Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1137/06.8PBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 02/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 205º DO CP E 127º3, 410ºE 412 º, TODOS DO CPP.
Sumário: 1. O «erro notório na apreciação da prova», identificado como um dos vícios susceptíveis de possibilitar a reapreciação da prova pelo tribunal de recurso, consubstancia-se numa errada apreciação probatória efectuada pelo Tribunal, desde que resulte do próprio texto da sentença, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

2 O reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso.

3.No crime de abuso de confiança a questão essencial delimitativa do tipo criminal decorre da inversão do título de posse da coisa efectuada pelo agente, «que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais – uti dominu» (cf. Comentário Conimbricense do Código penal», Tomo II, p. 103). É nesta inversão do título que se encontra o núcleo essencial que permite a identificar o elemento essencial «apropriação» para si, a que se refere aquele artigo 205º do C.Penal.

4.A apropriação para si não quer dizer necessariamente que o agente fique com a coisa na sua posse. Pode transmitir nesse ou noutro momento a coisa a terceiro, não deixando, por isso, num determinado momento de se ter apropriado da coisa.

Decisão Texto Integral: 25

I. RELATÓRIO.

No processo Comum singular n.º 1137/06.8PBFIG.C1 foi deduzida acusação contra o arguido LZ pela prática de um crime de abuso de confiança p.p. pelo artigo 205º n.º 1 e 4 alínea a) do CP e um crime de burla qualificada p.p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 do C. Penal.

No mesmo processo, J e A. deduziram, autonomamente, pedidos de indemnização civil contra o arguido, o primeiro pedindo a sua condenação no pagamento do montante de €18 000,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescido de juros à taxa legal e o segundo peticionando a condenação do arguido a pagar-lhe €31250,29, acrescido de juros à taxa legal

Realizado o julgamento, o arguido foi absolvido do crime de burla qualificada p.p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 do C. Penal de que estava acusado e condenado pela prática de um crime de abuso de confiança p.p. pelo artigo 205º n.º 1 e 4 alínea a) do CP do Código Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros), que perfaz o montante global de €1250,00 (mil duzentos e cinquenta euros), nas custas do processo fixadas em 3 UCs a taxa de justiça e nos encargos fixando-se a procuradoria em 1/4, acrescida de 1%, nos termos do art. 13º nº 3 do DL nº 423/91, de 30-10.

Relativamente ao pedido de indemnização civil foi o mesmo julgado parcialmente procedente e, em consequência, condenado o arguido / demandado a pagar ao demandante a quantia de €15.200,00 (quinze mil e duzentos euros) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa de 4% a contar da notificação do Pedido de Indemnização Civil até integral e efectivo pagamento e ainda condenado a pagar €350 (trezentos e cinquenta euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros à taxa de 4% desde a data de condenação até integral pagamento. Demandado e a demandante foram condenados nas custas do pedido civil tendo em conta o vencimento.

Foi ainda absolvido do pedido de indemnização cível formulado por A.

Não se conformando com a decisão, o arguido veio interpor recurso da mesma para este Tribunal, concluindo na sua motivação nos seguintes termos:

1º Foram incorrectamente julgados pelo Tribunal recorrido os pontos 1 a 3 e 8 da matéria enumerada na “Motivação de facto”

2° Na verdade, os depoimentos das testemunhas, R, AA e J impõem concluir que não foi o arguido que foi ao stand do J, buscar o Audi…;

3° Foi a testemunha R ali o foi buscar e o foi levar ao arguido à localidade onde este reside, Ponte de Vagos;

4º Assim, no que se refere à matéria levada aos pontos 1 daquela motivação ocorreu erro notório na apreciação da prova produzida e no que tange à matéria levada aos pontos 2 e 3 da mesma motivação, carece de qualquer suporte testemunhal e é impossível, uma vez que o arguido não esteve na entrega do veículo, pelo que para além do mesmo erro, ocorre manifesta insuficiência de prova para a decisão da mesma;

5° Por outro lado, não foi possível apurar, com segurança, a que título é que o Audi A6 foi entregue ao arguido, pelo que não é possível aquilatar se se encontra preenchido o elemento entrega, para ocorrer o crime que é imputado ao arguido, ocorrendo também aqui a mesma insuficiência de prova;

6° Também a matéria levada ao ponto 4 da mesma motivação foi mal julgada, no que tange ao “animus domini” por parte do arguido.

7º Do depoimento do ofendido A, há que concluir que o arguido nunca lhe pretendeu vender o Audi… tendo-lhe dito que não era carro para ele.

8º Também esta lacuna, imporia, em obediência ao princípio “in dubio pro reo” a absolvição do arguido.

9° A douta decisão recorrida, padece dos vícios previsto nas alíneas c) e a) do artigo 410º do CPP e violou o disposto no artigo 32°, n° 2, do CRP, pelo que deve ser parcialmente revogada, absolvendo-se o arguido também do crime de abuso de confiança, assim se fazendo;

O Ministério Público, nas suas contra-alegações pronunciou-se pela improcedência do recurso, posição que o Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto neste Tribunal da Relação corroborou no seu parecer.

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II FUNDAMENTAÇÂO

As questões a decidir:

Em face das conclusões do recorrente a questões a decidir sustentam-se: i) no eventual erro notório na apreciação da prova efectuada pelo Tribunal; ii) na inexistência de prova referente ao elemento crime de abuso de confiança, inversão do animus possidendi, tendo sido desta forma violado o princípio da presunção de inocência do arguido.

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Importa antes de mais atentar na matéria de facto e respectiva fundamentação dada como provada e que consta na decisão em apreciação.

1º - Em data não concretamente apurada mas anterior a 28 … de 2006, no “Stand Auto G..”, sito em …, Espinho, pertença do ofendido J, o arguido mostrou-se interessado no veículo de marca Audi, modelo …, com a matrícula…-RV, com o valor de 12 000,00 euros, que ali se encontrava exposto para venda, pertença de J., referindo ao ofendido que tinha um cliente/ comprador interessado na compra do mesmo, pelo que pediu ao ofendido que lhe deixasse levar o dito veículo para mostrar ao interessado no mesmo.
2º- O ofendido, convencido de que o arguido iria diligenciar pela exibição do seu veículo ao potencial comprador, acedeu ao pedido daquele, entregando-lhe o dito veículo, com a condição de o mesmo lhe ser devolvido no dia seguinte.
3º- Sucede que o arguido não mais entregou o veículo, nem no dia seguinte, nem até ao presente, isto apesar dos sucessivos pedidos do ofendido no sentido de que lhe devolvesse o veículo.
4º- Com efeito, o arguido levou o veículo Audi, consigo, sem pagar ao ofendido o preço do mesmo, dele se apoderando, fazendo-o seu, não obstante saber que não lhe pertencia.
5º- No dia 28 de … de 2006, o arguido procedeu, então, à entrega do referido veículo de marca Audi ao ofendido A., tendo-o levado até às proximidades da clínica médica onde aquele trabalhava, para que este o experimentasse e utilizasse e caso o ofendido viesse a gostar dele, ficar com ele em substituição do veículo BMW … que lhe havia vendido, procedendo ao respectivo acerto de contas com o ofendido.
6º- Porém, e não obstante os vários contactos de A solicitando ao arguido os documentos do veículo, este nunca lhos entregou, o que impediu o ofendido de circular com o veículo.
7º- O arguido não devolveu, nem pagou, ao anterior proprietário J., o valor do veículo de marca Audi, motivo porque não conseguiu obter os documentos para entregar ao ofendido A.
8º- O arguido agiu livre e conscientemente, com o propósito concretizado, de se apoderar e fazer seu o veículo pertença do ofendido J., bem sabendo que não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do seu legítimo proprietário. Quis, ainda, o arguido entregar ao ofendido A. um veículo para substituição do veículo BMW …. que lhe havia vendido, veículo que não lhe pertencia, já que era propriedade de J., apoderando-se do mesmo, que desta forma se viu desapossado do veículo e do seu valor, logrando assim prejudicar o ofendido J.
9º-Não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se absteve o arguido de a levar a acabo.

Mais se provou:
10º- - No dia 14 de … de 2006, em contacto pessoal estabelecido na clínica médica “ D…”, sita …, local de trabalho do ofendido, o arguido vendeu a A., pelo valor de 19.000€, um veículo BMW…, valor que o ofendido pagou com outro veículo – um Jeep , modelo…., no valor de 15 000,00 euros, que deu à troca e entregou-lhe ainda um cheque no valor de 2 500,00 euros, datado de 14/07/06 com o nº 6100000281, e um outro cheque no valor de 1 500, 00 euros, datado de 24/07/06, com o nº …, ambos sacados sobre o Banco …, da conta do ofendido.
11º- Porém, como o veículo referido apresentava uma quilometragem maior do que aquela que constava do conta quilómetros, devolveu-o ao arguido.
12º- Para substituição do veículo BMW … o arguido entregou ao ofendido um veículo Mercedes.
13º- Porém, como o veículo Mercedes também apresentava algumas irregularidades o ofendido devolveu-o ao arguido.
14º- Assim, no dia 28 … de 2006, o arguido entregou ao ofendido A. o veiculo Audi .
15º- O arguido não procedeu à entrega dos documentos ao ofendido A
16º- O veículo Audi.. havia sido vendido conjuntamente com outros veículos pelo arguido a R., em data não concretamente apurada, mas anterior a 31…/06.
17º- Para pagamento do veículo Audi… e os outros veículos, o R… emitiu a favor do arguido pelo menos o cheque nº … sacado sobre o BEST, no valor de 13.750,00€, datado de 31/07/06, o qual apresentado a pagamento foi devolvido por falta de provisão, em 2/…./06.
18º- O R. ainda não pagou o cheque ao arguido.
19º- R., por sua vez, em data não concretamente apurada vendeu o veículo Audi …ao ofendido J., pelo valor de 12.000€.
20º- O veículo Audi, modelo… encontra-se registado a favor de J. desde 29/…/06.

Dos pedidos de indemnização cíveis:
21º- O ofendido A suportou 12,98€ de despesas com a emissão de duas fotocópias dos cheques referidos em 10).
22- Como o demandado faltou aos sucessivos compromissos de entrega dos documentos do veículo Audi … de matrícula …..-RV o ofendido ficou impedido de circular com o mesmo até porque o veículo veio a ser apreendido pela PSP.
23º- O demandante teve necessidade de adquirir um outro veículo, bastante usado, no valor de 3750€ que lhe servisse para se deslocar diariamente, essencialmente para cumprimento das suas obrigações profissionais.
24º- O veículo referido em 23) para ser utilizado com o mínimo de segurança exigiu as seguintes reparações, cujos pagamentos foram suportados pelo ofendido A.
- aquisição de tampão de jante, no valor de 26,47€;
- revisão, no valor de 39,45€;
- aquisição de um tubo flexível, no valor de 39,31€;
- uma reparação no valor de 709,40€;
- uma reparação no valor de 95,59€;
- revisão simples no valor de 39,50€;
- uma reparação no valor de 923,76€;
- aquisição de bateria no valor de 48,95€;
- uma reparação no valor de 202,68€;
25º- O demandante A. teve incómodos, andou soturno, triste, angustiado e depressivo e apresentava sintomas de irritabilidade, insónias e teve de recorrer a consultas de psicologia e neurologia, tendo sido medicado.
26º - O demandante J faz da compra e venda de automóveis a sua actividade e com o montante apurado na venda de um veículo adquire outro.
27º- O demandante J. havia adquirido o veículo Audi por 12.000€ e pretendia vendê-lo por 15.000€;
28º- Com a conduta do demandado, o demandante J. teve de se deslocar a Espinho, a Vagos, ao Tribunal da Figueira da Foz e fez telefonemas.
29º- Por força da conduta do demandado o demandante J.r sentiu-se triste, inquieto e ansioso.
30º- O arguido já foi condenado:
- por sentença datada de 10/…/03, transitada em julgado, por factos ocorridos em 19/07/…, na pena de 230 dias de multa, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão;
- por sentença datada de 19/05/…, transitada em julgado, por factos ocorridos em 18/07/…, na pena de 50 dias de multa, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples.

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31º- O arguido é vendedor de automóveis, auferindo mensalmente o salário mínimo nacional.
32º - A esposa é professora auferindo quantia não concretamente apurada.
33º - Tem um filho de 1 ano de idade.
34º - Vive em casa da sogra.
35º - Paga mensalmente cerca de 350€ de empréstimo.
36º- Tem como habilitações literárias o 11º ano de escolaridade.
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Para a prova dos factos o tribunal efectuou a seguinte motivação:

O tribunal alicerçou a sua convicção para tais factos como provados numa análise critica de toda a prova produzida na seu conjunto (apreciada nos termos do disposto no do artº 127 do CPP), e que resultou da conjugação dos seguintes meios de prova:
O arguido referiu que o veículo Audi… era seu e o tinha vendido a R.. Porém, como o cheque que este lhe entregou para pagar o veículo tinha sido devolvido por falta de provisão ele devolveu-lhe o carro, dizendo que depois lhe dava os documentos.
Não conhece o ofendido J. nem nunca esteve no seu Stand em ….

Conheceu o ofendido A. por intermédio de uma senhora a quem já havia vendido um carro e que lhe disse que tinha uma pessoa interessada em comprar um carro. Vendeu então ao Sr. A. uma carrinha BMW… e ele para pagamento daquele veículo entregou-lhe um Jeep…. e dois cheques. Porém, o sr. A levou o BMW à Baviera e não gostou e telefonou-lhe a dizer que não queria ficar com ele.

Entregou-lhe então um outro veículo. No entanto, o Sr A também não quis ficar com esse e então disse-lhe que tinha o Audi …endo o ofendido de início dito que não o queria mas depois disse para ele deixar ficar que o ia experimentar.

Referiu ainda que quando entregou a Audi…e disse que tinha vendido inicialmente aquela carrinha ao Rui Torres e ainda não tinha os documentos consigo, não chegando a estabelecer com este qualquer valor pela Audi…

Os cheques tinham-lhe sido entregues quando fez o negócio com a BMW e caso o ofendido gostasse do Audi…riam contas a fazer, tendo referido que lhe disse quando lho entregou eu sei que este veículo não é do seu agrado mas experimente.

Disse ainda que o Sr. J. algum tempo depois de ter entregue a carrinha Audi … ao ofendido A. lhe disse que queria a carrinha.

J…, ofendido e que embora nessa qualidade prestou um depoimento que se nos afigurou credível e isento e que referiu que em Julho, Agosto de 2006 foi contactado pelo Sr. R.s propondo-lhe a compra da carrinha Audi …. Comprou-lhe a carrinha por 12.000€ e ele entregou-lhe os documentos. Teve a carrinha cerca de 2/3 meses para venda no seu Stand. Entretanto recebeu uma chamada do Sr. R. a dizer-lhe que o seu sócio, referindo-se ao arguido, tinha um possível cliente para a compra da carrinha. Assim, acordou com o R. s que a carrinha seria vendida ao arguido por cerca de 15.000€ e a testemunha dar-lhe-ia cerca de 500/1000€ como comissão. O R. e o arguido foram então ao seu Stand buscar a carrinha tendo acordado com o arguido que este levaria a carrinha para a mostrar a um cliente com a condição de ele no dia seguinte a entregar. No dia seguinte telefonou-lhe e ele disse que já a tinha vendido e que apenas aguardava que o cliente fizesse um contrato de crédito.

Acrescentou ainda que o arguido de início se interessou por uma BMW que lá tinha no Stand mas não a levou porque ela estava para arranjar.

Disse ainda que registou a carrinha em seu nome quando apresentou queixa porque a policia lhe disse que ele tinha de o fazer. Acrescentou ainda que telefonou ao anterior proprietário da carrinha para não emitir a segunda via da declaração de venda ao arguido que já lhe havia telefonado.

Por último, pronunciou-se sobre as deslocações que efectuou por força deste processo.

R. que referiu que conhece o arguido há cerca de ¾ anos. Referiu que comprou alguns carros ao arguido entre eles a Audi… e vendeu-a ao J…, dizendo-lhe que a tinha comprado ao arguido. Ainda não pagou ao arguido o cheque que se encontra junto a fls. 139, referindo que não se recorda se a comprou ao arguido por 14.000€ ou 16.000€ porque na altura comprou vários carros e o arguido facilitava-lhe o pagamento.

A carrinha Audi.. que vendeu ao J., este pagou-lha em dinheiro e nunca deu o negócio por “desfeito” com este.

Entretanto o arguido disse-lhe que tinha um cliente para a carrinha e a testemunha disse-lhe que podia contactar o J. para ver se este ainda a tinha. Assim, deslocou-se à sucata de um amigo do J., o JO e acordou com este que ele lhe pagaria uma comissão pela venda da carrinha. Enquanto esteve na sucata o J. falou telefonicamente com o arguido, não sabendo se acordaram ou não algum preço. Acrescentou que trouxe a carrinha para Vagos, onde a entregou ao arguido e este depois foi levá-lo a… ao Stand do J. e nessa altura o arguido e o Júlio voltaram a falar.

Procedeu-se à acareação entre o ofendido Jr e a testemunha R., tendo o primeiro mantido a sua posição e acrescentou que o arguido, o R. e um primo deste foram ter com este á sucata do seu ex-sócio JO e depois foram ao Stand buscar a carrinha e referiu que não se recorda de ter falado com o arguido antes ao telefone. A testemunha R. referiu que não se recordava de parte das coisas nomeadamente a forma como foi feito o contacto entre ele e a testemunha para a venda da Audi nem o preço dela.

JO, proprietário de uma sucata e ex-sócio do ofendido J. e que referiu que se recorda de o arguido ter aparecido na sua sucata para se encontrar com o J. Estiveram a conversar, não tendo ouvido a conversa. Depois saíram e foram ao stand buscar a carrinha, referindo que já não se recorda porque é que sabe que eles foram buscar a carrinha, admitindo que possa ter sido o J. que na altura lhe disse. Acrescentou que ouviu alguns telefonemas entre o arguido e o J. em que aquele lhe pedia os documentos da carrinha e o J.r lhe dizia que se ele lhe pagasse a carrinha lhos entregava. Referiu ainda que ouviu outro telefonema em que o arguido dizia que não tinha ido buscar a carrinha, referindo a testemunha que até achou graça porque não era verdade.

Disse ainda que o arguido quando lá foi nem era a carrinha que queria levar mas uma BMW que lá estava no stand mas não a levou porque estava para arranjar.

V que referiu que o seu colega R. lhe pediu para ir com ele levar uma carrinha a Vagos ao arguido. Foram então lá levá-la e ele depois foi levá-los a …, ao Stand do J.

Acrescentou que esteve uma vez na sucata da testemunha João mas nessa altura não esteve lá o arguido mas apenas ele e o R..

M que referiu que era o anterior proprietário do Audi e que o vendeu à Baviera. Acrescentou que recebeu um telefonema de uma pessoa a pedir-lhe para emitir uma segunda via, referindo que ela lhe disse que tinha adquirido o veículo e que tinha extraviado os documentos. Pronunciou-se ainda sobre o telefonema que lhe fez o ofendido J.r, pedindo-lhe para não emitir a segunda via da declaração de venda.

A., ofendido, que referiu que conheceu o arguido por intermédio da D. VA que lho apresentou. No dia 14 de …. de 2006 comprou ao arguido um BMW e entregou-lhe para pagamento um Jeep…. e dois cheques. Na posse da BMW levou-a à Baviera e disseram-lhe que ela tinha mais quilómetros do que aqueles que constavam do conta quilómetros e então telefonou ao arguido a dizer-lhe que não a queria e este aceitou retomar a BMW e trouxe-lhe uma Mercedes. Levou igualmente a Mercedes a uma oficina e disseram-lhe que havia irregularidades. Contactou de novo o arguido dizendo-lhe que não queria a Mercedes e este trouxe-lhe a Audi…, dizendo-lhe que sabia que não era bem aquele veículo que pretendia mas para a experimentar. Disse-lhe que os documentos estavam no carro mas como apenas se encontrava lá a fotocópia do livrete telefonou-lhe de imediato a dizer-lhe e ele disse que lhe levava os documentos no dia seguinte o que não sucedeu. Telefonou-lhe várias vezes a pedir os documentos mas este nunca lhos entregou e a partir de determinada altura deixou de lhe atender o telefone e por isso não tinha forma de lhe devolver a carrinha, ficando com ela na sua posse até que a mesma foi apreendida.

Instado referiu que nunca disse ao arguido que queria ficar com a carrinha nem nunca acordou com ele comprar-lha, dizendo que o arguido quando lha entregou lhe referiu que sabia que não era do seu agrado aquele carro mas que depois falavam. Referiu ainda que a Audi tinha um valor muito inferior à da BMW.

Acrescentou que como precisava de um carro para se deslocar para o seu local de trabalho teve de adquirir outro veículo muito mais barato mas que teve alguns problemas com ele.

MV que referiu que apresentou o arguido ao ofendido A e que se pronunciou sobre o negócio existente entre o ofendido e o arguido relativamente ao BMW e os carros que o arguido lhe entregou posteriormente. A testemunha referiu ainda que telefonou várias vezes ao arguido para ele solucionar o problema com os carros com o BMW e com a carrinha Mercedes. Depois mais tarde ele entregou-lhe uma carrinha Audi A6 e o arguido comprometeu-se a entregar-lhe os documentos no dia seguinte e não os entregou.

Instada sobre que tipo de negócio foi feita entre o arguido e o A. referiu que pensa que o arguido pretendia era arranjar-lhe um carro que fosse compatível com o carro que tinha inicialmente vendido.

ME, colega do ofendido A, e que referiu que houve uma altura em que o este andava bastante nervoso, ansioso e perguntou-lhe o que se passava e ele disse tinha um problema por causa de um carro.

MF, namorada do ofendido, e que referiu que ofendido ficou sem carro para o exercício da sua profissão. Acrescentou que em termos emocionais foi complicado e teve uma fase em que andava apático, triste e recorreu a ajuda médica. Disse ainda que o arguido adquiriu um carro velho e foi várias vezes com ele à oficina.

C. que referiu que conhece o arguido há cerca de 10 anos e que costuma conviver com ele aos fins de semana e que houve uma altura em que ele deixou de frequentar as reuniões de amigos e andava triste, abatido e que o mesmo lhe referiu que era por causa de um negócio de um carro.

AF que referiu que comprou dois carros ao arguido e foi ele que indicou ao ofendido António Espingardeiro o arguido para a compra do carro.

PC, psicólogo que se pronunciou sobre o relatório já junto aos autos, referindo que teve uma consulta com ele e que na altura o mesmo se apresentava ansioso, tinha insónias, e irritava-se facilmente.

AA, neurologista e que referiu que conhece o arguido há cerca de 13 anos e um dia este lhe pediu para o examinar porque não se sentia bem. Disse que na altura ele se queixava de dores na cabeça e insónias e que na altura conclui que se trataria de uma situação de stress e medicou-o.

JO que referiu que conhece o arguido por trabalhar no mesmo ramo e que um dia o levou a Ponte de Vagos para ir buscar um carro, um Audi…, não sabendo, no entanto, que negócio estava por trás.

Bom, no que concerne à prova produzida, há que referir que as declarações do ofendido pela forma coerente, peremptória e consistente como foram prestadas se nos afiguraram credíveis e conjugadas com o depoimento da testemunha JO, permitiram-nos concluir de forma segura que o arguido depois de saber por intermédio do R. que o veículo Audi .. ainda não tinha sido vendido, se deslocou com ele ao Stand do ofendido J. para ir buscar a carrinha com o objectivo de a entregar ao ofendido A e com a esperança de que este viesse a gostar da carrinha e acabasse por ficar com ela em troca do BMW… que lhe havia vendido, ainda que tivessem que acertar algumas contas uma vez que o valor da carrinha era inferior ao valor da BMW. Porém, quando o arguido estava no Stand viu lá uma carrinha BMW e era essa a carrinha que pretendia trazer por ser um carro com as mesmas características daquele que havia efectivamente vendido ao ofendido A e só não a trouxe porque ela estava para ser arranjada. Resulta ainda da prova produzida que o objectivo do arguido não era devolver a viatura ao ofendido J desde logo porque o mesmo contactou o anterior proprietário da viatura para que este lhe emitisse uma segunda via da declaração de venda e dos documentos e ainda pelo facto de posteriormente se ter furtado a qualquer contacto com o ofendido J, sendo certo que de acordo das regras da experiência outra conclusão não se pode retirar da actuação do arguido que o mesmo sabia que agindo desta forma prejudicava o ofendido.

No que concerne aos factos referidos em 5) tal resulta das declarações do arguido e do próprio ofendido A.

No que concerne aos factos dados como não provados, nomeadamente os referidos em 2) e 3) resulta desde logo das declarações do arguido e do ofendido que referiram que efectivamente o arguido não vendeu ao ofendido o veículo AudI.. mas apenas lho entregou para que este o utilizasse e experimentasse, referindo desde logo o ofendido A. que o arguido quando lhe entregou o veiculo lhe disse que não era o veiculo que ele queria mas para o experimentar, ainda que o objectivo do arguido fosse entregar o veículo ao ofendido em substituição do que lhe havia vendido inicialmente, caso o mesmo lhe viesse a agradar.

No que concerne aos factos dados como não provados referidos em 5 a 7 tal resulta do facto de nenhuma prova ter sido feita nesse sentido e do depoimento da testemunha Rui Grijó que se nos afigurou nessa parte credível.

Quanto aos factos referidos em 9 dos factos dados como não provados tal resulta do facto de se ter valorado positivamente o depoimento do ofendido J. pelas razões já supra referidas em detrimento da restante prova produzida e que não foi molde a abalar a credibilidade do depoimento deste ofendido.

No que concerne à restante matéria dada como não provada, tal resulta da ausência de prova suficiente nesse sentido.

Valorou-se ainda positivamente os documentos de fls. 9, 12, 13, 93, 94, 95, 96, 139, 151 a 164,183,

Teve-se ainda em conta quanto aos antecedentes criminais o certificado do arguido junto aos autos e no que se refere à situação sócio – económica nas declarações do arguido prestadas em audiência de discussão e julgamento.


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Vejamos cada uma das questões suscitadas.

i) Erro notório na apreciação da prova.

Importa ante de mais constatar, face às alegações de recurso efectuadas pelo recorrente sintetizadas nas suas conclusões, a sua discordância incide numa eventual errada valoração da prova produzida pelo tribunal, não invocando, no entanto, qualquer prova diversa que sustentasse outra decisão.

Decorre do disposto no art. 428.º, n.º 1, do CPP que as Relações conhecem de facto e de direito, sendo que, segundo o art. 431.º “sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”

Por sua vez e de acordo com o art. 412.º, n.º 3, “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas”.

Acrescenta-se no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.” Ou seja o recorrente deve indicar a) os factos impugnados; b) a prova de que se pretende fazer valer; c) identificar ainda o vício revelado pelo julgador aquando da sua motivação na livre apreciação da prova.

Vale a pena sublinhar que é jurisprudência uniforme que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso – vejam-se os Ac. do STJ de 16.6.2005, Recurso n.º 1577/05), e de 22.6.2006 do mesmo Tribunal.

É, igualmente, jurisprudência pacífica a praticamente uniforme que os vícios do artigo 410º n.º 2 do CPP, em todas as suas alíneas têm que resultar da própria decisão/sentença, como documento único, embora essa conjugação possa ser referente às regras da experiência (cf. Ac. STJ, 17 de Março de 2004, na mesma base de dados).

Assim o «erro notório na apreciação da prova», identificado como um dos vícios susceptíveis de possibilitar a reapreciação da prova pelo tribunal de recurso, consubstancia-se numa errada apreciação probatória efectuada pelo Tribunal, desde que resulte do próprio texto da sentença, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

Enquadrada, normativamente, a possibilidade legal de conhecer do recurso sobre a matéria de facto, importa desde já referir que o recorrente, no caso sub judice, não fez uso de qualquer dos mecanismos disponibilizados pelo artigo 412º n.º 3.

Nesse sentido o recurso incidirá na apreciação de um eventual erro notório na apreciação da prova nos termos em que foi referido: o mesmo terá que resultar do próprio texto da sentença, por si só ou conjugada com as regras da experiência

Em face destes considerados, vale a pena começar por referir que o Tribunal efectuou uma extensa análise critica da prova produzida, fundamentando de uma forma ampla as suas opções probatórias de modo a não deixar dúvidas porque decidiu da forma que decidiu (e não de outra) dentro do quadro legal do princípio geral da livre apreciação da prova. E fê-lo traduzindo no texto da sentença essas opções valorativas que em função do amplo conjunto de provas (sobretudo testemunhais, no que tange à questão fundamental em apreço) entendeu serem justificadas.

E a questão fundamental decorre efectivamente dos factos 1 a 3 e 8 da sentença que, sinteticamente, demonstram que, no âmbito da actividade de compra e venda de negócios de automóveis em que estavam envolvidos, o arguido, em 26 de …. de 2006, levou consigo o veículo Audi…, pertencente ao ofendido G., para o mostrar a um potencial comprador, com a condição de o devolver no dia seguinte, sendo que nunca mais o devolveu ao G., na medida em que o entregou efectivamente ao referido potencial comprador, para substituição de um outro veículo BMW … que lhe havia vendido.
Tal factualidade decorre da prova produzida, como bem refere o Tribunal, na sua fundamentação, pese embora os depoimentos algumas testemunhas referentes à forma menos clara como se tratam os negócios de compra e venda de veículos, nomeadamente entre o arguido e o ofendido G.
Conforme decorre da fundamentação da sentença, e concretamente do depoimento do ofendido J. G. valorado pelo Tribunal, «O R e o arguido foram então ao seu Stand buscar a carrinha tendo acordado com o arguido que este levaria a carrinha para a mostrar a um cliente com a condição de ele no dia seguinte a entregar. No dia seguinte telefonou-lhe e ele disse que já a tinha vendido e que apenas aguardava que o cliente fizesse um contrato de crédito».
A prova em que se sustenta o facto relevante relativo à entrega do veículo pelo ofendido ao arguido, na pressuposição de que seria para venda a um cliente deste, decorre claramente do depoimento citado pelo Tribunal.

Já não são relevantes, para efeitos da conduta em causa, como pretende o recorrente e sobre esta matéria, os depoimentos das testemunhas R, AA e JO depoimentos que, segundo a sua versão, impõem concluir que não foi o arguido que foi ao stand do J. G.. buscar o Audi …, mas sim a testemunha R. que ali o foi buscar e o foi levar ao arguido à localidade onde este reside, Ponte de Vagos.

Conforme se refere na motivação da sentença, o Tribunal efectuou uma acareação entre as testemunhas R e ofendido J. onde este manteve «a sua posição e acrescentou que o arguido [L], o R e um primo deste foram ter com este á sucata do seu ex-sócio JO e depois foram ao Stand buscar a carrinha(…). A testemunha Ri referiu que não se recordava de parte das coisas nomeadamente a forma como foi feito o contacto entre ele e a testemunha para a venda da Audi nem o preço dela.

Ou seja não existe qualquer erro notório na apreciação da prova produzida no que tange à matéria de facto impugnada nomeadamente, que o arguido L não esteve na entrega do veículo.

O que é certo e relevante, para efeitos do objecto do processo em causa, é que o Tribunal deu como provado com base em provas não questionadas que o ofendido J entregou o veículo ao arguido L para este mostrar a um cliente, sendo que o arguido, no mesmo dia, o entrega a um cliente para substituir um outro veículo que este lhe tinha comprado e que tinha devolvido, não mais o devolvendo ao seu legitimo proprietário.

Relativamente a estes factos essenciais a fundamentação da sentença é absolutamente idónea e não apresenta qualquer dúvida ou contraditoriedade notória.

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O recorrente insurge-se, ainda, nesta parte do recurso quanto ao facto de ter havido erro de julgamento quanto ao «ponto 4 da mesma motivação(…), no que tange ao “animus domini” por parte do arguido. Segundo o recorrente do depoimento do ofendido A, há que concluir que o arguido nunca lhe pretendeu vender o Audi A6, tendo-lhe dito que não era carro para ele.

Importa antes de mais, para que se tenha uma visão adequada sobre o que está em causa em termos jurídicos, constatar que o que efectivamente está em apreciação é a eventual ocorrência de factos que consubstanciem um crime de «abuso de confiança».

Daí que é importante saber de que é que se fala quando, em termos de subsunção de factos ao direito, se fala de abuso de confiança e especificamente nos elementos típicos deste crime.

O tipo criminal abuso de confiança, conforme decorre do artigo 205º n.º 1 do C.Penal, estrutura-se no facto de alguém, ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título translativo de propriedade.

No crime de abuso de confiança a questão essencial delimitativa do tipo criminal decorre da inversão do título de posse da coisa efectuada pelo agente, «que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais – uti dominu» (cf. Comentário Conimbricense do Código penal», Tomo II, p. 103). É nesta inversão do título que se encontra o núcleo essencial que permite a identificar o elemento essencial «apropriação» para si, a que se refere aquele artigo 205º do C.Penal.

A apropriação para si não quer dizer necessariamente que o agente fique com a coisa na sua posse. Pode transmitir nesse ou noutro momento a coisa a terceiro, não deixando, por isso, num determinado momento de se ter apropriado da coisa.

Efectuados estes esclarecimentos, relevantes para compreensão da factualidade, o que está em causa nos autos é exactamente uma situação em tudo semelhante. Ou seja, entregue ao arguido um veículo para que este o mostrasse a um potencial comprador, o arguido que não tinha título legitimo relativo à propriedade do mesmo, dispôs dele como se fosse seu (e nesse sentido dele se apropriou) e imediatamente o transmitiu a um terceiro.

Em situação semelhante o STJ veio referir que «Elemento da factualidade típica do crime de abuso de confiança p. e p. no art. 205º do Código Penal é o da entrega "por título não translativo da propriedade", designando "o título" não o documento ou instrumento através do qual se prova a existência de um facto ou direito, mas sim a causa por quem o direito legitimamente ingressa na titularidade de alguém.

No caso dos autos, a exclusão da ausência de título derivaria da existência de um contrato de compra e venda tendo por objecto o automóvel, com o consequente ingresso do arguido na titularidade do direito de propriedade do veículo»: veja-se o Ac. STJ 10.11.1999 in www.dgsi.pt (STJ).

No caso em apreço, a fundamentação da prova em que o tribunal sustentou a sua decisão, foi apreciada globalmente mas, num primeiro momento parcelarmente em função dos depoimentos prestados em audiência.

Esse modo de fundamentação sustentou-se para aquele facto essencial referente à inversão do animus possidendi, no depoimento (fundamental, diga-se) do terceiro A. que recebeu a viatura, nomeadamente quando o arguido lha entregou não lhe ter referido que o veículo não era sua propriedade ou que não teria sobre ela uma legitima titularidade. Aliás, a entrega do veículo em causa decorre de uma substituição de dois veículos anteriores adquiridos (sublinhado nosso) pelo referido terceiro ao arguido que não estariam nas condições contratadas. É isso que decorre da fundamentação elaborada pelo Tribunal na sentença: «A ofendido, que referiu que (…)No dia 14 de …. de 2006 comprou ao arguido um BMW e entregou-lhe para pagamento um Jeep …. e dois cheques. Na posse da BMW levou-a à Baviera e disseram-lhe que ela tinha mais quilómetros do que aqueles que constavam do conta quilómetros e então telefonou ao arguido a dizer-lhe que não a queria e este aceitou retomar a BMW e trouxe-lhe uma Mercedes. Levou igualmente a Mercedes a uma oficina e disseram-lhe que havia irregularidades. Contactou de novo o arguido dizendo-lhe que não queria a Mercedes e este trouxe-lhe a Audi.., dizendo-lhe que sabia que não era bem aquele veículo que pretendia mas para a experimentar. Disse-lhe que os documentos estavam no carro mas como apenas se encontrava lá a fotocópia do livrete telefonou-lhe de imediato a dizer-lhe e ele disse que lhe levava os documentos no dia seguinte o que não sucedeu. Telefonou-lhe várias vezes a pedir os documentos mas este nunca lhos entregou e a partir de determinada altura deixou de lhe atender o telefone e por isso não tinha forma de lhe devolver a carrinha, ficando com ela na sua posse até que a mesma foi apreendida. Instado referiu que nunca disse ao arguido que queria ficar com a carrinha nem nunca acordou com ele comprar-lha, dizendo que o arguido quando lha entregou lhe referiu que sabia que não era do seu agrado aquele carro mas que depois falavam».

Da matéria de facto provada e da sua fundamentação não decorre, por isso, qualquer incorrecto julgamento da matéria de facto quanto a este facto essencial, tendo em conta os princípios a que foram referidos a propósito do erro notório na apreciação da prova.

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ii) Inexistência de prova referente ao elemento crime de abuso de confiança, inversão do animus possidendi e violação do princípio da presunção de inocência do arguido.

O recorrente veio também evidenciar uma eventual violação do princípio do in dubio pro reo ocorrida no processo de valoração e fixação da matéria de facto a propósito de não se ter provado que «o arguido nunca terá pretendido vender o Audi A6».

O princípio da presunção de inocência é um dos princípios fundamentais em que se sustenta o processo penal num Estado de Direito.

Assumido como uma dos princípios estruturantes no âmbito da prova, nomeadamente no domínio da questão de facto, o princípio in dúbio pro reo além de ser uma garantia subjectiva «é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa» (Vital Moreira e Gomes Canotilho, CRP Anotada, 3ª Edição, págs. 203-4).

O que está em causa neste princípio é, na persistência de uma dúvida razoável após a produção de prova em relação a factos imputados a um suspeito, um comando dirigido ao tribunal para «actuar em sentido favorável ao arguido» (cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1981, p. 215).

No caso concreto não se suscitou ao tribunal qualquer dúvida razoável sobre a actuação do arguido no momento em que entregou o veículo ao terceiro A. para «para que este o experimentasse e utilizasse e caso o ofendido viesse a gostar dele, ficar com ele em substituição do veículo BMW … que lhe havia vendido».
Conforme foi já apreciado no ponto anterior, quanto à não ocorrência de qualquer erro na apreciação da prova sobre esta matéria, a prova sobre tal facto dado como provado pelo Tribunal sustenta-se essencialmente no depoimento daquela testemunha e no próprio depoimento do arguido. Insiste-se e repete-se que a entrega do veículo em causa decorre de uma substituição de dois veículos anteriores adquiridos (sublinhado nosso) pelo referido terceiro ao arguido que não estariam nas condições contratadas
Ou seja, no caso, não se verifica – nem isso decorre da fundamentação de facto que sustenta a prova efectuada - qualquer ausência de certeza do tribunal sobre a factualidade dada como provada.

Não se vislumbra, por isso, qualquer violação do princípio da presunção de inocência do arguido no modo como o Tribunal valorou as provas, concretamente sobre a questão em apreço, e através delas fixou a matéria de facto provada e fundamentou a decisão.

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III. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em 7 Ucs (Artº 87º nº 1 b) e 3 CCJ).
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artigo 94º nº 2 CPP).

Coimbra, 10 de Fevereiro de 2010

Mouraz Lopes


Félix de Almeida