Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1807/17.5T9PBL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO REGISTO
Descritores: INCIDENTE DA RECLAMAÇÃO DA CONTA
RECURSO DA DECISÃO
AMPLIAÇÃO DA ADMISSIBILIDADE DE RECURSO ORDINÁRIO
Data do Acordão: 11/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE POMBAL - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 31.º, N.º 6, DO D.L. N.º 34/2008, DE 26 DE FEVEREIRO / REGULAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS
ARTIGO 629.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I - Do art. 31.º, n.º 6, do RCP, ressaltam restrições à admissibilidade de recurso da decisão que conhece do incidente da reclamação: o montante das custas a suportar pelo reclamante deve exceder 50 UC; mesmo que exceda esse montante mínimo de recorribilidade, só é admissível um único grau de recurso.

II - Mesmo admitindo a aplicação, a título subsidiário, do regime jurídico decorrente do n.º 2 art. 629.º do CPC, a ampliação da admissibilidade de recurso da decisão que conhece da reclamação da conta encontra-se dependente da verificação das circunstâncias nele contempladas, muito em particular da ofensa ao caso julgado.

III - O caso julgado pressupõe que seja a mesma a questão jurídica em apreciação, com vista a evitar que o tribunal seja confrontado com a alternativa indesejada de ter de reproduzir ou de ter de alterar a decisão judicial anteriormente proferida.

IV - Não existe identidade da causa de pedir, nem tão-pouco do pedido, entre a decisão de homologou o negócio jurídico (transacção) a que as partes chegaram no âmbito de um processo judicial e a decisão que conheceu do incidente de reclamação da conta, elaborada na sequência da homologação dessa transacção pelo tribunal.

V - No primeiro caso, a causa de pedir é constituído pela transacção e o pedido pela pretensão dirigida ao tribunal para que este negócio jurídico viesse a ser homologado, no outro caso, a causa de pedir é constituída pela sentença homologatória da transacção e o pedido pela dispensa do pagamento das custas.

VI - Não admite recurso a decisão que conheceu da reclamação da conta, quando as custas em dívidas são de montante inferior a 50 UC e quando não se verifica nenhuma das situações de ampliação da admissibilidade de recurso ordinário consagradas pelo n.º 2 do art. 629.º do CPC.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

         I - RELATÓRIO:

… e …, vieram interpor recurso do despacho de 17-01-2025, …, que indeferiu a reclamação da conta e que, em consequência, determinou que fossem notificados para, no prazo de 10 dias, procederem ao pagamento das custas.

                                                           *

Na parte final do recurso que interpuseram para este Tribunal da Relação de Coimbra, os recorrentes … e … formularam as seguintes conclusões:

 “I. A Decisão recorrida entendeu indeferir a reclamação da conta de custas apresentada pelos demandantes, no seguimento da notificação efetuada pela secretaria para pagamento da conta de custas cíveis, relativas ao pedido de indemnização cível deduzido nos presentes autos, quando a responsabilidade por tal pagamento (já) se encontrava atribuída à demandada, mediante acordo devidamente homologado por despacho transitado em julgado.

II. Ora, de acordo com o douto despacho proferido na sessão da audiência de julgamento de 21 de setembro de 2020 – (já) transitado em julgado à data da prolação do despacho recorrido −, o Tribunal de 1.ª instância homologou o acordo alcançado entre os demandantes, ora recorrentes, e a demandada, nos termos do qual se consigna que, as custas em dívida a juízo seriam suportadas por esta.

III. Sabendo que, o despacho supra mencionado não permitiu que o Tribunal a quo conhecesse do mérito da causa, limitando-se a verificar os requisitos da validade do ato – transação –, o caso julgado constituído configura um caso julgado formal, ao abrigo do disposto no artigo 620.º, n.º 1, do CPC ex vi artigo 84.º, do CPP.

IV. Pelo que, o conteúdo do referido despacho tem força obrigatória dentro do presente processo − nos precisos limites e termos em que foi julgado (art. 621.º do CPC) −, não podendo ser revertido ou modificado pelo tribunal, nem podendo, nesse processo, admitir-se a prática de qualquer ato que seja contraditório com o seu conteúdo decisório.

V. Sucede que, o despacho recorrido decidiu em manifesta contradição com o despacho acima melhor especificado, na medida em que, olvidando o conteúdo do despacho transitado em julgado, indeferiu a reclamação apresentada pelos apelantes, com fundamento na alegada responsabilidade dos mesmos pelo pagamento das custas cíveis, ofendendo, assim, o caso julgado consolidado.

                                                           *

O MINISTÉRIO PÚBLICO, junto do tribunal a quo, veio responder ao recurso, …

                                                           *

O Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal da Relação de Coimbra, emitiu parecer, …

                                                           *

 Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – OBJECTO DO RECURSO:

No caso vertente, os recorrentes … e … insurgem-se contra o despacho proferido …, que desatendeu a reclamação por eles apresentada da conta e que, por conseguinte, determinou a notificação dos reclamantes para procederem ao pagamento das custas devidas.

O tribunal a quo deixou consignado, com particular destaque, para sustentar a decisão de indeferimento da reclamação, que “(…) apesar de não se olvidar o teor da sobredita transacção, a mesma não afasta, de forma alguma, o preceituado no aludido art. 15.º n.º 2 do RCP. Ao invés, havendo transacção que versa igualmente sobre as custas devidas em juízo, a mesma deverá produzir os seus efeitos no âmbito de eventuais custas de parte e não no âmbito dos presentes autos. Aliás, veja-se que tal sucederia de igual modo caso tivesse havido inicialmente pagamento de taxa de justiça pelos demandantes e, a final, fosse acordado o pagamento de custas por parte da demandada, podendo, nesse caso, da mesma forma, os demandantes vir peticionar tal valor, por si pago inicialmente, a título de custas de parte (…)”.

Estando em causa uma reclamação da operação de contagem de um processo judicial, importa atender ao disposto no art. 31.º, n.º 6, do RCP (aprovado pelo DL n.º 34/2008, de 26-02), no qual se prevê que da decisão deste incidente “(…) cabe recurso em um grau, se o montante exceder o valor de 50 UC (…)”.

Deste dispositivo ressaltam restrições à admissibilidade de recurso da decisão que conhece do incidente da reclamação: o montante das custas a suportar pelo reclamante deve exceder € 5 100 (50 UC x € 102 = € 5 100); mesmo que exceda esse montante mínimo de recorribilidade, só é admissível um único grau de recurso.

À semelhança do que sucede com o art. 629.º, n.º 1, do CPC, em que a recorribilidade das decisões se encontra dependente do valor da causa e da sucumbência, o art. 31.º, n.º 6, do RCP, restringiu-se a admissibilidade de recurso da decisão que conheceu o incidente de reclamação aos casos em que as custas em dívida tenham, pelo menos, valor elevado, por excederem 50 UC.  

Compreende-se o intuito do legislador: à semelhança de outros casos em que são estabelecidas restrições ao recurso, procura-se retirar dos tribunais hierarquicamente superiores a apreciação de questões relacionadas com custas processuais de montantes mais reduzidos ou menos significantes.

In casu, afigura-se isento de quaisquer dúvidas que as custas em dívida, no montante global de € 1 632, a cargo de … e de …, não excedem o montante mínimo previsto pelo RCP, que permite a recorribilidade do despacho que conheceu da reclamação da conta.

Os recorrentes … vieram invocar uma alegada violação de caso julgado, para contrariarem o princípio da irrecorribilidade do despacho que conheceu do incidente de reclamação da conta, por as custas em dívida não excederem 50 UC.

Para o efeito, vieram alegar que a decisão que conheceu o incidente da reclamação da conta violou a decisão transitada em julgado que homologou a transacção realizada nos autos, muito em particular a cláusula que previa que as custas em dívida seriam suportadas pela companhia de seguros demandada.

O art. 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, estabelece que é sempre admissível recurso ordinário, independentemente do valor da causa e da sucumbência, quando a decisão impugnada (in casu, a decisão do tribunal a quo que conheceu da reclamação da conta) configure uma violação ou uma ofensa ao caso julgado.

Mesmo admitindo a aplicação, a título subsidiário, do regime jurídico decorrente do n.º 2 art. 629.º do CPC, não se verifica, in casu, nenhuma das circunstâncias nele contempladas, muito em particular a violação de caso julgado, que determine a ampliação da admissibilidade de recurso da decisão em causa.

O conceito de caso julgado encontra-se delimitado pelo CPC.

O caso julgado pressupõe que seja a mesma a questão jurídica em apreciação, com vista a evitar que o tribunal seja confrontado com a alternativa indesejada de ter de reproduzir ou de ter de alterar a decisão judicial anteriormente proferida.

O art. 581.º, n.ºs 1 a 4,  do CPC, estabelece, a respeito dos requisitos do caso julgado, que se repete um causa quando existe identidade de sujeitos (as partes são as mesmas), de causa de pedir (quando a pretensão deduzida procede do mesmo facto jurídico) e de pedido (quando se pretende obter o mesmo efeito jurídico).

No caso vertente, verifica-se que não existe identidade nem da causa de pedir, nem tão-pouco do pedido, entre a decisão de homologou o acordo (transacção) a que chegaram demandantes e demandada no âmbito deste processo e a decisão que conheceu do incidente de reclamação da conta, por forma a que se diga que a segunda contrariou a primeira (ou seja, a decisão transitada em julgado).

Num caso, pretendeu-se que o tribunal a quo, após verificar todos os requisitos legais, viesse a homologar o acordo a que as partes chegaram para terminar o litígio que as opunha neste processo. No outro caso, os requerentes do incidente pretendiam ficar dispensados do pagamento das custas que foram apuradas nestes autos com base na sentença que homologou essa transacção.

Enquanto que, num caso, a causa de pedir é constituído pela transacção (ou seja, de acordo com o disposto no art. 1248.º, pelo negócio jurídico bilateral que visa prevenir ou terminar um litígio mediante recíprocas concessões) e o pedido pela pretensão dirigida ao tribunal para que este negócio jurídico viesse a ser homologado, no outro caso, a causa de pedir é constituída pela sentença homologatória da transacção e o pedido pela dispensa do pagamento das custas.

Na primeira decisão, o tribunal a quo verificou se a transacção respeitava (ou não) todos os requisitos legais e acabou por homologar o negócio jurídico bilateral.

Por seu turno, o despacho que conheceu da reclamação da conta pronunciou-se sobre uma questão jurídica diferente, pela primeira vez submetida para apreciação judicial, relacionada com a interpretação do art. 15.º, n.º 2, do RCP: a saber, quando ocorre transacção e quando fica acordado que as custas são suportadas pelo demandado cível, esse acordo produz unicamente efeitos sobre as denominadas custas de parte ou sobre todas as custas devidas em juízo.

Somente haveria violação do caso julgado, se o tribunal, através da decisão posta em crise (despacho que conheceu o incidente da reclamação), viesse a contrariar uma anterior decisão proferida sobre essa matéria (ou seja, a respeito da interpretação do art. 15.º, n.º 2, do RCP), o que, como se viu, não sucedeu.

No caso vertente, não ocorre ofensa do caso julgado (formal).

Não há identidade entre as questões jurídicas acima enunciadas ou, dito por outras palavras, são inteiramente distintas as questões controvertidas que foram apreciadas pelas duas decisões judiciais em confronto.

Aliás, o Senhor Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, quando conheceu da reclamação apresentada pelos recorrentes … do despacho que não admitiu o recurso da decisão da reclamação da conta, logo ressalvou que “(…)  se ocorre ou não ocorre caso julgado, é questão que não pode ser analisada neste momento (…)”.

Deste modo, verifica-se que não admite recurso a decisão que conheceu da reclamação da conta, seja por as custas em dívidas serem de montante inferior a 50 UC (as custas ascendem a € 1 632), seja por não se verificar nenhuma das situações de ampliação da admissibilidade de recurso consagradas pelo n.º 2 do art. 629.º do CPC (máxime, a excepção do caso julgado).  

Por conseguinte, de acordo com o disposto no art. 420.º, n.º 1, al. b), do CPP, deverá ser rejeitado o recurso apresentado pelos recorrentes …, com fundamento na irrecorribilidade do despacho que conheceu da reclamação da conta.

É sabido que a decisão de 20-03-2025, proferida pelo Senhor Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, que determinou a admissão do recurso da decisão que conheceu da reclamação da conta, não vincula este tribunal (vide, neste sentido, parte final do n.º 4 do art. 405.º do CPP).

III – DECISÃO:

Em face do exposto, acordam os juízes que integram a 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em rejeitar o recurso apresentado pelos reclamantes …, com fundamento na irrecorribilidade do despacho do tribunal a quo que apreciou a reclamação da conta.

Os recorrentes vão condenados em 3 UCs. de taxa de justiça (art. 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, em conjugação com o art. 8.º, n.º 9, do RCP e com a Tabela III anexa a este diploma legal) e ainda em 3 UCs. a título da sanção processual prevista pelo art. 420.º, n.º 3, do CPP.

Notifique.

           


Coimbra, 05 de Novembro de 2025

Paulo Registo

Cristina Pêgo Branco

Sara Reis Marques