Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
30/11.7GECTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: FURTO QUALIFICADO
TENTATIVA
Data do Acordão: 02/01/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 22º Nº 2 E 203º N.º 1 E 204º N.º1 ALÍNEA F) CP
Sumário: Cometem um crime de furto qualificado, sob a forma tentada, os arguidos que, atuando em comunhão de esforços e execução de prévio acordo e com o propósito de se apropriarem dos bens aí existentes, fazendo-se transportar numa viatura, se dirigem às instalações de um estaleiro, as quais se encontravam vedadas com uma vedação com cerca de 2 metros de altura estanque, cortam a referida vedação e logram entrar no seu interior e, uma vez ali, e antes de concretizarem o seu intento apropriativo, são surpreendidos pelo avistamento de elementos da GNR que chegavam, que depois os viriam a intercetar a cerca de 50 metros do local, nas traseiras do dito estaleiro.
Decisão Texto Integral: 1. Nos autos de processo sumário nº 30/11.7GECTB do 2º juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, em que são arguidos,

            A..., residente em … ;

            B..., residente em …;

            C..., residente em ….

            D..., residente em ….

            E..., residente em …

E a quem é imputada a prática, a cada um deles, em co-autoria material, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo art. 203° e 204°, n.º l e 2 al. e) do Código Penal e um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art. 86°, n° 1, al. d) da Lei n° 57/006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei n° 17/2009. de 6 de Maio.

             
            Procedeu-se a julgamento e a final foi decidido:
Absolver os arguidos, da prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art. 86°, n° 1, al. d) da Lei n° 57/006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei n° 17/2009. de 6 de Maio.
Condenar os arguidos A..., B..., C..., D... e E... pela prática do crime de furto qualificado previsto e punível nos termos das disposições conjugadas dos artigos 203º n.º 1 e 204º n.º1 alínea f) do Código Penal sendo, cada um dos arguidos, A..., B..., D... e E... na pena de 260 dias de multa, correspondendo a cada dia a quantia de €6,00, ou seja, na multa global de €1.560,00 para cada um e o arguido C... na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, com regime de prova, mediante plano de reinserção social a elaborar pelos serviços de reinserção social.

            2. Da decisão recorrem os arguidos, que formulam as seguintes conclusões:

            2.1. Face à prova produzida impõe-se a alteração da matéria de facto constante dos pontos I, II e III, que foi incorrectamente julgada e dada como provada, devendo dar-se como não provado que os arguidos tenham cortado a vedação e entrado no estaleiro bem como actuado com o propósito de se apoderarem dos objectos ali existentes ou não tendo concretizado o seu propósito apenas por razões alheias à sua vontade.

            2.2. Os meios de prova que impõem decisão diversa são os seguintes:

            - Depoimento de … , gravado (identificado no suporte de gravação).

            - Depoimento de …, Presidente do Conselho de Administração da sociedade queixosa, gravado (identificado no suporte de gravação).

            - Depoimento de …, cabo da GNR, gravado (identificado no suporte de gravação).

            - Depoimento de … , cabo da GNR, gravado (identificado no suporte de gravação).

            2.3. A sentença incorreu em erro na apreciação da prova nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP, devendo tais factos ser considerados como não provados.

            2.4. O elemento subjectivo do tipo de crime que seja dado como provado apenas baseado em presunções ou ilações.

            2.5. Pelo que, perante dúvidas sérias, deveria o tribunal a quo ter aplicado o princípio do in dubio pro reo e ter absolvido os arguidos.

            2.6. Não o tendo feito, foi violado aquele princípio.

            2.7. Por sua vez, a conduta dos arguidos não consubstancia qualquer acto de execução do crime de furto.

            2.8. Pelo que não se verificam preenchidos os elementos objectivo e subjectivo para a punição da tentativa nos termos dos artigos 21º e 22º, do CP.

            2.9. Devem pois os arguidos ser absolvidos.      

            3. O Ministério Público veio responder, dizendo em síntese:

            3.1. Os meios de prova indicados pelos recorrentes não impõem decisão diversa daquela que foi proferida com base nos factos que foram devidamente dados por provados.

            3.2. Resultando inequivocamente da prova produzida que foram os arguidos que cortaram a vedação e entraram no estaleiro com o propósito de se apoderarem dos objectos ali existentes.

            3.3. A parte dos depoimentos assinalada pelos recorrentes não tem a virtualidade de contrariar as conclusões que levaram a dar como provados os factos, prova que não tem que ser directa podendo ser indirecta ou indiciária.

            3.4. Também não têm razão os arguidos quando afirmam que não foram praticados actos de execução do crime de furto que permita a sua condenação a título de tentativa. Torna-se evidente que ao cortarem a vedação e a introduzirem-se no estaleiro, os arguidos executaram um elemento do crime de furto.

            3.5. Deve assim ser mantida a sentença  de condenação.

            5. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da corroboração da reposta do MºPº em primeira instância, concluindo igualmente pela improcedência do recurso.

            6. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.


II
       São os seguintes os factos dados como provados e não provados na decisão recorrida:

            2.1. Julgam-se provados os seguintes factos:


I. No dia 29 de Maio de 2011, no período compreendido entre as 20H10 e as 23 H51, os arguidos, actuando sempre em comunhão de esforços e execução de prévio acordo e fazendo-se transportar no veículo de matrícula … , marca … , de cor cinzenta, dirigiram-se às instalações do estaleiro da firma " … ", sito no sítio do … , os quais se encontravam vedadas com uma vedação com cerca de 2 metros de altura estanque, com o propósito de se apoderarem de objectos ali existentes
II. Uma vez ali os arguidos cortaram a referida vedação e lograram entrar no interior de tal estaleiro, tendo momentos após, e antes de concretizarem o seu intento apropriativo, sido surpreendidos pelo avistamento de elementos da GNR que chegavam, que, depois os interceptaram a cerca de 50 metros do local, nas traseiras do dito estaleiro.
III. Os arguidos actuaram com o propósito de se de apropriarem de objectos ali existentes seguramente de valor superior a € 102,00, designadamente alumínio no valor de € 1200, cobre nu no valor de € 1.200,00, seccionadores, com o valor unitário de €700,00, quadros QGBT no valor unitário de € 900 , quadro no valor € 1.800 e 6000 litros de gasóleo, integrando-os no seu património, sabendo que tais objectos não lhe pertenciam e que actuavam contra a vontade do legítimo proprietário, não concretizando tal propósito apropriativo apenas por razões alheias à sua vontade.
IV. Foram encontrados na posse dos arguidos um alicate de corte, uma chave de fendas em ferro, um gorro, com as características descritas no auto de exame de fls 96 e 97, cujo teor aqui se dá por reproduzido, tendo o arguido C... um par de luvas látex no bolso do casaco, o arguido A... encontrava-se a usar um par de luvas em cabedal preto e o arguido E... um par de luvas em pano, todas com as características descritas no referido exame.
V. Actuaram os arguidos de forma livre e voluntária, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou que
VI. Os arguidos A..., B..., D... e E... não têm antecedentes criminais.
VII. O arguido C... foi condenado em 2000, pela pratica de um crime de furto qualificado em pena de multa, em 2001 pela prática de um crime de roubo em pena de prisão suspensa na sua execução, em 2002 pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa, em 2002 também pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em pena de prisão suspensa na sua execução, em 2005 pela prática de crimes de roubo na pena única de 5 anos e 7 meses de prisão efectiva, tendo a pena sido declarada extinta em 22/08/2007.

2.2. Factos não provados

Para além dos que resultam logicamente excluídos da matéria supra dada como provada e das alegações que revestem carácter meramente conclusivo ou de direito, não se provou que:
 
A. Os arguidos pretendiam transportar no referido veículo os objectos de que se apoderassem.
B. Os arguidos abriram a porta do edifício onde se encontravam localizada a arrecadação dos equipamentos mais valiosos.
C. Os arguidos, sempre actuando em comunhão de esforços e execução de prévio acordo, traziam consigo no interior da bagageira do referido veículo um taco de baseball, descrito no exame de fls 125, sendo que pelas suas características que bem conheciam, susceptível de ser usado como objecto de agressão e sem justificarem a sua posse, sabiam ser de detenção proibida por lei.


III

Questões a apreciar:

1. A impugnação da matéria de facto.

2. A violação do princípio do in dubio pro reo.

3. A falta de pressupostos da tentativa.


IV

Apreciando:

1ª Questão: a impugnação da matéria de facto.

1. Elegem os recorrentes os pontos I, II e II da matéria de facto dada como provada – supra transcritos e que em síntese se traduzem no corte da vedação das instalações da empresa A.M Correia, de terem entrado no interior do estaleiro e pretenderem apoderar-se de alguns bens aí encontrados, só não o fazendo por terem sido surpreendidos pelos agentes da GNR -, como sendo aqueles em que existiu um erro de julgamento do tribunal a quo ao dar tal matéria como provada.

            Nesta impugnação da matéria de facto indicam os recorrentes os meios de prova que em seu entender impõem decisão diversa e que são os depoimentos das testemunhas … , Presidente do Conselho de Administração da sociedade queixosa,  … , cabo da GNR e … , também cabo da GNR.

            O depoimento destas testemunhas foi parcialmente transcrito pelos recorrentes e versa sobre o aspecto de nenhuma delas ter visto, por um lado, os arguidos a cortar a vedação e, por outro, não terem sido vistos no interior das instalações da empresa onde se encontravam os bens susceptíveis de serem objecto de apropriação.

            2. Na abordagem desta questão, devem distinguir-se dois aspectos de diferente natureza:

            - Um respeitante ao corte da vedação e entrada nas instalações da empresa.

            - Outro referente aos potenciais bens susceptíveis de apropriação pelos arguidos.        Diz-se susceptíveis de apropriação porque estamos perante mera tentativa de furto e não furto consumado, como se sabe. E, por esta via, será mais fácil perceber um segundo momento da impugnação dos arguidos que reproduzem nos depoimentos transcritos e que se reconduz ao facto de os arguidos não terem consigo quaisquer vasilhas para transportar gasóleo, logo, que não pretenderiam apropriar-se deste.

            3. Começando pelo corte da vedação e entrada dos arguidos nas instalações da empresa.

            3.1. O tribunal a quo motiva a matéria de facto que foi dada como provada, nos seguintes elementos de prova:

            Os arguidos remeteram-se ao silêncio.

A testemunha … , encarregado geral do estaleiro em causa, deu conta ao Tribunal dos bens que se encontravam no referido estaleiro, confirmando o teor das fotografias existentes nos autos, bem como das circunstâncias de tempo e local da ocorrência dos factos, tendo ainda fornecido ao Tribunal os elementos tendentes á avaliação dos mesmos, explicando como teve noticia dos factos em apreço, tendo sido alertado telefonicamente pelas 23h48m do dia 29 de Maio de 2011, através do sistema de videovigilância instalado no local, que se verificava a introdução de pessoas nos instalações do estaleiro da firma " … ", sito no sítio … , as quais visualizou em tempo real, tendo-se, de imediato dirigido àquelas instalações, onde chegou cerca de 12 minutos depois e constatou que a vedação estanque de cerca 2 metros de altura se encontrava cortada, tendo, após saído do estaleiro, avistado os arguidos, já na presença dos agentes da GNR, deitados no chão. A testemunha depôs de forma circunstanciada, isenta e completa, apresentando bastante credibilidade aos olhos do Tribunal.

A testemunha … , presidente do concelho de administração da " … ", de forma circunstanciada e denotando um conhecimento preciso e fundado da matéria acerca da qual depôs, elucidou o Tribunal acerca dos bens que se encontravam dentro do estaleiro, susceptíveis de apropriação, o qual se mostrava totalmente vedado, e, bem assim, dos valor dos mesmos, confirmando o teor das fotografias existentes nos autos.

As testemunhas  … e … , agentes da GNR, explicaram que receberam uma comunicação para se deslocarem ao local, por haver noticia desconhecidos se haviam introduzido no estaleiro em causa, onde já, anteriormente, tinham ocorrido furtos; referiram que demoraram cerca de 10 minutos a chegar, tendo-se, após transitarem com a viatura policial na estrada que passa em frente às ditas instalações, exactamente pelas 23h58m, dirigido, através de um caminho de terra batida para as traseiras do estaleiro, onde avistaram estacionada, escondida atrás de um depósito de água, a viatura referida no ponto 1. da matéria de facto provada, e esperaram poucos minutos, sendo certo que nenhum outro veiculo ou pessoa se encontrava no local; pouco tempo depois, ouviram vozes vinda do estaleiro, que se aproximaram e, então, verificaram tratar-se dos arguidos, tendo a 1ª testemunha disparado tiros para o ar e dado ordem para estes se deitarem no chão, o que, de imediato, fizeram. A 1ª testemunha referiu que dois dos arguidos traziam postas luvas e deles trazia no bolso do casaco luvas de látex, conforme descrito na matéria de facto provada., tendo sido, também, atirado para o chão um gorro, não sabem dizer por quem. As testemunhas referiram não saber a quem pertencia o bastão encontrado dentro da viatura. Referiram que o local é escuro e, àquela hora da noite não passa por ali ninguém, sendo que o caminho onde os arguidos foram surpreendidos apenas permite aceder ao estaleiro em causa. As testemunhas explicaram que muitos dos materiais que se encontravam no estaleiro eram passíveis de ser transportados no veículo, designadamente os cabos de cobre e alumínio, devido á sua maleabilidade. As testemunhas referiram que a rede estanque que veda o estaleiro se mostrava cortada, ao tamanho de uma porta, tendo sido encontrado dentro do veículo um alicate com aptidão para proceder a esse corte. As testemunhas depuseram de forma isenta, circunstanciada, espontânea e denotando um conhecimento directo e preciso dos factos objecto dos respectivos depoimentos, que foram considerados credíveis aos olhos do Tribunal,

Quanto à situação familiar e económica dos arguidos nada se apurou em face do silêncio dos arguidos.

O Tribunal fundou, ainda, a sua convicção no Auto de exame de f1s 96 a 97 e de fls  125, nos documentos de fls. 86 a 93, na informação de fls. 166, nas fotografias de fls 47 a 48, de fls 115 a 121 e 167 no auto de visionamento de CD de fls. 43 e nos CRC's de fls 79 a 81,83,98 a 105.

            3.2. Perante os depoimentos daquelas testemunhas, o julgador equaciona

uma descrição/narração dinâmica dos acontecimentos, nos seguintes termos:

- pelas 23h48m do 29 de Maio de 2011 a testemunha  … é contactado telefonicamente, através do sistema de videovigilância instalado nos estaleiros da firma " … ", sito no sítio … , que tinha ocorrido a introdução de pessoas estranhas, o que a testemunha visualizou em tempo real, tendo-se descolado para o local (o que resulta do depoimento da testemunha em causa).

 - Pelas 23h58m a GNR, os agentes da GNR supra identificados, passam, circulando na viatura policial, em frente ao estaleiro e dirigem-se, depois, através de um caminho de terra batida para as traseiras daquelas instalações industriais[1].

 - Pelas 23h58m são registados dois indivíduos a correr no interior do estaleiro pela câmara de videovigilância (o que resulta do auto de visionamento de fls. 43).

 - Alguns minutos depois, os arguidos são surpreendidos nas traseiras do estaleiro, onde haviam estacionado o veículo referido no ponto 1. da matéria de facto provada (escondido atrás de um depósito de água), pelos militares da GNR, vindos das instalações do referido estaleiro, envergando, dois deles, luvas e, um deles, trazendo no bolso do casaco, também, luvas de látex, não tendo sido apresentada qualquer justificação para a utilização daqueles objectos, e não se mostrando o uso dos mesmos minimamente compatível com as condições meteorológicas que se faziam sentir à data, sendo notório que nos encontrávamos em período pré-estival e fazia sentir-se bastante calor, pelo que se impõe concluir, à luz de juízos de experiência comum e de normalidade do acontecer, que se tratam de objectos relacionados com a prática do ilícito que os arguidos decidiram cometer, na vertente de ocultação das impressões digitais dos seus autores e, logo, da prova da prática do crime.

- Verificou-se que a vedação estanque com cerca de 2 metros de altura que veda o estaleiro se encontrava cortada, tendo sido encontrado na posse dos arguidos um alicate de corte, com aptidão para a realização daquela operação (como resulta do auto de exame e avaliação de objectos, constante de fls. 96 dos autos).

- O local é ermo e não se encontrava no momento da chegada dos militares da GNR, qualquer outra pessoa, além dos arguidos, ou viatura referida no ponto 1. da matéria de facto provada, que, como se disse, estava escondido, não tendo os arguidos apresentado qualquer explicação para o facto.

            3.3. Finalmente o tribunal a quo faz o seguinte exame crítico da prova e conclui:

Tais factos constituem indícios sérios e seguros, com a virtualidade para, através de raciocínios e juízos de experiência comum e do próprio julgador permitirem inferir outro(s) facto(s) que são os sujeitos a julgamento, in casu, a autoria da tentativa da prática do crime de furto qualificado previsto e punível pelo artigo 204º n.º alínea f) do Código Penal, nada impedindo que a prova indiciária, por si, na ausência de prova directa, sirva para fundamentar uma séria convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados consequente condenação[2].

Na verdade, da conjugação de tais indícios resulta a conclusão inequívoca que eram os arguidos quem se encontrava no interior do estaleiro, tendo levado a cabo o corte da vedação do mesmo, na prossecução do intuito criminoso a que se predispuseram, eu que apenas não concretizaram por razoes alheias à sua vontade (in casu o avistamento da chegada de elementos da GNR), do qual é revelador o uso de luvas por alguns dos arguidos, bem como o facto de terem estacionado a sua viatura de forma escondida, o que, também, permite, à luz dos mesmos juízos, concluir pela verificação dos factos plasmados no ponto V. da matéria de facto provada.

3.4. O que se pode dizer desta motivação do tribunal a quo é que a mesma assenta em dois princípios fundamentais do processo penal – o da livre apreciação e o da imediação -, e no que respeita aos factos não directamente presenciados pelas testemunhas, maxime no que respeita ao corte da vedação, que fez aquele tribunal correcto uso da prova indirecta[3] para dar como assentes os factos que deu, ou seja, de que os arguidos cortaram a vedação para se introduzirem no interior das instalações como efectivamente se introduziram.

Sobre a prova indirecta afigura-se esclarecedor o decidido pelo Ac. do STJ de 12.9.2007, proferido no proc. nº 07P4588, consultável na base de dados do ITIJ:

            I - A prova do facto criminoso nem sempre é directa, de percepção imediata; muitas vezes é necessário fazer uso dos indícios.
         II -
“Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura” (J. M. Asencio Melado, Presunción de Inocência y Prueba Indiciária, 1992, citado por Euclides Dâmaso Simões, in Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 205).
         III - Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra.
         IV - A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.
         V - O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência.

            3.5. Deste conceito de prova indirecta com facilidade se infere que andou bem o Tribunal a quo em todo o raciocínio que fez da conjugação dos factos conhecidos[4] para inferir o facto desconhecido – o corte da vedação – e imputá-lo aos arguidos.

            Afigura-se uma conclusão de acordo com as mais elementares regras da experiência, óbvia, que não surpreende ninguém nem o designado cidadão médio ou bonnus pater familae.

            Irrazoável ou incompreensível seria não chegar à conclusão a que chegou o julgador.

            Pois, sendo todos os arguidos residentes no lugar de … , cabe perguntar o que faziam estes por volta das 23,00 horas num lugar sito no concelho de … , a cerca de duas centenas de Kms, num lugar ermo, onde apenas existiam as instalações da empresa? Será que iam apreciar a beleza de um céu estrelado, longe do reboliço da cidade ou simplesmente procuravam a tranquilidade da noite já quase estival para alternar com a brisa marítima do mar de …? Mas, se assim fosse, as estrelas apreciam-se ou a olho nu ou com um telescópio, não com um alicate de corte! Nem se justificava passear de luvas, logo de látex e muito menos de cabedal, numa noite que primorava pelo calor!

            E que temiam afinal os arguidos, que eram cinco, para esconderem a sua viatura, num local isolado, onde mais ninguém estava nem se esperava que fosse?

            Estas observações em forma de eufemismo, mais não significam ou têm a intenção de revelar o quão injustificável é para os recorrentes a sua presença no local onde foram encontrados e que afinal a sua presença tinha como primeiro e último objectivo o que foi considerado pelo julgador a quo: apropriarem-se de alguns bens das instalações da empresa.

            Pelo que, a apontada transcrição parcial dos depoimentos das testemunhas, contrariamente ao pretendido pelos recorrentes, não cria qualquer dúvida sobre a prática dos factos por estes, antes complementa o puzzle, torna compreensível e lógico todo o desenrolar da acção pelos recorrentes no que respeita à entrada nas instalações e respectiva saída, ou seja, existe uma compreensível harmonia na forma como os factos ocorreram, pois se inicialmente os arguidos, depois de cortarem a vedação, se encontravam sozinhos no interior das instalações e aí puderam ser visionados através do sistema de vigilância pela testemunha … , quando a GNR aí se desloca, que ainda percepciona as vozes dos arguidos no interior de tais instalações, é normal que os arguidos saiam das mesmas e que sejam detidos já fora destas. O facto de poderem ser detidos no próprio interior das instalações ou tê-lo sido junto destas, no circunstancialismo em que o foram, não suscita qualquer alteração relevante para efeitos de dar os factos como provados nos termos exactos em que o foram.

            2ª Questão: a violação do princípio do in dubio pro reo.

            1. Este momento de análise leva-nos inevitavelmente para a apreciação da questão subsequente que tem a ver com a violação do princípio do in dubio pro reo alegada pelos recorrentes. Que manifestamente não existe, desde já se adianta.

            Pois que este princípio assenta em dúvidas sérias, razoáveis, justificadas e fundamentadas. Acontece que a prova produzida e as ilações tiradas, com base na valoração que da mesma foi feita, nem sequer permitem falar de dúvida, muito menos de dúvida séria, razoável e inultrapassável. A prova produzida aponta, sim, de modo inequívoco para concluir como concluiu o tribunal a quo.  

Como escreve Figueiredo Dias in ob. cit., fls. 213 a propósito da presunção de inocência ou do princípio do in dúbio pro reo,

À luz do princípio da investigação, bem se compreende efectivamente que todos os factos relevantes para a decisão ( quer respeitem ao facto criminoso quer à pena ) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídas à “ dúvida razoável” do Tribunal, também não possam considerar-se como “provados”. E se, por um lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo, o Tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova…tem de ser valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio “ in dúbio pro reo”.

            2. A prova produzida assenta na constatação de factos directos de tão forte valor probatório que, por sua vez, confere igual natureza aos factos indirectos, que não existe qualquer fundada razão para chamar aos autos o princípio do in dubio pro reo.

            Pelo que improcede a pretensão dos recorrentes quanto à impugnação da matéria de facto, quer pela via da apresentação de diferente prova quer pela via da invocação deste princípio, no que respeita aos pontos I e II.

            3. Mas se esta conclusão é válida quanto ao corte pelos arguidos da vedação e consequente entrada no interior das instalações – factos dos pontos I e II -, o mesmo já não acontece quanto a todos os factos do ponto III.

            É chegado o momento de apreciar então a impugnação da matéria que foi dada como provada sob o item III e que já supra, no ponto 2, da 1ª questão, se autonomizou das outras.

            Naquele item III deu o tribunal como provado que:

            Os arguidos actuaram com o propósito de se de apropriarem de objectos ali existentes seguramente de valor superior a € 102,00, designadamente alumínio no valor de € 1200, cobre no valor de € 1.200,00, seccionadores, com o valor unitário de €700,00, quadros QGBT no valor unitário de € 900 , quadro no valor € 1.800 e 6000 litros de gasóleo, integrando-os no seu património, sabendo que tais objectos não lhe pertenciam e que actuavam contra a vontade do legítimo proprietário, não concretizando tal propósito apropriativo apenas por razões alheias à sua vontade.

            3.1. E o que se pode dizer sobre este aspecto é tão só que, no circunstancialismo em que os arguidos agiram e do que resultou provado quanto ao meio em que se deslocavam – viatura identificada nos autos – a previsibilidade sobre os bens susceptíveis de apropriação tem que se harmonizar com a capacidade real do porta bagagens do veículo em causa, pois foi o único meio de transporte encontrado. Sempre será possível conjecturar a hipótese de os arguidos aí se deslocarem com outra viatura ou uma segunda vez para levarem outros bens. No entanto, nenhuma destas situações tem qualquer apoio em elementos objectivos que levem a converter esta hipótese em facto real, pelo que tem que ser posta de lado para efeitos de incriminação dos recorrentes.

            E se relativamente a bens como alumínio, cobre ou até um quadro eléctrico, estes seriam susceptíveis de apropriação imediata pelos arguidos, pois poderiam ser acondicionados na mala do veículo, como referem os agentes da autoridade, já quanto ao gasóleo na quantidade de 6000 litros, a sua apropriação, naquele momento, afigura-se praticamente impossível. Quando muito, poderiam os recorrentes apropriar-se de 30 ou 40, vazando-o para o próprio depósito da viatura, cujo combustível é precisamente o gasóleo – v. doc. de fls. 48.

            Pelo que se afigura temerária a conclusão do julgador neste particular aspecto ao dar como assente a intenção de os arguidos se apropriarem da totalidade do gasóleo.

            De todo o modo, esta alteração na matéria de facto em nada altera quer a qualificação jurídica dos factos quer a responsabilidade final dos arguidos, dada a natureza do crime, a forma de consumação e o valor dos restantes bens mesmo excepcionando o gasóleo.

             

            3ª Questão: a falta de pressupostos da tentativa.

            1. Entendem os recorrentes que não foram praticados actos de execução do crime em que causa para que possam ser condenados como tentativa do crime de furto.

            Sem razão, diga-se mais uma vez.

            Os actos de execução são definidos no artigo 22º, nº2, do Código Penal, contando-se entre eles:

            a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;

            b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou

            c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.

            2. É para nós notório que os actos praticados pelos arguidos do corte da vedação e a sua introdução no interior das instalações da empresa onde se encontravam os bens susceptíveis de apropriação, são preliminares mas também necessários e praticamente “obrigatórios” para que, naquelas circunstâncias, os arguidos se apropriem dos bens em causa. O que não fizeram apenas pela chegada imprevista dos agentes da GNR.

            Mais se pode afirmar que estes actos de execução cabem perfeitamente na noção que os recorrentes referem nas suas alegações, citando a propósito um acórdão desta Relação de Coimbra, de 9.2.2009, dizendo o seguinte:

            “Os actos de execução hão-de conter já, eles próprios, um momento de ilicitude, pois ainda que não produzam a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime consumado, produzem já uma situação de perigo para esse bem”.

            Os factos provados integram-se nesta definição em perfeita harmonia e de tal forma que pode afirmar-se que faltava apenas o acto seguinte, de pegar nos bens e trazê-los, para se passar da mera tentativa para a consumação do crime. Como o portão não estava aberto e o lugar em si mesmo não está aberto e acessível ao público, para os arguidos se aproximarem dos bens em causa, tiveram que cortar a vedação – para facilitar ou permitir a entrada -, o que só por si é já um acto ilícito; e entraram no interior das instalações – o que constitui outro acto ilícito.

            Improcede, assim, a argumentação dos recorrentes em não ver preenchida a tentativa do crime por que foram condenados.


V

DECISÃO

Por todo o exposto, decide-se:

1. Julgar não provada a intenção dos arguidos se apropriarem do depósito de gasóleo de 6000 litros que consta do facto III.

2. Julgar não provada a demais impugnação da decisão recorrida quer quanto à matéria de facto quer quanto às questões de direito suscitadas, negando assim provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, pois que a questão do depósito do gasóleo agora dada como não provada em nada afecta ou altera aquela.

             

Custas a cargo dos recorrentes com a taxa de justiça que se fixa em 5 (cinco) UCs.

Luís Teixeira (Relator)

Calvário Antunes

[1] Importa referir que, segundo o depoimentos dos agentes da GNR, dirigiram-se ao local na sequência uma comunicação para se deslocarem ao local, por haver noticia que desconhecidos se haviam introduzido no estaleiro em causa, onde já anteriormente tinham ocorrido furtos.
[2] cf. Ac. RC de 02-02-2000, CJ, I, 51, onde se refere ser até defensável a superioridade da prova indiciária, entre elementos objectivos e regras objectivas, sobre outro tipo de provas, nomeadamente a prova directa e testemunhal, pois que nesta também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais difícil de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.
[3] Indicam-se na decisão recorrida doutrina e jurisprudência citada sobre a natureza e relevância desta prova.
[4] Desde ao visionamento dos indivíduos através do sistema de videovigilância nas instalações da empresa, de os agentes da GNR ainda terem visto pelo menos dois indivíduos no interior dessas instalações, de mais ninguém se encontrar no local para além dos arguidos, de este local ser ermo, de ser de noite, de os arguidos terem o carro onde se faziam transportar, escondido, de trazerem consigo alicate de corte, chave de fendas em ferro, e três pares de luvas.