Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1700/08.2TBPBL-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
APREENSÃO
MASSA INSOLVENTE
Data do Acordão: 03/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA SENTENÇA
Legislação Nacional: ARTS.88 E 149 DO CIRE, 601 DO CC
Sumário: Vendido, em acção executiva, um bem de um devedor/executado contra quem, posteriormente, vem a ser decretada insolvência, o produto dessa venda, colocado à ordem de um exequente, ainda não afecto ao pagamento dos credores, nem entre eles repartido, deve ser apreendido para integrar a massa insolvente, nos termos do artigo 149º, nº2 do CIRE.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

“(…) I.P.” foi notificada, no âmbito do processo de insolvência instaurado contra (…), Ldª”, em que esta sociedade foi declarada insolvente, para proceder à transferência da quantia de € 83.570,00, produto da venda do imóvel da firma insolvente efectuada no processo nº 1001200201001930, e respectivos juros.

Por não se conformar com tal decisão (…) I.P.” veio interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

- O Tribunal a quo não podia ter ordenado a transferência da referida verba sem antes ter sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos naquele processo do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, onde se realizou a venda do bem imóvel penhorado, cujo valor da venda se acha depositado à ordem do exequente, bem como ordenada e efectuada a distribuição do produto da venda;

- O imóvel nunca poderia ser considerado integrante da massa insolvente, sendo inaplicável o nº1 do artigo 85º do CIRE,

- O mesmo se verificando em relação ao dinheiro depositado, a afectar ao exequente, trabalhadores, Estado e custas, não sendo de aplicar o artigo 88º, n1 do mesmo diploma legal.

- A venda executiva foi concretizada e extinguiu-se com o pagamento do preço através do seu depósito à ordem do recorrente, o qual estaria afecto à satisfação dos créditos reclamados e respectivas custas;

- O despacho recorrido afectou os direitos e interesses do recorrente, pois não poderia aplicar o disposto no artigo 180º do CPPT, bem como os artigos 85º e 88º do CIRE.

- O mesmo fez incorrecta aplicação dos artigos 180º do CPPT e 85º e 88º do CIRE, violando os artigos 245º, 246º e 24º do CPPT.

O Ministério Público contra – alegou, pugnado pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

2.  Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente se, proferida decisão a declarar a insolvência de uma sociedade, contra a qual fora previamente instaurada acção executiva num Tribunal Administrativo à ordem do aí exequente, sem que tendo nela sido proferida decisão de verificação e graduação de créditos, pode no processo de insolvência ser ordenada a transferência do produto da referida venda, e respectivos juros, para a massa insolvente.

III. FUNDAMENTO DE FACTO

São os seguintes os factos relevantes para a apreciação do objecto do presente recurso:

- No processo de execução n° 1001200201001930, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, em que é executada ‘(…)” foi a esta penhorado um bem imóvel, inscrito na matriz sob o n° xxxx..., da freguesia de xxxx...e descrito na Conservatória do Registo Predial de xxxx...sob o n° yyy., a favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.

- A venda desse bem penhorado foi realizada no dia 11/09/2007, pelas 11 horas, por meio de propostas em carta fechada, tenho sido adjudicado à sociedade (…) que exerceu o direito de preferência.

- Por decisão datada de 17 de Dezembro de 2008, proferida no processo nº 1700/08.2TBPBL, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, foi decretada a insolvência de (…)”, tendo na mesma decisão sido decretada “a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência dos elementos de contabilidade da devedora e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos”.

- Por requerimento de 15.04.2009, o Administrador da insolvência requereu à Senhora Juíza do processo nº 1700/08.2TBPBL, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal que ordenasse ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, Secção de Processos, que efectuasse a transferência para a conta da massa insolvente da quantia de € 83.570,00 e respectivos juros, referente ao processo nº 1001200201001930, correspondente ao produto da venda do imóvel.

- Efectuada a notificação do referido Instituto, para aquele efeito, veio o mesmo, por requerimento de 22 de Junho de 2009, sustentar não poder dar cumprimento ao solicitado quanto à transferência do produto da venda para a conta da massa insolvente por entender que, realizada a venda executiva antes de decretada a insolvência da executada, o seu produto não pode pertencer à massa insolvente.

- Em 26.06.2000, o Sr. Administrador da insolvência juntou aos autos novo requerimento, confirmando o teor do anteriormente apresentado, reiterando o pedido de transferência do produto da venda para a conta da massa insolvente.

- O Instituto de Segurança Social, I.P., Centro Distrital de ...., na qualidade de credor e membro efectivo da Comissão de Credores no processo de insolvência juntou ao mesmo requerimento, defendendo que, vendido o bem em sede de execução, o mesmo deixa de pertencer à insolvente, e, como tal, não pode ser apreendido a favor da mesma, entende não ser legalmente admissível o requerido pelo Sr. Administrador da Insolvência.

Em 08.07.2009, é proferido nos autos de insolvência o seguinte despacho: “Tal como é referido pelo Sr. Administrador a fls. 220 e segs. e pelos credores de fls. 222 a 224 e requerimento datado de 3/07/2009, resulta do estatuído no art. 88º do CIRE, que a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao  prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência, daqui resultando que o processo de insolvência determina a proibição de instauração ou prosseguimento de acções executivas, bem como de qualquer penhora, arresto ou arrolamento sobre os bens que integram a massa insolvente, vigorando essa proibição enquanto durar o processo.

Assim, a execução que a que se alude a fls. 217 deve ser imediatamente extinta por impossibilidade superveniente da lide.

Acresce que estando a venda de bens da insolvente efectuada em tal processo de execução, à data da declaração da insolvência, tal não significa, antes pelo contrário, que o produto de tal venda não deva ser apreendido para a massa insolvente – cfr. Art. 149º do CIRE. (…).

Assim, notifique a Segurança Social para que proceda à transferência para a conta da insolvente do valor de €83 570 e respectivos juros, referente ao processo 1001200201001930, correspondente ao produto da venda do imóvel da insolvente”.

           

            IV. FUNDAMENTO DE DIREITO

            Pode retirar-se do preâmbulo do Decreto – Lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprova o Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa (CIRE): “O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.

            A finalidade precípua do processo de insolvência – permitir o pagamento, na maior medida possível, de todos os credores do insolvente, é assegurada no diploma em causa por mecanismos vários que facultam a reintegração de bens no património do devedor insolvente que, em prejuízo dos seus credores, dele haviam saído ou na massa insolvente, após a declaração judicial da insolvência, apreendendo para a mesma não apenas os bens que, àquela data, se mantêm na titularidade do insolvente, como ainda os que nela se manteriam se não fossem praticados ou omitidos actos com prejuízo para a massa insolvente.

            Os objectivos prosseguidos pelo processo de insolvência, através dos vários mecanismos processuais nele previstos, passam fundamentalmente por, num único processo, reunir todos os bens que constituem o património do devedor/insolvente, por meio da sua apreensão para a massa insolvente, proceder à sua liquidação, e, através do produto assim obtido, satisfazer, na medida do possível, os créditos dos credores daquele. Ou seja: “[A] razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade (par conditio creditorum), não tendo nenhum credor quaisquer outros privilégios ou garantias que não aqueles que sejam reconhecidos pelo Direito da Insolvência, e nos precisos termos em que este os reconhece”.[3]

            Como esclarece Luís Carvalho Fernandes[4], a natureza do processo de insolvência, como execução universal, “…manifesta-se, desde logo, no facto de a declaração de insolvência implicar a apreensão e liquidação de todos os bens penhoráveis. Mas para ela ganhar a sua plena consagração, torna-se necessário que se criem mecanismos que assegurem:

            a) a participação de todos os credores no processo;

            b) o tratamento igualitário dos credores, segundo a qualidade dos seus créditos”.

            É neste contexto que se insere a disposição contida no artigo 149º do CIRE. Dispõe o seu nº 1: “Proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido:

            a) Arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social;

            b) Objecto de cessão aos credores, nos termos dos artigos 831.° e seguintes do Código Civil”.

            E com particular relevo para o objecto da discussão no presente recurso, retira-se do nº 2 do citado normativo: “Se os bens já tiverem sido vendidos, a apreensão tem por objecto o produto da venda, caso este ainda não tenha sido pago aos credores ou entre eles repartido”.

            O preceito em causa ajusta-se, de resto, à própria lei substantiva, já que o artigo 601º do Código Civil, a propósito das garantias gerais das obrigações, estabelece como princípio geral, que “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora…”, prevendo que “não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor…”[5].

            Ainda no mesmo enquadramento teleológico daquela disposição legal do CIRE, se insere a norma do artigo 88º, nº1 do mesmo diploma, quando estabelece: “a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas (…) e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência”.

            No caso em apreço, em acção executiva fiscal instaurada antes de decretada a insolvência da sociedade devedora, procedeu-se à penhora e venda de um imóvel da mesma, tendo o produto da venda sido depositado à ordem do exequente, aqui recorrente.

            Esse valor ainda não foi repartido pelos credores, nem foi afecto ao pagamento do seu crédito: como reconhece o próprio apelante, no processo tributário ainda não foi proferida decisão de verificação e graduação de créditos, condição necessária à efectivação dos pagamentos ou repartição entre eles do produto da venda.

            O artigo 180º, nº1 do Código de Procedimento e Processo Tributário já, de resto, se ajustava à regra contida no artigo 88º, nº1 do CIRE, ao prever: “proferido o despacho judicial de prosseguimento da acção de recuperação da empresa ou declarada falência, serão sustados os processos de execução fiscal que se encontrem pendentes e todos os que de novo vierem a ser instaurados contra a mesma empresa, logo após a sua instauração”.

            É, pois, claro, face às normas citadas, que, vendido um bem do devedor/insolvente em acção executiva, ainda que em data anterior à sua declaração judicial de insolvência, não tendo, na referida execução, sido distribuído o produto da venda pelos credores, que tal produto deverá reverter para a massa insolvente, sendo o depósito do respectivo valor colocado à ordem da mesma.

            Só assim se dará cumprimento às disposições legais enunciadas e se almejará prosseguir as finalidades do processo de insolvência.

Como tal, nenhuma censura merece o despacho recorrido que, assim, se mantém.


*

Conclusão:

Vendido, em acção executiva, um bem de um devedor/executado contra quem, posteriormente, vem a ser decretada insolvência, o produto dessa venda, colocado à ordem de um exequente, ainda não afecto ao pagamento dos credores, nem entre eles repartido, deve ser apreendido para integrar a massa insolvente, nos termos do artigo 149º, nº2 do CIRE.


*

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo, assim, a decisão recorrida.

Custas: pelo recorrente.


[1] artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto
[2] art.º 664º do mesmo diploma
[3] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, Almedina, Coimbra, 2009, p. 167).
[4] “Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência”, pág. 199
[5] Artigo 817º do Código Civil