Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
486/11.8TBCTB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.212 CRP, 66 CPC, 1 E 4 ETAF
Sumário: 1- O critério para a atribuição da competência material aos tribunais administrativos, é o litígio fundar-se numa relação jurídico-administrativa, por a esta se aplicarem normas de cariz administrativo e/ou, na acção, ser parte ente público que actue ou invoque poderes de “jus imperii” que o coloquem numa posição de superioridade.

2- Em casos de dúvida ou de fronteira, deve atribuir-se a competência ao tribunal que, perante a natureza da causa petendi, do pedido e das demais circunstâncias do caso, esteja em melhor posição para, presumivelmente, decidir com maior celeridade, eficácia e propriedade.

3 – Assim, numa acção em que as partes – Quercus(A.) e concessionária de zona de caça(R.) - não atuam com jus imperii e em que o pedido consiste, nuclearmente, no estabelecimento de uma zona de segurança para protecção de espécies não cinegéticas, quer por aquele critério legal, quer, ao menos, por este argumento teleológico, deve ter-se por materialmente competente o tribunal comum.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

Querqus- Associação Nacional de Conservação da Natureza, instaurou contra R (…), Lda, na sequência de providência cautelar, ação declarativa, de condenação, com processo ordinário.

Pediu, em síntese:

Que a ré seja condenada:

- a ver traçado em redor dos ninhos um perímetro correspondente ao território vital de cada espécie;

-  a abster-se de praticar ou permitir que outros pratiquem caça dentro de tal perímetro.

-  a ver fixadas sanções pecuniárias compulsórias para garantir o cumprimento.

Invocou, em resumo:

 Atos de envenenamento que, voluntária ou involuntariamente, provocaram a morte de espécies  protegidas não cinegéticas.

 

A ré contestou, alegando, para além do mais, a incompetência material do tribunal comum, pugnando pela competência dos tribunais administrativos.

No despacho saneador foi indeferida tal exceção.

2.

Inconformada recorreu a ré.

Rematando as suas alegações com as seguintes, nucleares, conclusões:

1ª- A exploração e gestão dos recursos cinegéticos é concessionada aos particulares por um contrato administrativo.

2ª- A autora, com o seu pedido, pretende modificar o conteúdo do ato administrativo que concessionou a Zona de Caça Turística (ZCT), com a extensão e configuração constantes na Portaria 1070/2009 de 18.09, impondo limitações à gestão ou exploração de um bem do domínio publico: a caça.

3ª – A competência para a criação de áreas de refugio cabe ao membro da área do governo responsável pela agricultura.

4ª – O pedido dos autos é de natureza administrativa.

5ª- A decisão é inconstitucional, por violação do artº 212º nº3 da CRP e ilegal, por violação do artº 66º do CPC, 1º nº1 e 4º nº1 al.a) do ETAF, 66º, 30º nº2, 51º nº1 al.a) e 54º nº1 do DL 2/2011 de 06.01.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685º-A do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Incompetência material do tribunal recorrido e competência do tribunal administrativo.

4.

Apreciando.

4.1.

Na providência de que este processo constitui causa principal, já a requerida tinha colocado a questão da incompetência, a qual foi julgada improcedente por acórdão deste tribunal, tendo neste aresto sido decidido com base nos seguintes, essenciais, fundamentos, outrossim acolhidos na decisão  ora posta sub sursis:

 «a LAB não estabelece qualquer competência em matéria de foro, pois que esta resulta das leis-quadro que definem a competência dos diversos tribunais. A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial (…). É entendimento pacifico o de que para determinação da competência em razão da matéria é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo autor, pois é dessa forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante. (…). É o artigo 4º do ETAF (…) a norma que delimita o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.

(…). Com a entrada em vigor do novo ETAF, o acto de gestão publica, quer na sua vertente teleológica, quer por referência ao exercício do jus imperii por parte do agente ou órgão da pessoa colectiva de direito público, deixou de ser o critério exclusivo para a atribuição dos tribunais administrativos: não estão hoje excluídos da jurisdição administrativa os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, bastando que ambas ou uma das partes seja ente de direito público. Tal possibilidade encontra-se claramente consagrada na alínea g) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF. Deixou de relevar, para a determinação da competência, que os actos praticados sejam qualificados como de gestão pública ou de gestão privada, apenas bastando estar-se em presença de uma relação jurídico administrativa, ou seja, aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a Administração. (…). No caso vertente, não está em causa uma relação contratual, nem a Requerida nem a Requerente surgem como entidades dotadas de jus imperii na relação que é discutida na causa de pedir (…)”».

4.2.

Concorda-se com esta fundamentação, a qual, mutatis mutandis, se aplica ao presente processo, aliás sucedâneo daqueloutro e com acervo decidendo substancialmente idêntico.

Quiçá ad abundantiam dir-se-á o seguinte.

As previsões do artº 212º nº3 da Constituição e do artº 1º do ETAF, que atribuem competência aos tribunais administrativos, abrangem apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais).

Verifica-se assim que para a atribuição de competência material aos tribunais administrativos, desvalorizou-se a distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada – sendo, aqueles, atos que visando a satisfação de interesses coletivos, realizam fins específicos do Estado ou outro ente público-, bastando estar-se perante uma relação jurídico administrativa.

Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: primeira, as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; segunda, as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.

Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal - cfr Gomes Canotilho e Vital Moreira - “Constituição da República Portuguesa Anotada” 3 ed. pág. 815

Ou seja: «são relações jurídicas administrativas e fiscais as relações de Direito Administrativo e de Direito Fiscal, que se regem por normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal. Este é, aliás, o critério que melhor corresponde à tradição do nosso contencioso administrativo, que não adopta um critério estatutário, tendendo a submeter os litígios que envolvam entidades públicas aos tribunais judiciais, quando a resolução de tais litígios não envolva a aplicação de normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal» - JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2007, págs. 117 a 118.

4.3.

Não obstante há que ter presente que no artigo 4.° do ETAF, enunciam-se, exemplificativamente, as questões ou litígios, sujeitos ou excluídos do foro administrativo, umas vezes de acordo com a cláusula geral do artigo 1.°, outras em desconformidade com ela.

Assim, «é preciso, não confundir os factores de administratividade de uma relação jurídica com os factores que delimitam materialmente o âmbito da jurisdição administrativa, pois …há litígios que o legislador do ETAF submeteu ao julgamento dos tribunais administrativos independentemente de haver neles vestígios de administratividade ou sabendo, mesmo, que se trata de relações ou litígios dirimíveis por normas de direito privado. E também fez o inverso: também atirou relações onde existiam factores indiscutíveis de administratividade para o seio de outras jurisdições» - Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I págs. 26 e 27.

 Sendo certo ainda que, como é consabido: «A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica apresentada pelo autor na petição inicial, independentemente do mérito ou demérito da pretensão deduzida. É na ponderação do modo como o autor configura a acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, e tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exacta configuração da causa, que se deve guiar a tarefa da determinação do tribunal competente para dela conhecer» -. Ac. do STJ de de 06.05.2010, p. 3777/08.1TBMTS.P1.S1.

Finalmente e  máxime nos casos mais intrincados, duvidosos ou de fronteira, é admissível e até curial o chamamento de  um argumento de eficácia, celeridade  e boa decisão da causa, pelo que: «A atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pelo autor, projectando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto, a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, não havendo, caberá ela, subsidiária e residualmente, aos designados “tribunais comuns”» -  Ac. do STJ de 12.02.2009,  dgsi.pt, p. 08A4090, citando ainda os Acs. do STJ de 27.05.03, p. 03A1376 e de 11.12.03, p. 03B3845.

4.4.

In casu não intervém litigante que atue na qualidade de órgão da administração dotado de poderes públicos  e em superioridade relativamente ao outro.

Depois, bem vistas as coisas, a autora não formula pedido e alega causa petendi para  apreciação e perspetivação dos quais, sejam, única ou  até essencialmente, determinantes, regras de direito administrativo.

No fundo ela assaca à ré uma responsabilidade civil aquiliana que, pelo menos essencial ou determinantemente, pode e deve ser apreciada por aplicação, ou co-aplicação, das regras de direito privado comum.

Assim, no mínimo, é duvidoso que a competência do tribunal administrativo advenha do artº 4º nº1 al. a) do ETAF, quando estatuí que:

1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

Nem sendo atendível, sdr., o argumento da recorrente segundo o qual, em caso de procedência da ação,  adviriam limitações à gestão ou exploração de um bem do domínio publico: a caça, o  implicaria a modificação do conteúdo do ato administrativo que concessionou a Zona de Caça Turística (ZCT), com a extensão e configuração constantes na Portaria 1070/2009 de 18.09, p que apenas por ato administrativo pode ser determinando

É que o objeto imediato da ação e o bem jurídico que com ela se pretende tutelado: proteger  espécies não  cinegéticas,  não se atém a tal modificação, antes esta se revelando apenas um meio para a concretização do pedido e a efetivação da tutela, e podendo porventura a situação, rectius exploração, retornar ao stato quo ante se fenecerem os motivos, - atos - que, a provarem-se, determinarem a restrição impetrada.

Finalmente e se mais não houvesse, que há, como se viu, sempre seria convocável o mencionado argumento atinente à celeridade e eficácia da decisão, pois que, tal como a autora gizou a causa, o Sr. Juiz do tribunal a quo está em tão boas ou melhores condições do que o seu colega do tribunal administrativo para mais depressa e bem a julgar.

5.

Sumariando:

I- O critério para a atribuição da competência material aos tribunais administrativos, é o litígio fundar-se numa relação jurídico-administrativa, por a esta se aplicarem normas de cariz administrativo e/ou, na ação, ser parte ente publico que  atue ou invoque poderes de “jus imperii” que o coloquem numa posição de superioridade.

II- Em casos de dúvida ou de fronteira, deve atribuir-se a competência ao tribunal que, perante a natureza da causa petendi, do pedido e das demais circunstancias do caso, esteja em melhor posição para, presumivelmente, decidir com maior celeridade, eficácia e propriedade.

III – Assim, numa ação em que as partes – quercus(A.) e concessionária de zona de caça(R.) - não atuam com jus imperii e em que o pedido consiste, nuclearmente, no estabelecimento de uma zona de segurança para proteção de espécies não cinegéticas, quer por aquele critério legal, quer, ao menos, por este argumento teleológico, deve ter-se por materialmente competente o tribunal comum.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Carlos Marinho