Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
940/18.0T8CTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: ÁGUAS
RECURSOS HÍDRICOS
ÁGUAS PÚBLICAS
CORRENTES NÃO NAVEGÁVEIS NEM FLUTUÁVEIS
LEITOS
PRÉDIOS PARTICULARES
Data do Acordão: 12/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS 84 CRP, 1387 CC, LEI Nº 54/2005 DE 15/11
Sumário: No caso de águas públicas não navegáveis localizadas em prédios particulares, a respetiva margem, com a largura de 10 m, é particular, e o leito também, sujeitos a servidões administrativas; se a corrente passar entre dois prédios, pertence a cada proprietário o tracto compreendido entre a linha marginal e a linha média do leito; tudo nos termos dos arts. 12º, nº 2, da Lei 54/05, de 15.11 (Regime da Titularidade dos Recursos Hídricos) e 1387º, nº 1, b) e 3, do Código Civil.
Decisão Texto Integral:





I – Relatório

 

1. M (…), residente em Lisboa, intentou contra o ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público, peticionando:

a) o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a parcela do Prédio descrito sob o nº 1721/ X (...) , com 10m de largura, que constitui a margem do Rio Pônsul, e bem assim sobre o respectivo leito, dentro dos limites previstos no nº 3 do artigo 1387º do Código Civil;

ou

b) no caso do Tribunal entender que o Rio Pônsul é navegável e flutuável no troço em que confronta com o Prédio descrito sob o nº 1721/ X (...) ser reconhecido o direito de propriedade da Autora sobre a parcela do Prédio descrito sob o nº 1721/ X (...) , com 30m de largura, que constitui a margem do Rio Pônsul, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 15.º/1 e 2 da Lei n.º 54/2005.

Invocou, para tanto, que na parte que confronta com o seu prédio denominado Monte (...) , o Rio Pônsul não é navegável nem flutuável pelo que lhe pertence a faixa de 10m contados desde o limite do leito do Rio Pônsul, nos termos da Lei 54/2005, de 15.11 (que estabelece o Regime da Titularidade dos Recursos Hídricos), seus arts. 11º, nº 4, e 12º, nº 2, da Lei n.º 54/2005 e ainda dos nºs. 1, b) e 3 do art. 1387º do Código Civil, bem como parte do leito do referido Rio.  

Subsidiariamente, e para o caso de se entender que o Rio Pônsul é navegável ou flutuável, no troço que confronta com o Monte (...) , o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a respectiva margem terá a largura de 30m contados desde o limite do leito.

Contestou o Mº Pº, opondo-se ao peticionado, uma vez que não há qualquer prova documental da propriedade antes de 1941 relativamente ao terreno em crise. Por outro lado, no que diz respeito à identificação do prédio nº 1721 do X (...) como confrontando, do Norte, com o Rio Pônsul, tal não está demonstrado. Isto porque da descrição nº 1721 do X (...) foram desanexados três prédios que se mostram autonomizados, pelo que há que proceder à identificação de cada um deles por forma a apurar-se qual a sua identificação, nomeadamente qual ou quais deles confrontam com o Rio Pônsul. Finalmente, e comprovando a autora que o prédio identificado confronta com o Rio Pônsul, importa demonstrar se essa confrontação é com a albufeira da Barragem do Cedilho.

*

Foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, ao abrigo do art. 12º, nº 2, da Lei 54/2005, declarou que a parcela do Prédio inscrito na Conservatória do Registo Predial de Idanha-a-Nova sob o nº 1721 e inscrito na matriz da freguesia do X (...) sob os arts. nºs 11, A-A1, 1064, 1851 e 2182, com 10m de largura, que constitui a margem do Rio Pônsul, e bem assim sobre o respectivo leito, dentro dos limites previstos no nº 3 do art. 1387º do Código Civil é propriedade particular da A., sendo os mesmos sujeitos a servidões administrativas decorrentes da Lei.

*

2. O Mº Pº recorreu tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. A A. contra-alegou, concluindo que:

(…)

II - Factos Provados

1. Na escritura pública outorgada em 25.09.1854 no então 12.º Cartório Notarial de Lisboa, cuja cópia se encontra arquivada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo na cx. 44, livro 216, fls. 49v a 50v., consta que entre A (…) na qualidade de proprietário e senhorio e R (…) na qualidade de arrendatário, foi celebrado um contrato de arrendamento de um conjunto de propriedades que designaram como “morgados de São Vicente e X (...) situados no Distrito de Castelo Branco”.

2. O Ali identificado A (…) declarou perante o notário que: “…entre os morgados de sua Casa, se compreendem os de São Vicente e X (...) , situados no Distrito de Castelo Branco, dos quais tem sido, e é actualmente rendeiro por sublocação o segundo outorgante; e que tendo convencionado com ele fazer-lhe um novo, e mais longo arrendamento dos mesmos Morgados, por isso por esta Escritura e na melhor forma de Direito, ele Exmo. Primeiro Outorgante com efeito dá de arrendamento ao segundo outorgante, dito R (…), os mencionados morgados de São Vicente e X (...) , situados no Distrito de Castelo Branco, com todos os bens, rendimentos, e mais pertenças e anexos, de que eles se compõem…”;

3. Bem como fez contar que o contrato de arrendamento outorgado em 25.09.1854 foi celebrado pelo prazo de 20 anos com início a 01.01.1855

4. Em 07.07.1864, A (…) e R (…) outorgaram uma nova escritura pública, no 15.º Cartório Notarial de Lisboa, cuja cópia se encontra arquivada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo na cx. 48, livro 353, fls. 49v a 50v., sendo o objecto da mesma prorrogação do prazo do contrato de arrendamento que haviam celebrado em 25.09.1854 e ainda para constituição de hipoteca a favor do arrendatário sobre o imóvel arrendado, em garantia do valor das rendas pagas antecipadamente

5. Ali consta que “E pelo Exmo. Primeiro outorgante foi dito em presença das testemunhas ao diante nomeadas e assinadas; que por escritura de vinte e cinco de Setembro de mil oitocentos e cinquenta e quatro, lavrada a folhas quarenta e nove verso do livro cento e seis das notas do tabelião que foi desta cidade, A (…) deu de arrendamento ao segundo outorgante os bens, que constituem os morgados de sua casa denominados de São Vicente e X (...) , situados no Distrito de Castelo Branco…”.

6. Mais ali declararam que “Que se obriga a fazer bom, firme e de paz para sempre o dito arrendamento e a prorrogação acima contratada, bem como a quitação da totalidade das rendas, e ao cumprimento desta obrigação hipoteca especialmente os mesmos bens arrendados, que são os seguintes: o Monte Gramesinho, que parte de norte com a folha do X (...) , pelo sul com o Monte dos Garranchos, pelo nascente com o Monte Magro e Chaparral de Monforte e, pelo poente com o Monte Silveiro; o Monte (...) que parte pelo norte com a folha de Idanha-a-Nova, pelo sul com (…), pelo nascente com a folha do X (...) ” .

7. Em 20.10.1868, foi outorgada nova escritura no mesmo 15.º Cartório Notarial de Lisboa, perante o tabelião (…), escritura essa cuja cópia se encontra arquivada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo na cx. 53, livro 378, fls. 27v a 28 onde intervieram A (…) enquanto senhorio e mutuário, e F (…), na qualidade de herdeiro do arrendatário R (…)  sendo ambos como mutuantes.

8. Ali os mutuantes F (…) e F (…) concederem ao mutuário A (…)  um empréstimo no valor de “oito contos de réis” e em contrapartida do mútuo que então lhe foi concedido, A (…) comprometeu-se a pagar aos mutuantes a quantia que lhe foi mutuada, acrescida de um juro anual de 6%

9. O mutuário A (…) declarou ainda na escritura outorgada em 20.10.1868 “Que para o caso de que até ao fim de Dezembro do ano de mil oitocentos e setenta e sete, os segundo outorgantes ainda não estejam embolsados do dito capital e juros, lhes consigna por tantos anos quantos sejam necessários para integral pagamento do seu crédito a renda anual de novecentos [entre a presente linha e a superior:] + e vinte + mil reis dos bens que actualmente possui e que constituíam os morgados de sua casa denominados de São Vicente e X (...) , no Distrito de Castelo Branco. Que por escritura de vinte e cinco de Setembro de mil oitocentos e cinquenta e quatro, lavrada a folhas quarenta e nove verso, do Livro cento e seis das notas do tabelião que foi desta Cidade A (…)ele primeiro outorgante deu de arrendamento ao falecido R (…), pela renda anual de novecentos [entre a presente linha e a superior:] + e vinte + mil reis, e por vinte anos, que [entre a presente linha e a superior:] + hão-de + findar a trinta e um de Dezembro de mil oitocentos e setenta e quatro, os bens que constituíam os ditos morgados.”

10. Para garantia do cumprimento das obrigações por si assumidas no âmbito do contrato de mútuo, declarou A (…) na aludida escritura de 20.10.1868 “Que ao cumprimento deste contrato ele primeiro outorgante hipoteca especialmente a sua propriedade denominada Monte (...) , que consta de casas, lagar de azeite e terras de olival, e árvores de azinho, cortada a parte pelo Rio Ponsul, na Freguesia de X (...) , Concelho de Idanha-a-Nova, que parte com a folha desta Villa e com a folha do X (...) .”

11. Em 20.11.1868 foi aberta, a fls. 171 do Livro B 3.º da Extinta Conservatória da Comarca de Idanha-a-Nova, a descrição predial a que foi atribuído o n.º 471 da freguesia de (...) do X (...) , com o seguinte teor “Monte denominado o (...) , compõe-se de casas de habitação, lagar de azeite, terras de cultura, e de olival, e árvores de azinho, cortado em parte pelo rio Ponsul; É situado no limite do X (...) , freguesia de Nossa Senhora da Expectação, parte pelo Norte com a folha das Rabaças de Idanha-a-Nova, pelo Nascente com a folha das Cardelas, pelo Sul com a folha do Seixeiro ambas do X (...) , e pelo Poente com o rio Ponsul.”

12. O título que serviu de base à abertura da descrição predial n.º 471 foi a escritura que celebrada em 20.10.1868,

13. Tal consta da descrição predial n.º 471 da freguesia (...) do X (...) , onde se pode ler que “O título apresentado foi entregue ao representante, sem que ficasse duplicado, por ser uma escritura pública com data de vinte de Outubro de mil oitocentos e sessenta e oito, feita nas notas do tabelião de Lisboa (…), no seu livro trezentos e setenta e oito a folhas vinte e sete; e a declaração fica arquivada nesta Conservatória no maço primeiro do corrente ano.”

14. A descrição predial n.º 471 da freguesia de (...) do X (...) foi objecto de diversas actualizações que lhe foram sendo averbadas e que constam, sucessivamente fls. 141v do livro B40 da Extinta Conservatória da Comarca de Idanha-a-Nova; fls. 11 do livro B55 da Extinta Conservatória da Comarca de Idanha-a-Nova.

15. Ao longo dos anos que se seguiram à abertura da descrição n.º 471, foram sendo inscritos a favor dos respectivos titulares alguns dos direitos que se foram constituindo sobre esse prédio.

16. Através da inscrição n.º 3.911 de 22.10.1941, a propriedade do prédio descrito sob o n.º 471 foi inscrita a favor de M (…), que ali consta como tendo adquirdo propriedade do prédio no âmbito de um processo de inventário “a que, no Juízo de direito da Comarca de Castelo Branco se procedeu por óbito de F (…) e Esposa (…) julgado por sentença de 14 de Agosto de 1873, que transitou em julgado.”

17. Posteriormente, o prédio descrito sob o n.º 471 entrou na propriedade de M (…), que o recebeu por doação da anterior proprietária M (…)e seu marido G (…).

18. Através da inscrição n.º 3.912 de 22.10.1941, a propriedade do prédio descrito sob o n.º 471 foi inscrita a favor da referida M (…)

19. O prédio descrito sob o n.º 471 foi posteriormente deixado em legado por M (…)  ao seu sobrinho A (…)

20. A propriedade do prédio descrito sob o n.º 471 foi inscrita a favor de A (…) através da inscrição n.º 4.288, de 18.05.1943.

21. A descrição predial n.º 471 da freguesia de (...) do X (...) foi objecto de extractação para a ficha n.º 00831/19910620 da freguesia de X (...) , nos termos da anot. 1 à descrição predial n.º 471 e ainda descrição em livro do prédio 00831/19910620

22. A ficha predial n.º 831/19910620 contém a referência expressa à descrição em livro que vem substituir no respectivo canto superior esquerdo, no qual se refere: “DESCRIÇÃO EM LIVRO: N.º 471, LIVRO N.º: 3 Ex” tendo por isso vindo a substituir a descrição em livro n.º 471, pelo que ambas se referem à mesma realidade predial.

23. Da ficha n.º 831/19910620, designado “Herdade (...) ”, consta a seguinte descrição: “Terra de cultura arvense, solo subjacente de cultura arvense, cultura arvense de regadio, com sobreiras, oliveiras, azinhal, horta, 3 dependências, prado natural, linha e curso de água e 3 casas que servem de arrecadação - Norte, Rio Ponsul; Sul, Dr. Seabra Andrade Silveira, Manuel Magro e outros; Nascente: Dr. (…) e outros; Poente, (…) e Estrada. Desanexado o prédio nº 01721/200899” (v. fls. 9 do DOCUMENTO N.º 1).

24. Através do averbamento 2 (v. AP. 05/200899), o Monte (...) foi desanexado do prédio descrito sob o n.º 831/19910620, dando origem a uma nova ficha com o n.º 01721/200899

25. A ficha predial do n.º 01721/200899 apresentava a seguinte descrição do prédio: “Misto – Herdade (...) – Monte (...) – Cultura arvense, solo subjacente de cultura arvense, cultura arvense de regadio, olival, oliveiras, azinhal, prado natural, charcos, linha de curso de água, 3 dependências e 2 casas: um de r/c – S.C. 160m2 e anexo – 31m2; e outra de r/c – S.C.: 55m2 – Área total: 536,200 ha – Norte, Rio Ponsul; Sul, (…)  Nascente: Estado, Caminho Público, (…) – V.P.:3.911.997$00 – V.V.: 5.000$00 – Artigos 11 Secção A-A1 rústico; e urbanos 1.851 e omisso na matriz. Desanexado do n.º 00831/200691”

26. Também na ficha n.º 01721/200899 foi inscrito (v. cota G-1) o facto a que corresponde a AP. 04/180543, ou seja, a aquisição da respectiva propriedade A (…), por legado de M (…).

27. A ficha n.º 01721/200899 foi informatizada, nos termos da anotação 2 de 30.05.2005.

28. A Autora adquiriu a propriedade do Monte (...) por sucessão e na qualidade de herdeira de A (…), tendo a aquisição da propriedade sido registada através da AP. 4403 de 2009/09/21.

29. Desde que a Autora entrou na propriedade do Monte (...) , deste foram desanexados três prédios ((i) Prédio n.º 2530/20110513; (ii) Prédio n.º 2531/20110513; (iii) Prédio n.º 2622/20140114.

30. M (…), é a titular inscrita do prédio misto sito na freguesia de X (...) , Município de Idanha-a-Nova, distrito de Castelo Branco, descrito na Conservatória do Registo Predial de Idanha-a-Nova sob o n.º 1721 e inscrito na matriz sob os artigos matriciais 11, 1064, 1851 e 2182 da freguesia de X (...) , designado por “Monte (...) ”.

31. O artigo matricial 11, secção A-A1 tem natureza rustica e área total de 536,200ha.

32. Os artigos 1064, 1851, 2182 tem natureza urbana.

33. A partir do ultimo destaque, o prédio denominado Monte (...) passou a ser descrito com a seguinte composição na conservatória: (i) um vasto terreno composto por cultura arvense de regadio, olival, oliveiras, azinhal, prado natural, charcos, linha de curso de água, (ii) três dependências, e (iii) três casas com as seguintes características: (iii.a) casa com r/c e 1º andar com uma área de 368 m2; (iii.b) uma casa de r/c com uma área de 160 m2 e um anexo com uma área de 31 m2;e (iii.c) uma casa de r/c com uma área de 55 m2.

34. Bem como a confrontar, a norte, com o rio Pônsul.

35. No local em que confronta com o Monte (...) , e em face das suas características, o Rio Pônsul não pode ser utilizado para navegação, com fins comerciais, ou que nele se façam derivar objectos flutuantes durante o curso do ano, com fins comerciais.

36. O Monte (...) não confronta com nenhuma albufeira do Rio Pônsul, mormente com a barragem do Cedilho.

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Reconhecimento do direito de propriedade da A. sobre o identificado prédio, com a extensão definida.

2. O Mº Pº impugna os factos provados 33. a 35., pelos motivos que explana nas suas conclusões de recurso 1. a 19.

2.1. Relativamente ao facto 33. pretende o impugnante que se dê por não provado que a A. é proprietária do prédio Monte (...) .

Não se alcança tal pretensão, pois em lado algum do apontado facto foi dado como provado que a A. era proprietária de tal prédio. Ser proprietária de tal prédio resulta dos factos provados 28.,29. e 30. E estes não foram impugnados pelo Mº Pº.

Ora, no facto 33. apenas se indica a composição do prédio que está descrita na conservatória do registo predial, nada mais.

Assim a impugnação não procede quanto a tal facto.

2.2. Quanto ao facto 35. pretende o Mº Pº uma resposta restritiva, no sentido meramente informativo por parte da Agência Portuguesa do Ambiente.

Acontece que a APA, no que respeita a classificação das águas como navegáveis ou flutuáveis, é a única entidade pública competente para o declarar, segundo o nº 1 do art. 20º da Lei 54/2005. Junta a declaração de tal entidade (a fls. 91), resulta que, não obstante a impossibilidade de georreferenciação dos arts. 1064º, 1851º, 2182º (que têm natureza urbana, como provado em 32.), se conseguiu tal georreferenciação com a parte rústica do terreno (art. 11º, como provado em 31.). E dessa declaração decorre que o mesmo confronta com o rio Pônsul, num troço não abrangido pela albufeira da barragem do Cedilho, pelo que não é navegável, nem flutuável. E também sabemos que a parte rústica do terreno (art. 11º) integra a propriedade da A. (mencionado facto 30.).

Assim, a resposta dada pelo tribunal a quo está correcta, não se podendo ficar pelo carácter simplesmente informativo pretendido pelo Mº Pº, dado a APA ser a entidade competente para atestar tal facto e ter recorrido a um meio seguro de confirmação, a georreferenciação. 

Não procede, pois, a impugnação quanto ao dito facto.

2.3. No respeitante ao facto 34., o Mº Pº pretende que o mesmo seja dado por não provado.

Relativamente à confrontação com o Rio Pônsul acabámos de ver que o prédio Monte (...) confronta com tal rio. Nesta parte a impugnação do Mº Pº não pode, por isso, ser concedida.

Se é a Norte ou não, importa verificar, mas a prova documental impele para a uma resposta positiva.

Na verdade, os factos provados 23. e 25. assim o referem expressamente, sendo certo que o prédio da A., o Monte (...) , descrito registralmente sob o nº 1721, foi desanexado do nº 831 (facto 24.).

E o nº 831 era o antigo nº 471 (factos 21. e 22.). E o nº 471, já tinha nos idos anos de 1940 a referência de confronto a Norte com o Rio Pônsul, como deriva das certidões de registo predial de fls. 20 e 22 v. dos autos.

E mais longinquamente até, em 1868, já se referia que tal prédio confrontava com o mencionado rio (factos provados 10. e 11.). O mesmo deriva da planta de fls. 64., elaborada pelo Instituto Geográfico e Cadastral.

Finalmente, mesmo após a desanexação de 3 prédios, indicada no facto 29., o Monte (...) , continuou a manter a confrontação a Norte com o identificado Rio.

Em suma, face à referida prova documental, repetimos, somos impelidos a aceitar aquilo que o tribunal a quo também concluiu, a mencionada confrontação a Norte. 

De maneira que não procede, igualmente, nesta parte, a impugnação do Mº Pº.     

3. Aqui chegados, importa relembrar que na sentença recorrida se acolheu o pedido principal da A. De maneira que está sob análise, neste momento, o mérito de tal decisão, e não a apreciação do pedido subsidiário.

Nessa sentença recorrida escreveu-se o seguinte:

“… importa atentar que pertencem ao domínio público hídrico não apenas categorias de águas (marítimas, lacustres, fluviais e outras), mas também terrenos conexos com estas águas, designadamente, os seus leitos e as margens.

Esta matéria encontra-se regulada na Constituição da República Portuguesa (CRP), em cujo art. 84.º4, n.º 1, al. a), se prescreve que pertencem ao domínio público as águas territoriais com o seu leito e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis e flutuáveis, com os respectivos leitos.

A Lei n.º 54/2005 delimita, porém, com mais pormenor quais os recursos hídricos que integram o domínio público e aqueles que, ao invés, pertencem aos particulares.

O artigo 2.º, n.º 1 deste diploma distingue três grandes áreas: domínio público marítimo, domínio público lacustre e fluvial e domínio público das restantes águas.

Assim, tal artigo tem por escopo clarificar a problemática atinente à titularidade dos recursos hídricos, a referida lei veio procurar delimitar quais os recursos hídricos que integram o domínio público e aqueles que, ao invés, pertencem a particulares.

No que aqui releva, o mesmo artigo define o domínio público hídrico compreende o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial, e ainda o domínio público das restantes águas.

Em conformidade com o disposto na al. a) do art. 5º o domínio público lacustre e fluvial compreende cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos, e ainda as margens pertencentes a entes públicos, sendo que de acordo com o nº 1 do seu art. 11º, “entende-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas” …

(…)

Entre os terrenos que integram o domínio público hídrico, importa considerar, em primeiro lugar, os leitos, cuja definição nos é dada pelo artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, em termos exactamente iguais aos que constavam do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 468/71: «Entende-se por leito o terreno coberto pelas águas, quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades. No leito compreendem-se os mouchões, lodeiros, e areais nele formados por deposição aluvial»

Relativamente aos limites longitudinais dos leitos, os nºs. 2 e 3 do artigo 10.º da Lei n.º 54/2005, têm a mesma redacção dos nºs. 2 e 3 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 468/71. 5 Assim, preceitua o n.º 2 do artigo 10.º que «o leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas à influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais».

Esta linha é, porém, determinada de modo diferente consoante se trate das águas do mar ou das demais águas sujeitas à influência das marés.

Na primeira situação, a linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais é definida, para cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar (2.ª parte do n.º 2 do artigo 10.º). A máxima preia-mar de águas vivas equinociais, que como o nome indica se verifica durante o equinócio, ou seja, quando o Sol se encontra sobre o Equador, «é uma maré a que, de harmonia com as normas adoptadas nos serviços, corresponde o coeficiente 120, que exprime a relação entre a semi-amplitude da maré e a unidade de altura».

Na segunda situação – demais águas sujeitas à influência das marés -, o leito destas águas é também limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais, mas essa linha é definida em função do espraiamento das vagas em condições de cheias médias (2.ª parte do n.º 2 do artigo 10.º).

Quanto às restantes águas, o seu leito é limitado pela linha que corresponder à estrema dos terrenos que as águas cobrem em condições de cheias médias, sem transbordar para o solo natural, habitualmente enxuto.

(…)

Já a margem, como nos dá conta Mário Tavarela Lobo in Manual do Direito de Águas, 2.ª edição revista e ampliada, vol. I, Coimbra Editora, 1999, «a margem foi definida pela primeira vez no nosso ordenamento jurídico como “uma faixa de terreno adjacente, junto à linha de água, que se conserva ordinariamente enxuta, e é destinada aos Serviços Hidráulicos de polícia ou acessórios de navegação e flutuação”

(…)

O Decreto-Lei n.º 468/71 procurou solucionar a controvérsia existente sobre a noção de margem e o correspondente regime jurídico, definindo-a do seguinte modo: «Entende-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas» (artigo 3.º, n.º, 1).

(…)

O artigo 11.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, acolheu a mesma noção de margem constante do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 468/71, e manteve inalterada a largura das margens constante dos nºs 2 a 4 do artigo 3.º deste último diploma: i) 50 m para as águas do mar e águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas13; ii) 30 m para as águas navegáveis ou flutuáveis não sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas e portuárias; iii) 10 m para as águas não navegáveis nem flutuáveis, nomeadamente torrentes, barrancos, e córregos de caudal descontínuo (artigo 11.º, nºs 2, 3 e 4).

E tal, em face ao alegado, apurado e peticionado nos autos, é de grande interesse.

Na verdade, relativamente às águas, é possível declarar que, essencialmente, todas as que possuam a característica de navegabilidade ou flutuabilidade pertencem ao domínio público.

Quanto a tal, importa no entanto atender que a lei vigente não fornece nenhuma definição de águas navegáveis ou flutuáveis, pelo que ainda serve de bússola a noção plasmada no artigo 8.º da Lei das Águas, entretanto revogada pelo diploma de 2005: «considera-se corrente navegável a que for acomodada à navegação com fins comerciais, de barcos de qualquer forma, construção e dimensões; e corrente flutuável aquela por onde estiver efetivamente em costume fazer derivar objetos flutuantes, com fins comerciais, ou a que de futuro for declarada como tal pelo Governo»

Por conseguinte, se todas as aguas todas as que possuem uma destas características pertencem ao domínio público hídrico, existem outras águas que, sem serem navegáveis ou flutuáveis, também são bens públicos.

É o caso das águas que tenham alguma conexão com terrenos públicos ou outras águas públicas e das águas aproveitáveis para fins de utilidade pública, descritos nas alíneas c), e), f), g) e h).

(…)

No que tange a noção de margem, o artigo 11.º prevê que “Entende-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas.

2 - A margem das águas do mar, bem como a das águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direcção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias, tem a largura de 50 m.

3 - A margem das restantes águas navegáveis ou flutuáveis, bem como das albufeiras públicas de serviço público, tem a largura de 30 m.

4 - A margem das águas não navegáveis nem flutuáveis, nomeadamente torrentes, barrancos e córregos de caudal descontínuo, tem a largura de 10 m.

5 - Quando tiver natureza de praia em extensão superior à estabelecida nos números anteriores, a margem estende-se até onde o terreno apresentar tal natureza.

6 - A largura da margem conta-se a partir da linha limite do leito. Se, porém, esta linha atingir arribas alcantiladas, a largura da margem é contada a partir da crista do alcantil.

7 - Nas Regiões Autónomas, se a margem atingir uma estrada regional ou municipal existente, a sua largura só se estende até essa via.

(…)

Mais releva que o artigo 12.º na mesma Lei estabelece, quanto a “Leitos e margens privados de águas públicas” que 1 - São particulares, sujeitos a servidões administrativas:

a) Os leitos e margens de águas do mar e de águas navegáveis e flutuáveis que forem objeto de desafetação e ulterior alienação, ou que tenham sido, ou venham a ser, reconhecidos como privados por força de direitos adquiridos anteriormente, ao abrigo de disposições expressas desta lei, presumindo-se públicos em todos os demais casos;

b) As margens das albufeiras públicas de serviço público, com exceção das parcelas que tenham sido objeto de expropriação ou que pertençam ao Estado por qualquer outra via.

2 - No caso de águas públicas não navegáveis e não flutuáveis localizadas em prédios particulares, o respetivo leito e margem são particulares, nos termos do artigo 1387.º do Código Civil, sujeitos a servidões administrativas.

…”

Desta forma, o artigo 1387.º do Código Civil prevê, com a epigrafe “Obras para armazenamento ou derivação de águas; leito das correntes não navegáveis nem flutuáveis” que 1. São ainda particulares:

b) O leito ou álveo das correntes não navegáveis nem flutuáveis que atravessam terrenos particulares. (sublinhado nosso)

2. Entende-se por leito ou álveo a porção do terreno que a água cobre sem transbordar para o solo natural, habitualmente enxuto.

3. Quando a corrente passa entre dois prédios, pertence a cada proprietário o tracto compreendido entre a linha marginal e a linha média do leito ou álveo, sem prejuízo do disposto nos artigos 1328.º e seguintes.

… (sublinhados nossos)

Cabendo, como cabe, a classificação das águas como navegáveis ou flutuáveis cabe, segundo o n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 54/2005, à Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., devendo ser publicada em Diário da República.

Aqui, tal questão mostra-se clarificada quanto ao Rio Pônsul, com a junção de declaração da mesma agencia, de que o mesmo não é navegável, nem flutuável, pelo menos na parte que nos interessa.

Ora, nos termos da matéria de facto apurada M (…), é a titular inscrita do prédio misto sito na freguesia de X (...) , Município de Idanha-a-Nova, distrito de Castelo Branco, descrito na Conservatória do Registo Predial de Idanha-a-Nova sob o n.º 1721 e inscrito na matriz sob os artigos matriciais 11, 1064, 1851 e 2182 da freguesia de X (...) , designado por “Monte (...) ”.

A partir do ultimo destaque, o prédio denominado Monte (...) passou a ser descrito com a seguinte composição na conservatória: (i) um vasto terreno composto por cultura arvense de regadio, olival, oliveiras, azinhal, prado natural, charcos, linha de curso de água, (ii) três dependências, e (iii) três casas com as seguintes características: (iii.a) casa com r/c e 1º andar com uma área de 368 m2; (iii.b) uma casa de r/c com uma área de 160 m2 e um anexo com uma área de 31 m2;e (iii.c) uma casa de r/c com uma área de 55 m2.

Bem como a confrontar, a norte, com o rio Pônsul.

No local em que confronta com o Monte (...) , e em face das suas características, o Rio Pônsul não pode ser utilizado para navegação, com fins comerciais, ou que nele se façam derivar objectos flutuantes durante o curso do ano, com fins comerciais.

Por outro lado, o Monte (...) não confronta com nenhuma albufeira do Rio Pônsul, mormente com a barragem do Cedillo.

Assim, e nessa parte, por se tratar de águas públicas não navegáveis e não flutuáveis localizadas em prédios particulares, importa, nos termos da citada aliena, declarar que respetivo na parte em que o Monte (...) confronta com o Rio Ponsul, o seu leito e margem são particulares, nos termos do artigo 1387.º do Código Civil, sujeitos a servidões administrativas.”.

Este discurso jurídico apresenta-se correcto, pois convoca as normas legais aplicáveis ao caso concreto, interpretando-as e aplicando-as acertadamente. Pelo que há que chancelá-lo.

O que implica, desde logo, a rejeição da 1ª objecção levantada pelo recorrente na sua conclusão de recurso 20.

Importa apreciar, agora, as restantes objecções.

A 2ª relaciona-se com o direito aplicável (cfr. conclusões de recurso 21. a 24.). Acontece que o tribunal recorrido solucionou a causa com recurso ao art. 12º, nº 2, da Lei 54/05 e não com base no apontado 12º, nº 1, a). Este último preceito, número e alínea, constava do segmento decisório inicial, mas, por lapso de escrita, foi rectificado o apontado número, sem oposição das partes (vide despacho datado de 22.9.2020, de fls. 155), pelo que a argumentação recursiva ficou sem fundamento.

A 3ª reporta-se à conclusão de recurso 25. e restantes conclusões desta dependentes, as 26. a 36. Contudo não podem ser acolhidas. Isto, por duas razões.

Em primeiro lugar (conclusão 25.) o que releva é que o Rio Pônsul no local em que confronta como prédio da A., o Monte (...) , não é navegável (facto 35). É essa não navegabilidade que leva à aplicação directa e imediata do referido art. 12º, nº 2, da Lei 54/05 e art. 1387º, nº 1, b), do CC, e não do nº 1, a), daquele art. 12º, como defende o apelante. Em segundo lugar (conclusões 26. e segs.) o art. 15º, nº 2, da indicada Lei 54/05 - com as suas adjacentes questões de comprovação de propriedade particular antes de 31.12. de 1864 e estabelecimento do trato sucessivo -, não pode ser chamado à colação, porque se reporta a parcelas de leitos e margens das águas navegáveis, o que não é o caso concreto dos autos, pelo que não havia que conhecer do pedido subsidiário da A. para aí direcionado. Cujo conhecimento, por isso, ficou prejudicado.   

Não procede, pois, o recurso do Mº Pº.

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) No caso de águas públicas não navegáveis localizadas em prédios particulares, a respetiva margem, com a largura de 10 m, é particular, e o leito também, sujeitos a servidões administrativas; se a corrente passar entre dois prédios, pertence a cada proprietário o tracto compreendido entre a linha marginal e a linha média do leito; tudo nos termos dos arts. 12º, nº 2, da Lei 54/05, de 15.11 (Regime da Titularidade dos Recursos Hídricos) e 1387º, nº 1, b) e 3, do Código Civil.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

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Sem custas (art. 4º nº 1, a), do Reg. Custas Processuais, sem prejuízo do nº 7 do mesmo artigo).

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  Coimbra, 14.12.2020

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Alberto Ruço