Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
37/09.4GBSRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: RECURSO
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 05/30/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 401º Nº 1 A) E 2 CPP
Sumário: 1- O interesse em agir ou interesse processual consiste na necessidade, justificada, razoável, em prosseguir a ação;

2- Se o Ministério Público aceita a decisão não pode recorrer apenas com base no facto de discordar da sua fundamentação, carecendo por isso de interesse em agir.

Decisão Texto Integral: RELATÓRIO

1.
Nos presentes autos foi o arguido A... absolvido da prática dos crimes de violência doméstica, do artigo 152º, nº 1, al. a), 2, 4 e 5, do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, previsto, à data da prática dos factos, pelo artigo 86º, nº 1, c), e 90º da Lei nº 5/2006, de 23/2.

2.
Inconformado, o Ministério Público recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:
«1ª - Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público da douta sentença de fls. 478 a 489, em que absolveu o arguido A..., pela prática, em autoria material, e em concurso efectivo, de um crime de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a), nº 2, 4 e 5 do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido, à data da prática dos factos, pelo artigo 86º, nº 1, c) e com a pena acessória prevista no artigo 90º, todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro e, actualmente, pelos mesmos normativos, mas na redacção dada pela Lei nº 17/2009, de 6 de Maio.
2ª - Não se impugna a matéria de facto referente aos factos integradores da prática de um crime de violência doméstica, porque no âmbito do processo nº 1656/09.4PCCBR, o arguido A... já foi condenado por douto acórdão datado de 26 de Maio de 2011, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensos na sua execução, por igual período de tempo, no qual, também era ofendida B....
3ª - Os factos, pelos quais, o arguido A... foi condenado nesse processo, são referentes ao período de tempo, compreendido entre o dia 18 de Janeiro de 2005 e o dia 16 de Junho de 2009, pelo que, uma vez, que os factos que vêm descritos na acusação são referentes ao dia 19 de Março de 2009, entendemos, que no tocante a esse crime, e pelos fundamentos supra referidos, se impõe a absolvição do arguido, sob pena de estarmos, perante a violação do principio do ne bis in idem, consagrado no artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, única razão, pela qual, não se impugna a matéria de facto, referente à prática desse crime.
4ª - Ao dar como provados os factos 1) a 6) e como não provado o facto J), incorreu a douta sentença a quo no vício da contradição insanável da fundamentação, nela se tendo violado o disposto nos artigos 127º e 410, nº 2, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.
5ª - Foram incorrectamente julgados como não provados os factos:
“E) O arguido tinha, no dia seguinte, pelas 11H, no pinhal, próximo da casa do casal, a pistola e munições referidas em 2; G) Por outro, agiu deliberadamente, com intenção de deter, conservar e manusear aquela pistola e munições, bem sabendo que a posse daquelas munições estava sujeita a autorização especial e que era necessário ser possuidor de documento habilitador da sua detenção e emitido pelas entidades oficiais competentes; I) Agiu ainda livre e lucidamente, com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei; e 1) O arguido não adoptou os comportamentos descritos na acusação".
6ª - Pelo que se impõe e requer nos termos do disposto na alínea c), do nº 3, do artigo 412º e do nº 4 e 6, desse mesmo preceito do Código de Processo Penal, a renovação das passagens supra transcritas dos depoimentos das testemunhas … …………………..;
7ª - Do teor da prova produzida e reexaminada na audiência de discussão e julgamento, resultante dos depoimentos das testemunhas …………………, resultará não haver dúvidas de que o arguido A... incorreu na prática de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punido, à data da prática dos factos, pelo artigo 86º, nº 1, c) e com a pena acessória prevista no artigo 90º, todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro e, actualmente, pelos mesmos normativos, mas na redacção dada pela Lei nº 17/2009, de 6 de Maio;
8ª - Da sua audição e reexame, resultarão provados os factos que impõem necessariamente decisão diversa da tomada e supra mencionados: - os constantes da acusação, relativamente ao crime de detenção de arma proibida, que lhe vem imputado e pelo qual, o arguido, deveria ter sido condenado;
9ª - Razão pela qual, deverá ser substituída por outra que condene o arguido A..., pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido, à data da prática dos factos, pelo artigo 86º, nº 1, c) e com a pena acessória prevista no artigo 90º, todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro e, actualmente, pelos mesmos normativos, mas na redacção dada pela Lei nº 17/2009, de 6 de Maio.
10ª - Ao ter decido de forma diversa, violou a douta sentença a quo por indevida aplicação, o disposto nos artigos nos artigos 127º, nº 1, 344º, nº 1, 410º, nº 1 e 2, als. b) e c), todos do Código de Processo Penal».

3.
O recurso foi admitido.

4.
O arguido respondeu. Relativamente às conclusões 1ª a 3ª, invoca a falta de interesse em agir do Ministério Público. Sobre a questão suscitada na conclusão 4ª entende que não se verifica qualquer contradição. Finalmente, quanto à pretendida alteração da matéria de facto, defende a manutenção do decidido pelas razões nela invocadas, pois que as provas de onde se retira a prática dos factos não são suficientemente firmes para fundamentaram uma condenação.

Nesta Relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer de concordância com a pretendida condenação pela prática do crime de detenção de arma proibida: defende que a prova que aponta nesse sentido deve ser relevada, não tendo fundamento, no que a esta matéria respeita, as críticas que a sentença faz ao depoimento da testemunha … .

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

5.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência cumpre decidir.
*
*

FACTOS PROVADOS

6.
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
«1. A ofendida B... e o arguido foram casados, entre si, desde 19.08.2004 até 29.06.2010.
2. No dia 19.03.2009, … entregou no posto da GNR da Sertã uma pistola de calibre 6.35mm, municiada com 3 balas, melhor descrita no auto de Exame de fls. 62, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
3. O arguido foi condenado, no âmbito do Proc. 1656/09.4PCCBR deste tribunal, por sentença transitada em julgado a 27.06.2011, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a), nº 2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
4. O arguido foi, ainda, condenado:
i) por sentença transitada em julgado a 15.03.2001, pela prática, em 12.08.1999, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 90 dias de multa;
ii) por sentença transitada em julgado a 28.02.2007, pela prática, em 02.02.2007, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa;
5. O arguido é bem considerado pelas pessoas que o rodeiam e é tido como pessoa trabalhadora e respeitadora.
6. É madeireiro, auferindo cerca de € 520,00 por mês. Reside sozinho. Presta assistência ao seu pai. Paga € 101,00 mensais de prestação de um empréstimo. Tem o 5º ano de escolaridade».

7.
E foram julgados não provados quaisquer outros factos com relevância para a causa, nomeadamente:
«A) O arguido consuma álcool em excesso.
B) No dia 18.03.2009, pelas 19H30M, no interior da residência de ambos, sita em … , nesta comarca e na presença da filha menor de ambos, o arguido proferiu, dirigindo-se para a ofendida, as seguintes expressões: “puta”, “és uma nojenta” e “hei-de regar-te com gasolina”.
C) De seguida, o arguido desferiu vários pontapés que atingiram a ofendida em diversas partes do corpo.
D) Não satisfeito, aquele foi buscar à garagem uma machada (em ferro, com cabo em madeira, com cerca de 50 cm de comprimento) e voltou a ameaçar a ofendida, dizendo que a ia matar.
E) O arguido tinha, no dia seguinte, pelas 11H, no pinhal, próximo da casa do casal, a pistola e munições referidas em 2.
F) Por via daquelas agressões, resultaram para a ofendida, ferimentos de pequena monta, não apurados nem examinados, que, apesar de não necessitarem de tratamento médico hospitalar, de forma directa, adequada e necessária provocaram-lhe dores e mau estar físico e psicológico.
G) Por um lado, sempre que bateu, ameaçou ou insultou a sua mulher, o arguido agiu consciente e voluntariamente, com intenção de lhe infligir maus-tratos físicos e psíquicos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
H) Por outro, agiu deliberadamente, com intenção de deter, conservar e manusear aquela pistola e munições, bem sabendo que a posse daquelas munições estava sujeita a autorização especial e que era necessário ser possuidor de documento habilitador da sua detenção e emitido pelas entidades oficiais competentes.
I) Agiu ainda livre e lucidamente, com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
J) O arguido não adoptou os comportamentos descritos na acusação».

8.
O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:
«Conforme dispõe o art. 127.º do Código de Processo Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal.
O tribunal teve em consideração, desde logo, o teor do auto de denúncia de fls. 2 a 4 (apenas quanto ao dia e hora em que a GNR se deslocou a casa do arguido e ofendida e quem solicitou a sua presença), dos autos de apreensão cautelar de fls. 5 e 8 (deste último resultando o provado em 2.), da informação de fls. 42 e 44, do auto de exame de fls. 62, da certidão de assento de casamento de fls. 66 a 67, da certidão judicial de fls. 262 a 288 e 365 e do CRC de fls. 404 a 407.
Quanto aos factos vertidos na acusação, nem o arguido, nem a ofendida quiseram prestar declarações.
... e ..., militares da GNR que se deslocaram a casa de arguido e ofendida no dia em causa nos autos, depuseram de forma segura, circunstanciada, isenta e credível.
Referiram terem sido chamados pela ofendida para se deslocarem à casa onde esta morava com o ofendido, sita em … .
Mais esclareceram que, aí chegados, constataram que os ânimos estavam exaltados entre o arguido e a ofendida, não tendo, contudo, presenciado quaisquer insultos, ameaças ou agressões.
Referiram, ainda, que a ofendida não apresentava quaisquer lesões visíveis.
Mais disseram que a ofendida lhes disse ter sido ameaçada com uma machada e com uma arma de fogo, o que foi negado pelo arguido.
Esclareceram que o arguido lhes entregou voluntariamente as machadas apreendidas nos autos.
Explicaram, ademais, que, logo nessa altura, andaram à procura da arma em causa, no local para onde lhes foi dito que a arma tinha sido arremessada (no pinhal) e não a encontraram.
… referiu, ainda, ter ido ao mesmo local, na manhã seguinte, cerca das 8h30m, a fim de localizar a arma, o que também não logrou fazer.
… , ex-enteado do arguido e filho da ofendida, depôs de forma que não nos convenceu.
Prestou um depoimento inseguro, interessado, acusando, claramente, o facto de ser filho da ofendida e denotando evidente nervosismo.
Começou por dizer que foi ele que chamou a GNR quando resulta do auto de denúncia e do depoimento de … que foi a ofendida que o fez.
Não soube esclarecer em que época do ano os factos terão ocorrido.
Disse que a mãe apresentava lesões visíveis na cara e tinha a roupa rasgada, o que foi contrariado, mais uma vez, por …………...
Primeiro referiu, peremptoriamente, que a ameaça com a arma foi efectuada, na manhã seguinte, depois da GNR ter ido embora, e que, nessa altura, conseguiu tirou a arma ao arguido e a arremessou para o pinhal.
…… disseram que andaram à procura da arma, no pinhal, à noite, quando se deslocaram ao local da 1ª vez.
Depois, confrontado com estas incongruências, disse, evidenciando bastante nervosismo, já não saber se foi de manhã ou à noite.
Disse, ademais, ter chamado a GNR de manhã, quando ... disse ter-se lá deslocado de mote próprio para procurar a arma.
Todas estas incongruências relevantes e a postura que assumiu em julgamento, levaram-nos a não conferir credibilidade ao seu depoimento.
Não tendo arguido e ofendida prestado declarações, não se atribuindo credibilidade ao depoimento de ..., pelos fundamentos ora mencionados, inexistindo nos autos quaisquer registos clínicos relativos à ofendida, tendo as testemunhas ... e ... referido que a ofendida não apresentava lesões visíveis, tendo sido a testemunha ... a entregar a arma apreendida no posto da GNR, ficamos com sérias dúvidas que o arguido tenha praticado os factos que lhe eram imputados na acusação e, nessa medida, lançamos mão do principio in dubio pro reo, dando a factualidade vertida em a) a i) como não provada.
Uma vez que a não prova dos factos vertidos na acusação decorreu do uso do princípio in dubio pro reo, não se provou, também, a versão aventada pelo arguido em sede contestatória (al. j)).
Atentou-se ao depoimento de ... e ..., vizinhos do arguido, e João Costa, irmão deste, os quais depuseram de forma espontânea, escorreita e isenta e confirmaram o vertido em 5. e 6.
Atendeu-se às declarações do próprio arguido quanto à sua situação pessoal, profissional e familiar, tendo este deposto, nessa parte, de forma basicamente convincente».
*
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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação são as seguintes as questões a decidir:
I – Violação do princípio do ne bis in idem
II – Vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão
III – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

*

I – Violação do princípio do ne bis in idem

O Ministério Público começa o seu recurso por imputar à decisão recorrida a violação do princípio do ne bis in idem pela seguinte ordem de considerações:
- o arguido foi já condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da aqui ofendida, por atos cometidos entre 18-1-2005 e 16-6-2009;
- os factos em causa nos autos ocorreram em 19-3-2009;
- o Ministério Público conforma-se com a absolvição do arguido quanto ao crime de violência doméstica mas por os factos relativos a este crime estarem, já, englobados naquela condenação;
- por isso impõe-se a absolvição por via da aplicação do princípio do ne bis in idem.

Ou seja, o Ministério Público insurge-se contra a absolvição do arguido pelos motivos que constam da sentença recorrida, afirmando que ele deve, sim, ser absolvido, mas por outros fundamentos. Por isso, diz, não impugna a decisão sobre a matéria de facto.
Quanto ao arguido ele invoca, a este propósito, a falta de interesse em agir do Ministério Público.

Nos termos da al. a) do nº 1 do art. 401º do C.P.P. o Ministério Público tem legitimidade para recorrer «de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido».
Trata-se, como diz Maia Gonçalves no seu C.P.P. anotado, em anotação a esta norma, de um afloramento da função primacial do Ministério Público - a defesa da legalidade Nos termos do art. 219º da Constituição da República Portuguesa e da al. a) do art. 10º do seu Estatuto compete ao Ministério Público a defesa da legalidade democrática..
Assim, não estando a legitimidade do Ministério Público para recorrer condicionada ao sentido da decisão, podemos concluir, sem receio, que o Ministério Público tem sempre legitimidade para recorrer.
No entanto, o nº 2 deste mesmo artigo introduz uma limitação à legitimidade para recorrer ao dizer que «não pode recorrer quem não tiver interesse em agir». Esta limitação abrange todos os intervenientes processuais mencionados no nº 1. Abrange também, por isso, o Ministério Público.
Resulta assim que para que se possa validamente recorrer de uma decisão a lei exige, para além da legitimidade, o interesse em agir do recorrente.
E em que é que se traduz este interesse em agir, de que fala a lei?
É seguro que o interesse em agir não coincide, necessariamente, com a circunstância de a decisão contrariar os interesses, expressos ou implícitos, do recorrente: o facto de uma decisão contrariar os interesses de alguém não significa, ipso factu, que ele tenha interesse em agir e que, portanto, possa validamente recorrer da decisão.
O interesse em agir, também designado de interesse processual, que permite ao interessado recorrer da decisão, «… consiste na necessidade de recorrer aos tribunais para proteger um direito ameaçado, carecido de tutela e que só por essa via se logra obter; traduz a necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção e reside na utilidade e imprescindibilidade do recurso aos meios judiciários para assegurar um direito em crise» Acórdão do S.T.J. de 21-12-2006, processo 06P2040.. O interesse em agir ou interesse processual consiste, portanto, na necessidade, justificada, razoável, em prosseguir a acção.
Transposto o conceito para o recurso, diremos que pode recorrer quem tiver necessidade de recurso para sustentar o seu direito. O interesse em agir é a necessidade de processo para o demandante, por o seu direito estar carecido de tutela judicial. O interesse em agir, para efeitos de recurso, é o interesse do demandante não no objecto do processo mas no próprio processo em si Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1-6-1993, processo 0045875..
Sobre este pressuposto decidiu a Relação do Porto Acórdão de 23-2-2010, proferido no processo 150/09.8TVPRT-B.P1, relatado pelo sr. desembargador Guerra Banha.: «o interesse em agir do recorrente afere-se pela utilidade que, em concreto, pode resultar da procedência do recurso».
Coincidentemente decidiu a Relação de Guimarães Acórdão de 30-5-2011, processo 79/10.7PTGMR.G1, relatado pelo sr. desembargador Fernando Monterroso. que da norma do nº 2 do art. 401º do C.P.P. «resulta que não deverá conhecer-se do recurso se o recorrente em nada vir alterados os efeitos da decisão recorrida, mesmo que procedam inteiramente as conclusões por si formuladas».
Ora, o Ministério Público pretende que o arguido, absolvido, seja igualmente absolvido mas por razões diferentes.
Deste modo bem se vê que o arguido tem razão quando invoca a falta de interesse em agir do Ministério Público.
*

II – Vício da contradição insanável da fundamentação

O Ministério Público alega, depois, que a sentença padece do vício da contradição insanável da fundamentação entre os factos provados e a alínea J) dos factos não provados porque «ao considerar-se apenas como factos provados, os que se encontram supra descritos e como não provado que o arguido não adoptou os comportamentos descritos na acusação, a consequência que daí se deveria retirar é que o arguido efectivamente praticou os crimes de que vinha acusado, e assim sendo, deveria o mesmo, ter sido, condenado, e não absolvido, pela prática dos mesmos, e assim sendo, os factos, que se encontram dados como não provados de A) a I) deveriam ser considerados, como factos provados».
Esta questão parte da constatação da dupla negativa que se verifica na descrição da matéria de facto não provada: «Não se provou … que o arguido não adotou os comportamentos …».
Dela conclui o Ministério Público que o dizer-se que não está provado que o arguido não praticou os factos acusados equivale a afirmar que o arguido os praticou, pelo que se imporia a condenação. Da resposta negativa à negativa retira o Ministério Público que está provado o contrário.
Usando um argumento grosseiro, diríamos que equivale, ao fim e ao cabo, àquela regra da álgebra que diz que “menos por menos dá mais”.

A discussão sobre a interpretação a dar às respostas negativas no campo do Direito começou – e quase que se restringe, tanto quanto sabemos -, ao processo civil, com as respostas negativas ao questionário/base instrutória. Nesta questão é jurisprudência perfeitamente estabilizada aquela que diz que de uma resposta negativa a um facto tudo se passa como se esse facto nem sequer tivesse sido articulado, não sendo lícito, por consequência, considerar como provado o facto contrário levado ao quesito. Deste modo, e por consequência, não é possível encontrar contradições entre respostas negativas e afirmativas Da muita jurisprudência existente sobre esta questão indicamos, apenas, o acórdão do S.T.J. de 20-1-2005, proferido no processo 04B4502..
Parece ser este, exatamente, o raciocínio feito no recurso.
Ora, se uma tal interpretação não é possível no campo do processo civil, por maioria de razão o não é no processo penal. Como é que em processo penal se pode concluir, pela via defendida no recurso, que o arguido cometeu os factos imputados? É claro que tal não é possível.
Para além disso, e no campo da pura interpretação, nem sequer é correto o raciocínio feito, pois que aquilo que se poderia retirar da tal alínea seria, na pior das hipóteses, seria a dúvida. Não se provar que não fez é ficar em dúvida sobre a inocência comprovada e é decisivamente diferente da prova da prática.

É manifesto, pois, que não ocorre qualquer contradição entre os factos provados e não provados.
*

III – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Finalmente, no recurso impugna-se a decisão sobre a matéria de facto por verificação de erros de julgamento.
Não obstante se falar em erro notório na apreciação da prova, é liquido que aquilo que está em causa na terceira parte do recurso são alegados erros de julgamento cometidos pelo tribunal recorrido aquando da apreciação da prova produzida.
Os factos impugnados são os descritos nas alíneas E), G), I) e J) da matéria não provada e as provas demonstrativas dos erros cometidos residirão nos depoimentos prestados pelas testemunhas ... ……….e ... .
Os factos em causa são os seguintes:
«E) O arguido tinha, no dia seguinte, pelas 11H, no pinhal, próximo da casa do casal, a pistola e munições referidas em 2.
G) Por um lado, sempre que bateu, ameaçou ou insultou a sua mulher, o arguido agiu consciente e voluntariamente, com intenção de lhe infligir maus-tratos físicos e psíquicos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
I) Agiu ainda livre e lucidamente, com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
J) O arguido não adoptou os comportamentos descritos na acusação».
Com a impugnação o Ministério Público pretende demonstrar a prática, pelo arguido, do crime de detenção de arma proibida e obter, assim, a consequente condenação. Neste particular o Sr. P.G.A. concorda com a tese do recurso pois que, como diz, a testemunha ... referencia a referida arma na posse do arguido, numa altura de desavença entre este e a mãe, o que está conforme com o circunstancialismo factual constante da acusação e confirmado pelos guardas da GNR no que respeita à exaltação de ânimos, conflitualidade e entrega das machadas. Para além disso chama a atenção de que as discrepâncias entre os depoimentos se restringem, no essencial, às agressões de que a mãe da testemunha ... terá sido vítima.

Vejamos, então.

..., militar da GNR, declarou que conheceu o arguido no exercício de funções.
Disse que no âmbito deste processo se deslocou, com um colega, à residência do arguido e da esposa, mas quando chegaram não viram nada: não presenciaram atos de agressão verbal nem física. Ouviram o que a ofendida disse e foi isso que transcreveram no auto. Esclareceu que não viu marcas de agressão na ofendida.
Apreenderam umas machadas que a ofendida lhes entregou e com as quais disse ter sido ameaçada pelo marido.
Perguntado como eram as machadas, disse que eram umas machadas normais, usadas pelos trabalhadores florestais, que é o caso do arguido. Disse que não eram machados, que são maiores.
Perguntado se apreenderam mais algum objeto respondeu que não.
Perguntado se apreenderam alguma pistola, respondeu que não. Sobre isto disse que lhes falaram de uma pistola, mas que não viram pistola nenhuma. Fizeram diligências, junto à casa, no local onde lhes disseram que teria sido atirada, para encontrar a pistola, mas não encontraram. Sobre as diligências feitas disse: «fizemos diligências … lá no meio … nós vimos com o auxílio de um foco que a gente traz sempre na viatura … a gente não conseguiu ver … sei que ela depois foi entregue … sei que ela foi entregue por alguém, não sei quem é que entregou».
Perguntado quem estava no local, respondeu que estava a ofendida, a filha e disse que achava que o filho da senhora também estava.
Perguntado qual a reação do arguido à apreensão das machadas respondeu que ele não levantou quaisquer obstáculos, apenas disse que lhe faziam falta para o seu trabalho. Disse, também, que o arguido não foi agressivo.
…. , militar da GNR, também se deslocou a casa do arguido e ofendida no dia referido no processo.
Disse que receberam uma comunicação para irem ao local dizendo que o arguido estava a agredir a ofendida: quem telefonou foi ela. Quando chegaram estavam o arguido, a ofendida, uma menina e um rapaz, filho da ofendida. Quando chegaram presenciaram uma discussão, mas mais nada, nem ofensas verbais nem nada.
Perguntado se a ofendida tinha alguma marca de agressão, respondeu que não viu marcas.
Sobre a apreensão de objetos, disse que a ofendida se queixou que o arguido a tinha ameaçado com uma machada. E continuou: «o sr. José, prontamente, foi lá ao anexo, ao exterior à casa, ao lado, e foi lá buscar 4 ou 5 machadas. Ele até pediu na altura, recordo-me disso, “deixem-me ao menos uma que é a minha porque é a minha peça de serviço” … voluntariamente foi buscá-las e entregou-as».
Perguntado se tinham apreendido mais alguma coisa respondeu: «foi referido lá que havia uma arma … que o sr. … teria atirado a arma fora, disse a dona B…, lá para o lado, para a parte de trás da casa». Acrescentou que o arguido disse que não tinha arma nenhuma.
Andaram no local, mas não encontraram a arma.
Referiu que no dia seguinte foi ao local outra vez, durante o dia, para tentar recuperar a arma: «batemos aquilo tudo, mas não apareceu arma nenhuma. Vimos o local com a dona Manuela mais o filho e batemos aquilo tudo mas não vimos qualquer arma. Posteriormente foi entregue aqui no posto pela dona Manuela e pelo filho, penso eu, uma arma».
Perguntado se o arguido lhes tinha levantado algum problema respondeu que não.

Vejamos, finalmente, o que disse ..., filho da ofendida B... .
Sobre os factos declarou que em 2009 vivia com a avó e foi passar uns dias de férias a casa da mãe. Perguntado sobre quando é que o caso ocorreu, disse que não sabia.
Disse que os problemas entre a mãe e o arguido se arrastavam há algum tempo e depois começou a descrever as situações de conflito ocorridas no dia em causa.
No entanto, a descrição dos factos foi pouco esclarecedora, porque falava ora em factos ocorridos de manhã, ora de noite, de tal forma que o Ministério Público fez um apelo para que ele tentasse serenar e falar de forma que se conseguisse entender, afinal, o que se tinha passado.
E a testemunha continuou, mais ou menos em registo igual, descrevendo cenas de violência física e verbal do arguido para a ofendida.
Perguntado se tinha visto o arguido com alguma machada na mão, respondeu: «sim, vi. Ele depois foi até buscar outra … Era uma machada pequenina, assim uma machadinha pequenina, tinha um cabo em madeira, que depois até foram apreendidas pela GNR … foi ameaçar a minha mãe, que a matava. Até foi nessa altura até estava lá o senhor GNR, assistiram, chegaram a assistir. No entanto que até agarraram, que eles tiraram-lhe a primeira machada, e ele disse eu tenho ali outra, eu vou lá buscar outra. Depois até os senhores da GNR obrigaram-no a ir buscar a outra e apreenderam-lhe a outra também que ele tinha».
Perguntado se a mãe tinha marcas de agressão, respondeu que sim, que a mãe tinha ficado toda pisada.
Perguntado se havia alguma pistola, respondeu: «foi numa manhã seguinte. Não sabia que tinham lá isso em casa, nem sequer morava na casa, só unicamente fui lá passar uns diazitos de férias. Eu depois fui descansar para o sofá, deviam ser umas 4h da manhã, lá adormeci. Por volta das 9h, ou qualquer coisa, vejo outra vez eles os dois a discutir e vejo quando ele foi buscar uma arma para apontar para a minha mãe. Eu agarrei-o, tirei-lha das mãos e joguei-a para o meio do pinhal».
Perguntado se tinha sido ele, a testemunha, a atirar a arma para o pinhal, respondeu que sim.
E continuou: «Foi, entretanto, lá a GNR à procura da arma. Andamos lá a ver o sítio donde eu a atirei. Isso devia ser por volta das 10h e qualquer coisa, 10h40 … andamos lá à procura, depois não encontramos e depois o senhor da GNR disse “veja lá se encontra a arma por causa do processo”. Depois, entretanto, eu liguei à minha irmã para me vir buscar, a minha irmã andou lá mais eu, foi quando a encontrei e fui entregá-la ao posto».
Perguntado se a arma era do arguido, disse não saber. Perguntado se já tinha visto a arma antes, respondeu que nunca a tinha visto.
Perguntado quem é que estava em casa, nesse dia, respondeu que estava o arguido, a mãe e a irmã pequenina, que estava a assistir. Depois, mais tarde, chegou a GNR.
Perguntado se tudo se tinha passado no mesmo dia, respondeu que as agressões foram no mesmo dia. Na manhã seguinte, disse, que as coisas foram piorando.
Sobre a pistola, disse que viu o arguido chegar-se ao pé da mãe com a pistola e meteu-se no meio, tirou a arma ao arguido e atirou-a para o pinhal: saiu de casa, veio para o exterior e atirou-a para o pinhal. Perguntado para onde é que tinha atirado a arma, respondeu que não esteve com atenção ao local para onde a atirou.
Perguntado se tinha sido fácil tirar a arma ao arguido, respondeu que fácil não tinha sido, mas como ele estava muito alcoolizado não tinha sido tão difícil.
Esclareceu que não viu o arguido ir pegar a arma: apenas o viu com ela na mão.
Perguntado se isto tinha sido de manhã ou de noite, disse que isto tinha sido de manhã.
Perguntado quem é que tinha chamado a GNR nesse dia de manhã, respondeu que devia ter sido ele próprio, também. Disse que sentiu medo, que se não tivesse sentido nem sequer teria telefonado à GNR.
Entretanto, disse que não tinha a certeza se o incidente com a arma tinha sido de manhã ou à noite.
O depoimento foi-se prolongando, tentando esclarecer sobre os concretos factos ocorridos.
A final, dadas as divergências verificadas, o Ministério Público requereu a leitura das declarações prestadas por ... junto da GNR, pedido que foi indeferido, devido à oposição manifestada.
*

Nos termos do art. 127º do C.P.P. a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, excepto quando a lei disser o contrário.
Sendo a entidade competente para apreciar a prova o juiz, significa que, em princípio, na apreciação da prova ele está liberto das amarras que a prova tarifada impõe podendo, ao invés, socorrer-se de toda a sua experiência, aqui incluída a experiência do homem comum suposto pela ordem jurídica, ao serviço da averiguação da verdade.
A verdade que se busca no processo, mesmo no processo penal, não é a verdade ontológica, absoluta, pois que a reconstrução exacta dos factos ocorridos é impossível.
Por isso o que se busca no processo é a verdade material acessível ao nosso conhecimento: verdade material porque afastada da influência que a acusação e a defesa exerçam sobre ela; verdade material porque verdade judicial, prática e obtida, não a todo o preço, mas de forma processualmente válida Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, pág. 193/194..
Daí que a prova, para alguns, mais não seja do que uma demonstração do racional, um esforço de razoabilidade: é a verdade contextual e possível que resulta, precisamente, do trabalho de apreciação da prova, apreciação esta que é, como dissemos, livre.
Mas esta liberdade não é arbitrariedade. A margem de liberdade do juiz tem os parâmetros fixados na lei, limites estes constituídos por vectores, essenciais e que integram a base do nosso sistema processual penal, e que são o grau de convicção exigido para a decisão, a proibição de determinados meios de prova e o respeito absoluto pelos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo Limites enumerados por Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário ao Código de Processo Penal, 1ª ed., pág. 335..
Trilhado todo este percurso surge, então, a decisão, que equivale, ao fim e ao cabo, à opção por uma das versões em conflito no processo, já que, conforme sabemos, na esmagadora maioria dos casos em julgamento defrontam-se, pelo menos, duas versões da causa. Não sendo opção do julgador não decidir, então ele tem que fazer a sua opção, de acordo com as regras enunciadas.
E dito tudo isto bem se percebe quão indispensável é que o juiz cumpra o dever constitucional de fundamentação adequada, consagrado no nº 1 do art. 205º, explicitando os motivos que o levaram a decidir.
É a motivação que constitui o mecanismo de controlo do processo de formação da convicção do tribunal. É a motivação que legitima a decisão, ou seja, é a motivação que legitima o poder judicial num Estado de Direito, pois que o que se exige é que o seu destinatário e a comunidade em geral percebam a decisão proferida, isto mesmo que com ela não concordem.

Descendo ao caso em análise, a sentença recorrida fundamentou a decisão sobre a matéria de facto do seguinte modo:
«O tribunal teve em consideração, desde logo, o teor do auto de denúncia de fls. 2 a 4 (apenas quanto ao dia e hora em que a GNR se deslocou a casa do arguido e ofendida e quem solicitou a sua presença), dos autos de apreensão cautelar de fls. 5 e 8 (deste último resultando o provado em 2.), da informação de fls. 42 e 44, do auto de exame de fls. 62, da certidão de assento de casamento de fls. 66 a 67, da certidão judicial de fls. 262 a 288 e 365 e do CRC de fls. 404 a 407.
Quanto aos factos vertidos na acusação, nem o arguido, nem a ofendida quiseram prestar declarações.
... e ..., militares da GNR que se deslocaram a casa de arguido e ofendida no dia em causa nos autos, depuseram de forma segura, circunstanciada, isenta e credível.
Referiram terem sido chamados pela ofendida para se deslocarem à casa onde esta morava com o ofendido, sita em … .
Mais esclareceram que, aí chegados, constataram que os ânimos estavam exaltados entre o arguido e a ofendida, não tendo, contudo, presenciado quaisquer insultos, ameaças ou agressões.
Referiram, ainda, que a ofendida não apresentava quaisquer lesões visíveis.
Mais disseram que a ofendida lhes disse ter sido ameaçada com uma machada e com uma arma de fogo, o que foi negado pelo arguido.
Esclareceram que o arguido lhes entregou voluntariamente as machadas apreendidas nos autos.
Explicaram, ademais, que, logo nessa altura, andaram à procura da arma em causa, no local para onde lhes foi dito que a arma tinha sido arremessada (no pinhal) e não a encontraram.
... referiu, ainda, ter ido ao mesmo local, na manhã seguinte, cerca das 8h30m, a fim de localizar a arma, o que também não logrou fazer …».
Concordamos inteiramente com o decidido: dada a forma como estas testemunhas depuseram, era expectável que a convicção formada sobre os factos assentasse sobre estes depoimentos.
Agora, quanto à testemunha ..., diz a sentença:
«..., ex-enteado do arguido e filho da ofendida, depôs de forma que não nos convenceu.
Prestou um depoimento inseguro, interessado, acusando, claramente, o facto de ser filho da ofendida e denotando evidente nervosismo.
Começou por dizer que foi ele que chamou a GNR quando resulta do auto de denúncia e do depoimento de ... e ... que foi a ofendida que o fez.
Não soube esclarecer em que época do ano os factos terão ocorrido.
Disse que a mãe apresentava lesões visíveis na cara e tinha a roupa rasgada, o que foi contrariado, mais uma vez, por ... e ....
Primeiro referiu, peremptoriamente, que a ameaça com a arma foi efectuada, na manhã seguinte, depois da GNR ter ido embora, e que, nessa altura, conseguiu tirou a arma ao arguido e a arremessou para o pinhal.
... e ... disseram que andaram à procura da arma, no pinhal, à noite, quando se deslocaram ao local da 1ª vez.
Depois, confrontado com estas incongruências, disse, evidenciando bastante nervosismo, já não saber se foi de manhã ou à noite.
Disse, ademais, ter chamado a GNR de manhã, quando ... disse ter-se lá deslocado de mote próprio para procurar a arma.
Todas estas incongruências relevantes e a postura que assumiu em julgamento, levaram-nos a não conferir credibilidade ao seu depoimento.
Não tendo arguido e ofendida prestado declarações, não se atribuindo credibilidade ao depoimento de ..., pelos fundamentos ora mencionados, inexistindo nos autos quaisquer registos clínicos relativos à ofendida, tendo as testemunhas ... e ... referido que a ofendida não apresentava lesões visíveis, tendo sido a testemunha ... a entregar a arma apreendida no posto da GNR, ficamos com sérias dúvidas que o arguido tenha praticado os factos que lhe eram imputados na acusação e, nessa medida, lançamos mão do principio in dubio pro reo, dando a factualidade vertida em a) a i) como não provada.
Uma vez que a não prova dos factos vertidos na acusação decorreu do uso do princípio in dubio pro reo, não se provou, também, a versão aventada pelo arguido em sede contestatória (al. j)).
Atentou-se ao depoimento de ... e ..., vizinhos do arguido, e … , irmão deste, os quais depuseram de forma espontânea, escorreita e isenta e confirmaram o vertido em 5. e 6.
Atendeu-se às declarações do próprio arguido quanto à sua situação pessoal, profissional e familiar, tendo este deposto, nessa parte, de forma basicamente convincente».
Também concordamos com este excerto da motivação.
Sendo certo que era possível concluir pela prática do crime de detenção de arma proibida, como o defende o Ministério Público, entendemos, porém, que as muitas dúvidas que o depoimento de ... suscita sempre imporiam a absolvição.
Embora não afirmemos que a testemunha estaria a mentir – porque, na realidade, pensamos que não estava -, a verdade é que estava de tal modo confuso que baralhou os factos, a sucessão temporal dos mesmos, não conseguindo transmitir qualquer segurança: a confusão foi tanta que nos criou grande insegurança sobre aquilo que, efetivamente, viu no dia em causa aqui no processo.
Como sabemos, em caso de dúvida sobre a verificação de factos desfavoráveis ao arguido sempre o juiz tem que decidir de forma a favorecer o arguido: e a forma de favorecer o arguido é julgar tais factos como não provados. Assim o impõe o princípio in dubio pro reo.

Concluindo, entendemos que não só não foi indicada prova que imponha a alteração do decidido, como a prova que foi indicada aponta no sentido trilhado pela sentença recorrida.

Finalmente, estando a decisão devidamente fundamentada, percebendo-se bem qual o caminho percorrido pelo julgador para chegar à conclusão final, então deve ela manter-se.
*

DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, e na improcedência do recurso, confirmamos na íntegra a sentença recorrida.

Sem custas.


Olga Maurício (Relatora)
Luis Teixeira