Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1123/08.3 TAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: EXERCÍCIO DO DIREITO DE QUEIXA
REQUISITOS
Data do Acordão: 10/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 49º DO CPP
Sumário: 1.Embora não requerendo a utilização de fórmula especial, o exercício do direito de queixa exige uma manifestação inequívoca de vontade do denunciante no sentido de que pretende procedimento criminal contra o denunciado.

2.Não constitui exercício do direito de queixa contra condutor interveniente em acidente de viação, o requerimento apresentado em processo de regulação do exercício do poder paternal pela mãe de menor de sete anos de idade atropelado, durante o período de visitas ao pai, onde refere «Dada a gravidade da situação, solicito que se apurem os factos com urgência e que o pai não possa levar o R consigo até que a situação se encontre devidamente esclarecida».

Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. Tramitado competente inquérito, em cujo terminus o Ministério Público deduziu a acusação constante de fls. 211 e segs., remetidos os autos a juízo, nos termos e para os efeitos previstos pelos artigos 311.º e segs., do Código de Processo Penal, mostra-se proferido despacho judicial com o teor que passamos a transcrever:

“R. e A. como Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular.

O Tribunal é absolutamente competente.

Questão prévia: da legitimidade do Ministério Público para a promoção dos autos.

O arguido A vem acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelos artigos 15.º e 148.º/1 do Código Penal, bem como de uma contra-ordenação estradal prevista e punida pelo artigo 82.º/3 e 6 do Código da Estrada.

O arguido D vem acusado apenas pela prática de uma contra-ordenação estradal, prevista e punida pelo artigo 82.º/3 e 6 do Código da Estrada.

O crime de ofensa à integridade física por negligência imputado ao arguido A, nos termos do artigo 148.º/4 do Código Penal, reveste natureza semi-pública – tornando o procedimento criminal dependente de queixa.

Dispõe o artigo 113.º/1 do Código Penal que, «quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação».

Analisando a acusação verifica-se que o ofendido, no caso em apreço, foi R, nascido a 30 de Julho de 2000, pessoa que, nas circunstâncias aí descritas, viu a sua integridade física ofendida com um comportamento imputável ao arguido A – sendo ele o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

Sendo o ofendido menor de 16 anos, dispõe o artigo 113.º/4 do Código Penal que «se o ofendido for menor de 16 anos (…), este (direito de queixa) pertence ao representante legal e, na sua falta, às pessoas indicadas sucessivamente nas alíneas do n.º 2, aplicando-se o disposto no número anterior.»

Os representantes legais do menor, nos termos do artigo 1877.º do Código Civil, são os seus pais, tendo qualquer deles legitimidade para, sozinho e em representação do menor, apresentar queixa – cfr. AcRL de 26/2/2004 (www.dgsi.pt.jtrl 1157/2004-9).

Os pais do menor são D e M (cfr. fls. 5).

Compulsados os autos verifica-se, por um lado, que o pai do menor não apresentou qualquer queixa-crime. Por outro lado, analisando a postura da mãe do menor ao longo do processo, impõe-se concluir que a mesma também não apresentou tempestiva queixa-crime.

Na verdade, analisando o processado, verifica-se que os presentes autos se iniciaram com base numa certidão proveniente dos autos de incumprimento das responsabilidades parentais, que corriam termos, sob o n.º …/06.5 TBSBG, no Tribunal Judicial da Comarca do Sabugal (cfr. fls. 3 a 26), certidão essa que teve subjacente uma promoção da magistrada do Ministério Público da referida comarca com o seguinte teor: “II – Relativamente ao acidente de viação de que o menor foi vítima, se extraia certidão de fls. …e se remeta aos Serviços do Ministério Público da Guarda, para os efeitos tidos por convenientes, designadamente, para averiguar da eventual prática de algum ilícito criminal e infracções estradais, p.p., pelos artigos 82, n.º 3 e 91, n.ºs 1 e 4, ambos do Código da Estrada (o menor à data dos factos tinha sete anos de idade).”

Tal certidão contém um requerimento da mãe do menor (cfr. fls. 7), dirigido ao referido processo, entrado no dia 14 de Julho de 2008, no qual a mesma relata o acidente ocorrido (no dia 5 de Julho de 2008), durante um período de visitas ao pai do menor, imputando a responsabilidade pela ocorrência do acidente ao pai do menor, terminando dizendo: “Dada a gravidade da situação, solicito que se apurem os factos com urgência e que o pai não possa levar o Rui consigo até que a situação se encontre devidamente esclarecida.”

Interpretando o sentido da declaração, de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, poderia extrair de tal requerimento (cfr. artigo 236.º do Código Civil), dirigido a um processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, resulta do mesmo que não foi intenção da mãe apresentar qualquer queixa-crime contra o pai do menor, mas apenas a de relatar o acidente de que o seu filho havia sido vítima, para que, no âmbito do referido processo, se apurassem os factos e se impedisse o pai de voltar a levar o menor consigo até que todos os factos fossem esclarecidos.

Compulsados os autos verifica-se que, recebida tal certidão nos Serviços do Ministério Público desta comarca, tendo sido autuado o processo de inquérito, foi de imediato (no dia 24/10/2008) determinado o arquivamento dos autos, por inexistência de crime (cfr. fls. 26).

O Ministério Público, em despacho proferido no dia 3/11/2008, ponderando que a certidão havia sido remetida para “se averiguar da eventual responsabilidade criminal (ofensa à integridade física por negligência) e/ou contra-ordenacional”, determinou o “reinício” do inquérito e determinou a realização de diversas diligências (cfr. fls. 28).

Em tal despacho, o Ministério Público não deixou consignado porque razão “reiniciava o inquérito”, não tendo ponderado o facto de não ter sido apresentada queixa relativamente ao crime alegadamente indiciado.

O inquérito correu os seus termos até que, no dia 29/5/2009 (cfr. fls. 123), o Ministério Público determinou a inquirição da mãe do menor (a qual até esta data não tinha sido “vista, nem achada” no processo), para que a mesma esclarecesse “se pretende ainda procedimento criminal contra estes arguidos”, diligência que foi realizada no dia 6/7/2009 (cfr. fls. 140), ou seja, um ano e um dia depois da ocorrência dos factos, na qual a mãe do menor referiu que “pretende procedimento criminal contra os arguidos”.

Conclui-se, assim, que, não tendo a mãe do menor formalizado qualquer queixa-crime para dar início ao processo, iniciado o mesmo, a declaração formalizada mais de um ano depois da ocorrência e do conhecimento dos factos, nos termos do artigo 115.º/1 do Código Penal, é irrelevante, por já ter decorrido o prazo (de 6 meses) previsto para exercício tempestivo do direito de queixa – tendo-se extinto, no dizer da lei, o direito de queixa.

Estando em causa um crime de natureza semi-pública, coloca-se a questão de saber se o Ministério Público poderia dar início ao processo independentemente da existência de direito de queixa.

A este propósito, dispõe o artigo 113.º/5-a) do Código Penal que, «quando o procedimento criminal depender de queixa, o Ministério Público pode dar início ao procedimento no prazo de seis meses a contar da data em que tiver conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse do ofendido o aconselhar e este for menor (…)

Assim sendo, estando em causa um crime de natureza semi-pública e sendo o ofendido menor, conclui-se que o Ministério Público poderia dar início ao processo, no prazo de 6 meses (a contar da data em que tiver conhecimento do facto e dos seus autores) e independentemente da existência de queixa, se o interesse do ofendido o aconselhasse.

O poder-dever de dar início ao processo reclama, assim, um juízo de ponderação dos interesses do ofendido, devendo o Ministério Público dar início ao processo, independentemente da questão da existência de queixa, sempre que, feita tal ponderação, o interesse do ofendido o aconselhar – juízo este que, conforme tem sido entendido de forma pacífica na doutrina e jurisprudência, é insindicável.

A lei reclama, no entanto, que o processo se inicie com um juízo de ponderação dos interesses do menor e, mais do que isso, que a ponderação do interesse do menor aconselhe a abertura do processo de inquérito e o seu prosseguimento – como se o crime investigado, daí em diante, fosse um crime de natureza pública.

Embora se trate de uma norma geral e abstracta, não podemos ignorar que tal preceito teve na sua génese a problemática dos crimes sexuais, em que, por os titulares do direito de queixa poderem ter sido participantes no crime ou terem proporcionado a criação de perigo para o menor e, eventualmente, o encobrimento ou conivência com a situação, se justifica que o Estado, como responsável pela salvaguarda e protector dos interesses dos menores, possa dar início ao processo, perseguindo os autores dos factos, independentemente da existência de queixa.

Por tal razão, impõe-se ao Ministério Público, caso decida dar início ao processo, justificar porque razão o faz. Na verdade, como bem refere Rui do Carmo (in O Abuso Sexual de Menores, 2.ª ed., pg. 54), «a decisão do Ministério Público de dar início ao procedimento criminal sem queixa ou de prosseguir apesar da desistência da queixa, deve ser fundamentada – o que resulta de um dever de justificação da posição assumida face aos representantes legais do menor vítima e também face a este, nos casos em que lhe deve ser assegurado o direito de participação na formação de tal decisão. (…) exporá as razões de facto que, em concreto, suportam a conclusão de que o interesse da vítima, objectivamente, impõe o procedimento criminal

Adiante-se, ainda assim, que se o dever de fundamentação dos actos decisórios, em conformidade com o artigo 97.º do Código Processo Penal, reclama que o Ministério Público justifique o início do processo estando em causa um crime de natureza sexual, maior dever de fundamentação reclamaria uma decisão de abertura de um processo crime no caso em apreço, em que se investigou a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência – o interesse do menor na abertura de um processo crime é seguramente mais evidente num crime de natureza sexual do que num crime (doloso) contra a integridade física, e menos evidente o será se o crime de ofensa à integridade física tiver sido praticado por negligência.

No caso em apreço o Ministério Público, ao dar início ao processo de inquérito, não proferiu qualquer decisão justificativa da abertura do processo, razão pela qual concluímos que o procedimento não foi aberto ao abrigo do disposto no artigo 113.º/5-a) do Código Penal – nem de forma explícita, nem de forma implícita[1].

Pelo exposto, não tendo os representantes legais do menor apresentado queixa em tempo útil, não tendo o processo sido iniciado ao abrigo do disposto no artigo 113.º/5-a) do Código Penal, por falta de legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo, o tribunal não recebe a acusação do Ministério Público na parte em que imputa ao arguido A. a prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º/1 do Código Penal.

Sem custas – nesta parte.

Notifique.


*

Subsistindo a acusação na parte em que imputa a ambos os arguidos a prática de uma contra-ordenação estradal, prevista e punida pelo artigo 82.º/3 e 6 do Código da Estrada, compulsados os autos verifica-se que não foi conferido aos arguidos o direito de, querendo, procederem ao pagamento da coima aplicável pelo mínimo legal – situação que, a ocorrer e porque a conduta em causa não é punível com qualquer sanção acessória, nos termos do artigo 172.º/5 do Código da Estrada, determinaria a extinção do procedimento contra-ordenacional.

Na verdade, dispõe o artigo 172.º/1 do Código da Estrada que «é admitido o pagamento voluntário da coima, pelo mínimo, nos termos e com os efeitos estabelecidos nos números seguintes

A opção de pagamento voluntário pelo mínimo e sem acréscimo de custas, nos termos do artigo 172.º/2 do Código da Estrada, deve verificar-se no prazo de 15 dias úteis a contar da notificação para o efeito.

O pagamento voluntário da coima, nos termos do artigo 172.º/5 do Código da Estrada, «determina o arquivamento do processo, salvo se à contra-ordenação for aplicável sanção acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma

Assim sendo, sendo a contra-ordenação em causa punível com coima de 120,00 € a 600,00 € (cfr. artigos 82.º/3 e 6 do Código da Estrada), previamente à ponderação do recebimento da acusação nesta parte, nos termos do artigo 172.º/1, 2 e 5 do Código da Estrada, o tribunal determina que se notifiquem os arguidos para, querendo, no prazo de 15 dias úteis, procederem (cada um deles) ao pagamento da coima, no valor de 120,00 €, sem quaisquer outros acréscimos e com vista ao arquivamento dos autos.

Notifique.”

1.3. Dissentido com o determinado, interpôs recurso o Ministério Público, extraindo do requerimento com que minutou tal discordância, a seguinte ordem de conclusões:

1.3.1. Contráriamente ao sustentado pelo despacho recorrido, existiu manifestação de desejo de procedimento criminal por parte da mãe do menor acidentado, consubstanciada na expressão “dada a gravidade da situação, solicito que se apurem os factos”, quando é certo que antes os descrevera.

1.3.2. Não é de exigir que todas as queixas crimes apresentadas directamente em Juízo por particulares, contenham as exactas palavras para fazer andar o processo ­ – desejo procedimento criminal –.

1.3.3. Duvida-se muito que tal aconteça, na sua grandíssima maioria.

1.3.4. Quando confrontada com o apuramento dos factos, ainda que de forma abstracta, a progenitora do menor, elucidada, disse, então, as palavras correctas e ficou-se a saber que, desde início, era essa a sua vontade, ou seja que se apurassem as responsabilidades pelo ocorrido.

1.3.5. Esta será a interpretação mais consentânea com a realidade dos factos.

1.3.6. Uma interpretação não tão só formal/legalista e positiva/normativista, mas uma leitura virada para o sentido e alcance da frase, para o seu sentido psicológico, cognoscível, hermenêutico, tirado através de elementos objectivos ou objectiváveis.

1.3.7. Decidindo na forma em que o fez, a decisão recorrida preteriu ao disposto no artigo 311.º, do Código de Processo Penal.

Terminou pedindo que no provimento ao recurso se ordene a revogação da decisão em crise, substituindo-a por outra que receba a acusação formulada contra os arguidos nos presentes autos, prosseguindo estes os seus legais trâmites.

1.4. Cumprido o estatuído pelo artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, respondeu o recorrido, sufragando a manutenção do decidido.

1.5. Após, proferido despacho admitindo o recurso, foram os autos remetidos a esta instância.

1.6. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto com vista respectiva, nos termos do artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer conducente a igual provimento.

1.7. Foi dado acatamento ao disciplinado no n.º 2 do subsequente artigo 417.º.

1.8. No exame preliminar a que alude o n.º 6 do mesmo inciso, consignou-se não ocorrer fundamento determinante à apreciação sumária do recurso, nem nada obstar ao seu conhecimento de meritis.

Por via do que foi ordenado o seu prosseguimento, com recolha dos vistos legais, e submissão à presente conferência.

Urge agora ponderar e decidir.


*

II – Fundamentação.

2.1. O objecto do recurso, delimitado através das respectivas conclusões (cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), opõe à decisão recorrida a questão seguinte: mostra-se validamente exercitado nos autos o direito de queixa do ofendido menor, R isto enquanto condição de procedibilidade relativamente à indiciada conduta delitiva assacada na acusação pública deduzida contra o arguido A?

2.2. Prévias considerações[2] sobre a natureza assumida nesta veste pela queixa, ajudarão a melhor aquilatar do destino da impugnação.

O exercício do direito de queixa insere-se numa das manifestações processuais do direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, contemplado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa [CRP], que constitui uma das vertentes essenciais de um Estado de Direito Democrático[3].

A propósito e na parte que aqui releva estabelece o artigo 49.º, do Código Processo Penal[4], no seu n.º 1 que “Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”, acrescentando o seu n.º 2 que “Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.”

Por sua vez e segundo o artigo 50.º, “Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.”

Daí que a queixa se caracterize e consista numa manifestação de vontade de perseguição criminal[5].

Por sua vez, o ofendido é que, em regra, tem legitimidade para apresentar queixa, considerando-se como tal e segundo o preceituado no artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal “o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, tendo para o efeito, nos crimes de natureza particular e semi-pública, um prazo de seis meses para o exercício desse direito, sob pena do mesmo se extinguir [115.º Código Penal].

O exercício do direito de queixa encontra-se processualmente regulado no instituto da denúncia (241.º e ss.), precisando-se no artigo 246.º, a sua forma e o seu conteúdo do seguinte modo:

“A denúncia pode ser feita verbalmente ou por escrito e não está sujeita a formalidades especiais.” (n.º 1);

“A denúncia verbal é reduzida a escrito e assinada pela entidade que a receber e pelo denunciante, devidamente identificado. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 95.º, n.º 3.” (n.º 2);

“A denúncia contém, na medida possível, a indicação dos elementos referidos nas alíneas do n.º 1 do artigo 243.º.” (n.º 3).

Sobre esta matéria será de referir o Parecer do Ministério Público de 6 de Março de 1963, que, muito embora tenha sido emitido na vigência do Código Processo Penal de 1929, ainda mantém actualidade.

Aí se escreveu, a dado momento, o seguinte: “Importará salientar que a denúncia deve ser apresentada perante autoridade com funções de prevenção e repressão da criminalidade e manifestar, em termos inequívocos, vontade de instaurar procedimento criminal. Se assim não suceder, terá evidentemente, que ser ouvido o participante, não para confirmar a denúncia, mas para a esclarecer.”

Por sua vez, a jurisprudência que até então vigorava e partindo do preceituado no art. 6.º do diploma pretérito[6], vinha entendendo que para efeitos da manifestação da vontade de denúncia:

i) Bastava que o denunciante desse conhecimento dos factos que integram o crime, independentemente da indicação do seu autor, que pode ser até desconhecido;
ii) Os requisitos da denúncia não se destinam a delimitar a acção do Ministério Público, constituindo apenas elementos que o denunciante deve apresentar para servirem de ponto de partida para a investigação e determinação dos seus agentes.
Com o Código Processo Penal de 1987, mantiveram-se estes propósitos, como é patente com o citado artigo 246.º, n.º 3 e o pretérito artigo 243.º, n.º 1, ao estabelecer que o conteúdo do auto de noticia, deve, na medida do possível, conter:
- Os factos que constituem o crime [a)];

- O dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido [b)]; e,

- Tudo o que permitir averiguar acerca da identificação dos agentes e dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos [c)].

Daqui decorre que inexiste qualquer obrigatoriedade legal a impor que a formalização de uma queixa tenha de conter de uma forma completa todos os elementos que constituem o conteúdo da denúncia.

Assim, tais requisitos devem ser vistos com o manifesto intuito de centrar a investigação criminal, delimitando espacio-temporalmente a factualidade em causa, o seu núcleo factual, a identidade dos seus agentes e o correspondente suporte probatório, surgindo como um autêntico fio condutor da subsequente acção do Ministério Público, sem que no entanto seja um espartilho limitador desta.
Porém, o exercício do direito de queixa é uma condição essencial de procedibilidade para os crimes de natureza semi-pública e particular, acrescendo nestes últimos a obrigatoriedade de a denúncia ser acompanhada da declaração de constituição de assistente.

Daí que nestes ilícitos a queixa, enquanto condição de procedibilidade, tenha uma função mais delimitadora do que nos crimes de natureza pública, já que se torna necessário saber a quê e a quem se dirige a vontade de perseguição criminal.
No entanto, a par desta função delimitadora, a queixa deve ser sempre perspectivada como o ponto de partida para a investigação criminal, centrando-se na factualidade e nos agentes denunciados.

E é assim que se tem entendido, pois tem sido aceite, desde há muito tempo, que não obstante a queixa indicar como autor da infracção uma determinada pessoa, pode a acusação ser dirigida ainda contra outra, se os factos constantes desta corresponderem aos que forem denunciados[7].

No que concerne à descrição factual e partindo-se tanto do direito constitucional do acesso ao direito, como dos requisitos legais do exercício do direito de queixa e formais da denúncia, designadamente aqueles que exteriorizam uma vontade de perseguição criminal, somos de crer que haverá correspondência entre a queixa e a acusação, sempre que entre uma e outra haja uma homogeneidade factual, seja descendente ou ascendente.

Mas para haver essa homogeneidade não é exigível, designadamente sob o ponto de vista de assegurar as garantias de defesa e o direito a um processo equitativo [32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 4, CRP; 6.º, n.ºs 1 e 3, da CEDH], que exista uma identidade total entre o relato fáctico da queixa e da acusação.

Tais garantias o que exigem, entre outras dimensões, é que o objecto do processo se mantenha estável a partir da acusação ou da pronúncia, sendo estas, bem como a defesa, que no seu essencial e para além dos poderes oficiosos de investigação [340.º], fixam os poderes de cognição do tribunal, delimitando a sua vinculação temática, assim como a extensão do caso julgado [303.º, 358.º, 359.º, 379.º, n.º 1, al. b][8].

Por isso, a exigência de homogeneidade entre a queixa e a acusação, será sempre mais fluida do que a correspondência entre a acusação ou o despacho de pronúncia, por um lado, e a sentença, por outro lado.

Convém relembrar, que segundo o conceito legal de “alteração substancial dos factos” [art. 1.º, al. f)], esta apenas sucederá se “tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.”

Tendo como assente que a queixa de um crime tem em vista a manifestação de vontade da necessidade constitucional de tutela jurídica efectiva, mediante o exercício da acção penal, o conceito de facto só poderá assentar numa perspectiva naturalístico-normativa, que corresponda à violação e à necessidade de protecção de um certo bem jurídico.

Daí que a queixa represente um autêntico catalisador ou impulso processual de desejo de perseguição criminal, sendo, como já referimos, o ponto de partida desta.
Daí que também seja de aceitar que apesar de a formalização da queixa indicar uma certa factualidade imputada a certo indivíduo, a acusação venha a divergir daquela, restringindo-a ou ampliando-a, se os factos constantes nesta corresponderem essencialmente ou substancialmente aos que foram denunciados.

Por fim, e em síntese, a ideia essencial de que, na verdade, a validade da queixa não exige uma fórmula especial ou a expressa declaração com utilização do termo «queixa», bastando-se com qualquer manifestação inequívoca do titular do direito de queixa, no sentido de pretender desencadear o procedimento criminal[9].

2.3. Com o enfoque que há-de sobrevir do expendido e sobretudo na consideração de que estando em causa um eventual crime assumindo natureza semi-pública a queixa haveria de assumir uma função mais delimitadora – pois que mister seria apurar o quê e a quem se dirige a vontade de perseguição criminal –, permitindo vislumbrar uma manifestação inequívoca do respectivo titular desse direito, vejamos se procede o alegado pelo recorrente, para quem a “denúncia” da mãe do menor, na altura dos factos e quando ele estava à guarda e cuidados do progenitor, referindo “dada a gravidade da situação, solicito que se apurem os factos”, equivale ao exercício adequado desse direito.

Adianta, basta atentar no despacho de fls. 123, com data de 29 de Maio de 2009, ordenando a tomada de declarações à denunciante no sentido de esclarecer se ainda pretendia procedimento criminal contra ambos os arguidos, o que ela reafirmou (fls. 140); no consignado pelo subscritor da promoção de fls. 28, ponto II, proferida no âmbito daquele processo de Regulação das Responsabilidades Parentais que corre termos pelo Tribunal do Sabugal – “relativamente ao acidente de viação de que o menor foi vítima, pr. se extraia certidão, e se remeta aos Serviços do Ministério Público da Guarda para os efeitos tidos por convenientes, designadamente para averiguar da eventual prática de algum ilícito criminal e infracções estradais, ...”, além de que não se mostra curial impor que o denunciante pronuncie “the rights words of the law”, tornando-se a posição assumida no despacho em crise “mais papista que o papa.”

Ao invés, entendemos ser de manter o despacho recorrido.

Isto porquanto das próprias posições assumidas pelo Ministério Público ressalta que ao menos dúvidas se lhe suscitaram sobre o que pretendia a mãe do menor ao dirigir a “denúncia” aos autos de regulação do poder paternal – condicionar a sua regulação ou, ademais, estender o seu objecto a outros objectos, mormente o criminal –, e sobre quem o visado com a mesma – o pai do menor ou o co-arguido A –.

O que o despacho recorrido acertadamente enfatiza, quando anota:

“Compulsados os autos verifica-se, por um lado, que o pai do menor não apresentou qualquer queixa-crime. Por outro lado, analisando a postura da mãe do menor ao longo do processo, impõe-se concluir que a mesma também não apresentou tempestiva queixa-crime.

Na verdade, analisando o processado, verifica-se que os presentes autos se iniciaram com base numa certidão proveniente dos autos de incumprimento das responsabilidades parentais, que corriam termos, sob o n.º ../06.5 TBSBG, no Tribunal Judicial da Comarca do Sabugal (cfr. fls. 3 a 26), certidão essa que teve subjacente uma promoção da magistrada do Ministério Público da referida comarca com o seguinte teor: “II – Relativamente ao acidente de viação de que o menor foi vítima, se extraia certidão de fls. …e se remeta aos Serviços do Ministério Público da Guarda, para os efeitos tidos por convenientes, designadamente, para averiguar da eventual prática de algum ilícito criminal e infracções estradais, p.p., pelos artigos 82, n.º 3 e 91, n.ºs 1 e 4, ambos do Código da Estrada (o menor à data dos factos tinha sete anos de idade).”

Tal certidão contém um requerimento da mãe do menor (cfr. fls. 7), dirigido ao referido processo, entrado no dia 14 de Julho de 2008, no qual a mesma relata o acidente ocorrido (no dia 5 de Julho de 2008), durante um período de visitas ao pai do menor, imputando a responsabilidade pela ocorrência do acidente ao pai do menor, terminando dizendo: “Dada a gravidade da situação, solicito que se apurem os factos com urgência e que o pai não possa levar o R consigo até que a situação se encontre devidamente esclarecida.”

Interpretando o sentido da declaração, de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, poderia extrair de tal requerimento (cfr. artigo 236.º do Código Civil), dirigido a um processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, resulta do mesmo que não foi intenção da mãe apresentar qualquer queixa-crime contra o pai do menor, mas apenas a de relatar o acidente de que o seu filho havia sido vítima, para que, no âmbito do referido processo, se apurassem os factos e se impedisse o pai de voltar a levar o menor consigo até que todos os factos fossem esclarecidos.

Compulsados os autos verifica-se que, recebida tal certidão nos Serviços do Ministério Público desta comarca, tendo sido autuado o processo de inquérito, foi de imediato (no dia 24/10/2008) determinado o arquivamento dos autos, por inexistência de crime (cfr. fls. 26).

O Ministério Público, em despacho proferido no dia 3/11/2008, ponderando que a certidão havia sido remetida para “se averiguar da eventual responsabilidade criminal (ofensa à integridade física por negligência) e/ou contra-ordenacional”, determinou o “reinício” do inquérito e determinou a realização de diversas diligências (cfr. fls. 28).

Em tal despacho, o Ministério Público não deixou consignado porque razão “reiniciava o inquérito”, não tendo ponderado o facto de não ter sido apresentada queixa relativamente ao crime alegadamente indiciado.

O inquérito correu os seus termos até que, no dia 29/5/2009 (cfr. fls. 123), o Ministério Público determinou a inquirição da mãe do menor (a qual até esta data não tinha sido “vista, nem achada” no processo), para que a mesma esclarecesse “se pretende ainda procedimento criminal contra estes arguidos”, diligência que foi realizada no dia 6/7/2009 (cfr. fls. 140), ou seja, um ano e um dia depois da ocorrência dos factos, na qual a mãe do menor referiu que “pretende procedimento criminal contra os arguidos”.

Conclui-se, assim, que, não tendo a mãe do menor formalizado qualquer queixa-crime para dar início ao processo, iniciado o mesmo, a declaração formalizada mais de um ano depois da ocorrência e do conhecimento dos factos, nos termos do artigo 115.º/1 do Código Penal, é irrelevante, por já ter decorrido o prazo (de 6 meses) previsto para exercício tempestivo do direito de queixa – tendo-se extinto, no dizer da lei, o direito de queixa.”

Isto é, não comprovada, fora de dúvidas, a exigível manifestação inequívoca de vontade da denunciante no sentido em que relativamente ao mencionado crime de natureza semi-pública fosse exercitado contra o co-arguido A o reclamado procedimento criminal.


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III – Decisão.

São termos em que negamos provimento ao recurso interposto.

Sem custas, atenta a isenção subjectiva do recorrente.

Notifique.


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BRÍZIDA MARTINS (RELATOR)
ORLANDO GONÇALVES

[1] Acrescente-se que a intencionalidade implícita na abertura do processo, tal como resulta do despacho proferido a fls. 123, não teve subjacente o artigo 113.º/5-a) do Código Penal, porquanto, caso tivesse sido essa a intenção implícita, não faria sentido o despacho do Ministério Público (proferido mais de 6 meses após o conhecimento dos factos) a determinar a tomada de declarações à mãe do menor para declarar se desejava procedimento criminal contra os autores dos factos.

[2] Sobre as quais acompanharemos o Acórdão da Relação do Porto, de 29 de Abril de 2009, relatado pelo Ex.mo Desembargador Joaquim Gomes, no âmbito do processo n.º 190/07.1 GAMDB.P1, acessível no site www.dgsi.pt.jtrp
[3] Veja-se Vital Moreira e Gomes Canotilho, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3.ª edição, revista, 1993, págs. 161/2.
[4] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem.
[5] Neste sentido os Acórdãos do STJ, de 13 de Julho de 1988; da Relação de Évora, de 6 de Novembro de 1984 e de 14 de Março de 1985; da Relação de Coimbra de 29 de Outubro de 1986 e de 14 de Maio de 1980, in, respectivamente, BMJ´s 379/551; 343/398; 347/477; 360/665 e Colectânea de Jurisprudência, III, 292.

[6] “Nos casos em que a lei exige queixa, denúncia ou participação do ofendido, ou de outras pessoas, para haver procedimento penal, é necessário que essa pessoas dêem conhecimento do facto em juízo para que o Ministério Público promova.”

[7] Acórdãos do STJ, de 13 de Julho de 1988; da Relação do Porto, de 16 de Maio de 1984; da Relação de Coimbra, de 29 de Outubro de 1986 e de 14 de Maio de 1980, e, da Relação de Évora, de 14 de Março de 1985, in, respectivamente, BMJ´S 379/551; C.J., III, 295; 360/665; C.J., III, 292; 347/477.

[8] Figueiredo Dias, in Direito Processual penal, Vol. I, 1981, págs. 136 e segs.
[9] Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, pág. 675.