Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1024/06.0TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO
RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
BURLA
FALSIFICAÇÃO
Data do Acordão: 03/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 217º,Nº1 E 256º,Nº1 DO CP E 374º,Nº2, 379º,410º,412ºE 428º DO CPP
Sumário: 1.A fundamentação, no caso, sendo concisa, é completa porque nela é apreendida a razão por que o tribunal deu como provados ou não provados todos os factos objecto de análise; não só pela indicação dos meios de prova considerados, mas também pelo exame crítico das provas.

2. No recurso sobre a matéria de facto, o recorrente, para além do mais, tem o ónus de especificar, relativamente a cada prova que considera­va impor uma decisão diversa da assumida pelo tribunal a quo, a parte concreta das declarações e/ou dos depoimentos produzidos em julgamento e gravados em fita magnética, com referência aos respectivos suportes técnicos.

3.Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção (declarações, depoimentos, acareações) – assente que obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

4.Verifica-se o crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256º, nº1, ala) do CP quando se relata na Declaração Amigável de Acidente Automóvel acidente de viação que não ocorreu em substituição de outro efectivamente ocorrido.

Decisão Texto Integral:


Tribunal da Relação de Coimbra
4ª Secção
36

A - Relatório:

No Tribunal Judicial da Comarca de Pombal correu termos o processo comum singular supra numerado no qual são arguidos:

C. casado, gerente, nascido a …1963, natural da freguesia …, Pombal, filho de M e de MA., residente ….Pombal; e

CC casada, empresária, nascida em ….1966, natural da freguesia …. concelho da Figueira da Foz, filha de M e de RL residente …, Pombal,

e, por sentença de 07-…-2008 foi decidido:

Condenar o arguido C. co-autor de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217º, nº 1, do Código Penal, a pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), em concurso efectivo com a prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros);

Operando o cúmulo jurídico de tais penas, o arguido C. foi condenado na pena única de 360 (trezentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros);

Condenar a arguida CC co-autora de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217º, nº 1, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), em concurso efectivo com a prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);

Operando o cúmulo jurídico de tais penas foi condenada a arguida na pena única de 320 (trezentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);

Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por C… de Seguros, S.P.A. e, em consequência, condenados os demandados C e CC a pagar-lhes a quantia de € 2.234,15 (dois mil duzentos e trinta e quatro euros e quinze cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal, até efectivo e integral pagamento;


Inconformados, interpuseram os arguidos o presente recurso peticionando a sua absolvição, com as seguintes conclusões (transcrição):

1) Conforme resulta de fls .. foi deduzida pronúncia, em processo comum com intervenção do tribunal singular contra os Arguidos, imputando-lhe a prática, em co-autoria e concurso efectivo, de um crime de burla simples p. e p. pelo artigo 217° n° 1 do Código Penal e de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256° n" 1 alínea b) também do mesmo diploma, pelos factos descritos na acusação de fls. 97 e seguintes dados como produzidos:

2) Os Arguidos apresentaram a contestação, conforme resulta de fls .. alegando o que acima se transcreveu e que aqui se requer a sua apreciação;

3) Foi realizado o julgamento e a final o Meritíssimo Juiz decidiu o que acima se transcreveu e aqui se requer a sua apreciação:

4) Para chegar a esta decisão, entende o Meritíssimo Juiz. nomeadamente na parte destinada aos FACTOS CONSIDERADOS PROVADOS, pelo depoimento das testemunhas indicadas pela acusação, não dando qualquer relevância aos depoimentos das testemunhas arroladas pelos Arguidos, que têm conhecimento directo da forma como todo o processo se passou:

5) Como o depoimento das testemunhas foi gravado, se requer a renovação da prova, nos termos do artigo 430° do Código do Processo Penal: O que desde já aqui se requer:

6) Atendendo à prova produzida em audiência de julgamento nunca se poderia condenar os arguidos, pois decidir-se como se decidiu viola as regras elementares do C.P.P. e C.P. aplicáveis ao caso em apreço, nomeadamente o princípio "in dubio pro reo":

7) Para contrariar o que consta da sentença recorrida requerer-se a audiçào do depoimento das testemunhas que se encontra gravado, sendo necessário para o efeito que a secção transcreva tais depoimentos para que este Venerando Tribunal possa apreciar convenientemente tudo o que se passou nas audiências de julgamento:

8) O que se passou e provou na audiência de julgamento é aquilo que resulta do depoimento das testemunhas inquiridas, que são aqueles que se encontram gravados e dos documentos juntos:

9) Tendo em conta a prova produzida em sede de audiência, nomeadamente o depoimento de todas as testemunhas inquiridas durante o julgamento e documentos juntos, nunca se poderiam ter dado como provados os factos indicados sob os pontos n. 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17. 18, 19 e 20, dos factos dados como provados na decisão recorrida, nomeadamente os que acima se transcreveram e aqui se requer a sua apreciação;

10) No caso dos autos, nenhum dos factos dados como provados, nomeadamente os que se deixaram supra destacados tem suporte na prova produzida em audiência:

11) Bastaria, para esse efeito, ter em conta a prova produzida em julgamento, nomeadamente, os documentos juntos e os depoimentos das testemunhas de defesa: Testemunha: A - conforme depoimento registado em cassete áudio na rotação a 1076° a 2000° do Lado B;

12) Do processo, provas existem que impunham uma decisão diferente daquela que foi apresentada na decisão recorrida;

13) Veja-se nesse sentido o que foi dito pelas testemunhas de acusação nomeadamente: Testemunha: J - conforme depoimento registado em cassete áudio na rotação a 401° a 1200° do Lado A; Testemunha: E - conforme depoimento registado em cassete áudio na rotação a 1201° a 13 00° do Lado A: Testemunha: R - conforme depoimento registado em cassete áudio na rotação a 1301 ° a final do lado A e Lado B. rotação 1° a 30°: Testemunha: AA - conforme depoimento registado em cassete áudio na rotação 31 ° a 400 do lado B: Testemunha do PIC: JO - conforme depoimento registado em cassete áudio na rotação 401° a 1075° do lado B;

14) Elementos de prova estes que, se fossem devidamente tidos em conta pelo Tribunal "a quo" e devidamente apreciados impunham uma decisão diversa daquela que foi tomada na decisão recorrida, no que diz respeito à matéria de facto;

15) Não faz sentido a Sentença recorrida ter dado como provado que, os Arguidos tiveram intenção de obter para si beneficio ilegítimo, e que agiram em comunhão de esforços seguindo o plano que tinham delineado, quando tal como consta dos autos, o Arguido enviou uma carta a solicitar a anulação da participação de sinistro do veiculo de matricula …-SB. Sendo que o Arguido nunca obteve resposta;

16) Perante a vontade de anular a participação do sinistro por parte do Arguido, competia à C… de Seguros, S.P.A proceder de acordo com a vontade do seu cliente:

17) Se assim não procedeu, agiu por conta própria, não podendo, depois, querer responsabilizar os Arguidos;

18) Não se entende qual o interesse da C… de Seguros, S.P.A" em seguir com o processo, quando o Arguido manifestou a intenção de anular o seguro, pois, de acordo com o depoimento prestado pela testemunha JO este referiu que a indemnização paga à Companhia Espírito Santo, foi ao abrigo da convenção IDS;

19) Analisando a referida convenção no capitulo II, artigo 10°, refere que: “.. o presente protocolo será aplicável: - Aos acidentes de viação ocorridos em território nacional de que resultem exclusivamente danos materiais peritados e reparados em Portugal, dentro dos limites convencionados nos termos constante do artigo 10°, e em que intervenham apenas 2 veículos seguros em duas signatárias sujeitas ao regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil..... (sublinhado nosso);

20) Tal como foi dado como provado na Sentença recorrida o veículo conduzido pelo Arguido não possuía seguro obrigatório;

21) Não se entende como é que a C… de Seguros, S.P.A" pagou uma indemnização através de um protocolo, que não se aplica ao caso concreto:

22) Daí, a necessidade de reapreciação da matéria de facto, pois existem várias contradições/dúvidas sobre a matéria constante dos autos:

23) Se a C… de Seguros, S.P.A" pagou uma indemnização da qual não devia, esta não pode agora vir reclamar o valor pago única e exclusivamente por sua iniciativa:

24) O Arguido expressamente manifestou a vontade de anular o seguroe consequentemente não responsabilizar a C.. de Seguros S.P.A. pelos danos sofridos;

25) No que diz respeito à Arguida, esta limitou-se a assinar a declaração amigável a pedido do marido, desconhecendo esta que a viatura do Arguido não possuía seguro obrigatório:

26) Esta perante a explicação do marido, que se baseou no facto de o seguro se encontrar em nome dela a declaração amigável teria de ser assinada por ela convenceu-se que efectivamente seria assim;

27) E da prova produzida em sede de Audiência de julgamento, tal facto resultou como provado:

28) Daí, terá este Venerando Tribunal considerar como provado o facto constante no n° 1 dos factos dados como não provados, que aqui se transcreve: a arguida limitou-se a assinar a declaração amigável, única e exclusivamente, a pedido do seu marido, pois o seguro da referida viatura encontrava-se em nome da arguida:

29) Provado fica que a Arguida não teve qualquer intervenção no preenchimento da declaração amigável de acidente automóvel, sendo que por esse motivo, também tem de ser dado como provado o facto n° 2 constante dos factos não provados, que refere: a Arguida não teve qualquer intervenção no preenchimento da declaração amigável de acidente de automóvel:

30) Limitando-se esta a assinar, partindo do pressuposto que todos os dados constantes da referida declaração estavam correctos, nomeadamente. a data do sinistro:

31) Segundo a experiência comum, qualquer pessoa que, a pedido do marido, assina um documento, nem sequer confere se está tudo conforme:

32) Daí a razão, pela qual, este Venerando Tribunal, terá de dar como provado os factos constantes na Sentença recorrida, na parte dos factos não provados;

33) Também provado ficou que os Arguidos são pessoas honestas, trabalhadoras, têm bom carácter, estão bem vistos na terra onde vivem, e que toda a gente diz bem deles:

34) Não se entender a razão pela qual o tribunal "a quo' considerou tal facto como não provado:

35) Estranho também parece o Tribunal "a quo" valorizar o depoimento da testemunha JA, pois este referiu que averiguou o acidente, que foi ao local, nunca referindo que o Arguido enviou uma carta à C… de Seguros. S.P.A" a anular a participação do acidente:

36) Comunicação esta que a C… de Seguros. S.P.A" ignorou por completo:

37) Por todos os motivos acima elencados não se concorda com a Sentença recorrida, devendo, desta forma, ser apreciada toda a prova produzida em sede de Audiência de julgamento:

38) Da prova constante dos autos, não existem certezas acerca da forma como os factos aconteceram, havendo duas versões:

39) Nestes casos, e em caso de dúvida, deveriam os Arguidos ser absolvidos, tendo em conta o princípio in dúbio pro reo. O que desde já aqui se requer:

40) Deverá este Venerando Tribunal revogar a Sentença recorrida, absolvendo os Arguidos, com todas as consequências legais daí resultantes:

41) Por outro lado, mesmo que se entendesse como devidamente apurada a matéria de facto indicada na decisão recorrida, ainda assim, cremos não estarem reunidos os elementos do tipo legais para que fossem os arguidos condenados como co-autores materiais dos crimes de burla e falsificação de documentos:

42) Foram os Arguidos condenados pela prática, em co-autoria material, pela prática dos crimes de burla. p. e p. pelo artigo 217° n° 1 do Código Penal e de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256° n° 1. alínea a) do Código de Penal:

43) Como já acima se referiu, não foi produzida prova em sede de audiência de julgamento suficiente para condenar os arguidos:

44) Em caso de dúvida, devem os arguidos ser absolvidos, tendo em conta o princípio in dubio pro reo:

45) Não estão preenchidos os tipos legais de crime que os Arguidos foram condenados:

46) Refere o artigo 217° n° 1 do c.P que: quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento legítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa ... ":

47) Estamos perante "um crime de dano que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro" (cfr. Almeida Costa. in Comentário Conimbricense ao Código Penal Tomo II, p. 276):

48) Sendo um crime de resultado, verificando-se com o empobrecimento da vitima, decorrente do prejuízo que sofre com a acção que o agente nela determina:

49) No caso dos presentes autos, não estão reunidos os requisitos necessários para tal condenação;

50) A C.. de Seguros, S.P.A'· não empobreceu devido à conduta dos Arguidos, até porque. e tal como consta dos autos, os Arguidos anularam a participação do acidente, apesar da companhia ter ignorado tal facto;

51) Também não se verifica o dolo na conduta dos Arguidos, pois se estes tivessem, efectivamente, a intenção de convencer erradamente a seguradora de que devia efectuar o pagamento das despesas com a reparação da viatura automóvel, não teriam enviado a carta de anulação da participação do acidente:

52) Não se encontrando assim reunidos os todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de burla imputado aos arguidos;

53) E caso assim se não entenda, por outro motivo não poderão os Arguido ser condenados pelos dois tipos de crime;

54) Foram também os Arguidos condenados pela prática do crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256° n° 1 alínea a) do C.P.:

55) No crime de falsificação (intelectual) de documento, sendo a declaração o documento, verifica-se que, no caso, o que os arguidos declararam no documento, sendo naturalisticamente falso, é coincidente com as suas declarações, que não focaram assim, de qualquer forma desvirtuadas:

56) Isto porque, na falsificação intelectual integram-se aqueles casos em que o documento incorpora uma declaração falsa (o que está escrito é diferente do que foi declarado), vale por dizer, o documento é inverídicto:

57) No caso dos presentes autos, o que se passa é que os arguidos declararam num documento particular - declaração amigável de acidente - facto desconforme com a realidade naturalística dos factos, mas conforme às suas declarações;

58) Sendo também certo que, o documento, de per si, tem o mesmo valor de uma declaração que os arguidos poderiam ter proferido, igualmente naturalisticamente falsa, pelo que a elaboração do documento não representa qualquer plus na ilicitude do facto:

59) A simulação, não é, salvo melhor entendimento, punida no nosso ordenamento jurídico, pelo que, e quanto a este crime deveriam os Arguidos ser absolvidos;

60) Uma participação de sinistro não integra o conceito de documento por não se tratar de declaração idónea para provar facto relevante para efeito do crime de falsificação;

61) Por outro lado, não se pode condenar os arguidos pelo crime de burla e de falsificação de documento;

62) A falsidade da declaração constante da participação de sinistro constitui já de si o elemento essencial do tipo objectivo do crime de burla, pelo que a sua punição autónoma violaria o princípio ne bis in idem;

63) Não pode a declaração inverídicta ser autonomizada daquela que serve para a integração do crime de burla;

64) Também se afigura pertinente saber se tal participação de sinistro constitui um verdadeiro documento para efeito do disposto no artigo 256º do CP:.

65) Porque tratando-se de mera participação de acidente não constituirá, em si e por si, meio de prova nem se destina a provar o acidente. mas apenas a participá-lo à companhia de seguros;

66) Resulta do enunciado do artigo 255º descrito a declaração, além de corporizada em documento, deve ser idónea para provar facto jurídico relevante:

67) Não há dúvida que estamos perante uma declaração corporizada em escrito:

68) Faltando apenas saber se tal declaração, incorporada no documento, constitui, em si e por si, meio idóneo para provar o facto ali descrito;

69) Como refere Helena Moniz: 'segundo von Liszt, facto juridicamente relevante era um facto que só por si ou ligado a outros, dá origem a relações jurídicas, as extingue, altera ( ... ) Documento, para efeito de direito penal, não é o material que corporiza a declaração, mas a própria declaração. ( ... ) Documento é pois a declaração de um pensamento humano que possa constituir meio de prova ... ";

70) A participação de sinistro trata-se de uma declaração que se esgota na participação ou comunicação da existência do sinistro, o qual será objecto de apreciação e decisão posterior, no âmbito do processo aberto para o efeito:

71) Tudo para concluir que a "participação em causa não integra o conceito de documento, o mesmo é dizer não se trata de declaração idónea para provar o facto, relevante para o efeito do crime de falsificação - vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01/3/2006;

72) Também considera a Sentença recorrida que estamos perante um concurso efectivo de crime;

73) Estamos perante um concurso aparente ou impuro de crimes em que a falsificação seria consumida pela burla:

74) A falsificação é tão só um meio, aliás em consonância com o elemento subjectivo especial da ilicitude que comporta de atingir um determinado fim:

75) Trata-se de um concurso aparente por intercedência entre as incriminações, de uma relação de consumação, e de consunção impura, pois que é um crime punido com pena mais grave (falsificação) que é consumido pelo menos grave (burla), neste sentido veja-se Helena Moniz. p 690;

76) Considerar-se que estamos perante concurso efectivo furtar-se à inconstitucionalidade material, por violação do principio ne bis in idem, de acordo com o qual "ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime" - artigo 29° da CRP:

77) De acordo com o acima exposto deverá este Venerando Tribunal revogar a Sentença recorrida, absolvendo os Arguidos, por não se encontrarem verificados os elementos do tipo legal de crime:

78) Ou caso assim, se não entenda, nunca poderão os Arguidos ser condenados pelos dois crimes, de acordo com o acima referido:

79) Condenou, a Sentença recorrida, os Arguidos no pagamento da quantia paga pela companhia acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, até efectivo pagamento:

80) Tal como acima já se referiu, a companhia de seguro não estava obrigada a pagar qualquer quantia, o Arguido não possuía seguro obrigatório:

81) O Arguido, expressamente, manifestou que queria anular a participação do acidente. Facto que a companhia de seguros ignorou:

82) Também refere o artigo 483° n" I do Código Civil que: Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem . .. ) fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação ..... :

83) No caso dos presentes autos, os arguidos não violaram nenhum direito, pelo que não têm de indemnizar:

84) Pelo que, também nesta parte, tem a Sentença recorrida de ser revogada, com todas as consequências legais daí resultantes:

85) Daí a necessidade de se alterar a Sentença recorrida, não só por apreciar deficientemente a prova produzida em audiência de julgamento, e que acima foi transcrita para efeitos de apreciação por parte deste tribunal, bem como pela errada interpretação e aplicação das normas legais que são citadas na Sentença recorrida:

86) Acresce ainda que mesmo que analisando a matéria dada como provada na Sentença recorrida, nunca podia condenar-se os arguidos pelos crimes de burla e falsificação de documentos:

87) Viola a Sentença recorrida o principio constitucional previsto no artigo 32° n° 2 C.R.P. no qual refere que "TODO O ARGUIDO SE PRESUME INOCENTE ATÉ PROVA EM CONTRÁRIO. E TÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA DE CONDENAÇÃO":

88) Conforme pode ler-se na "Constituição Portuguesa Anotada" - Jorge Miranda - Rui Medeiros, Coimbra Editora. tomo I 2005 pago 356, e acima transcrito:

89) Os factos dados como provados na Sentença recorrida são insuficientes para fundamentar uma imputação pelos crimes de burla e falsificação de documentos e, consequentemente, de suportar a condenação dos Arguidos:

90) A Sentença recorrida é nula nos termos do artigo 379° do Código do Processo Penal;

91) Nos termos do artigo 97º do C.P.P .. "Os actos decisórios são sempre fundamentados":

92) A Sentença recorrida viola todos os princípios de prova consagrados tanto no C.P.P., como na Constituição da República Portuguesa;

93) Não existem dúvidas que a Sentença recorrida viola o disposto no artigo 410° do C.P.P.. e que esse Venerando Tribunal pode apreciar as questões postas em crise, nos termos do nº 2 desta disposição processual/legal;

94) Na verdade, na Sentença recorrida: existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada: A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão: Erro notório na apreciação da prova:

95) Lendo, atentamente, a Sentença recorrida, nesta parte, ou noutra parte qualquer, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar e fundamentar a real e efectiva situação do verdadeiro motivo da condenação dos arguidos:

96) Não tendo descrito fundamentadamente na Sentença recorrida as razões porque não foram os depoimentos das testemunhas arroladas pelos arguidos, tem forçosamente de ser alterada a matéria de facto dada como provada e não provada, atendendo a esse depoimento acima transcrito, nos termos do artigo 412° do C.P.P.:

97) Sendo os arguidos primários, conforme resultou provado no Sentença recorrida, como nunca poderia aplicar-se uma condenação da forma e modo como foi:

98) O nosso Código é no sentido de recuperar os arguidos primários e apenas se podem condenar os arguidos, quando a conduta destes não reúnem os requisitos para a absolvição, o que não é o caso;

99) A Sentença é nula por interpretação e aplicação deficiente das normas legais citadas, conforme já acima se disse e provou;

100) V. Exas. certamente REVOGARÃO a Sentença recorrida, absolvendo os arguidos dos crimes de que foram condenados, por ser de LEI, DIRETO E JUSTIÇA;

101) A Sentença recorrida viola:

Artigo 97º, 374°. 375°, 379° e 410° do C.P.P. Artigos 13°, 205°, 207° e 208° da C.R.P.

Nestes termos e melhores de direito, requer-se a V. Exa. a REVOGAÇÃO da Sentença recorrida, absolvendo os Arguidos dos crimes que foram condenados


*

Respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Pombal concluindo que deve ser negado provimento ao recurso e manter-se na íntegra a sentença recorrida.

O Exmº. Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer defendendo a manutenção do decidido, apenas deixando em aberto a posição a tomar quanto à punibilidade do crime de falsificação.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal e os arguidos apresentaram resposta reiterando o dito nas alegações.


***

B - Fundamentação:

B.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. No dia 5.. de 2006, pelas 10 horas, ocorreu um acidente de viação, na Rua … em Pombal, no qual foi interveniente a viatura automóvel, ligeira de mercadorias, de marca Ford…. de matrícula ----SB, propriedade da sociedade comercial “M… Ldª”, conduzida por C. e a viatura automóvel, ligeira de passageiros, de marca Nissan com a matrícula -----FL, propriedade de V, conduzida por R.

2. A viatura automóvel de matrícula ---SB, conduzida pelo arguido C. circulava na Rua…. à localidade de Moitas Brancas;

3. A viatura automóvel de matrícula ---FL, conduzida por R. circulava no sentido …. – Água Formosa;

4. O arguido C, ao chegar ao entroncamento da Rua … com a Rua …, Pombal, não parou no sinal STOP (sinal B 2 de paragem obrigatória em cruzamentos ou entroncamentos) e embateu na viatura automóvel conduzida por R;

5. Em consequência do acidente de viação resultaram danos materiais em cada uma das viaturas automóveis;

6. Aquando da ocorrência do acidente de viação acima referido, o arguido C circulava com a supra referida viatura automóvel, de matrícula --- SB, sem que tivesse celebrado contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel relativo à mesma, tendo sido autuado pela GNR da Guia, que foi chamada ao local aquando da ocorrência do acidente de viação referido;

7. No dia 5 … de 2006, pelas 11h10m, foi celebrado entre a sociedade comercial “M.. Ldª”, de que o arguido C é sócio-gerente e a C.. de Seguros, S.P.A.” um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pelo certificado provisório de responsabilidade civil automóvel nº …, relativo à viatura automóvel ligeira de mercadorias, de marca Ford”, …. SB, propriedade da sociedade comercial “M.., Ldª”;

8. O arguido C com o propósito de imputar à C. de Seguros, S.P.A.” o pagamento das despesas emergentes com a reparação da viatura automóvel de matrícula ---FL, em comunhão de esforços e de vontades com a arguida CC, mulher de V proprietário da viatura automóvel de matrícula ---FL, preencheram e assinaram a declaração amigável de acidente automóvel, junta a fls. 11, tendo indicado como data da ocorrência do acidente supra referido o dia 12 de .. de 2006, pelas 10 horas, e como condutor da viatura automóvel de matrícula ----FL a arguida CC

9. Os arguidos, ao inscreverem na declaração amigável supra referida que o acidente de viação ocorrera no dia 12 de … de 2006 e não no dia 5 de … de 2006, como na realidade aconteceu, e uma vez que, naquela primeira data, a viatura automóvel de matrícula ---FL já tinha seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, pretenderam que as despesas com a reparação da viatura automóvel, de matrícula ---FL fossem pagas pela C. de Seguros, S.P.A.”, assim como pretenderam que esta seguradora efectuasse o pagamento das despesas inerentes com a sua paralisação e com a realização da peritagem, o que lograram alcançar;

10. A C de Seguros, S.P.A.” não tinha qualquer responsabilidade pelo pagamento das referidas despesas, uma vez que, na data e hora em que ocorreu o acidente de viação em causa nos autos – 5 de … de 2006, pelas 10 horas, a viatura automóvel, de matrícula ----SB não tinha seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel;

11. Os arguidos, com a sua actuação, causaram à C de Seguros, S.P.A.” um prejuízo patrimonial, pelo menos, nos montantes de € 245,15 (duzentos e quarenta e cinco euros e quinze cêntimos), de € 1.200,00 (mil e duzentos euros) e de € 289,82 (duzentos e oitenta e nove euros e oitenta e dois cêntimos);

12. Com intenção de convencer erradamente a Companhia de Seguros de que a mesma deveria efectuar o pagamento das despesas com a reparação da viatura automóvel, de matrícula ---FL, assim como das despesas inerentes à sua paralisação e à peritagem, indicaram, na declaração amigável, a arguida CC como condutora da mesma e não a sua verdadeira condutora, R.

13. Os arguidos tiveram o propósito alcançado de conseguir obter para si um benefício ilegítimo e usufruir vantagens que, de outro modo, não lograriam alcançar;

14. Os arguidos agiram de forma deliberada, livre, consciente e concertadamente, em comunhão de esforços e de vontades, seguindo o plano que tinham delineado em momento vio e de comum acordo, sendo a actuação de cada um decisiva para o fim que pretendiam alcançar;

15. Sabiam que toda a sua conduta lhes estava legalmente vedada por ser ilícita e criminalmente punível;

16. A demandante pagou à congénere Espírito Santo Seguros o valor de € 1.489,00 e liquidou à Averigualis – Averiguações e Gestão de Sinistros, Unipessoal, Ldª a quantia de € 245,15, valor este relativo à averiguação do sinistro participado;

17. A demandante teve que afectar meios técnicos e humanos, nomeadamente, dos seus colaboradores e funcionários tendo em vista a resolução da situação que lhe foi participada pelos demandados;

18. Os meios técnicos e humanos gastos com o sinistro dos autos e os custos financeiros resultantes da constituição de uma reserva constituem os denominados custos de gestão que, no presente caso, se cifram em € 500,00;

19. O que acarretou ter deixado de utilizar os meios e tempo despendido na resolução do sinistro participado por esta em outros processos que lhe foram regularmente participados;

20. Com a participação do sinistro a demandante teve que constituir uma reserva financeira;

21. A arguida CC é empresária, auferindo um vencimento mensal não inferior a € 500,00, a que acrescem anualmente os lucros da empresa se os houver;

22. Vive em casa própria com o marido e dois filhos, de 17 e 14 anos de idade;

23. O marido da arguida é gerente de uma empresa, auferindo mensalmente quantia não inferior a € 750,00;

24. A arguida paga de empréstimo relativo à aquisição da sua habitação a quantia mensal de € 692,00;

25. A arguida tem o 6º ano de escolaridade;

26. Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida;

27. O arguido C foi condenado, por sentença de 21.12.2006, pela prática de um crime de furto simples, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de € 6,00.


***

Factos não provados.

1. A arguida limitou-se a assinar a declaração amigável, única e exclusivamente, a pedido do seu marido, pois o seguro da referida viatura encontrava-se em nome da arguida;

2. A arguida não teve qualquer intervenção no preenchimento da declaração amigável de acidente de automóvel;

3. Limitando-se a assinar partindo do pressuposto que todos os dados constantes na referida declaração estavam correctos, nomeadamente a data do sinistro;

4. Os arguidos são pessoas honestas, trabalhadoras, têm bom carácter, estão bem vistos na terra onde vivem, toda a gente diz bem deles.


**

E apresentou as seguintes razões para fundamentar a matéria de facto:

A convicção do tribunal no que respeita à factualidade provada formou-se com base na apreciação global e crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, conjugada com o teor dos documentos juntos aos autos a fls. 8 a 10 (apólice de seguro), fls. 11 (declaração amigável de acidente automóvel), 12 (participação de sinistro), fls. 13 a 22 (relatório de peritagem), 23 a 26 (participação de acidente de viação elaborada pela GNR de Leiria, 27 e 28 (proposta de seguro), 29 a 32 (carta de aceitação da proposta de seguro e condições gerais, especiais e particulares, fls. 34 (recibo emitido pela Averigualis), fls. 35 (carta enviada pelo Espírito Santo Seguros à G…), fls. 36 (recibo de indemnização emitido pela Espírito Santo seguros, fls. 37 (recibo emitido pela Pombal Rent-a-car, fls. 52 (informação da GNR da Guia), fls. 53 (auto de contra-ordenação elaborado pela GNR da Guia), fls. 70 (certificado provisório de responsabilidade civil automóvel), fls. 74 (recibo de serviço de reboque e fls. 90 (declaração/informação da GNR da Guia).

Em primeiro lugar, o tribunal teve em conta o depoimento espontâneo e credível da testemunha J., profissional de Seguros da …. que apesar de trabalhar para a demandante, convenceu o tribunal da veracidade das suas afirmações atenta a forma sincera e natural com que prestou o seu depoimento. Por outro lado, demonstrou ter conhecimento dos factos em causa nos autos pelo facto de ter averiguado o acidente. Explicou que numa primeira fase baseou-se na declaração amigável assinada pelos dois intervenientes no sinistro e foi --reboque do veículo, Reboques …, Ldª, descobriu que o acidente não inha ocorrido a 12 de Junho de 2006, mas a 5 de Junho de 2006, data em que o condutor do veículo causador do sinistro não tinha seguro de responsabilidade civil obrigatório válido e eficaz. Confirmou que a declaração amigável que consta de fls. 11 não estava correctamente preenchida porquanto não foi C… quem conduzia o veículo de matrícula ----FL. Acrescentou que os serviços da averiguação constantes do documento de fls. 33 foram pagos pela G….

Por sua vez, o tribunal teve em conta o depoimento sincero e concreto da testemunha E., mediador de seguros da G que revelou igualmente ter conhecimento da situação em análise uma vez que foi ele quem fez o seguro de responsabilidade civil obrigatório em causa nos autos. Na verdade, referiu ao tribunal que quem se dirigiu para fazer o seguro foi a arguida, por parte da M... Nessa sequência a testemunha elaborou a proposta de seguro de fls. 31, que enviou via Internet para a Companhia de Seguros, esclarecendo que a proposta foi feita depois do acidente, mas ainda no mesmo dia 5 de Junho de 2006. Acresce que a testemunha ainda foi ao local do acidente, onde viu os veículos acidentados.

Depois a arguida foi ao seu escritório, pedindo que lhe passasse a proposta naquele dia para não serem multados.

A proposta foi aceite.

Foi absolutamente relevante o depoimento da testemunha R, que pelo facto de ter sido interveniente no acidente descrito nos factos provados revelou ter conhecimento do circunstancialismo em que o mesmo ocorreu. Esclareceu que era ela a condutora do veículo de marca Nissan e o arguido era o condutor do outro veículo. Confirmou o local do acidente, as circunstâncias em que o mesmo ocorreu, as quais coincidem com o descrito na matéria provada, referindo que logo após o acidente chamou o seu patrão, o marido da arguida CC, que era o proprietário do veículo por si conduzido. A arguida compareceu no local juntamente com o seu marido V. e a testemunha foi trabalhar, pelo que quando as autoridades foram ao local ela já lá não se encontrava. Todavia confirma que a GNR foi ao local uma vez que depois a procuraram no seu local de trabalho para que esta apresentasse os seus documentos pessoais e fizesse o teste de álcool.

De salientar que a testemunha afirmou com convicção que nunca preencheu nenhuma declaração da GNR, nem teve conhecimento de alguma participação dessa autoridade, esclarecendo que nunca tinha visto a declaração amigável constante de fls. 11 e 12 nem tão pouco tinha conhecimento que a mesma existia.

Sem prescindir foi considerado o depoimento isento e imparcial da testemunha Á., cabo da GNR da Guia, que foi ao local do acidente, referindo que quando lá chegou só estava o Sr. V., marido da arguida CC. Confirmou o teor da participação de acidente de viação por ele elaborada e subscrita. Na altura o arguido C não apresentou o seguro obrigatório da viatura que conduzia e quando foi à Esquadra levar o Seguro foi um colega seu que a recebeu e que não reparou na hora do acidente e na hora em que tinha sido feito o contrato de seguro, uma vez que não estava a par da situação nem tão pouco tinha sido alertado para tal facto.

Recorda-se de o arguido C. dizer que tinha seguro mas não o tinha ali com ele. Todavia, quando chegou à Esquadra a testemunha confirmou junto do Instituto de Seguros de Portugal que à hora do acidente o veículo conduzido pelo arguido não tinha seguro de responsabilidade automóvel.

Acrescentou que foi o Sr. V que lhe disse que a condutora do veículo Nissan era a testemunha R, tendo a testemunha ido ao café onde a mesma trabalhava confirmar tal facto e pedir-lhe os documentos, confirmando nesta parte o teor do depoimento prestado pela identificada Rosa.

Afirmou ter a certeza absoluta que o acidente ocorreu no dia 5 de Junho de 2006, de manhã.

Por sua vez, o tribunal teve em conta o depoimento claro e preciso da testemunha J., profissional de seguros, que trabalha para a G.. há cerca de 10 anos, confirmando o teor dos documentos de fls. 35, 36 e 37, bem como pagamento que a Companhia de Seguros efectuou pela instrução do processo. Explicou que sempre que há a participação de um acidente há uma série de “demarches” que a Seguradora tem que fazer, designadamente a constituição de uma reserva técnica, isto é destinar uma determinada quantia para o pagamento ao segurado, de acordo com os valores de mercado, a afectação de meios humanos e técnicos com a gestão do processo, os quais no caso concreto seriam sempre superiores a € 500,00. Referiu ter tido conhecimento do teor do documento de fls. 61, relativo à anulação da participação do sinistro do veículo ---SB, no dia 28 de Junho de 2006.

Relativamente à situação sócio-económica da arguida foram consideradas as suas declarações, as quais se nos afiguraram espontâneas e credíveis.

Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos consideraram-se os certificados de registo criminal juntos aos autos a fls. 222 e 241”.


***

Cumpre conhecer.

B.2 – Este tribunal da Relação tem competência para conhecer de facto e de direito (artigo 428.º do Código de Processo Penal) e, exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso da decisão proferida por tribunal de 1ª instância interpõe-se para a relação (artigo 427.º do mesmo diploma).

Por outro lado, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.

Assim, este tribunal apreciará a seguinte matéria suscitada pelo recorrente nas suas conclusões:

A – Da nulidade da sentença recorrida;

B – Da pretensão de recurso em matéria de facto e dos vícios do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal;

C – Dos crimes de falsificação e burla;

D – Do concurso real de crimes.


*

B.3 – Da nulidade da sentença por insuficiente fundamentação;

Quanto à alegada nulidade por falta de fundamentação não se entende o recorrente.

De facto, a sentença recorrida é bem explícita na afirmação das razões que a levaram a considerar provados ou não provados os factos em apreciação. Apenas não se excluíram, por antecipação, os argumentos de recurso.

Mas o recorrente também não é explícito nas razões que, em seu entender, conduziriam a tal conclusão, excepto a genérica afirmação de que os depoimentos das testemunhas seriam insuficientes para dar como provados certos factos e que a fundamentação é insuficiente para se afastar, como válidos, os depoimentos das testemunhas por si arroladas.

O nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal ao exigir que ao relatório se siga a fundamentação, apenas exige que esta contenha uma “exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Não que os possíveis argumentos sejam esgotados à exaustão, já que se não trata de trabalho académico, sim de uma peça de pendor prático-judicial.

Devendo ser concisa, a sua tendencial “completude” tem em vista o ser inteligível, ser racionalmente apreendida e compreendida pelos destinatários.

E não temos dúvida em afirmar que a fundamentação, sendo concisa, é completa porque nela é apreendida a razão por que o tribunal deu como provados ou não provados todos os factos objecto de análise. Não só pela indicação dos meios de prova considerados, também pelo exame crítico da prova.

Por outro lado, é claro que os fundamentos apontados para a maior credibilização dos testemunhos atendidos – e restantes meios de prova, designadamente os de carácter real ou objectivo (documentos, apólices, cartas, propostas, recibos) – afasta o depoimento das testemunhas arroladas pelo recorrente.

Não há, pois, nulidade da sentença por falta de fundamentação.

Mas o recorrente não só alega a seu favor a letra dos artigos 374º, nº 2 e 379º do Código de Processo Penal, também o disposto no artigo 97º do mesmo diploma como fundamentação jurídica da sua argumentação.

Naturalmente que o artigo 97º do Código de Processo Penal é norma de carácter genérico relativamente aos artigos 374º e 379º do mesmo diploma.

Estes não só prevêem um específico regime normativo quanto à necessidade de fundamentação, como um diverso regime de invalidade, a nulidade, diverso da mera irregularidade atinente a actos decisórios que não sejam sentenças (e acórdãos).

Em conclusão, a sentença recorrida contém todas as menções exigidas pelo artigo 374 ° n.º 2 do CPP, designadamente a indicação e apreciação crítica das provas relativas aos factos pertinentes, pelo que se impõe concluir que não padece da nulidade a que se refere o artigo 379° nº 1 alínea a) do Código de Processo Penal.


*

B.4 – Da pretensão ao recurso de facto e dos vícios da decisão.

Por outro lado, em obediência ao n.º 3, do art. 412º, do Código de Processo Penal o recorrente deveria especificar, sob pena de rejeição do recurso nos termos do art. 420º, n.º 1, do mesmo diploma, as provas que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, sendo certo que tal especificação haveria de fazer-se por referência aos respectivos suportes técnicos, conforme o preceituado no n.º 4 do citado preceito legal.

O recorrente tinha, ainda, o ónus de especificar, relativamente a cada prova que considera­va impor uma decisão diversa da assumida pelo tribunal a quo, a parte concreta das declarações e/ou dos depoimentos produzidos em julgamento e gravados em fita magnética, com referência aos respectivos suportes técnicos.

Ora, tal não ocorre.

O recurso sobre matéria de facto está estabelecido na lei de forma irrestrita quanto ao seu objecto potencial, quer para apreciação dos vícios indicados nos nºs. 2 e 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal, quer para a apreciação de outros vícios de facto da decisão, desde que possam ser apreciados numa base puramente racional (erros de apreciação, erros de raciocínio, contradições, insuficiências) ou que assentem numa base factual ou probatória existente nos autos (lógica factual, prova documental ou por referência a declarações orais documentadas).

Tais considerandos e opções legislativas estão intimamente ligados à existência efectiva de um recurso em matéria de facto, no assegurar de um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto, inclusive sob a cominação de omissão de pronúncia se a Relação – Tribunal superior com competência ampla na matéria, desde que cumpridos certos requisitos de impugnação – não conhecer de facto onde devia conhecer.

Essa possibilidade de recurso não está, por outro lado, limitada às hipóteses de invocação dos vícios contidos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.

Esses os pontos de facto que fundamentam a existência de um recurso de revista alargada e balizam a sua possibilidade de conhecimento ou o seu objecto.

Nestes, o recorrente não tem mais que indicar a sua existência impondo-se ao tribunal – por mero dever de ofício – deles conhecer, desde que o vício seja patente e resulte da simples leitura da decisão recorrida.

Mas se o recorrente pretende invocar tais vícios para além da simples narrativa judicial e fazer apelo a outros elementos de prova, aí já terá que cumprir o seu ónus de impugnação especificada.

Mas, além disso, pode o recorrente invocar vícios que não sejam “notórios”, que saiam fora da previsão balizadora de segurança judicial pretendidos com o recurso de revista alargada (artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal).

Ou seja, aquém daqueles vícios de conhecimento oficioso há todo um campo de possibilidade de recurso em matéria de facto que se não limita aos vícios do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

Serão todos os casos de erro, não notório, na apreciação da prova de que o tribunal de recurso se aperceba na reanálise dos pontos de facto apreciados e permitidos pelo recurso em matéria de facto. Entram neste campo os error in judicando (erros de julgamento), nos quais se incluem os erros na apreciação das declarações orais prestadas em audiência e devidamente documentadas e a não ponderação ou errada ponderação de qualquer prova que, não sendo notórios, impõem uma diversa ponderação. Assim como o uso inadequado de presunções naturais, conhecimentos científicos, regras de experiência comum ou simples lógica.

Serão os casos que Pinto de Albuquerque qualifica como “delimitação negativa do erro notório na apreciação da prova” - in “Comentário do Código de Processo Penal“, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, pags. 1100-1101. e que se não reconduzam a meras irregularidades ou nulidades, que essas cabem no âmbito de aplicação do nº 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

Estamos, pois, a falar do âmbito de aplicação geral contido no nº 1 do artigo 410º do Código de Processo Penal (“Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”).

Não deixam de ser fundamentos de recurso em matéria de facto e, como tal, sujeitos à disciplina espartana do artigo 412º do Código de Processo Penal, mas onde recai sobre o recorrente o ónus de indicar prova que “imponha” diversa decisão.

Temos, assim, que o recurso de facto nos apresenta duas vias de invocação: (1) invocação dos vícios da revista alargada (410º, nº 2 do Código de Processo Penal) por simples referência ao texto da decisão recorrida; (2) alegação de erros de julgamento por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação.

Se no primeiro caso ao recorrente se pede, apenas, a sua alegação, aliás, não essencial, já que de conhecimento oficioso (pois que são os vícios extremos, em absoluto não tolerados pela ordem jurídica), já no segundo caso se impõe ao recorrente o cumprimento do ónus de impugnação especificada contido nos números 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.

E não se espante essa disciplina recursal, esse “especial ónus de alegação”, pois que contrapartida da possibilidade de amplo recurso em matéria de facto.

O Código de Processo Penal, desde 1998 (Lei nº 59/98, de 25-08) e, com mais acutilância na Lei n.º 48/2007, de 29/08, vem a estatuir uma necessidade de equilíbrio entre o amplo recurso em matéria de facto e o ónus de impugnação especificada (v. g. a expressão “devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação” do nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal).

E é assim que se vem firmando jurisprudência exigente quanto à necessidade de estrita observância desse ónus como ocorreu com o acórdão do STJ de 9 de Março de 2006 “(1) – Se o recorrente se dirige à Relação limitando-se a indicar alguma prova, com referência a suportes técnicos, mas na totalidade desses depoimentos e não qualquer segmento dos mesmos, não indica as provas que impõem uma decisão diversa quanto à questão de facto, pois o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.

Por isso que o artigo 412º, nº 4 do Código de Processo Penal refere que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação” (de referir, apenas, que o conceito de “acta” abrange os registos magnetofónicos ou digitais).

Assim, sistematizando, ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:

a) - A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
b) - A indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
c) - A indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal).
Cumpridos estes ónus de carácter processual estará garantido o amplo recurso em matéria de facto?

Sim, mas com uma precisão. O legislador não exige, apenas, que o recorrente indique as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. O legislador exige que o recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto.

A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.

Como se afirma no acórdão do STJ de 15-12-2005 (Proc. 2.951/05, sendo relator o Cons. Simas Santos), “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.”

Ou, como se decidiu no acórdão do STJ de 10-01-2007 (Rel. Henriques Gaspar no Proc. 06P3518): “I - O recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP – ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer.

E a justificação surge cristalina. A apreciação da prova no julgamento realizado em 1ª instância beneficiou de claras vantagens de que o tribunal de recurso não dispõe: a imediação e a oralidade. E constitui uma manifesta impossibilidade que a segunda instância se substitua, por inteiro, ao tribunal recorrido, através de um novo julgamento.

Daí a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum imporem diversa decisão.

Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção (declarações, depoimentos, acareações) – assente que obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”.

Impõe-se-lhe que “imponha” uma outra convicção. É imperativo que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais. Não apenas o relativo do “possível”, sim o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

Não se pode afirmar, portanto, que ocorre violação do princípio da livre apreciação da prova, por o recorrente entender que tal acontece por ter ocorrido uma errada (na sua versão) apreciação e valoração da prova produzida, pretendendo adoptada outra versão (a sua).

Não há dúvida de que o recorrente indicou os pontos de facto que entendeu incorrectamente julgados, os factos provados sob 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17. 18, 19 e 20 (conclusão 9ª) e os factos dados como não provados sob 1 e 2 (conclusões 28ª e 29ª)

O mesmo não ocorre com o seu “específico ónus de alegação”, o ónus de o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos suportes técnicos, já que procede a uma integral referência a depoimentos, de onde se extrai que pretende uma nova da apreciação da prova produzida em primeira instância.

Não que o recorrente não tenha indicado os meios de prova que entende deverem ser reapreciados, mas fá-lo em relação à totalidade dos depoimentos não indicando as passagens desses depoimentos que imponham diversa apreciação.

É assim que o recorrente indica como meios de prova a atender os seguintes, com a seguinte argumentação:

11) Bastaria, para esse efeito, ter em conta a prova produzida em julgamento, nomeadamente, os documentos juntos e os depoimentos das testemunhas de defesa: Testemunha: A - conforme depoimento registado em cassete áudio na rotação a 1076° a 2000° do Lado B;
12) Do processo, provas existem que impunham uma decisão diferente daquela que foi apresentada na decisão recorrida;
13) Veja-se nesse sentido o que foi dito pelas testemunhas de acusação nomeadamente: Testemunha: J - conforme depoimento registado em cassete áudio na rotação a 401° a 1200° do Lado A; Testemunha: E JL - conforme depoimento registado em cassete áudio na rotação a 1201° a 13 00° do Lado A: Testemunha: R - conforme depoimento registado em cassete áudio na rotação a 1301 ° a final do lado A e Lado B. rotação 1° a 30°: Testemunha: Á - conforme depoimento registado em cassete áudio na rotação 31 ° a 400 do lado B: Testemunha do PIC: J- conforme depoimento registado em cassete áudio na rotação 401° a 1075° do lado B;
14) Elementos de prova estes que, se fossem devidamente tidos em conta pelo Tribunal "a quo" e devidamente apreciados impunham uma decisão diversa daquela que foi tomada na decisão recorrida, no que diz respeito à matéria de facto;

Como se nota, o recorrente sequer indica quais os documentos a que o tribunal deve atender na reapreciação da matéria de facto. Depois, os seis depoimentos invocados são-no para a totalidade dos depoimentos e não para passagens demonstrativas do desacerto de apreciação da prova. Neste ponto basta confrontar a acta de fls. 244 a 248 para se concluir que as referências à acta são feitas para a totalidade dos depoimentos.

Acresce que nenhum dos argumentos do recorrente “impõe” diversa apreciação. Nenhum dos argumentos avançados pelo recorrente coloca em crise a apreciação da prova realizada pelo tribunal recorrido.

Como se constata das suas conclusões, o recorrente – neste ponto – apenas suscita um problema, associado à invocação de violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, com vários argumentos de apreciação probatória, que mais não são que um pedido de reapreciação de toda a prova produzida.

Os seus argumentos são, apenas, a sua visão dos factos, clara e adequadamente afastada pelo tribunal recorrido na sua fundamentação factual.

Em suma, não há razões ponderosas a inculcar a ideia de que o tribunal recorrido errou ao não considerar os depoimentos apresentados pela defesa, bem pelo contrário.

Ora, as razões invocadas pelo recorrente revelam-se manifestamente insuficientes para inquinar a convicção do tribunal recorrido e afirmar a existência de erro na apreciação da prova.

Vista a sentença e analisadas as razões apresentadas pelo recorrente, nada nos permite concluir ter havido erro na apreciação da prova em qualquer dos pontos objecto de recurso.

Ou seja, pela simples análise de tais elementos nada nos permite criticar a convicção a que chegou o tribunal recorrido, sabido que tal apreciação pode assentar, exclusivamente, em versões subjectivas e, como tal, interessadas e parciais.

A sentença recorrida, ao expressar a análise crítica da prova, contém suficiente fundamentação e não padece de qualquer erro na sua apreciação. Porque, de facto, não há nada de ilógico, irracional, na apreciação feita pelo tribunal recorrido. Aquilo que desta ressalta é que o tribunal recorrido opta, de forma clara e expressa, por uma das duas possíveis posições a tomar na análise dos factos.

Não há, pois, erro na apreciação da prova, violação do princípio da livre apreciação da prova ou violação do princípio in dubio pro reo.

E como o recorrente, a final, faz a genérica afirmação de que ocorrem os três vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, haverá que afirmar que nenhum desses erros ocorre na decisão recorrida.


*

B.5 – Dos crimes de falsificação e burla.

Insurge-se o recorrente contra a sua condenação pela prática de um crime de falsificação de documento.

Isto por duas razões: uma de facto, outra de direito.

Quanto à razão de facto ela assenta numa carta por si enviada à companhia de seguros a pedir a anulação da participação do sinistro. Tal carta consta de fls. 265 dos autos. Tem a data de …2006 e é assinada, apenas, pelo recorrente na qualidade de gerente da M..

Esquece o recorrente, no entanto, dois factos essenciais. Que participou a simulação de um acidente em 12-..-2006 (fls. 11), realmente ocorrido em 05-..-2006 e nesse mesmo dia 05-..-2006 subscreveu uma proposta de contrato de seguro.

Isso desencadeou um processo de reparação de danos com intervenção de um suposto terceiro e uma outra companhia de seguros, sendo a sua declaração de anulação de participação inábil para parar os procedimentos que tinha iniciado. É que não houve uma participação individual de um acidente, sim uma declaração amigável (logo, bilateral) de acidente automóvel.

Assim, a sua declaração de anulação era ineficaz para imobilizar os procedimentos já iniciados.

E como a companhia seguradora pagou os danos, verifica-se o resultado não querido pelo tipo de ilícito contido no artigo 217º do Código Penal.

Quanto à razão de direito por si adiantada, a mesma não tem razão de ser.

É que o arguido quis iludir as companhias seguradoras. A intenção de decepção existiu. Assim, haveria que dar como provado – como o foi - que o arguido quis enganar aquelas entidades.

No caso estaremos, pois, perante uma conduta do arguido que quis operar uma falsificação ideológica (“pretensão” de convencer que o acidente ocorreu, com aqueles dois veículos, naquele dia e àquela hora e acordo dos dois supostos intervenientes).

E como o bem tutelado pela norma não é apenas a fé pública do documento, mas a “segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório”, constatamos a existência de uma falsificação de documento, pois que o “documento” falsificado apresenta as características exigidas por lei para fazer fé da declaração amigável de dois intervenientes num acidente e, por si, independentemente de demarches de posterior verificação não obrigatórias, faz iniciar um procedimento reparatório.

De notar que estamos a referirmo-nos ao Protocolo IDS (Indemnização Directa ao Segurado), algo diverso de uma simples participação individual de um sinistro.

A "Convenção IDS" é um acordo entre seguradoras com vista a facilitar a regularização dos sinistros, podendo o segurado dirigir-se à sua própria companhia de seguros, mesmo que não seja sua a responsabilidade do sinistro.

Tem aplicação exclusiva a acidentes ocorridos em território português, exige seguro válido e a DAAA (Declaração Amigável de Acidente Automóvel) deve ser obrigatoriamente assinada pelos dois condutores e preenchida de forma a afastar dúvidas sobre as circunstâncias do acidente e intervenientes.

O seu campo de aplicação é limitado. Aplica-se aos casos de colisão entre dois veículos, exclui os danos corporais, o acidente deve poder ser enquadrado na Tabela Prática de Responsabilidades (TPR) e tem como limite indemnizatório os € 15.000.

Relevante é que a assinatura conjunta da DAAA é requisito essencial da operatividade da IDS, implica a aceitação da veracidade das declarações e pagamentos em tempo curto – artigo 18º da Convenção IDS - e o apuramento de responsabilidades resultantes do sinistro opera-se, apenas, por recurso à DAAA e à TPR – artigo 22º Convenção.

Isto é, tirando a operatividade da TPR, a DAAA é o único elemento probatório que irá conduzir à definição de responsabilidades pelo sinistro e ao subsequente pagamento dos danos.

Trata-se, portanto, de documento de especial, diríamos mesmo, essencial relevância na obtenção da quantia indemnizatória. A sua falsificação constitui, pois, grave atentado contra a “segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório”, na medida em que o tráfico jurídico neste específico campo dos negócios jurídicos está essencialmente ligado à credibilidade da DAAA. E essa credibilidade centra-se na própria existência do sinistro, identidade dos intervenientes, existência de seguro válido, respectivas responsabilidades (por referência ao teor das declarações) e montante dos danos.

Trata-se, destarte, de situação de facto deveras diferente da abordada no acórdão desta Relação de 01-03-2006 (C.J. XXXI, II, 38).


*

B.6 – Do concurso real de crimes.

Sobre esta matéria rege o Assento nº 8/2000, de 4 de Maio de 2000 (DR I SÉRIE-A Nº 119—23 de Maio de 2000) que fixou jurisprudência no sentido de existência de um concurso real de crimes: «No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256º, nº 1, alínea a), e do artigo 217º, nº 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes».

Não existem nos autos argumentos novos que devam ser considerados e que não constem já da fundamentação (e votos de vencido) do citado aresto.

Haverá, pois, que seguir a jurisprudência fixada.


*

B.7 – Relativamente ao pedido cível e verificados que estão todos os pressupostos da responsabilidade civil impunha-se a condenação dos arguidos no peticionado.

Os argumentos dos recorrentes, neste ponto, limitam-se a reproduzir a mesma ideia para negar o crime de burla. A inexistência de seguro válido e a declaração de anulação da “participação”, argumentos já refutados por este tribunal.

Sabe-se que, quem estiver obrigado a reparar um dano - e o recorrente está obrigado à reparação do dano causado - deve reconstituir a situação que se verificaria se não tivesse ocorrido o evento que obriga à reparação, a ser fixada em dinheiro no caso de inviabilidade de reconstituição em espécie (artigos 562º e 566º, n.º 1, do Código Civil).

Assim, verificados os pressupostos de responsabilidade civil por factos ilícitos, bem andou o tribunal recorrido em condenar os arguidos no pagamento dos danos causados.


*

B.7 – Parece o recorrente insurgir-se contra a pena imposta. Pelo menos isso afirma de forma genérica na sua conclusão 97 (!). Mas não se consegue discernir o que pretende o recorrente.

De qualquer forma sempre se afirmará que o tribunal recorrido deu mostras de grande tolerância na fixação da pena concreta.

E se chamará a atenção para o facto de o arguido César já ter sido condenado pela prática de um crime de furto cometido em 30-12-2005 (CRC de fls. 240-241).


*

B.8 – Por fim resta afirmar que, pelo já fundamentado no acórdão, não existe violação do disposto nos artigos 13º (!) e 205º da CRP.

Nem do disposto nos artigos 207º e 208º da CRP, não obstante ser difícil de imaginar que tais preceitos possam estar em causa nos presentes autos. Mesmo tratando-se de lapso do recorrente, sempre se afirma não se mostrar violado qualquer princípio ou dispositivo constitucional.

Improcede, pois, o recurso.


*

C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, com 5 (cinco) UCs. de taxa de justiça.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Coimbra, 10 de Março de 2010

João Gomes de Sousa

Calvário Antunes