Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
385/22.8T8TND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO FERNANDO SILVA
Descritores: SEGURO DE DANOS
ÂMBITO DE COBERTURA
DANOS EM IMÓVEL
OBRAS DE REPARAÇÃO
OBRAS DE MELHORAMENTO/INOVATÓRIAS
FRANQUIA
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 43.º, N.º 2, 49.º, N.º 3, 128.º DO REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO, 342.º, N.º 1, E 346.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – O seguro de danos não abrange obras de melhoramento, com vista a evitar danos futuros, da coisa segurada.
II – A franquia constitui um limite à indemnização contratualizada no contrato de seguro, pelo que o valor a pagar não deverá incluir o valor da franquia.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator:
António Fernando Silva
Adjuntos:
Luís Manuel Carvalho Ricardo
Falcão de Magalhães

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Vem a presente acção intentada por AA contra A... SA, pedindo que se considere que os danos causados no imóvel da A. se encontram garantidos pelo contrato de seguro ou, caso assim se não entenda, que se considerem não escritas as exclusões que indica, e que seja a R. condenada a pagar 7.278 euros, acrescidos de iva, e os juros vencidos no montante de 291,12 euros e os vincendos até pagamento.

Alegou para tanto que:

- celebrou um contrato de seguro com a R. para cobertura de prédio urbano e respectivo recheio;

- em 12.06.2021 o prédio foi atingido por temporal durante várias horas;

- o que provocou, no interior, o alagamento das caleiras interiores junto à cobertura do imóvel e o transbordamento de água para a placa de cobertura do imóvel e daí a água escorreu para o interior do prédio, causando fissuras, empolamento de massas, descasque de tinta e manchas de humidade;

- e no exterior, infiltrações em varanda, fissuras nas fachadas das paredes e empolamento de tinta com capoto a quebrar;

            - participou os danos à R, que recusou a cobertura pela apólice, salvo quanto a danos em estores (que liquidou, depois de deduzir a franquia de 100 euros);

            - dada a necessidade de intervir de imediato, a A. contratou a reparação, que ascendeu a 7.278 euros, acrescidos de IVA;

- considera, depois, que o evento em causa e os danos que descreve estão cobertos pelo seguro;

- e sustentou, subsidiariamente, que as cláusulas excludentes não lhe foram comunicadas, devendo ter-se por excluídas para os termos do art. 8º al. a) do DL 446/85.

A R. contestou, aceitando alguns dos factos e impugnando outros. Em particular, defendeu a exclusão dos danos do âmbito do seguro, e a correcção da comunicação das condições gerais e especiais.

Realizado o saneamento e o julgamento, foi proferida decisão que condenou a R. a pagar à A. a quantia de 7.278 euros, acrescida de IVA à taxa legal em vigor, e a pagar os juros vencidos no montante de 291,12 euros até à data da propositura da ação, e os juros que se venceram e vencerão a contar daquela data até integral pagamento.

Desta decisão interpôs a R. recurso, tendo concluído nos seguintes termos:

I. Os factos dados como provados nos pontos 16), 19), 23) e 24) da decisão recorrida deverão ser substancialmente alterados assim o impondo os depoimentos das testemunhas BB (minutos 27 e 28), CC (minutos 12, 13, 14, 16, 18 a 22), e DD (minuto 4).

II. Todas as testemunhas em causa referiram que a habitação da Autora, para além dos danos nos estores, não apresentava qualquer dano exterior, não apresentando as respectivas paredes qualquer papo ou rachadela.

III. Nessa medida, e por ter desconsiderado totalmente os depoimentos em causa, mal andou o tribunal recorrido ao dar como provado o constante dos factos 16) e 23) devendo o primeiro (16) ser dado como não provado e a redacção do segundo (23) ser substancialmente alterada para:

23) Para reparação dos danos que o imóvel apresenta em consequência do temporal e das infiltrações que sofreu, é necessário, além do mais, o seguinte:

a) selar e tratar as fissuras/rachadelas provocadas no interior da moradia;

b) tratar as humidades nas paredes interiores e tetos;

d) fornecimento de tinta e pintura de paredes e tetos interiores.

IV. Errou ainda o tribunal a quo ao dar como provado que o orçamento apresentado pela empresa B..., Lda, no montante de 7.0278,00, acrescido de IVA à taxa de 6% e 23%, continha todos e apenas os trabalhos necessários para reparação dos danos decorrentes do ocorrido em 12.06.2021 pontos 19) e 24) dos factos provados.

V. Do depoimento da testemunha CC, autor do orçamento em causa, resultou que os trabalhos de impermeabilização das fachadas da habitação, bem como a colocação de poliureia (material impermeabilizante) no terraço, não são trabalhos necessários à reparação de quaisquer danos no exterior da habitação, mas que têm em vista a prevenção de eventual nova ocorrência como a registada no dia 12.06.2021 e que, nessa medida, constituem melhoramentos na habitação da Autora.

VI. Tal resulta, de resto, e desde logo, do conhecimento geral e das regras da experiência comum, ainda mais atenta a manifesta ausência de danos no exterior da habitação da Autora.

VII. De onde tudo resulta a necessidade de alteração do constante nos pontos 19) e 24) dos factos provados, devendo do primeiro (19) ser excluída a expressão e necessários para reparar os danos provocados pelas infiltrações e o segundo (24) ser alterado para ali ficar a constar que: A identificada empresa B..., Lda apresentou um orçamento dos trabalhos a realizar no valor de 7.278,00, conforme orçamento junto aos autos, que se dá por integralmente reproduzido, e que inclui os seguintes trabalhos:

- Hall de entrada junto á porta da cozinha;

- parede da cozinha junto á portada;

- parede da sala;

- casa de banho principal junto á janela (Impermeabilização de terraço superior com poliureia);

- quarto principal (suite);

- cada de banho (suite);

- fachadas da habitação, com capoto (revestimento impermeabilizante).

VIII. Neste ponto revela-se essencial a inclusão no elenco dos factos provados dos trabalhos concretos orçamentados para aferir da sua adequação.

IX. Do depoimento da testemunha CC resultou evidente que o mesmo já realizou na habitação da Autora os trabalhos de impermeabilização das fachadas e do terraço a que tudo o tribunal recorrido fez uma vaga alusão no ponto 24 dos factos que deu como provados. Mais resultou do mesmo depoimento que os trabalhos realizados tiveram um custo de cerca de 4.000,00 (quatro mil euros)

X. Tratam-se de factos que resultaram da prova produzida e que, por serem essenciais à decisão da causa e à correta aplicação da justiça, terão necessariamente de ser levados ao elenco de factos provados, impondo-se, nessa medida, o aditamento do seguinte facto ao elenco de factos provados: A empresa B..., Lda precedeu já à realização das obras de impermeabilização do terraço superior com poliureia e das fachadas da habitação (revestimento impermeabilizante) referidas no orçamento apresentado pela mesma, tendo as obras em causa tido um custo de 4.000,00.

XI. Alterando-se a matéria de facto provada nos termos supra exposto, outra terá de ser, necessariamente, a decisão a proferir nos presentes autos. A condenação da recorrente no pagamento do montante de 7.280,00 claramente extravasa os danos que, comprovadamente, a Autora sofreu com o evento em causa nos autos, pois que, dos mesmos, 4.000,00 referentes a impermeabilização das fachadas e terraço são a trabalhos de melhoramento da habitação da Autora, cujo custo não pode ser imputado à recorrente ao abrigo da apólice contratada.

XII. Para além de não se verificar o dano, não se verifica ainda o necessário nexo causal entre o evento e a despesa.

XIII. Mal andou, pois, o tribunal recorrido, ao condenar a recorrente no pagamento da totalidade dos trabalhos orçamentados, devendo ao valor do mesmo ser deduzida a quantia de 4.000,00 referente a trabalhos já realizados e que não resultam da reparação de danos provocados pelo evento participado e em causa nos presentes autos, no que tudo dará uma condenação da ré nunca superior a 3.278,00.

XIV. Mais se impõe, face à matéria de facto dada como provada e à existência, para as coberturas qui em causa de uma franquia de 100,00, a redução da mesma a qualquer valor indemnizatório que a recorrente venha a ser condenada a pagar à Autora.

A A. respondeu, pugnando pela manutenção do decidido, tendo considerado bem fixados os factos apurados e indevido o desconto da franquia.

II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».

Assim, as questões a tratar analisam-se no seguinte:

- avaliar a impugnação da matéria de facto;

- a ser alterada, avaliar os efeitos dessa alteração na decisão de mérito;

- em qualquer caso, avaliar o significado da franquia invocada face ao pagamento devido.

III. Os factos provados constam da sentença impugnada, não sendo, neste momento, necessária a sua transcrição.

IV.1. A R. cumpriu os ónus inerentes à impugnação da matéria de facto. Cabe assim avaliar o seu mérito.

Ponto no qual, face à posição assumida pela A., e pese embora a questão conheça ainda variações na sua abordagem, se deva começar por clarificar que se entende que o recurso atinente à matéria de facto implica, para o tribunal de segunda instância, o dever de reavaliar a prova e formar a sua própria convicção sobre os factos impugnados (com inerente dever de fundamentação), e não apenas avaliar a coerência lógica e racional da convicção formada pelo juiz no tribunal recorrido, para a censurar apenas quando essa convicção se afastasse do respeito pelas regras, legais ou comuns, que suportam tal motivação (quando ela se não ajustasse à racionalidade inerente à justificação exigida)[1]. Tal deriva da evolução histórica do regime de recurso sobre a matéria de facto e da criação de uma segunda instância de impugnação/avaliação, e tem expressão em regras legais que apenas se compreendem por pressuporem o poder-dever de formação de autónoma convicção no tribunal de recurso (art. 662º do CPC). O único limite assenta na convicção formada com base em experiência irrepetível do julgador da primeira instância, quer se precipite em meio de prova autónomo ou apenas em percepção própria não reproduzível em segunda instância – o que, diga-se, não ocorre no caso.  

Será, pois, este o ponto de partida da (re)avaliação a realizar.

2. A R. começa por impugnar a matéria factual descrita em 16), na qual consta que:

«No exterior da habitação: varanda de frente da casa ficou com infiltrações; as fachadas das paredes ficaram com algumas fissuras e empolamento de tinta com capoto a quebrar».

E verifica-se que assiste razão à R., pois a prova testemunhal produzida não confirmou a existência da infiltração na varanda, ou a existência de fissuras, ou o empolamento de tinta com capoto a quebrar (tudo no exterior da habitação). Com efeito, nenhuma das testemunhas inquiridas o assegurou e, ao invés, tal matéria até tendeu a ser excluída pelos depoimentos das testemunhas invocadas pela R. (BB, namorado da A. e que conhecia a situação do prédio, e CC, gerente da sociedade que interveio nas reparações realizadas) – as quais, na verdade, constituem os únicos elementos de prova relevantes nesta parte (inexistindo outros depoimentos ou elementos documentais que apontem em sentido diverso), sendo que da motivação da sentença recorrida também não se retiram contributos que indiquem como suportar resultado distinto.

Donde se dever ter esta matéria por não provada.

3. Seguidamente, mas em relação com a referida matéria descrita em 16), a R. impugna a matéria descrito em 23) dos factos provados, considerando que dela se devem retirar as menções aos danos exteriores.

A matéria descrita em 23) tem a seguinte redacção:

«Para reparação dos danos que o imóvel apresenta em consequência do temporal e das infiltrações que sofreu, é necessário, além do mais, o seguinte:

a) selar e tratar as fissuras/rachadelas provocadas na massa do capoto quer no exterior, quer no interior da moradia;

b) tratar as humidades nas paredes interiores e tetos e paredes exteriores;

c) aplicar impermeabilizante nas paredes exteriores e nos tetos das varandas;

d) fornecimento de tinta e pintura de paredes e tetos interiores e paredes exteriores».

A redacção tem que ser alterada para contemplar a aludida exclusão à intervenção na parte exterior da moradia, não enquadrável na reparação dos danos causados pelo temporal (assim se restringindo a descrição factual aos danos - interiores - apurados, e não controvertidos nesta sede e por isso aqui não discutidos).

Porém, e por a matéria descrita na al. c) deste artigo se relacionar com a impugnação da matéria dos art. 19) e 24) dos factos provados, a redacção devida será avaliada após a apreciação destes factos.

4. Quanto a estes art. 19) e 24), a R. contesta a menção aos trabalhos necessários à reparação do imóvel por considerar que a impermeabilização exterior não constitui reparação de danos, não existentes, constituindo antes um melhoramento preventivo.

Estes artigos têm a seguinte redacção:

art. 19) «Paralelamente, a Autora solicitou um orçamento a uma empresa da especialidade – B..., Lda. - que fez deslocar um técnico ao imóvel e que registou a descrição dos trabalhos a executar e necessários para reparar os danos provocados pelas infiltrações».

art. 24) «Dada a necessidade de proceder à imediata reparação de alguns estragos sob pena de estes se agravarem aumentando-se assim os prejuízos, a Autora contratou a identificada empresa “B..., Lda”, que apresentou um orçamento para proceder aos trabalhos de reparação dos danos a que se alude supra, e que inclui mão de obra e materiais, no valor de 7.278,00€ acrescido de iva à taxa de 6% e 23%».

5. Quanto ao art. 19), a prova que a R. invoca, e a demais prova produzida (que foi avaliada), não revelam que o técnico não registou a descrição dos trabalhos a executar e necessários para reparar os danos provocados pelas infiltrações, nem tal asserção é incompatível com os demais factos: uma coisa é o que o técnico registou (que não vem descrito, sendo de todo ignorado[2]), outra é o que consta do orçamento (sendo que também se não afirma que o que o técnico registou, nomeadamente quanto aos danos, é o que consta do orçamento); outra ainda seria a afirmação de que o técnico registou os trabalhos de impermeabilização como sendo trabalhos de reparação, o que parece ter sido assumido na impugnação mas que na realidade não consta da matéria descrita. Aliás, esta matéria descrita em 19) é, em último termo, irrelevante: o que monta são os danos que existiam, o que foi reparado e o valor da reparação (trata-se de matéria remotamente instrumental). Não se justifica, pois, alterar a redacção deste artigo dos factos provados.

6. Quanto ao art. 24), também aqui assiste em grande medida razão à R. pois, a partir do momento em que se não demonstra a existência de danos externos causados pela intempérie, fica lógica e necessariamente prejudicada a existência de qualquer reparação a realizar no exterior: pressuposto necessário desta reparação seria a prévia existência de danos externos. Acresce que, como a R. nota, a impermeabilização realizada constitui realmente uma obra nova, já que não visa repor o estado anterior da casa, mormente substituindo impermeabilização que se perdeu (com a intempérie), mas antes aditar uma nova camada protectora (com vista a evitar danos futuros)[3]. Trata-se de intervenção inovadora que não podia ser considerada reparação. Esta asserção resulta dos demais factos provados (e não provados), quando delimitam os danos (excluindo danos externos), e em especial da natureza da intervenção, esclarecida pela referida testemunha CC (cuja empresa realizou aquela intervenção), em função da forma como descreveu a intervenção, descrição da qual decorria tratar-se de actuação nova, com vista a evitar danos futuros, e que não incidia sobre danos já existentes. E testemunha que, pese embora tenha resistido notoriamente a assumir aquela qualificação inovadora da intervenção (qualificação que, em verdade, também não lhe cabia fazer), acabou, na sequência de indagação da Ilustre Mandatária da R. (a qual procedia a uma distinção entre a reparação de danos, de um lado, e «fazer algo mais que a casa não tinha», de outro lado), por aceitar a distinção («tenho que estar de acordo consigo», disse, embora, de seguida, procurasse de novo relativizar a afirmação).

Assim, como o art. 24) remete para trabalhos de reparação «a que se alude supra» e estes são agora menos do que os que constam do orçamento (art. 23) dos factos provados), passando assim o valor em causa (7.278 euros) a contemplar intervenções que não respeitam à reparação de danos (como se viu, e ao contrário do alegado e ali descrito), tem este art. 24) que ser ajustado aos factos apurados. Factos estes no qual se inclui o valor da impermeabilização, ponto onde releva o depoimento da referida testemunha CC, que lhe aportou um valor de cerca de 4.000 euros – depoimento claramente honesto, realizado por quem tem conhecimento directo da matéria, sendo por isso de acolher. A testemunha não foi assertiva na fixação daquele valor. O carácter da declaração e a natureza da actividade (intervenção única com diferentes vertentes, sem discriminação de valores parciais correspondentes a cada vertente da intervenção, e com mão de obra envolvendo actividades de reparação e de impermeabilização) revelam que outras diligências instrutórias não alcançariam resultados mais precisos. Assim, será esta a asserção factual a acolher.

7. Neste ponto, a R. pretende que se descreva o teor do orçamento e ainda se adite um novo artigo em termos que se consideram excessivos (indo até um pouco além da alegação) e desnecessários, justificando-se antes articular a alegação com a matéria efectivamente apurada, matéria esta que restringe de algum modo o alcance daquela alegação (mas em termos que permitem salvaguardar ainda alguma eventual questão de qualificação jurídica).

8. Assim, e quanto aos art. 23) e 24), deverão ficar com a seguinte redacção:

art. 23) «Para reparação dos danos que o imóvel apresenta em consequência do temporal e das infiltrações que sofreu, é necessário, além do mais, o seguinte:

a) selar e tratar as fissuras/rachadelas provocadas na massa do capoto no interior da moradia;

b) tratar as humidades nas paredes interiores e tetos;

c) fornecimento de tinta e pintura de paredes e tetos interiores».

art. 24) «Dada a necessidade de proceder à imediata reparação de alguns estragos sob pena de estes se agravarem aumentando-se assim os prejuízos, a Autora contratou a identificada empresa “B..., Lda”, que apresentou um orçamento para, nomeadamente, proceder aos trabalhos de reparação dos danos a que se alude supra, e que inclui mão de obra e materiais, no valor de 7.278,00 acrescido de iva à taxa de 6% e 23%, orçamento (e valor orçamentado) no qual se incluíam trabalhos de impermeabilização do exterior da moradia (terraço e fachadas) no valor de cerca de 4.000 euros».

9. Desta forma, o elenco de factos provados passa a ser o seguinte:

1) A Ré é uma pessoa coletiva, constituída sob a forma de sociedade anónima, que se dedica, além do mais, à comercialização de seguros nos mais variados ramos e ainda de seguros com componente financeira.

2) Em 15 de Junho de 2020, entre a Autora e a Ré, foi celebrado um contrato de seguro denominado “Multirrisco”, titulado pela apólice ...64 que tem por objeto a cobertura dos seguintes bens: o prédio urbano composto por moradia com cave, R/C e andar, com logradouro, sito na Rua ..., lugar de ..., freguesia ... e ..., concelho ..., inscrito na matriz urbana ...97, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...79, estando aí inscrita a sua aquisição, por compra, a favor da Autora e o respetivo recheio que integra o prédio urbano.

3) O aludido contrato teve como data de início da sua vigência as 00 horas do dia 15-06-2020.

4) A moradia em causa e atrás identificada trata-se da casa de morada de família da Autora.

5) É uma habitação nova, construída de raiz no ano de 2018, para a qual foram utilizados materiais de boa qualidade tanto na sua estrutura como nas paredes exteriores e cobertura, esta executada em placa de betão coberta com chapa sandwich, habitação que nunca apresentou qualquer anomalia, defeito ou irregularidade.

6) Das “Condições Particulares” do aludido contrato de seguro (cujo teor se dá, para os devidos efeitos, por integralmente reproduzido), no item “Detalhe do(s) Objeto(s) Seguro(s)”, consta que a qualidade da construção é “alta”.

7) No dia 12 de junho de 2021, a região centro, com particular destaque para a localidade de ..., foi fortemente fustigada por um violento temporal marcado por queda de granizo, fortes rajadas de vento e chuva intensa e contínua.

8) Temporal que se fez sentir durante várias horas.

9) As consequências do mau tempo foram amplamente retratadas e relatadas em diversos meios de comunicação social, locais e nacionais e que motivaram, inclusive, o Presidente da Camara Municipal ... a solicitar ao Governo que desencadeasse um procedimento para atribuição do estado de calamidade atentos os prejuízos causados na localidade de ....

10) O temporal que se abateu sobre a região de ... provocou inúmeras inundações, a queda de inúmeras árvores e diversos estragos em habitações.

11) Uma das habitações afetadas foi a da Autora.

12) O assinalado temporal provocou o alagamento das caleiras interiores junto à cobertura do imóvel uma vez que o tamanho e a quantidade de granizo foram de tal ordem que ultrapassou a capacidade de escoamento das referidas caleiras e que, por isso, ali se acumulou, facto que aliado às fortes chuvadas e às fortes rajadas de vento, fez com que a água da chuva também ali se acumulasse e não escoasse, originando o alagamento das caleiras, e o consequente transbordamento de água.

13) Alagadas as caleiras, a água da chuva acabou por transbordar para a placa de cobertura do imóvel. Uma vez chegado à cobertura, a água escorreu pelos tetos e paredes, espalhando-se por diversas zonas do interior da habitação, nomeadamente pelo hall de entrada junto à porta da cozinha, pela parede da cozinha junto à portada, pelas paredes da sala, pela casa de banho principal junto à janela com entrada de água pela caixa de estore, pelo quarto principal, e portada de acesso ao exterior e na casa banho de quarto principal (caixa de estore).

14) Água que correu também pelo chão da habitação.

15) Em resultado das infiltrações de água nos tetos e paredes dos compartimentos já identificados, surgiram algumas fissuras, em alguns pontos as massas empolaram, a tinta descascou e volvidos alguns dias surgiram manchas negras de humidade.

16) (…).

17) Os danos sofridos foram participados à Ré companhia de seguros, através de comunicação acompanhada do envio de fotografias e do envio de vídeo.

18) Nessa sequência, a Ré fez deslocar a casa da Autora um perito que elaborou um relatório e que entregou àquela no final do mês de julho de 2021.

19) Paralelamente, a Autora solicitou um orçamento a uma empresa da especialidade – B..., Lda. - que fez deslocar um técnico ao imóvel e que registou a descrição dos trabalhos a executar e necessários para reparar os danos provocados pelas infiltrações.

20) A Ré declinou a responsabilidade, com exceção dos danos provocados nos estores pela queda de granizo.

21) Por comunicação escrita enviada por correio eletrónico para o mediador da Autora, datada de 4 de agosto de 2021, a Ré informou, além do mais, o seguinte: “Relativamente aos danos reclamados decorrentes de infiltrações pela fachada e pela cobertura, não estamos perante uma situação enquadrada nas coberturas da Apólice, sendo uma exclusão da cobertura de Tempestades (não ficam garantidos os danos ocorridos devido a infiltrações de água através de paredes e tetos), conforme anexo.”

22) Com exceção da reparação dos estores que, entretanto, a Ré liquidou no valor de 650€ (capital da cobertura de queda de granizo e neve de 750€ deduzida a franquia contratual de 100€), mais nenhum outro dano foi assumido.

23) Para reparação dos danos que o imóvel apresenta em consequência do temporal e das infiltrações que sofreu, é necessário, além do mais, o seguinte:

a) selar e tratar as fissuras/rachadelas provocadas na massa do capoto no interior da moradia;

b) tratar as humidades nas paredes interiores e tetos;

c) fornecimento de tinta e pintura de paredes e tetos interiores.

24) Dada a necessidade de proceder à imediata reparação de alguns estragos sob pena de estes se agravarem aumentando-se assim os prejuízos, a Autora contratou a identificada empresa “B..., Lda”, que apresentou um orçamento para, nomeadamente, proceder aos trabalhos de reparação dos danos a que se alude supra, e que inclui mão de obra e materiais, no valor de 7.278,00 acrescido de iva à taxa de 6% e 23%, orçamento (e valor orçamentado) no qual se incluíam trabalhos de impermeabilização do exterior da moradia (terraço e fachadas) no valor de cerca de 4.000 euros.

25) Nas Condições Particulares da Apólice ficou a constar que o imóvel está garantido quanto aos danos provocados, nomeadamente, por «danos por água», «inundações» e de «tempestades», todos com uma cobertura máxima de 200.000,00€ e com uma franquia de 100€.

26) Foi com base nas ditas condições particulares que a autora fixou os seus interesses na celebração do contrato.

27) A cobertura contratada de tempestade abrange os danos resultantes de:

“a) Tufões, ciclones, tornados e toda a ação direta de ventos fortes ou choque de objetos arremessados ou projetados pelos mesmos (sempre que a sua violência destrua ou danifique vários edifícios de boa construção, objetos ou árvores num raio de 5 km envolventes dos bens seguros).

b) Alagamento pela queda de chuva, neve ou granizo, desde que estes agentes atmosféricos penetrem no interior do edifício em consequência de danos causados pelos riscos mencionados em a), e na condição de que estes danos se verifiquem nas 48 horas seguintes ao momento da destruição parcial do edifício.”

28) A autora limitou-se a aceitar as cláusulas gerais que foram redigidas pela ré.

29) A ré não comunicou nem explicou o teor das aludidas cláusulas gerais à autora, designadamente as cláusulas excludentes da sua responsabilidade.

            E passam a considerar-se não provados os seguintes factos:

i) em resultado das infiltrações de água, a varanda de frente da casa ficou com infiltrações; as fachadas das paredes ficaram com algumas fissuras e empolamento de tinta com capoto a quebrar.

ii) para reparação dos danos que o imóvel apresenta em consequência do temporal e das infiltrações que sofreu, é necessário, além do mais, o seguinte:

a) selar e tratar as fissuras/rachadelas provocadas na massa do capoto no exterior da moradia;

b) tratar as humidades nas paredes exteriores;

c) aplicar impermeabilizante nas paredes exteriores e nos tetos das varandas;

d) fornecimento de tinta e pintura de paredes exteriores.

Para além do factos não provados constante da sentença recorrida.

10. Avaliando estes factos face à pretensão da A. e ao contrato de seguro, verifica-se que a pretensão da A. não pode ser integralmente admitida.

            O contrato de seguro celebrado visou a cobertura de danos causados ao imóvel, constituindo pois um seguro de danos. Por definição, este contrato de seguro, visando cobrir o risco de verificação de certo dano (em função de certo evento), apenas contempla a reparação do dano. Por isso que se prescreva que o interesse do segurado respeita à conservação ou à integridade de coisa (art. 43º n.º2 do RJCS[4]), e não ao melhoramento da coisa, do que deriva se limitar o seguro à eliminação do dano, e se fixe ainda, em conformidade, que a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro (art. 128º do RJCS).

            Significa isto no caso que a A. não tem direito, com base no contrato de seguro, a receber o valor correspondente à impermeabilização exterior (terraço e fachada) pois nesta parte, como deriva dos factos provados, não está em causa a reparação de danos exteriores (não existentes), mas a realização de obra nova, de aditamento melhorador (benfeitoria) [se não existem danos exteriores apurados, nada há a reparar; se a impermeabilização assim acresce ao existente, sem cobrir danos emergentes, trata-se de obra adicional que visa a melhoria do existente].

            O valor destes trabalhos deve ser, pois excluído. Assim, face aos factos provados, teria direito ao valor orçamentado depois de descontado o valor correspondente aos trabalhos de impermeabilização. O valor exacto destes trabalhos não se apurou (nem, como se referiu, se julga viável tal apuramento), fixando-se apenas um valor aproximado (cerca de 4.000 euros), o qual compreende assim uma margem de indefinição (de dúvida) quanto ao valor relevante.

Esta dúvida compreende quer um valor (um pouco) inferior a 4.000 euros, quer um valor (um pouco) superior a 4.000 euros. A tratar-se de um valor inferior a 4.000 euros, tal beneficiaria a A. pois aumentaria o valor da reparação dos demais danos (e assim o valor que ela teria direito a receber). Mas como lhe cabia demonstrar o valor dos danos (da reparação), como facto constitutivo do seu direito de crédito, a dúvida sobre a diferença para menos do valor da impermeabilização (e assim para mais quanto ao valor da reparação) tem que se resolver em seu prejuízo (art. 342º n.º1 e 346º in fine do CPC). Pois “o ónus da prova objectivo é um critério de decisão nos casos de incerteza quanto à verificação de algum facto jurídico, mandando julgar ou «como se» o facto se tivesse verificado ou como se assim não tivesse ocorrido”[5]; no caso, tal significa que tudo se passa como se o facto que favorecia a A. (menos de 4.000 euros) não ocorresse. Neste sentido e deste ponto de vista, segura é apenas a referência a 4.000 euros.

Quanto a um excesso para mais, que beneficiaria a R. (por diminuir o valor dos danos a reparar), poderiam valer considerações simétricas às expostas quanto à A.: a dúvida sobre circunstância de facto que favorecia a R. deveria ser contra ela decidida. Sucede que, nesta parte, a R. apenas discutiu, no recurso, o valor de 4.000 euros, aceitando o restante valor dos danos (sem prejuízo, embora, da questão da franquia, externa à fixação do valor dos danos), o que significa que a decisão recorrida, quanto à fixação do valor da reparação que excede os 4.000 euros, transitou em julgado[6] (trânsito em julgado parcial – art. 635º n.º4 e 5 e 639º n.º1 do CPC) – pois, impugnando apenas o valor de 4.000 euros, não pode nunca contar com um valor superior a 4.000 euros.

Assim, neste quadro, a A. teria direito a receber 3.278 euros (acrescidos de IVA).

11. Cabe, porém, atender ainda à invocada franquia.

Verifica-se, a partir dos factos provados, que à cobertura em causa está acoplada uma franquia de 100 euros (distinta da que já foi descontada a propósito dos danos nos estores).

A franquia absoluta (notoriamente em causa), cuja contratualização é expressamente admitida pelo art. 49º n.º3 do RJCS, constitui uma limitação contratual à cobertura do dano, significando que a prestação a cargo da seguradora não contempla uma parte do sinistro (do dano), só cobrindo os danos causados a partir do valor fixado (da franquia). Constitui, pois, um limite (contratual) ao direito do segurado, reduzindo a responsabilidade da seguradora, e por essa via um limite ao valor devido. No qual se repercute por força da estipulação contratual, sem necessidade da formulação de qualquer específico pedido (contra o que parece entender a A.). O contrato de seguro que sustenta o pagamento também define ou delimita, neste sentido, o valor do pagamento: o direito contratual só abrange danos superiores a 100 euros, suportando o segurado o dano até esse limite (art. 406º n.º1 do CC). Donde dever ser este valor excluído do pagamento devido[7].

12. A R. não impugnou directamente o valor dos juros já vencidos fixados na sentença recorrida. O tribunal de recurso apenas pode conhecer as questões suscitadas no recurso, salvo caso de oficiosidade do conhecimento (art. 608º n.º2, parte final, ex vi do art. 663º n.º2 do CPC), sendo essas questões a conhecer (também) delimitadas pelas conclusões apresentadas no recurso, pelo que estas restringem assim (expressa ou tacitamente) o objecto de cognição, definindo o objecto do recurso (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC).

Quanto a estes juros, não ocorreu uma restrição expressa. A restrição tácita assenta numa conduta de onde derive, de forma inequívoca, a aceitação da decisão (de parte da decisão). Ora, quando a R. impugna o valor do capital devido, está, ao invés de aceitar o valor atribuído aos juros vencidos, também a recusá-lo tacitamente, pois tal valor de juros supõe necessariamente o valor de capital que é impugnado. Como o recurso abrange, na falta de especificação (ainda que tácita), tudo o que for desfavorável ao recorrente (art. 635º n.º2 e 3 do CPC), e tal especificação (mesmo tácita e como exposto) não ocorreu, deve entender-se que abrange também o valor dos juros vencidos (do mesmo modo que uma decisão que julgasse que nenhum valor era devido teria necessariamente que excluir a condenação em juros).

Assim, não será devido o valor quantificado, mas valor a calcular subsequentemente - sendo que quanto à data do vencimento da obrigação de juros nada consta na sentença recorrida mas, como tal não foi impugnado nem é incompatível com a impugnação do capital realizada pela R., aqui sim, já ocorre uma limitação tácita do âmbito do recurso, nada mais havendo a ponderar. 

13. O recurso procede integralmente (a diferenciação na fixação dos factos não equivale a nenhum decaimento), pelo que as custas terão que correr por conta da A. (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).

V. Pelo exposto, decide-se:

- alterar os factos em discussão nos moldes acima referidos.

- na procedência do recurso, condenar a R. a pagar à A. a quantia de 3.178 (três mil cento e setenta e oito) euros, acrescida de IVA, e a pagar os juros vencidos até à data da propositura da acção e os juros vincendos a contar daquela data até integral pagamento.

Notifique-se.

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

(…).

Datado e assinado electronicamente

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico.


[1] Sobre a questão, v. Ac. do STJ 588/12.3TBPVL.G2.S1 in 3w.dgsi.pt, Henrique Antunes, Recurso de apelação e controlo da decisão da questão de facto, Estudos em Comemoração dos 100 Anos do Tribunal da Relação de Coimbra, Almedina 2018, pág. 100 e ss., sobretudo pág. 105, T. Sousa em anotação no CDP 44 pág. 2 ou A. Geraldes, Recursos em processo Civil, Almedina 2022, pág. 333/4 e 347 ss..
[2] E podendo por isso limitar-se aos danos que se apuram.
[3] Pese embora nesta apreciação vá incluída uma valoração não estritamente factual, ela constitui no seu núcleo essencial um juízo de facto, cabível nesta sede, e, em especial, ela é devida porquanto o resultado da avaliação repercute-se em asserções factuais relevantes.
[4] Regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo DL 72/2008, de 16.04.
[5] P. Múrias, Por uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lex 2000, pág. 25. Expressão da regra, mas para plano diferente, encontra-se também no art. 414º do CPC.
[6] Pois mesmo a questão da franquia pressupõe já este valor (não o discute).
[7] A solução é pacífica quanto aos contratos de seguro facultativos, nas relações entre as partes do contrato. V. a título exemplificativo, o Ac. do TRE proc. 10/04.9TBSTB.E1, in 3w.dgsi.pt.