Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
133/09.8GAOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: ROUBO
ESTICÃO
Data do Acordão: 04/27/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 210º, DO C. PENAL
Sumário: Configura o crime de roubo e não o crime de furto a conduta de quem se abeira da vítima, que transporta uma carteira, debaixo de um braço e, de surpresa, com um esticão, agarra a mesma carteira e retira-a desse local, pondo-se em fuga, com a dita carteira em seu poder, o que foi de imediato sentido pela vítima.
Retirar algo assim de alguém, de forma brusca, só pode ser considerado um acto violento, pois trata-se da intromissão no corpo de uma pessoa por meio de uma conduta que visa quebrar ou impedir a resistência da vítima (aproximação de surpresa, puxão, fuga subsequente imediata).
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No âmbito dos autos de Processo Comum (Tribunal Colectivo) registados sob o n.º 133/09.8GAOHPP do Tribunal Judicial de Oliveira do Hospital, ao arguido NT... foi imputada a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal. Realizada a audiência de julgamento, e proferido, em 16/11/2010, acórdão, o citado arguido veio, em 17/1/2011, interpor recurso da decisão que o condenou na pena de dois anos de prisão efectiva, pela prática do citado crime, defendendo a revogação da decisão recorrida e a sua condenação como autor material de um crime de furto simples, daí decorrendo uma pena menor, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. O Arguido foi, em termos jurídicos, erradamente condenado pelo crime de roubo.
2. Na verdade, o Arguido deveria ter sido condenado como autor material pelo crime de furto simples, p. e p. pelo n.º 1, do artigo 203.º, do Código Penal.
3. Isto porque não houve subtracção de coisa móvel alheia, por meio de qualquer violência ou uso de força, contra a Denunciante.
4. Nestes termos, e como se deixa demonstrado, o Acórdão, ao condenar o Recorrente como autor de um crime de roubo, em vez de o condenar como autor de um crime de furto simples, violou os artigos 203.º e 210.º, do Código Penal.
5. A pena a aplicar deverá ser de 7 meses e não de 2 anos de prisão como o foi.
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O Ministério Público junto do Tribunal de 1ª instância, em 2/2/2011, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, e, sem apresentar conclusões, argumentou, em síntese, o seguinte:
1.O conceito de violência, para que exista roubo, implica que se traduza ou consista no mero uso de força física em vista à subtracção independentemente de contacto físico com a pessoa, ainda que se possa e deva exigir que a coisa subtraída se mostre ou esteja cingida ao corpo da pessoa sobre quem incide tal conduta física do agente do crime.
2. O puxar da carteira, que era segura e transportada debaixo do braço,o roçar da mesma no momento em que era desapossada de tal objecto, pela força ou acção repentina e inesperada empregue pelo arguido, configura o conceito de violência,para efeitos do previsto no artigo 210.º, do Código Penal.
3. A pena é proporcional e adequada.
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O recurso foi, em 8/2/2011, admitido.
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, em 1/3/2011, no qual defendeu que o recurso não merece provimento, acompanhando, integralmente, a posição assumida pelo Ministério Público, na 1ª instância.
Cumpriu-se o artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida:
“(…)
Discutida a causa, o Tribunal julga provados os seguintes factos:
1.No dia … de 2009, cerca das 16.15 horas, a denunciante SG… caminhava a pé, sozinha, no cruzamento de …, em direcção à Rua …, em ..., levando, debaixo de um braço, uma carteira de cor castanha escura.
2. O arguido, que se encontrava nas imediações, também a caminhar a pé, no mesmo sentido de marcha da denunciante, ao avistá-la, abeirou-se dela e, com um esticão, agarrou a carteira que ela transportava, retirou-lha e pôs-se em fuga a correr, levando-a consigo.
3. A carteira continha no seu interior, entre outros documentos da denunciante, o bilhete de identidade; o cartão de contribuinte; o cartão de utente; o cartão de eleitor, a carta de condução; o cartão Multibanco; cinquenta euros em notas e algumas moedas em montante não concretamente apurado.
4. O arguido agiu voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de se apoderar pela força, se necessário, dos bens da denunciante, bem sabendo que os mesmos lhe não pertenciam e que agia contra a vontade da sua legítima possuidora.
5. Sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
6. O arguido NT… está preso preventivamente.
7. Antes de ser preso, vivia em casa de uma avó, sua única familiar a residir próximo.
8. Manteve um relacionamento marital do qual resultou o nascimento de um filho menor com 6 anos de idade.
9. É consumidor de substâncias estupefacientes, incluindo heroína e cocaína, desde os seus 19-20 anos de idade, afirmando que, actualmente, já não consome substâncias estupefacientes.
10. Tem o 9.º ano de escolaridade.
11. Foi condenado em:
a) Processo Comum Colectivo n.º 2528/07.2PCCBR, da 2ª Secção da Vara de Competência Mista de Coimbra, por acórdão de 14/11/2008, transitado em julgado a 4/12/2008, pela prática, em 29/8/2007, de um crime de detenção de arma proibida; a 3/11/2007, de um crime de furto qualificado; e, no ano de 2007, de um crime de cultivo para consumo de estupefacientes, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, sob regime de prova;
b) Processo comum Colectivo n.º 283/09.0GAOHP, do Tribunal Judicial de Oliveira do Hospital, por acórdão de 11/1/2010, transitado em julgado a 3/372010, pela prática, em 3/7/2009, de um crime de furto qualificado e de um crime de furto de uso de veículo, nas penas parcelares de 28 meses de prisão ee de 4 meses de prisão, sendo condenado na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, sob condição;
c) Processo Comum Colectivo n.º 448/06.7GAOHP, do Tribunal Judicial de Oliveira do Hospital, por acórdão de 8/4/2010, transitado em julgado a 28/4/2010, pela prática de um crime de roubo, a 25/11/2006, na pena parcelar de 2 anos de prisão; um crime de falsificação de documento, a 25/11/2006, na pena parcelar de 10 meses de prisão; um crime de falsificação de documento, a 28/11/2006, na pena parcelar de 12 meses de prisão; um crime de burla, a 25/11/2006, na pena parcelar de 7 meses de prisão; e um crime de burla, a 28/11/2006, na pena parcelar de 10 meses de prisão; sendo condenado na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão.
Não se provaram outros factos, designadamente:
a) O esticão para retirar a carteira foi forte;
b) As notas existentes na carteira eram 4 de dez euros e 2 de cinco euros.
*
A convicção do Tribunal assentou no depoimento de SG… que relatou o sucedido, fazendo-o de forma calma, segura e espontânea, dizendo que, após estacionar o veículo junto ao cemitério, cruzou-se com o futuro agressor, sem que se verificasse qualquer ocorrência anómala.
A testemunha fez as suas compras e, quando regressava para o veículo, transportando sacos de compras e a carteira debaixo do braço, sentiu alguém a aproximar-se por trás, após o que sentiu um puxão na carteira que lhe foi retirada sem que a testemunha se tivesse sentido ofendida na sua integridade física.
Disse, ainda, que começou a gritar, pondo-se, então, o agressor em fuga.
(…)
O grau de certeza da testemunha fundou-se na circunstância de se ter cruzado com o arguido antes da ocorrência dos factos e tê-lo visto quando o mesmo lhe retirou a carteira, afirmando a testemunha que, no momento em que sentiu o agarrar e retirar da carteira, se virou instantaneamente, vendo novamente o arguido (afirmação credível por corresponder à reacção natural da generalidade das pessoas perante uma tal ocorrência).
(…) *
Fundamentação de Direito:
(…)
As únicas dúvidas que poderiam existir reportam-se ao uso de violência na subtracção, dado que não se provou que o arguido tenha recorrido para o efeito a um forte esticão.
Todavia, a este propósito, salienta Conceição Ferreira da Cunha, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pág. 160, que “ com a violência se põe em causa a liberdade da pessoa – de movimentos e/ou de acção e decisão – e a integridade física (pelo menos nos casos de violência física e ainda que se trate de lesões muito leves ou das chamadas «insignificâncias», como em certas situações de «esticão»”.
E, desenvolvendo mais adiante, a autora cit., in ob. cit., pág. 167, afirma que, se “o conceito de violência não é de todo pacífico (…). Em relação ao uso de força física, não se levantam grandes problemas: a intromissão, ainda que indirecta (v.g., o caso de esticão) no corpo de uma pessoa deve considerar-se violência, importando, no crime de roubo, a violência que visa quebrar ou impedir a resistência da vítima (…). Parece, no entanto, que agressões irrelevantes à integridade física – as chamadas «insignificâncias» - ainda devem ser abrangidas por este conceito: tolher os movimentos da vítima, amordaçá-la, em certos casos de esticão em que não se provocam lesões, pelo menos significativas”.
Neste sentido se vem pronunciando, igualmente, a jurisprudência do STJ, afirmando que “a violência, no plano do crime de roubo, é o emprego de força física, nesta se esgotando, sem mais, o «esticão simples», através do qual o agente, agredindo a liberdade de determinação do ofendido, para se apossar da coisa em poder deste, realiza o fim da apropriação (conforme os Acórdãos do STJ de 27/2/1992, de 14/4/1993 e de 15/2/1995, in http://www.dgsi.pt).
Também os Tribunais de 2ª instância se vêm pronunciando nesse sentido, citando o Acórdão do TRP, de 13/4/1988, segundo o qual “I – A violência exigida no tipo legal do crime de roubo terá de consistir no emprego de força física. II – Constitui violência, para o efeito, a subtracção por meio de «esticão»; mas, para este se verificar, é necessário que a coisa subtraída se encontre cingida ou presa à pessoa sobre quem o esticão incide”; o Acórdão do TRL, de 10/5/1995, no qual, impressivamente, se afirma que “a violência, imprescindível à configuração do crime de roubo, não tem, necessariamente, que consistir na lesão corporal da vítima, bastando o uso de força física em vista da subtracção, independentemente de qualquer contacto físico”; bem como o Acórdão do TRL, de 12/7/1995, no qual se refere que “no crime de roubo p. e p. pelo artigo 306.º, do C. Penal, a violência, que é elemento integrante do tipo, significa o emprego de força física, não pressupondo, necessariamente, que tenham sido causadas lesões corporais, (ex: «o processo de esticão»”.
Mais recentemente se consignou no Acórdão do TRE, de 3/5/2005, que “a violência não pressupõe necessariamente que no ofendido sejam provocadas lesões, pois que pode até nem existir contacto físico, importando verdadeiramente a força empregue pelo agente em vista da subtracção”; e no acórdão do TRP, de 12/5/2010, consta que “III – No crime de roubo a violência traduz-se no emprego da força física necessária e adequada a efectivar a subtracção/apropriação, não exigindo a lei um mínimo de intensidade da violência para o preenchimento do tipo legal. IV – A força empregue contra o ofendido para lhe retirar o telemóvel – perante a recusa, o agente, de forma brusca e imprevista, agarrou-lho da mão – basta para a consumação do crime de roubo”.
Mostrando-se fundada a posição sustentada na indicada doutrina e jurisprudência haverá que concluir pela verificação no caso do elemento típico do crime correspondente ao uso de violência, pelo que se moistra demonstrado o imputado ilícito penal.
(…)”. ****
III. Apreciação do Recurso:
De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), duas questões vêm colocadas pelo recorrente à apreciação deste tribunal:
1) Saber se o arguido deve ser condenado pela prática de um crime de roubo ou pela prática de um crime de furto simples;
2) Saber se, no caso de vir a ser punido como autor de um crime de furto simples, o arguido deve ser condenado numa pena de 7 meses de prisão.
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1) Do crime de roubo/ crime de furto simples:
Não há muito a dizer sobre esta questão, face ao que a jurisprudência, há largos anos, vem entendendo, no sentido de que o “esticão” integra o crime de roubo.
Ora, o acórdão recorrido explica, claramente, qual a orientação, nesta matéria, dos nossos tribunais superiores.
Acrescentar algo mais sobre o assunto seria cair em redundância, pelo que nos escusamos de o fazer.
Sublinhe-se que a matéria de facto provada (e fixada, porque não posta em causa no recurso – o recorrente não impugna a matéria de facto em nenhuma das modalidades previstas no CPP, nos seus artigos 410.º, n.º 2, 412.º, n.º 3) diz-nos que: “O arguido, que se encontrava nas imediações, também a caminhar a pé, no mesmo sentido de marcha da denunciante, ao avistá-la, abeirou-se dela e, com um esticão, agarrou a carteira que ela transportava, retirou-lha e pôs-se em fuga a correr, levando-a consigo.”
Não cabendo a este tribunal pronunciar-se sobre outra coisa que não os factos provados que constam do acórdão, é por demais evidente que não tem qualquer sentido útil o que o recorrente alega na sua motivação.
Em resumo, está provado nos autos que o arguido retirou, através de um esticão, a carteira da ofendida.
Importa não esquecer que a doutrina e a jurisprudência são realidades diferentes. A primeira está virada para o estudo académico das questões, a segunda contempla a resolução dos casos concretos apresentados em juízo, sendo de esperar uma uniformização de critérios na respectiva análise, a bem da segurança jurídica.
Acontece que o recorrente não indica uma única decisão jurisprudencial que contrarie as decisões dos tribunais superiores citadas no acórdão recorrido, sendo certo que este Tribunal da Relação de Coimbra não tem conhecimento de qualquer decisão judicial proveniente daqueles que aponte no sentido do recurso apresentado.
Em boa verdade, o recorrente, limita-se a citar certa doutrina (Leal Henriques e Simas Santos, in CPP Anotado, pág. 740, e Maia Goçalves, in CPP Anotado, 18ª ed., pág. 763), para concluir, ao arrepio da jurisprudência já mencionada, que “parece-nos um conceito muito rebuscado abranger em tal crime conduta independentemente de qualquer contacto físico…”
E não se argumente, como faz o arguido, que, no caso em apreço, não houve um acto brusco e violento sobre o bem, mas sim um mero gesto sub-reptício seu de forma a fazer sair normalmente o porta-moedas da denunciante.
É inglório alegar que o gesto foi sub-reptício, a menos que se pretenda desvirtuar o que esta palavra significa.
Um gesto sub-reptício consiste num gesto furtivo, em algo que se faz às escondidas, ou seja, clandestinamente.
Pois bem, a conduta do arguido andou bem longe disso, na medida em que, como resulta da fundamentação da sentença, a denunciante sentiu alguém aproximar-se por trás, sentiu um puxão da carteira, virou-se e viu o arguido a fugir. Tudo às claras…
Mais, não faz sentido afirmar que não houve um acto brusco e violento.
O arguido não pode escamotear que se abeirou da ofendida, sem ela esperar, por trás, lhe puxou, de surpresa, a sua carteira (situada debaixo do braço, como resulta da gravação da audiência) e se colocou em fuga a correr.
Retirar algo assim de alguém só pode ser considerado um acto violento, pois estamos, sem qualquer dúvida, perante a intromissão no corpo de uma pessoa por meio de uma conduta que visa quebrar ou impedir a resistência da vítima (aproximação de surpresa, puxão, fuga subsequente imediata).
Assim sendo, bem andou o tribunal recorrido na qualificação jurídica dos factos.
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Tendo em conta o exposto, prejudicado fica o conhecimento da segunda questão suscitada pelo recorrente.
É o que se declara.
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IV. Decisão:
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra o acórdão recorrido.
Custas a cargo do arguido, fixando-se a taxa de justiça em cinco UC.
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José Eduardo Martins (Relator)
Isabel Valongo