Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9-B/1991.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
CABEÇA DE CASAL
PROVA PERICIAL
ALTERAÇÃO
PEDIDO
Data do Acordão: 05/14/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 573º E 2093º, NºS 1 E 2 DO C.CIVIL; 1014º E 1016º CPC.
Sumário: I – O Direito Civil português disponibiliza uma previsão, com carácter geral, da obrigação ou do dever de informar (artº 573º do Código Civil). Doutrina e jurisprudência são acordes em que a constituição dessa obrigação de informação exige a verificação cumulativa de dois pressupostos: a dúvida fundada, do titular de um direito, sobre a sua existência ou o seu conteúdo; a existência de outrem em condições de prestar as informações necessárias (artº 573º do Código Civil).

II - Caso concreto e particular de prestação de informações é o de prestação de contas, obrigação que, todavia, deve ser entendida não como um simples dever de informação sobre o objecto do direito de outrem, mas como obrigação de informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documento (artº 1016º do CPC).

III - Exemplo de vinculado, por disposição legal específica, ao dever de prestar de contas, é o cabeça-de-casal (artº 2093º, nº 1 do Código Civil).

IV - Se não cumprir voluntaria ou espontaneamente essa obrigação – i.e., se não oferecer as contas da sua administração do património hereditário – essas contas podem ser-lhe exigidas, quer dizer, o cabeça-de-casal pode ser forçado a prestá-las (artºs 1014º e 1014º-A, nº 1 do CPC).

V - Aquele que exija a prestação de contas deve alegar, como causa petendi, que tem direito a essa prestação de contas e que o réu tem a obrigação de as prestar, envolvendo o pedido de prestação de contas, necessariamente, o pedido de condenação no eventual saldo final.

VI - No tocante às contas prestadas pelo cabeça-de-casal, o eventual saldo positivo deve ser distribuído pelos interessados, segundo o direito de cada um e não no momento do preenchimento dos respectivos quinhões (artº 2093º, nº 2 do Código Civil).

VII - A acção de prestação de contas deve ser proposta por todos os interessados, porque a falta de qualquer deles pode impedir que a decisão seja definitiva. Trata-se, portanto, de um caso de litisconsórcio necessário natural (artº 28 nº 2 do CPC).

VIII - A simples fixação do objecto da perícia não traduz um acto significativo de uma vontade funcional de deferimento da modificação do pedido, não é acto concludente e inequívoco de admissão da ampliação desse mesmo pedido. A decisão de fixação do objecto da perícia não traz como decisão implícita o deferimento da alteração do pedido, dado que aquele julgamento implícito não se configura como consequência necessária, irrecusável do julgamento expresso.

IX – De um requerimento de ampliação do objecto da perícia relativa a um só bem da herança não se deduz, com toda a probabilidade, um requerimento de ampliação do pedido de prestação de contas da administração de todos os bens dessa mesma herança. Em qualquer caso, o simples requerimento de ampliação do objecto da perícia não configura, tacitamente, um requerimento de ampliação do pedido, dado que esse acto não é significativo duma vontade negocial pré-existente, não é um facto concludente ou significativo – facta concludentiam, facta ex quibus voluntas concludipoteste.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

A… propôs, no longínquo ano de 1996, no 2º Tribunal Judicial da Comarca de Figueira da Foz, por apenso ao inventário instaurado por óbito de F…, M… e P…, contra o cabeça-de-casal, B…, acção especial de prestação de contas, pedindo que o último lhe prestasse contas da sua administração.

Fundamentou esta pretensão no facto de o demandado haver assumido o cabeçalato com a morte do primeiro inventariado, ocorrida em 28 de Maio de 1991, tendo passado, nessa qualidade, a receber as rendas, a cobrar dívidas da herança, a receber outros rendimentos e proveitos e, sobretudo, a gerir o estabelecimento comercial, e de não ter apresentado, até então, quaisquer contas aos restantes interessados.

O réu apresentou, no dia 18 de Outubro de 1996, sob a forma de conta-corrente, as contas relativas aos anos de 1991 a 1995, referentes a todos os bens descritos no inventário, com excepção do estabelecimento comercial, e no dia 25 de Novembro de 1997, as conta-correntes daquele estabelecimento, dos anos de 1991 a 1997.

Por despacho de 3 de Julho de 2001, declarou-se que o autor não contestou as contas relativas ao estabelecimento comercial, e, por despacho de 19 de Novembro de 2003, admitiu-se a intervenção principal, ao lado do autor, de F… e L...

Após vicissitudes várias, o réu, P…, requereu, em 16 de Julho de 2007, se procedesse à perícia da contabilidade do estabelecimento comercial, por um único perito de nomeação judicial, tendo como objecto – de harmonia com requerimento incluso a fls. 322 - averiguar se a contabilidade daquele estabelecimento espelha os valores constantes das contas correntes relativas aos exercícios dos anos de 1991 a 1997, juntas em 25 de Novembro de 1997.

O autor, A…, requereu, através de requerimento inserto a fls. 335 - a ampliação do objecto da perícia, para que o perito averiguasse também desde 27 de Novembro de 1991 até 9 de Maio de 2007, qual o foi o volume de compras efectuado pelo estabelecimento comercial, desde 27 de Novembro de 1991 até 9 de Maio de 2207, e, dentro do mesmo lapso de tempo, qual foi o volume de vendas realizado pelo estabelecimento.

                Sobre estes requerimentos recaiu, no dia 21 de Janeiro de 2008, este despacho: Fixo o objecto da perícia nos quesitos de fls. 322 e 335.

                A sentença final da causa – proferida no dia 3 de Março de 2012 – depois de observar que as contas apresentadas em 18 de Outubro de 2006 merecem aprovação e que as contas relativas ao estabelecimento comercial apresentadas pelo réu, referentes ao período compreendido entre Maio de 1991 e Outubro de 1997 (dado que o cabeça-de-casal apresentou contas em 25 de Novembro de 1997) não merecem reparos, concluiu que as contas apresentadas pelo réu deverão ser consideradas válidas, com ressalva do valor de 100$00 a acrescer à despesa – e julgou as contas validamente prestadas, apenas com a correcção aludida.

                O autor e o chamado L… requereram ao Sr. Juiz de Direito a aclaração da sentença, de modo a esclarecer se esta teve em conta a pendência do processo durante todos estes anos em que corre seus termos ou se, inversamente, tinha sido entendido que aquela obrigação legal respeitava tão só ao hiato temporal balizado pelo início do desempenho do cabeçalato e a data da instauração – mas o requerimento foi indeferido, por inexistir qualquer obscuridade ou ambiguidade que justifique o pedido de aclaração.

                O autor e o chamado L… interpuseram recurso ordinário daquela sentença, no qual pedem que seja revogada e se ordene a continuação do processo com a notificação do réu para prestar contas da administração exercida desde 1996 até à data do trânsito em julgado da decisão que, no processo de inventário, o libertou, acolhendo o seu pedido de escusa do exercício do cabeçalato.

                O recorrente rematou a sua alegação, no tocante ao objecto do recurso, com estas conclusões:

 

No petitório respectivo apresentado em Juízo em 1996, fez-se apelo à inexistência de contas

                O réu P… e o chamado, F…, concluíram, na sua resposta ao recurso, pela improcedência dele.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

Os factos que relevam para o conhecimento do objecto do recurso são os que, em síntese apertada, o relatório documenta.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do objecto do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

O Direito Civil português disponibiliza uma previsão, com carácter geral, da obrigação ou do dever de informar (artº 573 do Código Civil). Doutrina e jurisprudência são acordes em que a constituição dessa obrigação de informação exige a verificação cumulativa de dois pressupostos: a dúvida fundada, do titular de um direito, sobre a sua existência ou o seu conteúdo; a existência de outrem em condições de prestar as informações necessárias (artº 573 do Código Civil)[1].

                Caso concreto e particular de prestação de informações é o de prestação de contas, obrigação que, todavia, deve ser entendida, não como um simples dever de informação sobre o objecto do direito de outrem – mas como obrigação de informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documento (artº 1016 do CPC).

Exemplo de vinculado, por disposição legal específica, ao dever de prestar de contas, é o cabeça-de-casal (artº 2093 nº 1 do Código Civil).

                Se não cumprir voluntaria ou espontaneamente essa obrigação – i.e., se não oferecer as contas da sua administração do património hereditário – essas contas podem ser-lhe exigidas, quer dizer, o cabeça-de-casal pode ser forçado a prestá-las (artº 1014 e 1014-A nº 1 do CPC).

                Aquele que exija a prestação de contas deve alegar, como causa petendi, que tem direito a essa prestação de contas e que o réu tem a obrigação de as prestar, envolvendo o pedido de prestação de contas, necessariamente, o pedido de condenação no eventual saldo final[2]. No tocante às contas prestadas pelo cabeça-de-casal, o eventual saldo positivo deve ser distribuído pelos interessados, segundo o direito de cada um e não no momento do preenchimento dos respectivos quinhões (artº 2093 nº 2 do Código Civil)[3].

                A acção de prestação de contas deve ser proposta por todos os interessados, porque a falta de qualquer deles pode impedir que a decisão seja definitiva[4]. Trata-se, portanto, de um caso de litisconsórcio necessário natural (artº 28 nº 2 do CPC). Além de necessário, é um litisconsórcio unitário e recíproco; unitário, uma vez que a decisão tem de ser uniforme para todos os litisconsortes, não podendo a acção ser julgada procedente quanto a um dos interessados e improcedente quanto outros; recíproco, dado que a pluralidade de partes determina um aumento do número de oposição entre elas: na acção de prestação de contas, verifica-se uma oposição entre cada um dos interessados e qualquer dos outros, pois a quantia do saldo que seja atribuída a um deles não pode ser concedida a qualquer outro.

                Aquele de quem é reclamada a prestação de contas pode defender-se alegando, designadamente, que não o liga ao autor qualquer relação jurídica por virtude da qual esteja obrigado a prestar-lhe contas, que essa relação jurídica existe mas dela não deriva a obrigação de prestação de contas ou, por último, que já as prestou, pelo que está desonerado da obrigação correspondente[5].

                Se o réu apresentar as contas[6] e o autor não as contestar, o réu é notificado para oferecer as provas que entender, e, uma vez estas produzidas, o juiz decide (artº 1017 nº 3 do CPC). Nesta hipótese, o juiz ordenará todas as diligências indispensáveis, decidindo segundo o seu prudente arbítrio, podendo considerar justificadas sem documentos as verbas de receita ou de despesa que não é costume exigi-los (artº 1017 nº 5 do CPC).

                Na espécie do recurso, não se discute sequer a exactidão do julgamento das contas prestadas pelo réu – mas simplesmente a dimensão temporal do dever de prestar essas contas a que esse mesmo réu se encontra processualmente vinculado.

                Realmente, a sentença impugnada, salvo diferença de pormenor que para o caso não releva, teve por boas as contas prestadas pelo cabeça-de-casal, nos dias 18 de Outubro de 1996 - relativas à administração de todos os bens integrantes da herança, com excepção do estabelecimento comercial - e 25 de Novembro de 1997, relativas à administração deste último bem hereditário, exercida no período compreendido entre Maio de 1991 e Outubro de 1997.

                Todavia, segundo os recorrentes, a sentença não deveria julgar as contas já prestadas, relativas aquele período, antes deveria ter sobrestado na decisão, até que fossem prestadas as contas relativas ao período posterior, i.e., ao período compreendido entre 1996 e 2007.

                E isto seria assim, no ver dos apelantes, por duas razões: por o pedido – inicial – de prestação de contas ter sido objecto de ampliação por acordo tácito das partes; por o objecto do processo ter passado a ser constituído pela prestação de contas desde a data do óbito do de cujus F… até 9 de Maio de 2007, em razão da formação, sobre a questão da dimensão temporal da prestação de contas, no período posterior à data em que foram já prestadas, de caso julgado formal.

                O acordo tácito sobre a ampliação do pedido resultaria da ampliação, proposta por um dos apelantes, do objecto da perícia, a que o réu se não opôs; o caso julgado formal sobre a questão da dimensão temporal da prestação de contas ter-se-ia formado sobre a decisão que fixou o objecto da perícia. Maneira que – rematam os apelantes - a sentença apelada ao julgar as contas prestadas, relativas ao arco temporal compreendido entre Maio de 1991 e Outubro de 1997 incorreu em nulidade por omissão de pronúncia.

                Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e das alegações de ambas as partes, a questão concreta controversa que esta Relação é chamada a resolver é a de saber se a sentença impugnada deve ser revogada e substituída por acordão que determine o prosseguimento da instância e a notificação do réu – cabeça-de-casal – para prestar as contas da sua administração do património hereditário desde 1996 até ao trânsito em julgado da decisão que o escusou daquele cargo.

                A resolução destes problemas reclama o exame ainda que breve da causa de nulidade, substancial ou de conteúdo, da sentença por omissão de pronúncia e dos pressupostos da alteração, por acordo, do pedido, e dos limites objectivos do caso julgado formal.

                3.2. Nulidade substancial da sentença impugnada.

O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, claro, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras[7]. O tribunal deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões. Por isso é nula, a decisão que deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 1ª parte).

                Não existe, porém, omissão de pronúncia, mas um error in iudicando se o tribunal não aprecia determinado pedido ou certa questão com o argumento de que aquele pedido não foi formulado ou esta questão não foi suscitada, dado que aquela omissão pressupõe uma abstenção infundamentada de julgamento e não uma fundamentação errada para não conhecer de uma dada questão[8].

                Uma leitura ainda que meramente oblíqua da sentença impugnada mostra que a única questão que, do seu ponto de vista, tinha que resolver era a exactidão das contas prestadas – a dois tempos - pelo cabeça-de-casal, que o único objecto que tinha que apreciar eram as contas já apresentadas pelo administrador dos bens integrantes da massa hereditária.

                Vê-se realmente da sentença apelada que fixou como única questão que cumpria solucionar o julgamento das contas prestadas, há já largos anos, pelo cabeça-de-casal, por nenhuma outra ter sido submetido à sua apreciação. Realmente, desde que o autor – como já se declarara por despacho passado em julgado – não contestara as contas apresentadas pelo réu, e já tinham sido produzidas as provas julgadas necessárias, a única coisa que restava era julgar as contas apresentadas.

Sendo isto exacto, então o caso não seria nunca de nulidade por omissão de pronúncia – mas de erro de julgamento, dado que, por um fundamento errado, a sentença se teria abstido de conhecer de uma questão que uma das partes teria colocado à sua atenção.

                A nulidade por omissão de pronúncia decorre da violação, pela sentença, do dever de examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e de analisar todos os pedidos deduzidos por essas mesmas partes. Dito doutro modo: a nulidade por omissão de pronúncia só se verifica quando exista um dever de pronúncia.

                No caso, porém – como melhor abaixo se detalhará - a sentença não tinha que se pronunciar sobre ao pedido de prestação de contas, pelo cabeça-de-casal, relativa á administração da herança, posterior ao compreendido pelas contas já prestadas, dado que um tal pedido se não deve ter por formulado.

                De harmonia com a alegação dos recorrentes, ter-se-ia formado, sobre a questão da dimensão temporal da obrigação de prestação de contas a que o cabeça-de-casal está vinculado, caso julgado formal e, portanto, na lógica da sua argumentação, a sentença impugnada ao limitar, como objecto da sua apreciação, as contas já prestadas, teria desacatado esse mesmo caso julgado. Sendo isto exacto, o caso nem sequer seria de nulidade substancial, por abstenção de pronúncia, mas verdadeiramente de ineficácia formal da sentença recorrida.

                Realmente, a lei, ao considerar que havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma questão concreta da relação processual se cumprirá a que primeiramente tiver transitado em julgado, mostra, sem equívoco, que a extinção do poder jurisdicional provocada pelo proferimento da decisão origina, não a nulidade, mas a ineficácia da segunda decisão sobre o mesmo objecto (artºs 666 nºs 1 e 2 e 675 nº 2 do CPC).

De resto – e como é, aliás, frequente - a arguição da nulidade da sentença não toma em devida e boa conta o sistema a que, no tribunal ad quem, obedece o seu julgamento.

O julgamento, no tribunal hierarquicamente superior, da nulidade obedece a um regime diferenciado conforme se trate de recurso de apelação ou de recurso de revista.

Na apelação, a regra é da irrelevância da nulidade, uma vez ainda que julgue procedente a arguição e declare nula a sentença, a Relação deve conhecer do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 do CPC).

No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 e 731 nº 1 do CPC).

Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso. Exemplo desta última eventualidade é disponibilizado pelo recurso subsidiário. O vencedor pode, na sua alegação, invocar, a título subsidiário, a nulidade da decisão impugnada e requerer a apreciação desse vício no caso de o recurso do vencido ser julgado procedente (artº 684-A nº 2 do CPC). Neste caso, o tribunal ad quem só conhecerá da nulidade caso não deva confirmar a decisão, regime de que decorre a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso, sem o julgamento daquela arguição.

Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum é que a arguição deste vício seja apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação. Sempre que isso ocorra admite-se que o tribunal ad quem possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (artº 137 do CPC).

A arguição da nulidade da decisão – embora muitas vezes assente numa lamentável confusão entre aquele vício e o erro de julgamento – é uma ocorrência ordinária. A interiorização pelo recorrente da irrelevância, no tribunal ad quem, que julgue segundo o modelo de substituição, da nulidade da decisão impugnada, obstaria, decerto, à sistemática arguição do vício correspondente.

3.3. Pressupostos da alteração, por acordo, do pedido.

Podemos dar por certo que de harmonia com o princípio processual instrumental – i.e., que procura a optimização dos resultados do processo – da disponibilidade privada, é às partes que incumbe a definição do objecto do processo, a matéria ou assunto sobre o qual o tribunal é chamado a pronunciar-se. Este objecto é constituído por dois elementos: o pedido e a causa de pedir.

O pedido é o efeito jurídico que se pretende conseguir por via da acção, a forma de tutela jurisdicional requerida para um direito subjectivo ou interesse legalmente protegido: a parte alega um direito ou interesse e requer para eles uma das formas de tutela jurisdicional correspondentes a uma acção de condenação, de apreciação, de constituição ou de execução (artºs 4 nºs 2 e 3 e 498 nº 3 do CPC).

A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar o direito ou interesse invocado pela parte, o facto ou acto de que, no entender da parte, o direito procede (artº 498 nº 4, 1ª parte, do CPC).

O objecto do processo tem, desde logo, uma relevância intraprocessual, dado que condiciona o objecto da decisão, visto que aquilo que é pedido e alegado pela parte é aquilo que pode ser apreciado e decidido pelo tribunal. Como corolário do princípio da disponibilidade privada, o tribunal não pode apreciar mais do que aquilo que a parte pediu. Caso o faça, a decisão é nula por excesso de pronúncia, o que se verifica sempre que o tribunal utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou condena ou absolve num pedido não formulado (artºs 264, 660 nº 2, 664, 2ª parte, e 668 nº 1 d), 2ª parte, do CPC).

Vale, portanto, neste domínio, um princípio de identidade ou coincidência: o objecto da decisão deve coincidir ou ser homótropo ao objecto do processo.

A acção considera-se proposta, intentada ou pendente com o recebimento da petição inicial pela secretaria e é nesse momento que se considera iniciada a instância – i.e., a relação triangular entre as partes e o tribunal durante a pendência da causa (artº 267 nº 1 do CPC).

A pendência qualificada, i.e. aquela que se verifica depois da citação do réu para acção, produz, entre outros efeitos processuais, o seguinte: a estabilidade dos elementos subjectivos – partes - e objectivos – pedido e causa petendi – da instância (artº 268 e 481 b) do CPC).

A instância é, porém, uma relação dinâmica e, portanto, estabilidade da instância não significa imutabilidade: com a citação do réu, a instância estabiliza-se, mas não se torna rígida e imutável.

Na espécie do recurso, interessam as modificações objectivas relativas a um dos elementos do objecto do processo: o pedido. E no tocante às alterações do pedido, apenas as provocadas pelo autor que visem a sua ampliação ou transformação.

É ao autor que cabe definir, logo na petição inicial, o seu pedido – e deve formulá-lo com toda a precisão (artº 467 nº 1 d) do CPC). E uma vez formulado o pedido e logo que o réu se mostre citado, o pedido deve, em princípio, manter-se o mesmo. Mas o princípio não é absoluto: o autor pode, no decurso da instância, modificar o seu pedido, para coisa diversa, para menos – ou para mais.

Neste domínio há que fazer um distinguo entre os casos em que as partes estão de acordo na modificação, e os casos em que o réu não consente na alteração.

Havendo acordo das partes – hipótese mais que rara - o pedido pode ser alterado em qualquer altura do processo, em primeira ou segunda instância, desde que a alteração não perturbe profundamente a instrução, discussão e julgamento da causa (artº 272 do CPC). Neste caso, a alteração só conhece dois limites: a alteração não pode ter lugar perante o Supremo; os tribunais de instância só podem recusar a alteração, em defesa dos superiores interesses da boa instrução, discussão e julgamento da causa.

Um tal acordo é, nitidamente, um negócio processual[9], i.e., um acto processual de carácter negocial que modifica uma situação processual, mais exactamente, dado o seu carácter bilateral, um contrato processual – e um contrato processual interlocutório, dado que é realizado durante a pendência da causa, e se destina a conformar o objecto do processo e, por essa via, a respectiva decisão.

Quando à legitimidade para a celebração deste negócio processual, há, naturalmente, que observar as especialidades impostas pelas situações de litisconsórcio. No caso de pluralidade de partes, ligadas entre si por um litisconsórcio necessário unitário, é claro que o negócio deve ser concluído por todas as partes, dado que não é logicamente admissível que o pedido se tenha por modificado quanto a uns e inalterado quanto outros (artº 298 nº 2, por analogia, do CPC).

Este negócio processual, conformador do objecto e da decisão da causa, exige os requisitos gerais de qualquer negócio jurídico, nomeadamente quanto à vontade, e sua exteriorização e ao objecto negocial. A este negócio são também aplicáveis as disposições gerais sobre a conclusão dos negócios e sobre a sua interpretação e integração (artºs 224 a 239 do Código Civil).

Em princípio, portanto, as declarações negociais que este negócio processual exige, podem ser expressas ou tácitas. A lei adjectiva torna, aliás, patentes vários casos em que são admissíveis declarações puramente tácitas. Assim, nas conclusões da alegação, o recorrente pode restringir tacitamente o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 3 do CPC). Do mesmo modo, a renúncia ao recurso – ou mais genericamente à impugnação - pode ser tácita, o que sucede, v.g., no caso de aceitação, pela parte da decisão, aceitação que pode resultar de uma declaração puramente tácita - a que deriva de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer, verificado depois do proferimento da decisão (artº 682 nº 2 e 3 do CPC).

A declaração negocial – dado que é um acto de comunicação - será expressa se consistir num comportamento finalisticamente ordenado para exprimir ou comunica algo; será tácita, se consistir numa atitude da qual se deduza, com toda a probabilidade, a expressão ou comunicação de algo, embora esse comportamento não tenha sido finalisticamente dirigido à expressão ou à comunicação daquele conteúdo (artº 217 nº 1 do Código Civil). À luz deste enunciado, de uma declaração expressa, finalisticamente orientada para a expressão de certo conteúdo, pode resultar ainda implicitamente uma outra declaração, esta agora puramente tácita, desde que dela se deduza com toda a probabilidade.

A declaração negocial tácita, dado que supõe pelo menos um comportamento positivo[10], não deve, porém, confundir-se com o silêncio. O silêncio é a ausência de declaração. Na declaração tácita existe um comportamento negocial que tem um sentido juridicamente relevante; no silêncio nada existe e, por isso, o silêncio não constitui de todo uma declaração, ainda que tácita[11].

Em direito o silêncio só tem relevância jurídica caso exista uma disposição legal, uma convenção negocial ou uso que lhe atribuam esse valor (artº 218 nº 1 do Código Civil). Fora destes casos, o silêncio não tem valor declarativo, não constitui uma declaração negocial.

A declaração tácita corresponde, pois, à compreensão do sentido que está implícito em qualquer comportamento, em termos tais que dele se deduza com toda a probabilidade. Assim, sempre que alguém a quem foi dirigida uma proposta contratual, sem que tenha declarado expressamente aceitá-la dê início à execução do contrato, deduz-se desse comportamento, com toda a probabilidade que aceitou a proposta: houve aceitação tácita (artº 234 do Código Civil). A lei refere, literalmente, uma dispensa de declaração de aceitação; mas bem interpretada, deve atribuir-se a essa expressão apenas o sentido de dispensar uma declaração expressa de aceitação: esta aceitação é uma aceitação tácita que se traduz, na letra da própria lei, numa conduta que mostre a intenção de aceitar a proposta.

As declarações negociais expressas e tácitas, têm em princípio, o mesmo valor.

A forma da declaração tácita é aquela de que se revista o comportamento do qual ela, com toda a probabilidade, se deduz.

Um negócio jurídico para o qual a lei exija forma escrita poderá ser celebrado tacitamente desde que se deduza com toda a probabilidade de um documento escrito (artº 217 nº 2 do Código Civil).

Quer dizer: a declaração tácita só é válida se o comportamento declarativo respeitar a forma legal do negócio jurídico cujos efeitos estão em causa.

A declaração negocial tácita, como em geral toda a declaração, carece de interpretação: a interpretação da declaração tácita resulta do apuramento do sentido da concludência, i.e., da determinação do sentido negocial, ou não negocial, que deve ser tido como deduzido, com toda a probabilidade, do comportamento concludente[12]. A concludentia pode resultar de pressuposição ou de implicação, conforme esse sentido seja pressuposto ou esteja implicado, com toda a probabilidade, nos factos de que se deduz.

É de admitir, pois, que as declarações integrantes do contrato processual considerado de ampliação do pedido – que não exige para a sua conclusão um encontro simultâneo de vontades, bem podendo resultar, como, aliás, é comum, de declarações unilaterais sucessivas – podem ser puramente tácitas e, portanto, que quer a declaração do autor como a de aceitação do réu, podem ser tacitamente emitidas.

Ainda que o réu dê o seu assentimento – o que, como mostra a observação do quotidiano judiciário, é altamente improvável - nem por isso o tribunal está obrigado a admitir a alteração do pedido; não obstante o acordo o tribunal de 1ª instância pode indeferir se entender que a alteração pretendida o coloca em condições de não exercer convenientemente a sua função jurisdicional. O autor ampliou o seu pedido, o réu não se opôs, mas o juiz acha que não é possível instruir-se ou discutir-se ou julgar-se convenientemente a modificação introduzida ou que esse resultado só pode conseguir-se à custa duma perturbação grave e profunda na estrutura e desenvolvimento do processo: quanto tal ocorra, o juiz deve recusar a modificação; no caso inverso, deve homologar o acordo – processual - das partes correspondente.

Isto que significa que o juiz deve, em qualquer caso, proferir despacho sobre a modificação, recusando-a ou admitindo-a.

Nos termos gerais, além do julgamento expresso, há julgamento explícito, que, aliás, foi já objecto de consagração expressa na lei adjectiva (artº 660 § único do CPC de 1939). A decisão não vale apenas pela vontade declarada que nele se contém, vale também pelos pressupostos tacitamente resolvidos. Assim, por exemplo, se o juiz designa dia para a audição de uma testemunha, deve presumir-se que, que antes da marcação da diligência, se certificou que a produção da prova testemunhal era admissível, devendo, por isso, admitir-se que o despacho contenha resolução implícita sobre a admissibilidade dessa prova.

Todavia, a admissibilidade da decisão implícita é, decerto, um princípio perigoso[13], de que deve fazer-se um uso prudente e moderado, dado que é susceptível de aumentar a litigiosidade entre as partes e, ao vinculá-las a apreciações não imediatamente patentes, pode trazer-lhes consequências inesperadas ou com que não podia razoavelmente contar.

Em qualquer caso, só deve admitir-se como julgamento implícito aquele que seja consequência necessária, irrecusável, do julgamento expresso. Só neste caso é que há uma decisão tácita, ou melhor, um julgamento implícito, dado que só este é que se deduz com toda a probabilidade de uma decisão expressa que não se mostra finalisticamente dirigida a exprimi-lo.

3.3. Caso julgado formal.

O caso julgado consiste na insusceptibilidade de impugnação – por meio de reclamação ou através de recurso ordinário - de uma decisão, decorrente do seu trânsito em julgado (artº 677 do CPC).

O caso julgado traduz-se, por isso, na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão – por qualquer tribunal, mesmo, portanto, por aquele que a proferiu – por força da insusceptibilidade da sua impugnação, por reclamação ou recurso ordinário.

Um distinguo fundamental neste domínio, e que assenta no âmbito da sua eficácia, é o que separa o caso julgado formal do caso julgado material: o caso julgado formal só tem um valor intraprocessual e, portanto, só é vinculativo no processo em que foi proferida a decisão que o adquiriu (artº 672 do CPC); já o caso julgado material, para além de valer no processo em que a decisão foi proferida, é susceptível de valer num outro processo (artº 671 nº 1 do CPC).

Estas considerações deixam, aliás, antever os dois efeitos processuais característicos do caso julgado: um efeito negativo, que se resolve na insusceptibilidade de qualquer tribunal, incluindo aquele que proferiu a decisão, de se voltar a pronunciar sobre a decisão proferida; um efeito positivo, que se traduz na vinculação do tribunal que proferiu a decisão – e eventualmente, qualquer outro tribunal – ao que nessa mesma decisão se declarou ou definiu.

É claro que é sempre possível a violação destes efeitos e, portanto, a situação patológica da existência de casos julgados contraditórios – tanto no mesmo processo como em processos distintos. Para resolver o conflito, a lei socorre-se de um critério ou princípio de prioridade: vale a decisão contraditória sobre o mesmo objecto que tiver transitado em primeiro lugar (artº 675 nº 1 do CPC). Este critério de remoção da contradição de casos julgados vale, igualmente, para as decisões que, num mesmo processo, versem sobre a mesma questão concreta (artº 675 nº 2 do CPC). Assim, por exemplo, se tiver sido interposto recurso da segunda decisão, o recurso tem necessariamente de improceder, dada a vinculação – do tribunal e das partes – ao caso julgado da primeira decisão[14].

O caso julgado está, porém, sujeito a limites, designadamente objectivos, subjectivos e temporais.

No tocante aos limites objectivos – i.e., ao quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal que recebe o valor da indiscutibilidade do caso julgado – este abrange, decerto, a parte decisória do despacho, da sentença ou do acordão, i.e., a conclusão extraída dos seus fundamentos (artº 659 nº 2 do CPC).

O problema está, porém, em saber se - de harmonia com uma concepção restritiva[15], apenas cobre a parte decisória da sentença ou antes se estende – de acordo com uma concepção ampla - a toda a matéria apreciada, incluindo os fundamentos da decisão.

Apesar do carácter espinhoso do problema, tem-se por preferível uma concepção intermédia, para o qual se orienta, ao menos maioritariamente, a jurisprudência[16]: o caso julgado abrange todas as questões apreciadas que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença[17]. Realmente, como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado, não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos – e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão[18]. A decisão do tribunal vale sempre em conjunto com o respectivo fundamento.
Ou noutra formulação: os pressupostos da decisão são cobertos pelo caso julgado – enquanto pressupostos da decisão, ficando fora do caso julgado tudo o que esteja contido na decisão, mas que não seja essencial ao iter iudicandi[19].
Este pecúlio de considerações é suficiente para apreciar os objectos e os fundamentos de impugnação alegados pelos recorrentes no recurso – e para o julgar improcedente.
3.5. Concretização.
Como se notou, segundo os impugnantes, o pedido inicial de prestação de contas – necessariamente referido à administração dos bens da herança exercida até à proposição da acção – teria sido objecto de ampliação por acordo tácito das partes: por força deste negócio processual, a prestação de contas exigida ao cabeça-de-casal passou a compreender também a administração do relictum hereditário, exercida posteriormente ao momento da apresentação das contas até à data em que transitou a decisão que escusou daquele cargo.
E um tal negócio processual ter-se-ia por concluído em face da ausência de oposição do réu ao pedido do autor de ampliação do objecto da perícia realizada à contabilidade do estabelecimento comercial, integrante da massa hereditária.
Mas há boas e várias razões para concluir pela inexactidão do argumento.

                O procedimento de proposição e de admissão da prova pericial é, nos seus traços mais gerais, o seguinte.

Se a perícia for requerida por uma das partes, cabe-lhe indicar o objecto e enunciar as dúvidas que pretende ver esclarecidas (artº 577 nº 1 do CPC).

O juiz pode indeferir logo o requerimento, designadamente, se entender que a diligência requerida é impertinente ou dilatória (artº 578 nº 1, 1ª parte, a contrario, do CPC). Caso nítido de diligência impertinente é o de o magistrado verificar, pela leitura do requerimento, que a diligência não versa sobre os factos controvertidos, objecto da instrução; caso evidente de diligência dilatória é o de o juiz se certificar, pelo exame do objecto proposto, de que a diligência não é possível, pois que os factos respectivos não são susceptíveis de ser captados por meio da perícia.

Se não houver fundamento para indeferimento imediato deve o juiz mandar notificar a parte contrária para se pronunciar sobre o objecto proposto e facultar-lhe a adesão a esse objecto ou a proposição da sua ampliação ou restrição (artº 578 nº 1 do CPC).

Ouvida a contraparte, o juiz, no despacho que ordena a diligência, fixa o seu objecto, podendo restringi-lo ou ampliá-lo relativamente às propostas das partes (artº 578 nº 2 do CPC).

A admissão da prova pericial desenvolve-se, portanto, em duas fases ou momentos distintos: uma primeira fase ou momento em que se decide do deferimento ou indeferimento do requerimento; uma segunda fase ou momento, em que, deferido o requerimento, se ouve a contraparte sobre o objecto proposto, e se fixa objecto da diligência e se ordena a sua realização.

                No caso, os requerimentos quer de realização da perícia quer de ampliação do seu objecto não foram subscritos por todos os litisconsortes interessados, mas apenas por alguns deles: o primeiro apenas pelo cabeça-de-casal; o segundo apenas pelo autor, A... Ora, desde que tais requerimentos não foram subscritos por todos os interessados litisconsortes, mas apenas por algum deles, o negócio processual, ainda que puramente tácito, de alteração do pedido não poderia ter-se por admissível.

É exacto que nenhum dos interessados – designadamente o cabeça-de-casal – deduziu qualquer oposição ao requerimento de ampliação do objecto da prova pericial, tendo guardado, quanto a tal requerimento, um completo silêncio. Simplesmente, como se notou, declaração tácita e silêncio não são sinónimos e, por isso, o silêncio do réu quanto à ampliação, requerida pelo autor, do objecto da perícia, não constitui uma declaração de aceitação, ainda que tácita, de uma modificação, também, ela tácita, do pedido. Em face do silêncio do réu quanto ao requerimento de ampliação do objecto da perícia deduzido pelo autor, há a absoluta omissão de qualquer comportamento negocial positivo, e não há, por isso, uma declaração tácita de aceitação de uma modificação, também ela tácita, do pedido de prestação de contas.

Segundo os recorrentes, o requerimento do autor de ampliação do objecto da perícia envolve, tacitamente, o requerimento de modificação do pedido de prestação de contas. Notar-se-á, porém, que o pedido inicial de prestação de contas se referia à administração de todos os bens da herança e não apenas do estabelecimento comercial. Nestas condições, do requerimento dirigido para a ampliação do objecto da perícia referida a apenas um dos bens da herança – o estabelecimento comercial – não se extrai, por via do seu contexto circunstancial ou da sua lógica – a dedução tácita de um pedido de prestação de contas da administração de todos os bens da herança. Dito doutro modo: de um requerimento de ampliação do objecto da perícia relativa a um só bem da herança não se deduz, com toda a probabilidade, um requerimento de ampliação do pedido de prestação de contas da administração de todos os bens dessa mesma herança. Em qualquer caso, o simples requerimento de ampliação do objecto da perícia não configura, tacitamente, um requerimento de ampliação do pedido, dado que esse acto não é significativo duma vontade negocial pré-existente, não é um facto concludente ou significativo – facta concludentiam, facta ex quibus voluntas concludipoteste.

Como também já se observou, o acordo, expresso ou meramente tácito, das partes – de todas as partes – quanto à modificação do pedido não se impõe ao juiz, que não está obrigado, pelo simples facto da conclusão do negócio processual correspondente, a admitir a alteração. Não obstante esse contrato processual, o juiz pode indeferir, caso entenda, por exemplo, que a alteração perturba a instrução ou a discussão da causa, certo como é que, perturbada qualquer destas formas de actividade, a perturbação não pode deixar de se repercutir sobre o julgamento.

Pergunta-se: onde está a decisão de homologação do acordo ou de deferimento da alteração? Respondem os recorrentes: na decisão que fixou o objecto da perícia.

Portanto, a decisão de deferimento da modificação seria – tal como o requerimento de modificação e de aceitação desta – puramente tácita: a vontade funcional do juiz de deferimento da modificação do pedido deduzir-se-ia da decisão fixação do objecto da perícia, com a ampliação requerida pelo autor.

Todavia, a verdade é que a simples fixação do objecto da perícia não traduz um acto significativo de uma vontade funcional de deferimento da modificação do pedido, não é acto concludente e inequívoco de admissão da ampliação desse mesmo pedido. A decisão de fixação do objecto da perícia não traz como decisão implícita o deferimento da alteração do pedido, dado que aquele julgamento implícito não se configura como consequência necessária, irrecusável, do julgamento expresso.

A fixação, como objecto da perícia, da ampliação proposta pelo autor, melhor se explica, por desatenção do despacho, por falta de ponderação, como logo decorre da sua absoluta falta de fundamentação. No momento em que foi proferido, o objecto do processo era constituído pelo julgamento das contas já apresentadas e, portanto, a perícia, como qualquer outra diligência de prova, apenas poderia ter como finalidade a justificação das verbas de receita e de despesas das contas prestadas (artº 1017 nº 5 do CPC). E estando em causa apenas o julgamento das contas apresentadas é claro que a perícia, no tocante ao volume de compras e de vendas do estabelecimento, relativamente a momento diverso do compreendido nas contas prestadas, era, de todo, impertinente. Para quê averiguar aquele volume de vendas, no período posterior a 1997, se as contas oferecidas – únicas que importava julgar - se referiam apenas à administração exercida pelo cabeça-de casal em momento anterior àquela data?

Isto torna, patente, de um aspecto, que a decisão que fixou como objecto da perícia os factos requeridos em ampliação dele pelo autor, não importou o deferimento ou uma homologação, tácita do acordo, também tácito, de alteração do pedido, e de, outro, que sobre essa decisão se não formou, quanto a essa ampliação do pedido – e, portanto, quando à dimensão temporal da obrigação de prestação de contas – caso julgado formal.

Realmente, a única coisa que aquele despacho decidiu – aliás, de forma inteiramente infundamentada e, no tocante à ampliação pedida, em nítido erro - foi que a perícia teria o objecto proposto pelo réu e, em ampliação, pelo autor e só essa matéria – o objecto da perícia – recebeu o valor da indiscutibilidade do caso julgado, ainda que meramente formal.

Correspondentemente, do seu trânsito em julgado apenas importou a proibição de o tribunal se voltar a pronunciar sobre o objecto da perícia e a vinculação, desse mesmo, tribunal ao sentido da decisão anterior.

Há, decerto, um ponto em que não se pode deixar de concordar com os recorrentes: a extraordinária duração da pendência da causa e a dilação, de todo desrazoável, no proferimento da decisão, absolutamente conflituante com o direito à decisão da causa em prazo razoável, que constitui uma dimensão ineliminável do direito à tutela jurisdicional efectiva (artº 20 nº 4 da Constituição da República Portuguesa). Todavia, a violação do direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, ou a uma decisão temporalmente adequada ou direito à tempestividade da tutela jurisdicional – sem prejuízo de toda uma constelação de consequências, como, por exemplo, a responsabilidade do Estado por danos causados pelo exercício da função jurisdicional – não constitui critério para, sem a observância das regras de processo aplicáveis, se autorizar a modificação, no sentido da ampliação, do objecto do processo.

Convém recordar, a este propósito, que o processo civil português obedece a um princípio de legalidade, de harmonia com o qual o processo tem a forma legalmente estabelecida, que se impõe às partes e ao tribunal, i.e., um processo relativamente rígido, cuja marcha não pode ser determinada pelas partes ou pelo tribunal (artº 199 do CPC).

Nestas condições, a sentença impugnada, ao limitar-se a julgar as contas prestadas, é juridicamente conforme, não se encontrando ferida com o error in procedendo – nulidade substancial por omissão de pronúncia – nem com o error in iudicando que os recorrentes lhe apontam.

O recurso não tem, pois, bom fundamento. Cumpre julgá-lo improcedente (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Justifica-se, dada a simplicidade dos respectivos termos, a fixação da taxa de justiça de harmonia com a Tabela I-B que integra o RCP (artºs 8 nº 1 da Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro, e 6 nº 2 do RCP).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes, com a taxa de justiça fixada na Tabela I-B que integra o RCP.

                                                                                             

                                                                                                              Henrique Antunes - Relator

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                            Regina Rosa    

                                                                                                                                                                                


[1][1] António Menezes Cordeiro, Responsabilidade por informações dadas em juízo; levantamento da personalidade colectiva; dever de indemnizar, ROA, Ano 64, vol. I/II, Nov. 2004 (Anotação ao Acórdão do STJ de 9-Jan-2003), Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, Coimbra, 1989, págs. 418 e 419, Vaz Serra, Obrigação de prestação de contas e outras obrigações de informação, BMJ nº 79, págs. 149 e ss. e Acs. do STJ de 2003, BMJ nº 432, pág. 375 e de 21.11.06, www.dgsi.pt.
[2] Acs. da RC de 05.07.00 e do STJ de 16.12.99, www.dgsi.pt.
[3] Ac. da RC de 19.05.09, CJ, 2009, III, pág. 8.
[4][4][4] Ac. da RC de 10.05.94, BMJ nº 437, pág. 590, da RP de 10.05.84, BMJ nº 337, pág. 412 e do STJ de 04.07.06, www.dgsi.pt
[5] O ónus da prova de que as contas já foram prestadas recai sobre o réu: Acs. da RP de 02.07.02 www.dgsi.pt., da RL de 17.11.94, CJ, 94, V, pág. 99 e de 24.10.06, e do STJ de 23.04.02, www.dgsi.pt.
[6] As contas devem ser apresentadas sob a forma de conta-corrente contabilística, i.e., através num sistema diagráfico de escrituração em colunas separadas de crédito e débito e o saldo resultante do confronto das verbas de receita e de despesa.
[7] Acs. do STJ de 26.09.95, CJ, STJ, III, pág. 22 e de 16.01.96, CJ, STJ, III, pág. 43.
[8] Ac. da RP de 13.02.95, CJ 95, II, pág. 242.
[9] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume III, Coimbra, 1946, pág. 90.
[10] Um facto positivo como sustentáculo significante: Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1992, pág. 717.
[11] Assim, entre outros, Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Volume II, Acções e Factos Jurídicos, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 38 e António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 341 e 342. No sentido, porém, da diferenciação de casos, admitindo que o silêncio não só valha, como constitua uma declaração nalguns grupos de casos, Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente, Almedina, Coimbra, 1995, pág. 690 e José Alberto Vieira, Negócio Jurídico, Coimbra Editora, 2009 (reimpressão), págs. 19 e 20.
[12] Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, págs. 463 e 464.
[13] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1984, pág. 59.
[14] Neste sentido, por exemplo, os Ac. da RC de 06.12.04 e 20.12.94, BMJ nº 442, pág. 266.
[15] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 318.
[16] V.g., Acs. do STJ de 10.07.07, CJ, STJ, V, II, pág. 165, da RC de 27.09.05 e 29.05.12 e da RL de 12.07.12, www.dgsi.pt.
[17] Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, Lisboa, pág. 253.
[18] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1987, págs. 578 e 579.
[19] João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa, págs. 578 e 579.