não sendo eliminados os defeitos ou reconstruída a obra, o dono pode exigir 3) a redução do preço, nos termos do art. 884, ficando com a obra entregue porque, apesar do seu menor-valor, se mostra adequada ao fim a que se destina, ou 4) a resolução do contrato, se os defeitos tomarem a obra inadequada ao fim a que se destina.”

              No mesmo sentido, vejam-se ainda os acórdãos do STJ de 11/01/2007 (06B4564 da base de dados do ITIJ), de 1/3/2007 (06A4501 da base de dados do ITIJ) e de 29/3/2007 (sob o nº. 07B370 da base de dados do ITIJ).

              Dada a demora inerente a todo este caminho legal, tem-se vindo a admitir que, em casos urgentes, o dono da obra possa proceder à eliminação dos defeitos por sua iniciativa e conta, com base na acção directa [art. 336 do CC), pedindo depois o seu pagamento ao empreiteiro. Mas são só os defeitos que há urgência em eliminar que podem estar em causa, valendo as regras gerais para todos os outros [veja-se Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, parte especial, Almedina, Maio de 2000, pág. 450, ou Cumprimento Defeituoso, em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, 1994, pág. 389; sendo que tinha acabado de escrever: “tendo o credor encarregado um terceiro de proceder à eliminação dos defeitos, sem ter previamente recorrido às vias judiciais, não pode, depois, pedir a condenação do inadimplente no valor das despesas efectuadas” - pág. 388), e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22/1/96, publicado na CJ.96.I, págs. 202 e seguintes, este com argumentação baseada no incumprimento contratual culposo do empreiteiro]. Neste sentido, vejam-se também os acórdãos do STJ de 8/6/2006 (06A1338 do sítio da ITIJ): I - O lesado com a defeituosa execução da obra para se ressarcir dos danos respectivos tem que observar a sequência procedimental dos art.ºs 1221, 1222 e 1223. II - Só em casos de manifesta e provada urgência é que ele pode directamente, e sem intervenção do tribunal, proceder à eliminação dos defeitos, exigindo depois o pagamento ao empreiteiro das respectivas despesas) de 7/12/2005 (05A3423 no sítio da ITIJ): I - O lesado com a defeituosa execução da obra, para se ressarcir dos respectivos prejuízos, terá de observar a prioridade dos direitos consagrados nos arts. 1221, 1222 e 1223 do Cód. Civil. [...] IV- Só em casos da manifesta urgência, é admissível que o credor, directamente e sem intervenção dos tribunais, proceda à eliminação dos defeitos, exigindo depois as respectivas despesas, e de 1/3/2007 (06A4501 da base de dados do ITIJ): 1 – No âmbito do contrato de empreitada (bem como da compra e venda, sempre que a analogia das situações o justifique) não é lícito, por regra, ao dono da obra recorrer à contratação de terceiros independentemente da comprovação do incumprimento definitivo da obrigação por parte do empreiteiro. 2 – Se o fizer, não adquire por tal facto o direito de recorrer a juízo para exigir a condenação do empreiteiro no valor das despesas realizadas, salvo caso de manifesta urgência que preencha os requisitos da acção directa ou estado de necessidade.

              Mas, no caso, não só não se alegou a urgência na eliminação dos “defeitos” como não se provou qualquer facto que permita dizer que ela era urgente. O facto 13 era apenas uma razão para as partes acautelarem, por acordo, um prazo essencial para a realização da prestação, não uma demonstração da urgência de resolver a questão, que permita ultrapassar o regime legal vigente, através desta válvula de escape.

              Outra via tem sido utilizada, desde há alguns anos, para permitir ultrapassar a demora inerente àquele percurso legal: ou seja, tem sido aceite aplicar à resolução da empreitada a conversão da mora em incumprimento definitivo através da interpelação admonitória (2ª parte do art. 808/1), e a invocação da perda do interesse na prestação (1ª parte do art. 808/1 do CC) e mesmo a recusa em cumprir.

              Assim, por exemplo, veja-se o acórdão do STJ de 16/03/2010  (6817/06.5TBBRG.G1.S1):

         “I – Provada a existência dos defeitos, a tornarem a obra inadequada para os fins pretendidos pelo seu dono, cabe ao seu dono a obrigação de notificar o empreiteiro para que este, dentro de um prazo razoável, os elimine. II – Se ao fazê-lo, concomitantemente, o adverte de que o decurso desse mesmo prazo, sem que os ditos defeitos fossem eliminados, determina o incumprimento do contrato, fica legitimado para resolver o contrato, por incumprimento deste, e, ao mesmo tempo, para pedir a intervenção de terceiros, com vista a obter o desideratum pretendido, comprovada tal hipótese. III – Perante o quadro factual tradutor do incumprimento do empreiteiro, nos termos referidos, é legítimo concluir que o dono da obra respeitou o iter imposto pelos artigos 1221º a 1223º, do Código Civil, e, consequentemente, determinar que os custos, por este suportados com a intervenção de terceiros, sejam colocados a cargo daquele.”

               No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STJ de 13/10/2009 (08A4106), especialmente o ponto VIII do respectivo sumário:

         “O direito à resolução só nasce estando o empreiteiro em mora relativamente a qualquer das referidas obrigações e desde que transformada a mora em incumprimento definitivo, nos termos do art. 808.º do CC.”

               E ainda o de STJ de 05/03/2009 (09B0262).

               No mesmo sentido, veja-se ainda a continuação da citação de Calvão da Silva, iniciada acima, obra e local citado:

         “Logo, o empreiteiro pode obstar à redução do preço ou à resolução do contrato, procedendo à eliminação dos defeitos ou à reconstrução da obra - quando ainda se mantenha, obviamente, o interesse do dono, apesar da mora (art. 808, n° 1, 1ª parte). Por outras palavras: o dono da obra não pode desde logo lançar mão da redução do preço ou resolução do contrato, sendo possível a rectificação da prestação imperfeita; deverá primeiramente exigir o cumprimento perfeito pela eliminação dos defeitos ou reconstrução da obra e, só na hipótese de o empreiteiro, por impossibilidade, desproporcionalidade ou recusa, não renovar o cumprimento em conformidade com o contrato, nos termos devidos, é que o dono pode exigir uma redução adequada da sua contraprestação ou a resolução do contrato por incumprimento”.

               No mesmo sentido, veja-se João Cura Mariano (Responsabilidade Contratual do Empreiteiro da Obra pelos defeitos da obra, Almedina, 2004, págs. 110 a 113).

               Embora esta solução seja dificilmente compatível com a exigência referida por Antunes Varela, que sempre tinha sido seguida, de acção judicial, pois que se o dono da obra, através da invocação da recusa da prestação pelo empreiteiro, da perda do interesse ou da interpelação admonitória, pode resolver o contrato, então ao fim e ao cabo não tem de seguir aquele percurso judicial, a verdade é que ela, bem ou mal, já faz parte inequivocamente das soluções perfilhadas crê-se que unanimemente pela doutrina e jurisprudência, pelo que, por força do nº. 3 do art. 8 do CC, deve ser seguida.

               Mas isto tudo não ajuda à requerida, primeiro porque não se prova qualquer recusa, como já foi visto, ou perda de interesse (apreciada objectivamente: art. 808/2 do CC – e a entrega da elaboração do catálogo a outra empresa é, só por si, demonstrativa de que não houve qualquer perda de interesse objectiva) ou interpelação admonitória, e depois porque, mesmo assim, a resolução, na empreitada, continua a depender de um pressuposto específico, previsto na parte final do nº. 1 do art. 1222 do CC: só é possível se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina.

               Como diz o ac. do STJ de 16/03/2010, citado acima:

         “De qualquer forma, importa, também, dizê-lo, este direito à resolução do contrato só surge, na esfera jurídica do dono da obra, se e na medida em que os defeitos a tornem inadequada ao fim a que se destina (artigo 1222º, nº 1, já citado).

         Esta inadequação só ganha foros de relevo quando a obra realizada se apresenta completamente diversa da encomendada ou quando lhe falta uma qualidade essencial.”

            Ou nos dizeres de Rubino, citado por Antunes Varela, obra citada, pág. 897:

         “a obra deve considerar-se inadequada ao fim a que se destina quando é completamente diversa da encomendada, quando lhe falta uma qualidade essencial pela própria natureza da obra, objectivamente considerada, ou quando lhe falta uma qualidade essencial porque, como tal, foi prevista e querida pelas partes”

               Ora, no caso dos autos, por um lado, já se viu, não se prova a existência de defeitos, e por outro, aqueles que se lhe apontavam não tinham manifestamente nada a ver com estas faltas ou com aquela diversidade, pelo que a resolução não era legalmente possível.

                                                                 *

               Afastada a sentença, por estar errada, cumpre agora aplicar o direito aos factos provados:

               Ora, já se viu – aproveita-se nesta parte a sentença recorrida - que o contrato celebrado é um contrato de empreitada, e que a requerente, empreiteira, procedeu à prestação a que estava obrigada.

               Cabia então à requerida, dona da obra, realizar a sua contra-presta-ção, pagando o preço, excepto se ela pudesse invocar a existência de defeitos que lhe dessem algum dos direitos referidos, ou outro como o da excepção de não cumprimento do contrato (art. 428 do CC). Como não o fez, nada há que a exima da obrigação de pagar o preço, pelo que deve ser condenada nele.

                                                                 *

               Quanto ao preço:

               Os factos 5 e 6 dizem respeito ao preço das fotografias.

               O facto 7 diz respeito à concepção do catálogo. O facto foi retirado dos arts. 3 e 4 da contestação da requerida, e o que ela disse é que o pagou 35% do orçamento da concepção do catálogo, que era de 2400€, e não o que consta do facto.

               Como na motivação da convicção se esclareceu, bem, que só estava em discussão a existência dos defeitos e questões conexas, vê-se que o facto foi dado como provado só com base nas posições assumidas pelas partes e documentos juntos, pelo que este TRC pode modificar a resposta, por se basear em elementos que constam todos do processo (arts. 712/1a) e 713/2, ambos do CPC).

               O mesmo se tem de fazer em relação ao facto 15, já que este facto não se refere a uma factura, mas a duas, e as facturas não são pelo serviço prestado, mas pela parte do serviço prestado que ainda não estava pago (o que resulta das facturas de fls. 22 e 23, dos arts. 3, 4, 5, 7, 8 e 9 da oposição e do alegado nos dois §§ do requerimento inicial).

               Posto isto, o preço em falta, como decorre dos factos 5, 6, 7 e 15, estes dois últimos já corrigidos, é, assim, de: (320€ x 27 = 8.640€) + (75 x 30 = 2.250€) + (2.400€ x 65% = 1.560€) = 12.450€, a que acresce 20% de IVA, num total facturado de 14.940€.

                                                                 *

               Quanto aos juros: a requerente não alegava a data das facturas nem as juntava com o requerimento inicial. O que quer dizer que as datas das facturas não foram alegadas.

               Como o tribunal só se pode servir de factos articulados pelas partes, não há dados que permitam dizer que até ao requerimento inicial se tenham vencido quaisquer juros.

               A partir da notificação da requerida para esta injunção, que serve de interpelação para o cumprimento e constituição em mora (art. 805/1 do CC), passam a vencer-se juros de mora (art. 806/1 do CC), à taxa legal comercial (art. 102 do Cód. Comercial, Portaria 597/2005, de 19/07, Despacho 597/2010, de 04/01, publicado no DRII de 11/01/2010, aviso 13746/2010 no DRII de 12/07/2010 e aviso 2284/2011, de 21/01, no DRII de 21/01) que é de 8%.

                                                                 *

               Quanto ao pedido de 100€ por outras quantias, nem a requerida sabe a que é que a requerente se está a referir, nem este tribunal o pode saber, pelo que é evidentemente improcedente.

               Quanto ao pedido de pagamento da taxa de justiça de 76€: é um pedido que deixa de fazer sentido quando a injunção tem que seguir para julgamento: as custas são determinadas a final e a requerente terá direito apenas ao que resultar da decisão respectiva.

                                                                 *

               Sumário:

               I. As características de uma obra não são, só por si e em regra, defeitos da mesma. II. O ónus da prova de que a prestação não foi realizada nos termos acordados cabe ao que alega o cumprimento defeituoso. III. Sem primeiro exigir ao empreiteiro a eliminação de defeitos, o dono da obra não pode resolver o con-trato, ao abrigo do art. 1222 do CC. IV. A resolução de uma empreitada, ao abrigo do art. 1222 do CC, só é possível se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina.

                                                                 *

               Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogan-do-se a sentença recorrida e condenando-se a requerida a pagar à requerente 14.940€, acrescidos de juros de mora à taxa legal comercial (para já de 8% ao ano), vencidos desde 19/02/2010 e vincendos até integral pagamento, indo absolvida do resto do pedido.

               Custas da acção e do recurso pela requerente e pela requerida na proporção do decaimento (valor da causa para este efeito: 15.183,16€; decaimento da requerente: 100€ + 143,16€).

            

               Pedro Martins ( Relator )

               Virgílio Mateus

Carvalho Martins