Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
66/11.8GAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: AMEAÇA
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Data do Acordão: 07/12/2011
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 153º Nº 1 CP E 311º NºS 1, 2 E 3 CPP
Sumário: 1.- Só quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la, nos termos do artigo 311º n.º 3 alínea d) do CPP;

2.- Os factos em causa, que se sustentam numa afirmação efectuada pela arguida ao ofendido, via telefone, “ és um puto de merda; qualquer dia vais-te dar mal com o que andas a fazer, ainda levas dois socos na cara”, assumem um conteúdo cuja interpretação não é controversa, mas sim configuradores de uma afirmação consubstanciadora de um mal, determinado, futuro e concretamente referido.

Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.
No processo comum singular supra identificado tendo sido deduzida acusação pelo Ministério Público contra S..., imputando-lhe a prática de um crime de ameaças, p.p. artigo 153º n.º 1 do Código Penal, o senhor juiz rejeitou a acusação, por se revelar manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º n.º 3 alínea d) do CPP.

Não se conformando com esta decisão, interpôs o Ministério Público recurso para este Tribunal da Relação.

Na sua motivação conclui:

1-- Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público do douto despacho de fis.

que rejeitou a Acusação proferida nos Autos a fis. 17 a 19, por manifestamente infundada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 313°, no 2, ai. a) e 3, ai. d) do Código de Processo Penal e, em consequência, determinou o arquivamento dos Autos;

2— “Só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá Ia “, o que sucede, “quando, entre outras situações, se verz:flca uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se afactualidade em causa não consagra deforma inequívoca qualquer conduta tip do crime imputado, sublinhando-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada; não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja.”

3 -- o crime de ameaça classifica-se dogmaticamente como sendo um crime de perigo concreto e a sua tipicidade objectiva fica preenchida independentemente de o ofendido ter ficado com medo, ou inquietação, bastando que a conduta do agente seja idónea / adequada a causar esse resultado;

4 — “São três as características essenciais do conceito ameaça: - mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente.”

5 — Por não constiturem elemento constitutivo do tipo de “crime-base” do crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153°, n° 1, do Código Penal, são irrelevantes para o apuramento da adequação do mal anunciado as características “normais/comuns” do ofendido e, por isso, não devem constar da Acusação proferida pelo Ministério Público;

6 — Apenas “as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada e respectivas “sub capacidades”, assim como as “características “anormais/específicas” da pessoa ameaçada “, rectius as circunstâncias agravantes, devem constar da Acusação, por constitufrem elementos objectivos da prática do crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 1550, n°, 1, aL a), b) ou e) e n°2, do Código Penal;

7 — As “características do ofendido” nada t que ver com o facto de o mal anunciado não estar, segundo o douto despacho a quo, “dependente da vontade da arguida”; 8’ 8 8 — A expressão “És um puto de merda; qualquer dia vais—te dar mal com o que andas a fazer, ainda levas dois socos na cara” constitui um mal, futuro e que depende da vontade da arguida, na medida em que foi alegadamente proferida e dirigida, directamente, pela mesma ao ofendido e não por terceiro sem conhecimento, ou sem o consentimento daquela;

9 -- A factualidade que é imputada à arguida, traduzida na expressão descrita depende, assim, da sua vontade, não depende da vontade de terceiro e, muito menos, depende da vontade do ofendido, ou, até, da prática de algum facto por parte deste último, não se tratando, por isso, de nenhum aviso, antes se tratando de um mal, futuro, concreto, determinado e indubitável;

10 — Pelo que o juízo assente no douto Despacho a quo não assentou na “constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada”;

11 -- Razão pela qual, ao ter rejeitado a Acusação proferida pelo Ministério Público, por manifestamente infundada, violou o douto Despacho a quo o disposto no artigo 313°, n 2, ai a) e n°3, ai. d), ambos do Código de Processo Penal e disposto no artigo 153°, n° 1, do Código Penal.

12 — E, em consequência, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, por via dessa procedência, ser revogado o douto Despacho proferido e ser ordenada a sua substituição por outro que designe dia e hora para a realização da audiência de discussão e julgamento.

Não foram produzidas contra-alegações, tendo o Exmo Senhor Procurador Geral-Adjunto neste Tribunal emitido parecer concordante com o recorrente.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

A questão que importa decidir, face às conclusões efectuadas pelo recorrente na sua motivação, sustenta-se tão só na questão de saber se se verifica no caso motivo para rejeição liminar da acusação, por manifestamente infundada.

Vejamos antes de mais o teor do despacho impugnado:

O Ministério público acusou a arguida S..., imputando-lhe a prática em autoria material de um crime de ameaça p. e p. pelo art.° 153° n.° 1 do CP.

Remetido o processo para julgamento, é proferido despacho de não recebimento sempre que- não tendo havido lugar a instrução - a acusação seja considerada manifestamente infundada (art° 311°, n° 2, al. a) do Cód. de Proc. Penal).

A al. d) do n° 3 do preceito legal acima mencionado, esclarece que a acusação se considera manifestamente infundada, sempre que os factos não constituírem crime.

Vertendo ao caso dos autos, constata-se, no que se refere à descrição factual tendente à imputação ao arguido do crime indicado, que o Ministério Público descreve a seguinte factualidade:

“No dia … de 2011,em … área deste Concelho e Comarca de Alcobaça, a arguida S... telefonou ao ofendido T... e disse-lhe:

-- És um puto de merda; qualquer dia vais-te dar mal com o que andas afazer, ainda levas dois socos na cara.”

A arguida actuou com o intuito de intimidar o ofendido, bem sabendo que a expressão por si proferida, em que anunciava a intenção de lhe causar uma lesão no corpo e na saúde, era adequada a provocar-lhe medo, inquietação e a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação, tal como efectivamente aconteceu e, não obstante, não se absteve de agir do modo descrito.

A arguida actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era censurada, proibida e punida por lei penal.

Pelo exposto e de acordo com a factualidade supra descrita, cometeu a arguida, em autoria material singular, nos termos dos artigos 14°, n° 1 e 26°, ambos do Código Penal:

1 (um) crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153°, n° 1, do Código Penal.”

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Pratica o crime de ameaça quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade fisica, a liberdade pessoal (...), de forma adequada a causar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

O tipo legal de crime de ameaças está inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal e visa sancionar, inequivocamente os ataques ou afectações ilícitas da liberdade individual, pretendendo tutelar a liberdade de decisão e de acção.

Ameaçar significa prometer ou pronunciar um mal futuro, de anunciar a intenção de praticar, no futuro, um acto maléfico.

Assim, são 3 as características essenciais do conceito de ameaça:

1- Mal,

2 - Futuro,

3 - Cuja ocorrência dependa da vontade o agente.

De acordo com a factualidade constante da Acusação do Digno Magistrado do Ministério

Público, a mesma, a resultar provada, integra os dois primeiros requisitos elencados, a saber, o

mal, já que desferir dois socos consubstancia ofensa à integridade fisica e mal futuro já que a

arguida alegadamente terá dito “qualquer dia .. . ainda levas dois socos na cara”.

Como refere o Prof. Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense do Código Penal, em anotação ao art.° 153°): “Ser o mal futuro, significa que o mal, objecto da ameaça, não pode ser imjnente, pois que neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, i.e, do respectivo mal.

Ora, no caso vertente, o mal ameaçado não é iminente, mas sim futuro, pela expressão:

“qualquer dia” No entanto não é possível extrair a mesma conclusão do terceiro requisito, já que a factualidade constante da Acusação não permite, ainda que provada em Julgamento, concluir ser a ocorrência de tal mal dependente da vontade da arguida.

É certo que, na senda da doutrina expendida pelo Prof. Taipa de Carvalho (ob. Cit., pág. 434), o critério para determinar se a ameaça depende ou parece depender da vontade do agente é um critério objectivo-individidual, o qual tem como ponto de partida a perspectiva do homem comum, da pessoa adulta normal, tendo em conta as características individuais do ameaçado.

No entanto, na factualidade descrita na Acusação nenhuma alusão é feita a tais características do ofendido, nem é descrito o contexto e motivação que deram origem à expressão proferida pela arguida.

Ou seja, inexistem elementos fácticos na Acusação de onde se possa depreender que a concretização do mal futuro está dependente da vontade da arguida.

Neste contexto, a expressão indicada na Acusação consubstancia antes, e salvo o devido respeito por opinião contrária, um simples aviso ou advertência, o qual não é criminalmente punível.

Assim, não constando do libelo acusatório não constam tais elementos, essenciais à verificação dos elementos objectos do tipo criminal, ainda que se provem todos os factos constantes da acusação, a mesma não tem aptidão para a condenação da arguida pelo crime de ameaça simples.

Em conclusão, deve a mesma ser rejeitada.

II

Pelo exposto, rejeito a acusação formulada pelo Ministério Público, a fis. 18 e 19, por a considerar manifestamente infundada, nos termos do disposto no art° 3110, n° 3, ai. d) do Cód. de Proc. Penal e determino, em consequência, o oportuno arquivamento dos autos.

Notifique.

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Dispõe o artigo 311º nº 2 do CPP que «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente».

De igual modo, o nº 3 do mesmo artigo estabelece que «para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d)se os factos não constituírem crime».

Assente que o modelo processual penal vigente desde 1987 em Portugal se estrutura no princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, (estrutura acusatória mitigada pelo princípio da acusação, segundo o artigo 2º n.º 2 ponto 4 da Lei 43/86 de 26 de Setembro, Lei de Autorização legislativa em matéria de processo penal) um dos seus traços estruturais radica exactamente na distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e se for caso disso sustenta uma acusação e uma outra entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação.

A compreensibilidade da lineariedade do modelo esteve, durante alguns anos, sujeita a várias dúvidas e flexões jurisprudenciais (que levaram inclusive à caducidade do Assento do STJ n.º 4/93). Nesse sentido a reforma de 1998, introduzida pela Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto veio efectuar algumas alterações que permitiram reforçar a clareza e a inequivocidade do modelo pretendido para o processo penal, nomeadamente explicitando as funções dos vários sujeitos processuais.

Com essa intenção, estabeleceram-se, normativamente, no artigo 311º nº 3 as condições que o legislador entendeu permitir-se ao juiz sustentar uma rejeição da acusação, sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido.

Impediu-se assim, entre outras situações, que o juiz quando profere o despacho ao abrigo do artigo 311º, tenha um papel equivalente ao sujeito processual “Ministério Público” fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida. Nesse sentido os quatro motivos explicitados na lei são hoje muito claros: quando a acusação não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.

Ora esta taxatividade, legalmente estabelecida, não pode e não deve ser substituída por outra interpretação que não aquela que o legislador quis.

Se no que respeita às alíneas a) a c) não se suscitam grandes dúvidas sobre o que o seu conteúdo traduz, já a alínea d) [em causa também nestes autos] não sendo, nem podendo ser tão clara, não pode, na sua interpretação ir além do que a estrutura dos princípios processuais admite.

Ou seja só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.

E os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado.

Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja. Só assim, numa interpretação tão restritiva se assegura o princípio do acusatório, na vertente referenciada (neste sentido e com a mesma argumentação já nos pronunciámos no Ac. desta Relação de 25.03.2010, proferido no processo 127/09.3SAGRD.C1, in www.dgsi.pt)

Debruçando-nos agora sobre a decisão sub judice importa referir que o Senhor Juiz não seguiu este caminho. O que se passou foi apenas e só uma interpretação divergente sobre os factos imputados e que resultam do inquérito, absolutamente legítima, diga-se, mas que não permite nesta fase e à face do normativo referido a subsunção ao conceito de «manifestamente infundado».

Os indícios recolhidos subsumidos nos factos imputados podendo para o senhor juiz em causa ser insuficientes para, no seu juízo, configurarem o crime de ameaças, não foram postos em causa nem são «preto no branco» passíveis de não configurarem o crime imputado.

Os factos em causa, que se sustentam numa afirmação efectuada pela arguida ao ofendido, via telefone, - és um puto de merda; qualquer dia vais-te dar mal com o que andas afazer, ainda levas dois socos na cara - assumem um conteúdo cuja interpretação não é controversa, mas sim configuradores de uma afirmação consubstanciadora de um mal, determinado, futuro e concretamente referido.

Daí que não pode sem mais, afirmar-se que os factos não constituem crime (o que não quer dizer nem é a mesma coisa que os factos constituam, depois de provados, crime, diga-se!).

Assim sendo e em conformidade a decisão em causa deve ser substituída por outra que não rejeitando a acusação, por inadmissibilidade legal, designe data para julgamento, se não se verificarem outras circunstâncias que impeçam a designação dessa data.

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III DECISÃO

Pelo exposto decide-se julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, devendo o senhor Juiz, caso não encontre qualquer outro motivo que imponha a rejeição da acusação, dar seguimento aos termos do processo, tendo em conta ao artigo 311º do CPP.
Sem custas.
Notifique.

Mouraz Lopes