Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
94/21.5T8VLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DE ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÃO DE POSSE
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 89.º E 96.º, DO CÓDIGO DO NOTARIADO
ARTIGO 4.º, 2, A), DO CPC
ARTIGO 116.º, 1, DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL
ARTIGOS 1250.º; 1252.º, 2; 1257.º, 2 E 1263.º, B), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1 – A acção de impugnação judicial de escritura de justificação notarial procede se o réu nessa acção não consegue provar a causa aquisitiva da posse que erigiu naquela escritura como causante da usucapião - na situação dos autos, a doação verbal do prédio de que era comodatário e em função da qual pretendia ter passado da detenção para a posse em nome próprio.
2 – Acresce que não pode utilizar a presunção de posse a que se reporta o nº 2 do art 1252º CC e, por essa via, lograr ainda provar a posse em nome próprio, porque a referida presunção tem o seu campo de aplicação restrito às formas de aquisição originária.
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra


           I – AA, e mulher, BB, intentaram acção declarativa de impugnação de justificação notarial, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 101.º do Código do Notariado, contra CC, pedindo que: 

A)  Se declare que os factos justificados na Escritura Pública de Justificação, outorgada a 26 de Março de 2021, na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Notário de ..., perante a Conservadora DD, no livro de notas para escrituras diversas numero sessenta e um C, a fls 28 e 29, não são verdadeiros, não correspondem à verdade;

B) Se deem  por impugnados os factos justificados na Escritura de Justificação outorgada a 26 de Março de 2021, na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e no Notário de ..., perante a Conservadora DD, no livro de notas para escrituras diversas numero sessenta e um C, a fls 28 e 29, onde se declara que o Réu é dono e legitimo proprietário do prédio urbano inscrito sob o artigo ...03, por o ter adquirido por doação feita por EE em 1995, porquanto não correspondem à verdade as declarações prestadas quanto à invocada aquisição da propriedade do referido prédio urbano e em consequência declarar-se a ineficácia da escritura pública de justificação e considerar-se ineficaz a aquisição do imóvel identificado no artigo 38 da p. inicial;

C) Se dê por impugnada a escritura de Justificação outorgada a 26 de Março de 2021 ,na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Notário de ..., perante a Conservadora DD, no livro de notas para escrituras diversas numero sessenta e um C, a fls 28 e 29, onde se declara que o Réu é dono e legitimo proprietário do prédio urbano inscrito na matriz da Freguesia ... e ... sob o artigo ...03, por o ter adquirido por doação feita por EE no ano de 1995, porquanto não correspondem à verdade as declarações prestadas quanto à aquisição de propriedade do referido prédio urbano e em consequência declarar-se a ineficácia da escritura pública de Justificação e considerar-se ineficaz a aquisição do imóvel identificado no artigo 38 da p. inicial;

D) Em consequência da ineficácia invocada nos pedidos anteriores se determine o cancelamento de quaisquer registos já feitos ou que venham a ser feitos sobre o identificado imóvel;

E) Se declare que o prédio urbano identificado no artigo 38 da p. inicial faz parte integrante do hoje prédio rústico inscrito na matriz da União de Freguesia ... e ... sob o numero ...83;

F) Se declare que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio rústico descrito no artigo 1 desta petição e inscrito na matriz da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...83.

 Para tanto, e em síntese, alegaram ser proprietários de determinado prédio rústico (matriz 2483/CRP 956), o qual resultou da discriminação do artigo ...05, na sequência da construção de estrada nacional que atravessou este último, o qual adquiriram por escritura pública de compra e venda outorgada a 9 de abril de 2021.  No referido e originário artigo ...05 existiam três construções, as quais, com a discriminação desse artigo ficaram implantadas no artigo 2483, pelo que integraram necessariamente o sobredito negócio aquisitivo. Sucedendo que no levantamento topográfico que antecedeu a acima referida discriminação do art 505º, e que foi feito sob a orientação e indicações do aqui R, tendo sido ele quem mostrou ao A. e a FF, anterior proprietário, os limites da propriedade, não lhe deu conta de que que a porção de terreno que viria a justificar como sua integrava o artigo ...05. Os AA. apenas por força da publicação em jornal local da escritura de justificação vieram a tomar conhecimento de que a construção situada na estrema sul do seu artigo 2483, hoje autonomizada sob artigo 903, havia sido inscrita na matriz predial pelo R., e que, segundo ele, lhe teria sido doada em 1995 por EE, encontrando-se preenchidos os pressupostos para a  aquisição do prédio por usucapião.

O R contestou, referindo ser verdade o que consta da referida escritura de justificação – que foi EE que no referido ano de 1995 lhe doou o terreno e a construção a que corresponde hoje o art matricial 903, tudo feito com conhecimento e concordância do seu único filho, GG,  que também já era herdeiro de seu pai, e cuja vontade em vida era também doar-lhe aquele espaço, por consideração, respeito e amizade com os seus pais, que o utilizaram e fruíram, como ele, R., o continuou a fazer, o que sucede há mais de 60 anos de forma pública, pacífica, contínua e de boa fé . Refere que o prédio urbano em causa não fazia parte do prédio rústico, pois que sempre foi tratado autonomamente pelos antigos vendedores, apenas se encontrando omisso na matriz como sucede em muitas outras situações. Mais refere que ao longo dos anos os pais dele, e depois ele próprio, chegaram a pagar uma renda simbólica por esses palhais e respectivo quinteiro, e que, após a falecida EE e seu filho lhe terem doado verbalmente esse palhal o passou a utilizar como se seu proprietário se tratasse. Refere ainda que aquando do levantamento topográfico a que os AA. se reportam, transmitiu que não faziam parte as construções em causa e respectivo quinteiro, esclarecendo que não procedeu mais cedo à escritura de justificação por não lhe ter passado pela cabeça que outros se viessem a arrogar proprietários daqueles bens e que o fez por insistência de GG.

 Foi fixada à acção o valor de 60.000,00, em consequência do que foi determinada a remessa dos autos para os Juízos Centrais Cíveis da Comarca ..., foi dispensada a realização da audiência prévia, proferido despacho saneador e, subsequentemente, realizada audiência de julgamento, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente.

II – Do assim decidido, apelaram os AA., que concluíram as respectivas alegações,  do seguinte modo: 

4.1.O Recurso de Apelação que ora se interpõe versa sobre matéria de facto e sobre matéria de Direito dessa decisão, tendo como fundamentos o erro de julgamento por:

i) No que toca a matéria de facto, por errada e deficiente análise crítica da prova, insuficiência de prova ou incorrecta valoração desta para a decisão de facto proferida e inobservância do juízo prudencial na formação da convicção, uma vez que a prova testemunhal e documental conduz, indiscutivelmente, a solução oposta à da sentença ora em crise;

e ii) No que toca a matéria de Direito, por errada interpretação e aplicação do Direito, quer por violação das regras de apreciação de prova e de ónus de prova, quer por violação de normas do Código do Notariado, do Código Civil e do Código de Processo Civil.

4.2. A discordância quanto à matéria de facto tem uma dupla vertente: por um lado determinados factos adicionais devem ser julgados como provados por existência de produção de prova conclusiva quanto aos mesmos; por outro, determinados factos fixados como provados na sentença recorrida devem ser julgados como não provados por inexistência e/ou incorrecta valoração da prova produzida.

4.3. Deve ser julgado como facto provado o seguinte facto: A inscrição da referida construção na matriz predial urbana da União de Freguesias ... e ... efectuada pelo do R. aconteceu já depois de o primitivo dono do artigo ...05, GG, ter vendido aquele artigo ao senhor Dr. FF, venda esta que teve lugar em Junho de 2020.

4.4.Deve ser julgado como facto provado o seguinte facto: As paredes do prédio urbano inscrito sob o número ...03 são a continuação dos muros que dividem o prédio rústico inscrito na matriz da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...83, do caminho público e das outras propriedades.

4.5.Deve ser julgado como facto provado o seguinte facto: O Réu iniciou o pagamento de impostos sobre o prédio justificado a partir de Setembro de 2020.

4.6. Deve ser julgado como facto provado o seguinte facto:As testemunhas sobrevivas da escritura de justificação notarial tiveram conhecimento dos factos que outorgaram por lhes terem sido transmitidos pelo Réu no dia da escritura.

4.7.A discordância quanto à matéria de facto da sentença recorrida na vertente de factos que foram fixados como provados e ao invés devem ser julgados como não provados, diz respeito a factos identificados sob a epígrafe “Da Contestação”, cuja fundamentação de suporte à decisão evidencia três vícios que consumam o erro de julgamento desta parte da matéria de facto: a) Ausência de juízo prudencial na apreciação de prova; b) Incorrecta imposição do ónus da prova aos Autores ao invés do Réu como caberia; c) Confusão, ou pelo menos inconsistente distinção, entre o conteúdo dos conceitos de possuidor e simples detentor/detentor precário

4.8.Estes três vícios manifestam-se de forma flagrante e em particular nos factos fixados como provados sob o items .15 e .17, devendo antes estes ser julgados como não provados.

 4.9.Relativamente aos factos sob os itens .12, .13, .14 e .16, embora se discorde integralmente da fundamentação que é construída na sentença recorrida para os sustentar, porquanto enferma dos mesmos três vícios enumerados em 4.7 supra, são factos que na estrita expressão em que ficaram fixados resultam efectivamente provados à luz dos elementos que constam dos autos (embora não à luz dos elementos em que o Tribunal a quo os estriba).

4.10. O facto fixado como provado sob o item .15 sob a epígrafe “Da Contestação” deve ser eliminado do conjunto de factos provados e antes ser julgado como facto não provado o seguinte:

Facto não provado: Desde 1995, o Réu continuou a fazer a mesma utilização que faziam seus pais do bem em causa, agora de forma gratuita, na sequência de lhe ter sido comunicado pela então proprietária que deveria deixar de pagar qualquer renda e passar a considerar o bem como seu;

4.11. O facto fixado como provado sob o item .17 sob a epígrafe “Da Contestação” deve ser eliminado do conjunto de factos provados e antes ser julgado como facto não provado o seguinte:

Facto não provado: o Réu realizou obras de reparação, conservação e outras benfeitorias, por si ou por intermédio de outrem, sob sua iniciativa.

4.12. Ao arrepio dos vastos ensinamentos que os nossos Tribunais superiores têm produzido a respeito da escritura de justificação notarial e fim da respectiva acção de impugnação, o Tribunal ora recorrido aparentemente formou uma injustificável e inabalável convicção nas declarações de parte do Réu acerca de uma suposta doação e pretensa posse, secundada pelo depoimento de uma única testemunha que tomou como credível, GG, apesar de este ter expressado aberta e proactivamente a sua hostilidade contra o Autor e proferido um discurso pleno de contradições graves e inexatidões inconsistentes sobre factos chave da contenda.

4.13. Sem nunca colocar em dúvida aquela versão relatada por duas pessoas inidóneas e com discurso incoerente e inconsistente, e tendo dispensado a inspecção ao local requerida pelos Autores, o Tribunal a quo assume-a “verosímil” e ignorou a mensagem que a confrontação com as declarações de todas as demais testemunhas dos Autores lhe deveria ter transmitido – e que constituía um acervo alargado e variado de pessoas com diferentes razões de ciência mas com depoimentos inteiramente coerente entre si.

4.14. Das declarações do Autor e da testemunha FF - apreciadas no seu devido contexto e não dele retiradas de forma “cirúrgica” de modo a fazer preencher os elementos da posse como é indevidamente feito na sentença recorrida -, se percebe perfeitamente que estes tinham elementos para nunca entenderem a presença do Réu na parcela de terreno em contenda como de natureza de possuidor mas sim de mero detentor -, estando dispostos a tolerá-lo nessa posição, mas não como titular de outro direito qualquer e por isso a sua surpresa relativamente à pretensão do Réu.

4.15. O Tribunal a quo relegou para o campo da insignificância os depoimentos que seriam os mais importantes na produção de prova pelo Réu: as dos próprios declarantes da escritura de justificação notarial os quais, contrariando o disposto na escritura, deram a conhecer ao Tribunal “ao vivo e a cores” que não tinham conhecimento de nenhum dos factos que haviam declarado na escritura como verdadeiros e antes tinham sido instruídas pelo Réu no próprio dia da escritura.

4.16. O erro de julgamento no que toca a matéria de direito resulta da má aplicação do Direito em três vertentes distintas: quanto aos efeitos da falta de correspondência/desconformidade entre declarações em escritura de justificação notarial, cfr. artigo 96.º do Código do Notariado e a realidade; quanto às regras de apreciação de prova e de ónus da prova previstas nos artigos 341.º, 342.º e 346.º do CC e artigo 607.º, n.º 4 e n.º 5 do CPC; e quanto ao conteúdo e prova do animus possidendi, com respeito à articulação entre os artigos 1253.º, 1252.º, n.º 2 e 1257.º, n.º 2 do CC.

4.17. A falta de correspondência/desconformidade entre as declarações em escritura de justificação notarial e a realidade que resultou da produção de prova testemunhal dos dois declarantes (sobrevivos) da escritura de justificação notarial: cfr. concreta passagem da gravação do seu depoimento das 00:03:54 às 00:14:20); · HH: 20230216105441_963667_2870896, cfr. concreta passagem da gravação do seu depoimento das 00:03:50 às 00:10:50, transcrita supra teria de ter gerado dois efeitos, o que não sucedeu:

i) a fixação como facto provado que as testemunhas sobrevivas da escritura de justificação notarial tiveram conhecimento dos factos que outorgaram por lhes terem sido transmitidos pelo Réu no dia da escritura, cfr. 4.6. supra.

 ii) a declaração da ineficácia da escritura de justificação notarial porquanto as declarações das testemunhas que aí consignadas não correspondem à verdade constituindo declarações falsas, mais se retirando as demais consequências legais, tal como constam dos pedidos A) e F) feitos pelos Autores na sua p.i.

4.18. Não figurando a falsidade das afirmações dos outorgantes entre as causas típicas de nulidade dos actos notariais que se encontram previstas nos artigos 70.º e 71.º do Código de Notariado, a desconformidade as declarações consignadas na escritura de justificação notarial em crise pelos respectivos declarantes previstas no artigo 96.º do Código de Notariado como obrigatórias e a realidade que estes admitiram em juízo, deve resultar na ineficácia daquele documento.

 4.19. Mesmo que este Venerando Tribunal da Relação não venha a entender como em 4.17 e 4.18 supra, o resultado de ineficácia da sobredita escritura é à mesma obtido uma vez que o Réu falhou em toda a linha a demais prova que lhe cabia dos direitos que se arroga:

4.20. Quanto às regras de apreciação de prova, estando em causa nos autos uma acção de impugnação de justificação notarial, a formação de uma convicção prudente impunha-se justificadamente e de sobremaneira na apreciação das provas produzidas, atentos ao abrigo do artigo 607.º, n.º 4 (apreciação crítica das provas) e n.º 5 do CPC (prudente convicção) e à vasta experiência da nossa jurisprudência sobre a escritura de justificação notarial.

4.21. O princípio da livre apreciação de prova não pode significar o afastamento do juízo prudencial, nem prejudicar a prudente convicção do julgador assente em motivação racional, de acordo com as regras da experiência e assentes em critérios de normalidade.

4.22. O juízo prudencial e a análise crítica da prova que subjazem ao disposto nos artigo 607.º, n.º 4 e n.º 5 do CPC foram afastados na valoração da prova que conduziu à fixação (errada) dos itens .15 e .17 como provados.

4.23. É sobre o Réu que recai o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos integradores da aquisição do direito de propriedade de que se arrogaram na escritura de justificação.

4.24. Mesmo em caso do Tribunal ter formado uma convicção ab initio na tese apresentada pelo Réu, a prova trazida pelos Recorrentes foi mais do que suficiente para no mínimo abalar e colocar em dúvida essa convicção, o que deveria ter despoletado a aplicação das regras do ónus da prova no julgamento dos factos nos termos dos artigos 342.º e 346.º do CC e decidir os factos sob os itens .15 e .17 como não provados.

4.25. A apreciação pelo Tribunal a quo dos elementos da posse para efeitos do preenchimento dos pressupostos da usucapião padece de um fulminante erro de aplicação do direito em matéria de conteúdo do animus possedendi e sua prova, tendo-se observado a violação do disposto nos artigos 342.º, 346.º, 1252.º, n.º 2, 2.ª parte e 1257.º, n.º 2, todos do Código Civil.

4.26. O Réu não se apresentou como possuidor desligado dos antecedentes, antes produziu uma afirmação do seu animus possessório referenciado a uma doação verbal, o que constitui um acto de aquisição derivada da posse, pelo que com tal se excluiu do leque de beneficiários da presunção prevista no artigo 1252.º, n.º 2 do CC e antes prevalecerá a presunção (ilidível) estabelecida no artigo 1257.º, n.º 2, segundo a qual a posse se presume que a posse continua no anterior possuidor, competindo assim ao adquirente provar não só o negócio em que fundou a aquisição de posse, como também os elementos da própria posse.

4.27. Em resultado da factualidade que o próprio Réu carreou para os autos, a prova do seu animus possedendi quedou ainda mais exigente, por configurar uma situação em que materialidade do corpus possessório sobre a parcela de terreno em contenda é de sentido tão esbatido que se confunde com a situação de mera detenção, assumindo assim o animus o papel de relevo na caracterização da posse.

4.28. A prova do animus possedendi do Réu in casu (e pelo Réu, ex-vi artigo 1257.º, n.º 2 do CC) passava inexoravelmente por marcar de forma incontestável a distinção do seu modo de agir antes e após a suposta doação, tal que permitisse alcançar a distinção entre uma situação de simples detenção/posse precária e posse ie importava que provasse que passou de possuidor precário a possuidor a partir de 1995.

 4.29. A apreciação pelo Tribunal a quo do animus possedendi do Réu foi superficial, descurando de apurar no agir do Réu a distinção entre simples detentor/detentor precário (cfr. artigo 1253.º do CC) e possuidor (cfr. artigo 1251.º do CC) .

4.30. A prova produzida conduz à caracterização do Réu como simples detentor nos termos do artigo 1253.º do CC, e não como possuidor nos termos doa artigo 1251.º do CC, não podendo ser invocada a aquisição por usucapião do direito de propriedade da parcela de terreno em disputa nos autos.

4.31. O facto fixado como provado sob o item .15 da sentença recorrida, nos termos em que foi fixado pelo Tribunal a quo deixa evidente a ausência da distinção entre os conceitos de “mero detentor/possuidor precário” e “possuidor” que importaria fazer e bem assim, a evidência da análise superficial ao animus do Réu elaborada: o facto da utilização ser gratuita não concorre para o preenchimento da posse, antes pelo contrário.

4.32. A sentença recorrida constitui uma decisão chocante para todos os que acreditam na Justiça e seguramente trágica, não apenas para a ciência jurídica em face dos erros de julgamento cometidos: também o terá sido para o legislador que pensou a impugnação da justificação notarial prevista no artigo 101.º do Código do Notariado como o mecanismo eficaz para sarar do uso fraudulento que dela possam fazer.

Termos em que deve o presente Recurso de Apelação julgado precedente, sendo revogada a sentença proferida, e sendo a mesma substituída por decisão que julgue procedente a acção.

O R. ofereceu contra-alegações que concluiu nos seguintes termos:

1. As motivações de recurso apresentadas pelos A., apenas manifestam o seu estrito ponto de vista no sentido da prova da versão dos factos que defendem, não fazendo sequer uma apreciação global da prova produzida, à semelhança do operado pelo Tribunal Recorrido;

2. Da leitura da douta sentença recorrida, resultam límpidos os factos provados bem como a fundamentação que os sustenta nos termos bem considerados pelo Tribunal, sem evidência de qualquer erro de Julgamento;

 3. Da "Motivação" resultante da douta Sentença recorrida, o Exmo. Juiz de 1ª instância fez uma análise crítica e conjugada de toda a prova, explicitando motivada e racionalmente a convicção a que chegara, sempre no confronto do que fora dito por cada uma das testemunhas ouvidas na audiência de julgamento (cuja razão de ciência fora primeiramente escalpelizada, assim como foi consignada uma síntese do que cada uma das testemunhas disse em audiência) e teor literal dos documentos juntos aos autos, na sua globalidade.

4. As alegações e motivações recursivas apresentadas pelos A. limitam-se à análise da coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto operada pelo tribunal a quo.

5. Não basta uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento, o que não se verifica!

6. O que violaria o princípio da liberdade de julgamento fixado no artigo 607°, n°5 do Código de Processo Civil;

 7. Devendo ter -se em conta o respeito pelos princípios de imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova.

8. Assim, se o julgador de 1ª instância tiver entendido valorar diferentemente dos ora recorrentes tais depoimentos, não se pode pôr em causa, de ânimo leve, a convicção daquele, livremente formada, tanto mais que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que este tribunal ad quem não detém na presente sede.

9. Não se concede assim razão ao alegado em sede recursiva pelos A. no tocante à alteração da Matéria de facto;

10.Considerando.se que o alegado em 2.2.1 a 2.2.4 das alegações, motivação, não pode ser atendido.

 11.Assim como não pode ser atendida a impugnação aos factos provados 15 e 17 no sentido de serem dados por não provados.

12.Em suma o alegado em 2.2.1, 2.2.3 e 2.2.4, mostra-se irrelevante à boa decisão da causa na medida em que prova testemunhal produzida e da factualidade provada, que o R. está na posse do prédio em questão, com “Animus domini”, há mais de 20 anos…

13.O que por si só é suficiente para determinar a improcedência da ação, em razão de se verificar a aquisição originária da propriedade por usucapião, pelo R.

14.O Defendido pelos A. em 2.2.2 da motivação está em plena contradição com a Fundamentação do Tribunal Recorrido e com aquilo que resultou do depoimento da testemunha GG e do depoimento de parte do próprio autor AA.

 15.No que toca à alteração ao facto provado 15, conclui-se pela inalterabilidade do mesmo porquanto a convicção do Tribunal fundou-se no testemunho e declarações de parte de quem tinha conhecimento direto do facto e poderia atestar sobre ele.

16.O facto provado 17 também é inalterável, porquanto está devidamente fundamentado pelo Tribunal recorrido e resultou das declarações de parte do réu, que foram neste conspecto consubstanciadas e corroboradas pela testemunha dos autores GG.

17.Assim estamos a par da fundamentação de facto e de direito do Tribunal Recorrido, que aqui se dá por integralmente reproduzida, para todos os efeitos legais.

18.Decisão que se deve manter na íntegra.

19.Concluindo-se, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que a douta decisão recorrida deu por totalmente improcedente a ação intentada pelos A. não enferma de erros na apreciação da prova conducente ao apuramento da factualidade provada e não provada nos termos e pelos fundamentos bem considerados.

 20.Assim e com efeito, em razão da factualidade apurada, foi feita a correta subsunção jurídica do direito aos factos

III – O Tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

Da petição inicial

1. No dia 26 de março de 2021 foi outorgada escritura pública de justificação, tendo como outorgantes CC, ora Réu, e II, JJ e HH, na qual foi consignado por CC que:

a. é dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem, do prédio sito na Freguesia ... e ... (anterior Freguesia ...), concelho ..., prédio urbano, sito nos ..., composto por edifício de um piso com 181,70 m2 e logradouro com 140,15 m2, a confrontar a norte e poente com caminho público, do sul com GG, nascente com KK, inscrito na matriz sob o artigo ...03, da freguesa de Prova e ..., com o valor patrimonial atribuído de € 5.670,00, omisso na Conservatória do Registo Predial ...;

b. que não dispõe de título formal de que resulte pertencer-lhe a propriedade plena do referido prédio, mas o mesmo foi por ele adquirido por doação meramente verbal em dia e mês que não pode precisar, mas decorria o ano de 1995, feita por EE, viúva, residente que foi na Freguesia ..., concelho ...;

 c. que no entanto, se encontra desde essa altura na posse e fruição do referido prédio, dele retirando todas as utilidades, ocupando-o, guardando os seus pertences, fazendo obras de reparação, conservação e outras benfeitorias, por si ou por intermédio de outrem, sob sua iniciativa, pagando as contribuições e impostos por ele devidos;

 d. que essa posse tem sido exercida sem interrupção, ostensivamente, à vista de toda a gente e sem violência ou oposição de quem quer que sejam, de forma correspondente ao direito de propriedade;

e. que assim, a posse pública, pacífica, contínua, e de boa-fé do referido prédio desde a data supra, conduziu à sua aquisição por usucapião, que invoca para justificar o seu direito de propriedade para fins de registo;

 2. No sobredito instrumento notarial, consignou-se ainda que os demais outorgantes confirmaram inteiramente as declarações prestadas pelo primeiro, por corresponderem à verdade;

3. No dia 15 de abril de 2021 foi realizada no Jornal “...” a publicação com o seguinte teor:

4. A aquisição por usucapião do prédio referido em 1. encontra-se registada por apresentação ...38 de 24/05/2021;

5. Os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio rústico sito às ... e ..., limite da União de Freguesias ... e ..., inscrito na matriz da dita freguesia sob o artigo ...83 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...56;

6. A 9 de abril de 2021, foi celebrada escritura pública na qual os ora Autores declararam adquirir o prédio rustico inscrito na matriz da dita freguesia sob o artigo ...83 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...56 a FF;

7. O prédio rústico inscrito na matriz da dita freguesia sob o artigo ...83 resultou da descriminação do artigo ...05, da extinta Freguesia ..., que foi atravessado pela Estrada .../... (EM 603);

8. No espaço a que correspondia o prédio rustico inscrito sob o artigo ...05 da extinta freguesia ... e objeto de discriminação atrás referida, existiam 3 edificações: duas casas e um pombal;

9. Aquando da discriminação do artigo ...05, as referidas construções ficaram implantadas no espaço correspondente ao artigo matricial ...83;

10. O prédio urbano constante da matriz da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...03 foi inscrito em setembro de 2020;

11. Esse prédio urbano/construção localiza-se na extrema Sul do hoje artigo matricial rustico da União de Freguesias ... e ... 2483;

Da Contestação

12. O Réu deu indicações, aquando da realização do levantamento topográfico do artigo ...05, prévio à discriminação que veio a dar origem aos artigos 2482 e 2483, a respeito da propriedade das edificações ali existentes;

13. Desde, pelo menos, o ano de 1995 a edificação existente no atual artigo 903 (designada de palhal ou cortes) é utilizada e fruída, dela retirando todas as utilidades, ocupando-a e guardando os seus pertences, inicialmente pelos pais do Réu e pelo Réu e, após a morte dos primeiros, pelo próprio Réu;

 14. Os pais do Réu pagavam uma renda de valor simbólico a JJ e EE, então proprietários do bem;

15. Desde 1995, o Réu continuou a fazer a mesma utilização que faziam seus pais do bem em causa, agora de forma gratuita, na sequência de lhe ter sido comunicado pela então proprietária que deveria deixar de pagar qualquer renda e passar a considerar o bem como seu;

16. O Réu usa atualmente e desde, pelo menos, 1995 o palhal para guardar lenha, cães e galinhas;

17. Realizou obras no telhado há cerca de 10 anos;

IV – Do confronto entre as conclusões das alegações e a decisão recorrida, resultam como questões a decidir  no presente recurso, correspondendo  ao seu objecto, se deve julgar-se procedente a impugnação da matéria de facto a que os AA./apelantes procedem, e se, na afirmativa e, em consequência,  se deve julgar procedente a acção.

Pretendem os apelantes que sejam adicionadas à matéria de facto provada as seguintes circunstâncias de facto:

1-  A inscrição da referida construção na matriz predial urbana da União de Freguesias ... e ... efectuada pelo R. aconteceu já depois do primitivo dono do artigo ...05, GG, ter vendido aquele artigo ao senhor Dr. FF, venda esta que teve lugar em Junho de 2020.

2- As paredes do prédio urbano inscrito sob o número ...03 são a continuação dos muros que dividem o prédio rústico inscrito na matriz da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...83, do caminho público e das outras propriedades.

3- O réu iniciou o pagamento de impostos sobre o prédio justificado a partir de Setembro de 2020.

4- As testemunhas sobrevivas da escritura de justificação notarial tiveram conhecimento dos factos que outorgaram por lhes terem sido transmitidos pelo Réu no dia da escritura.

E pretendem que se julguem como não provados os factos julgados provados nos pontos 15 e 17, cujo teor aqui se recorda, como correspondendo, respectivamente, ao seguinte:

15 - Desde 1995, o Réu continuou a fazer a mesma utilização que faziam seus pais do bem em causa, agora de forma gratuita, na sequência de lhe ter sido comunicado pela então proprietária que deveria deixar de pagar qualquer renda e passar a considerar o bem como seu;

17- O Réu realizou obras no telhado há cerca de 10 anos.

Relativamente aos sobreditos factos cuja inclusão na matéria de facto advogam, baseiam-se, no que toca aos três primeiros, na prova documental e na não impugnação dos mesmos pelo R. na contestação, entendendo que sendo relevantes para «a reconstrução da sequência dos factos», contribuem para influenciar «a boa decisão».

Na verdade, tendo sido alegados pelos AA. na petição inicial  – respectivamente, nos art 28º, 32º e 44º -   o R. não os impugnou na contestação.

Pese embora o carácter meramente instrumental dos dois primeiros não se vê por que não hajam de se ter por adquiridos para o processo, como o reclamam os AA., porque, efectivamente, intervêm na formação dos juízos probatórios que afinal se verá serem os adequados em face da totalidade da prova, passando tais factos a constituírem os factos 18 e 19, dando-se, consequentemente, como provado, que:   

18-  A inscrição da referida construção na matriz predial urbana da União de Freguesias ... e ... efectuada pelo R. aconteceu já depois do primitivo dono do artigo ...05, GG, ter vendido aquele artigo ao senhor Dr. FF, venda esta que teve lugar em Junho de 2020;

19- As  paredes do prédio urbano inscrito sob o número ...03 são a continuação dos muros que dividem o prédio rústico inscrito na matriz da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...83, do caminho público e das outras propriedades.

Já o facto terceiro - que se mostra decorrência do facto a que agora se deu o nº 18 e que se mostra necessariamente adquirido em face da certidão matricial que respeita ao prédio em causa, constante de fls 31 - e o quarto, não revestem mero carácter instrumental.

Com efeito, que o réu (apenas) iniciou o pagamento de impostos sobre o prédio justificado a partir de Setembro de 2020, é  facto que directamente se destina a impugnar o constante da escritura de justificação, na parte em que aí se menciona  que desde 1995 que o réu paga os impostos  e contribuições devidos sobre o mesmo.

Relativamente ao facto de que as testemunhas sobrevivas da escritura de justificação notarial tiveram conhecimento dos factos que outorgaram por lhes terem sido transmitidos pelo Réu no dia da escritura, constitui-se o mesmo, na perspectiva dos apelantes, como principal, pois que dele pretendem extrair a possibilidade do encurtamento da apreciação do presente recurso, por entenderem  que em face da patenteada desconformidade das declarações dessas testemunhas na escritura, relativamente ao desconhecimento dos factos que admitiram em juízo, este Tribunal poderá/deverá desde já concluir pela ineficácia da referida escritura pública de justificação e considerar ineficaz a aquisição do imóvel a que a mesma se dirige, julgando, no essencial,  já procedente a acção.

Vejamos.

Há que começar por lembrar as características da escritura de justificação notarial, enquanto «expediente técnico simplificado», «processo anormal de titulação», nas palavras de Ac Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2008 de 04/12/2007[1],  resultante  da conveniência de ultrapassar a falta de titulo que permita o registo. Como se explica nesse Acórdão, «o novo título foi buscar ao princípio do trato sucessivo a sua razão de ser, servindo não só o registo obrigatório como o registo predial em geral, ao possibilitar registos que de outro modo seriam impossíveis». Aí se advertindo que «a escritura de justificação notarial não oferece cabais garantias de segurança e de correspondência com a realidade, potenciando, mesmo, a sua utilização fraudulenta e permitindo que o justificante dela se sirva para titular direitos que não possui, com lesão de direitos de terceiros.
            Efectivamente, trata-se de uma forma especial de titular direitos sobre imóveis, para efeito de descrição na Conservatória do Registo Predial, baseada em declarações dos próprios interessados, embora confirmadas por três declarantes, em que a fraude é possível e simples de executar».

Tão fácil de executar como resulta da conjugação dos arts  116º/1 do C Reg Predial -  que dispõe que, «O adquirente que não disponha de documento para prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo» - com o 89º  do Cód. do Not.- que, por sua vez,  dispõe, que, «1- A justificação para efeitos do nº1 do art. 116º do Código do Registo Predial consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrém, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais», sendo que nos termos do seu nº 2, «quando for alegada  usucapião, baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião» - e com o art 96º/1 do mesmo Cod. do Not. que preceitua que, «As declarações prestadas pelo justificante são confirmadas por três declarantes».

Esta simplicidade de procedimento é contrabalanceada com a possibilidade de, a todo o tempo, os titulares de interesses que possam ser afectados pela justificação notarial poderem confrontar judicialmente o justificante, impugnando em juízo os factos invocados na escritura de justificação para fundamentarem a usucapião,  integrando esta atitude processual  uma acção de simples apreciação negativa, nos termos do disposto no art. 4 nº 2 al. a) do CPC, com a consequência inerente do justificante ficar  onerado com a prova dos factos justificativos da usucapião, à semelhança do que ocorreria numa acção de reconhecimento do direito real pela mesma via [2],  pacífico como é, desde o acima referido Ac Unif de Jurisprudência, que «na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel (…), incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito (…)».

Numa acção desse tipo, como é a presente, a prova que o autor nessa acção alcance relativamente à falsidade das declarações por parte das testemunhas que nos termos do art. 96º/1 do Cód. do Not. hajam confirmado as declarações prestadas pelo justificante  - falsidade essa decorrente de se dizerem conhecedoras dos factos conducentes à pretendida usucapião quando afinal não conhecem de todo ou suficientemente esses factos – não pode implicar, ao contrário do que aqui pretendem os apelantes, que apenas  em função  dessa desconformidade relativamente à  realidade por eles conhecida, se tenha como excluída a verificação daqueles factos. A circunstância das testemunhas, afinal, nada saberem de útil relativamente aos mesmos, por si só não afasta a possibilidade desses factos terem ocorrido. Não deixa o justificante demandado em acção de impugnação de escritura de justificação notarial de poder, por outros meios, fazer prova nessa acção, de que, pese a indevida e fraudulenta escolha das testemunhas usadas para a justificação, os factos ali relatados para lograr a afirmação da usucapião são verdadeiros e de os poder fazer valer para lograr a improcedência da impugnação.

O que significa, a nosso ver, que a circunstância de duas das testemunhas utilizadas pelo aqui R. na escritura de justificação notarial aqui impugnada  terem sido instruídas pelo mesmo para afirmarem o que não sabiam,  apenas para dar cumprimento ao disposto no referido art 96º/1 do Cód. do Not., não conduz à ineficácia da escritura, sem prejuízo da responsabilidade criminal em que possam ter incorrido por prestarem falsas declarações, pese embora não conste da escritura a sua advertência para essa possibilidade.

Dito isto, é verdade que dos depoimentos prestados em juízo pelas testemunhas sobrevivas que intervieram na escritura de justificação notarial, resulta, efectivamente que foram ensinadas  pelo R., à boca da realização dessa escritura,  para afirmarem, o que afirmaram, nessa escritura.

O que é particularmente evidente relativamente a LL -  que, tal como referiu em audiência, regressou da Alemanha há cerca de 5 anos, tendo estado emigrado, primeiro em França, depois na Alemanha, desde 1968  - como resulta das suas seguintes expressões: «Quer dizer, intervim, assinei na escritura como testemunha. De resto não tenho conhecimento de …»; «Eu, praticamente, não testemunhei nada. Apenas escrevi o meu nome. Assinei o meu nome. E disse que o CC, que o proprietário que lhe tinha dado aquilo. Mais nada. Não fiz mais nada. Não sei de negócio nenhum, nem sei de nada….»; «Eu fui como testemunha, e o MM, que lhe tinha dado os palhais. De resto, eu não tenho mais nada a contar. Não tenho mais nada. Foi só isso, mais nada»;  «o CC é que apresentou no dia da escritura, que o MM os tinha dado. E não sei de contrato nenhum». «Eu não ouvi o proprietário, nem mais ninguém». Acabando por responder  afirmativamente à pergunta que frontalmente lhe  foi feita, «Então, aquilo que o Sr. JJ disse na escritura foi-lhe dito no próprio dia pelo Sr. CC? (Sim)». Na verdade, o que sabia restringia-se ao facto de que «eles traziam aquilo a contrato», que «utilizavam os palhais antes da escritura», que «o  pai dele lá andava, agora se era de renda,  não sei dizer».

A testemunha HH também ela iniciou o depoimento, referindo que foi  o R. «que lhe  disse quando eu fui fazer de testemunha», «nunca ter ouvido nada do  MM dizer que doou as cortes», também ele tendo respondido afirmativamente à pergunta,  «Então o senhor só sabe que as cortes foram doadas porque o CC lhe disse, é isso? («Foi»).

Neste contexto, não pode deixar de se dar como adquirido que as testemunhas sobrevivas da escritura de justificação notarial tiveram conhecimento dos factos que outorgaram por lhes terem sido transmitidos pelo Réu no dia da escritura, facto que passa a constituir o 20º.

Estes factos, aditados aos provados, ainda que claramente desfavoráveis à tese do R., não são, no entanto, por si suficientes para a procedência da acção.

Essencial é saber se se deve manter provado o que consta dos pontos 15 e 17 – que, desde 1995, o Réu continuou a fazer a mesma utilização que faziam seus pais do bem em causa, agora de forma gratuita, na sequência de lhe ter sido comunicado pela então proprietária que deveria deixar de pagar qualquer renda e passar a considerar o bem como seu, e que realizou obras no telhado há cerca de 10 anos.

Insurgem-se veementemente os apelantes quanto à resposta afirmativa da 1ª instância a estes dois pontos de facto, assinalando a pouca credibilidade que o depoimento de parte do R. e o testemunho de GG merecem, este de per si, e os dois quando no confronto com a demais prova produzida.

E entende-se que têm razão.

Começando pelo depoimento de GG, não pode deixar de se registar o que à partida o mesmo não escamoteou – que tem consabidas más relações com o autor-  «O senhor AA é pessoa que eu nem quero nem pisar a sombra do mesmo» - mais adiante referindo que tem pendente processo judicial contra ele, relativo «a terrenos».  Pese embora tenha tido a atitude leal de tornar clara a sua animosidade relativamente ao A., nem por isso o seu depoimento se revelou consistente com essa atitude inicial, antes se tratando  de um depoimento marcado por  contradições e evasivas, e nada esclarecedor relativamente ao facto nuclear da doação por parte da sua mãe  dos “palhais” objecto do presente processo.

Vencida a relutância inicial de definir quem eram os donos daqueles “palhais”,  adoptando uma postura de pouca definição e de quase propositada confusão, cheia de tergiversações irrelevantes e incongruentes, veio a compreender-se, que, do seu ponto de vista, as «cortes» não faziam parte do prédio rústico que em Junho de 2020 vendeu a FF por as mesmas «estarem devidamente delimitadas», «têm um cerco a toda a volta de terra. Estão isolados de tudo que esteja à volta dela. Não faz parte integrante da venda que fiz em 2020 a este senhor e nada têm a ver com a parte que foi vendida» .   Relativamente àquele facto nuclear – a referida doação -  limitou-se, de modo, aliás, no seu conjunto, pouco audível e perceptível, e num discurso pouco lógico e consistente  - a referir : «… a minha mãe  (…) há tanto tempo, há tanto tempo que lá andavam os pais, salvo erro já foi em 95  (…)Toda a vida foi deles, já no tempo dos primos do pai (…) e vai disto e vai daquilo» (…) Prosseguindo mais adiante: «No tempo dos pais pagavam renda» (…) «depois vê-se isso, depois vê-se isso, eu não faço apontamentos, falou-se aqui há uns tempos não sei se 95, se foi em 97 nem eu próprio sabia a certeza o ano,  salvo erro em 95. …  e a minha mãe um dia … se é tua vontade, eu também não vou contra isso, então aquilo foi sempre deles, aquilo foi sempre deles, pronto e a conversa ficou assim. Quando o rapaz, após a morte da mãe, foi pagar a renda durante o primeiro semestre até dia 29 agosto de antigamente … e o CC foi pagar a renda “Tem aqui a renda das cortes tal, tal, tal”, “Olha, eu já falei com o meu filho sobre isto, a partir de agora, não pagas renda nenhuma. Isto é teu, isto é teu».

Sucede que a este discurso, aparentemente beneficiador dos interesses do R., como o é a atitude de se prestar a depor nos presentes autos a seu favor, «com muito gosto», como referiu, subjaz a enorme incongruência de ter tido durante anos a possibilidade de tornar a doação a que se reporta uma realidade legal, pois que, como o afirma o R. no art 2º da contestação, nada havendo nos autos que o infirme, é o único filho de EE, que à data da conversa que relatou, já enviuvara. Mas não o fez, limitando-se a, como deu noticia, advertir o R. para proceder «à escritura das cortes»: «CC estou a pensar vender isto tudo. Vê lá a tua vida. Se na altura não tinhas dinheiro, agora já deves ter mais algum». E, mais uma vez incongruentemente com a afirmada  existência da doação por parte da mãe dos «palhais» ao R. – doação essa,  note-se, de que se sabia ser a única testemunha -  não informou com clareza  FF, a quem vendeu o art 505, tendo-se limitado em julgamento a, primeiro dizer «nem se falou disso!», para depois confusamente referir que «se se falou,  não sei se foi antes ou depois da escritura, foi salvo erro em 2020, salvo erro que fiz a escritura, falou-se dos cortes à saída ou antes ou à saída, e eu disse, “Ó professor AA, olhe sabe que os cortes, aquilo foi sempre o que foi, estão devidamente vedados não consta no que lhe estou a vender esta ditas cortes, não consta no terreno que eu estou a vender ao senhor. Portanto, não tem nada a ver uma coisa com outra».

Deste depoimento – das suas incongruências  e insuficiências de contornos - não pode resultar a existência de uma doação ainda que meramente verbal, pois que a testemunha fê-la corresponder em termos práticos à simples não exigência de renda a partir  de um determinado momento,  aliás, temporalmente  mal definido.

Mas deixar de exigir renda não corresponde a dispor gratuitamente do bem que ate aí a justificava.

O que a testemunha GG bem sabia, preferindo, no entanto, manter junto do aqui R. a equivocidade da situação, a que, se tivesse querido, como já se referiu,  depois da morte da mãe e antes de vender a propriedade a FF, teria posto termo, definindo a situação com a realização da doação nos termos que a lei exige.

Por sua vez, o depoimento do R. reflecte a equivocidade da situação a que se tem vindo a fazer referência, não se vendo que o tenha prestado com grande convicção relativamente à sua posição de donatário e de possuidor em nome próprio que daí lhe teria resultado, chegando a referir não saber se o arranjo do telhado nos «palhais» foi antes ou depois da doação.  Acresce que se contradizeu relativamente ao pagamento de renda, dizendo que depois da morte dos pais não mais pagou renda, quando na contestação refere que também ele a pagou  até ao tal dia – do ano de 1995? 1997? – em que a «D. EE» lhe disse «para ficar com o prédio».  Não foi igualmente muito convincente quanto ao facto de no acto do levantamento topográfico – em que a convite de FF ali se encontrava para proceder à indicação ao topógrafo dos limites da propriedade – referiu ter indicado que os «palhais» não entravam, quando é  certo que  nem o A. nem FF o ouviram.

De facto, o  A. no seu depoimento de parte, afirmou que o R. «não se pronunciou à frente dele a respeito das cortes» e igualmente assim se pronunciou FF: «Não se falou das cortes.. Não se discutiu isso, nessa altura não se discutiu isso, só posteriormente…». Precisou que, efectivamente, muito depois, não sabendo situar exactamente  quando, mas «antes de vender ao AA»,  o R. lhe falou das cortes e que ele lhe disse «que precisava de um documento», e como nunca lho apresentou, vendeu ao AA, tal como comprou ao EE. «Eu vendi conforme comprei», não obstante ter feito notar que deu previamente conhecimento «ao AA de que o CC tinha aquilo como dele».

Quanto à realização de obras pelo A. – questão a que se reporta o facto  17 – também aqui, ao contrário do que o entendeu a 1ª instância, se entende que o R. não foi muito assertivo. Como já se fez referência, começou por dizer que fez obras no telhado  mas não saber se antes ou depois da doação, só depois tendo referido tê-lo sido há 10 anos.

FF, confirmando a existência de obras no telhado, de que diz que «se  apercebeu», referiu não poder  precisar «se foi no tempo dos pais ou do Sr CC».

 GG não se lembra da existência de obras.

Não se concorda, pois, com a análise da prova por parte do Exmo Juiz da 1ª instância, sobretudo no que se reporta ao depoimento, absolutamente fulcral, da testemunha GG, quando o mesmo refere  que, «ainda que pautando o seu depoimento por uma clara animosidade e intensidade exacerbada, foi tido por globalmente credível quando apreciada a sua coerência interna e a sua articulação com os demais elementos probatórios constantes dos autos.»

Não foi essa a percepção deste Tribunal, bem pelo contrário, como atrás se salientou, antes nos parecendo que a testemunha em causa nunca quis esclarecer a situação do R., deixando-a ficar propositadamente no «limbo», quando tal lhe era, ao que parece, perfeitamente possível, fazendo-lhe crer, no entanto, que «as cortes» eram dele, onerando-o com a realização da escritura de justificação notarial e com os riscos da mesma, como veio a suceder.

E, como já se referiu, crê-se que o R. percebeu perfeitamente essa indefinição, não agindo, pois, como o faria, se se soubesse e sentisse  como proprietário, antes procedendo relativamente aos «palhais» como sempre fizera, não tornando pública a existência da dita doação – afinal, ninguém ouviu dela falar senão FF já depois de ter comprado o art 505 a GG-  sem que o R. tenha  contraposto à  venda a  FF escritura de justificação, a que só veio a proceder depois que aquele vendeu o discriminado art 2483 ao aqui A.

Neste contexto probatório inserem-se como toda a pertinência, confirmando-o, os acima referidos factos indiciários dados como provados: A inscrição da referida construção na matriz predial urbana da União de Freguesias ... e ... efectuada pelo R. aconteceu já depois do primitivo dono do artigo ...05, GG, ter vendido aquele artigo ao senhor Dr. FF, venda esta que teve lugar em Junho de 2020; as  paredes do prédio urbano inscrito sob o número ...03 são a continuação dos muros que dividem o prédio rústico inscrito na matriz da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...83, do caminho público e das outras propriedades; as testemunhas sobrevivas da escritura de justificação notarial tiveram conhecimento dos factos que outorgaram por lhes terem sido transmitidos pelo Réu no dia da escritura.

Deste modo, entende este Tribunal que apenas se provou:

- Relativamente ao facto 15, que «o Réu continuou a fazer a mesma utilização que faziam seus pais do bem em causa, mas de forma gratuita, depois que, em data indeterminada, lhe foi comunicado pela então proprietária que deixasse de pagar renda»

E, relativamente ao facto 17, que «o telhado das cortes beneficiou de obras em data indeterminada».

O R., na presente acção, faz-se valer, como o fez na escritura de justificação notarial, da aquisição do direito de propriedade das «ditas «cortes» através da usucapião, em função da tradição, enquanto acto de aquisição derivada  da  posse  (al b) do art 1263º CC). Estando em causa, na sua versão, através de uma doação (inválida por falta de forma), uma  traditio brevi manu – isto é, a conversão da detenção em posse, por acordo entre o possuidor e o detentor, situação em que a tradição material está já feita em função de um  negócio anterior, que na  situação dos autos configura um arrendamento.

Na traditio brevi manu nada se altera a nível dos factos, uma vez que o detentor já tinha o controle material sobre a coisa, mas é, obviamente, necessário  que o animus com que esse controle se passa a processar seja o correspondente ao da afirmação do direito à luz do qual se possui, in casu, à luz do direito de propriedade .

Nos autos não se provou a doação.

Como não se provou qualquer alteração no corpus: o R. continuou a fazer a mesma utilização que faziam seus pais do bem em causa, e que ele próprio fazia até aí.

Apenas  se provou  que a partir  de data indeterminada a passou a fazer de forma gratuita, por lhe ter sido comunicado pela então proprietária que deixasse  de pagar renda.

O que significa que de arrendatário passou a comodatário, sem que se alterasse a sua ligação à coisa, pois que, uma situação ou noutra, implicava a sua qualidade de mero detentor, a que alude nas variantes aí referidas, que se interpenetram, o art 1250 º CC.

Como é sabido, a figura do detentor ou possuidor precário corresponde à situação daquele que tendo embora o corpus da posse, a detenção, não exerce o poder de facto com animus de exercer o direito real correspondente (com animus possidendi), compreendendo-se nessa situação o possuidor em nome alheio.

A mera detenção não conduz, como é natural, à aquisição por usucapião.

E tanto basta para que se tenha a acção como procedente, visto que o R. não logrou provar a narrativa de possuidor em nome próprio e as demais características de uma posse boa para usucapião que fez inscrever na escritura de justificação notarial.

Sempre se dirá, por a questão ter sido veiculada na decisão recorrida e, após, no presente recurso, que não o salva dessa posição - de possuidor em nome alheio - a presunção de posse a que se reporta o nº 2 art 1252º CC: a de que, «em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no nº 2 do art 1257º» .

Desde logo, porque o facto 15, tal como aqui se julgou provado, não permite dúvidas.

Mas também, porque, como é tornado claro no Ac R G de 17.09.2020 [3], a que os apelantes fazem referência- salvaguardando o  art. 1252º/2 do CC do âmbito do aí estatuído os casos do nº 2 do art 1257º, isto é, os casos em que se deve presumir que “a posse continua em nome de quem a começou”, estão excluídos do âmbito da presunção da posse em nome próprio estabelecida naquele nº 2 do art 1252º, os casos em que o aparente possuidor não foi o iniciador da posse, o que significa, que no caso de ação de impugnação de justificação notarial em que o justificante não se apresentou como possuidor desligado dos antecedentes, antes produziu uma afirmação do animus possessório referenciado ao ato de aquisição derivada da posse, como é o caso de uma doação verbal – como sucede igualmente nos presentes autos -  com tal alegação excluiu-se do leque de beneficiários da presunção prevista no art. 1252º/2 do CC.

Isto significa, por um lado, que o que se presume no nº 2 do art 1252º é o animus, pois que a norma em causa implica que «haja inteira certeza sobre a verificação em concreto do elemento corpus» , «só o animus, nunca o corpus e presumível » [4], e por outro, que a presunção em causa pressupõe uma aquisição originária da posse.

Termos em que há que julgar procedente a acção.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar procedente a acção, dando por impugnados os factos justificados na Escritura de Justificação outorgada a 26 de Março de 2021, na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e no Notário de ..., perante a Conservadora DD, no livro de notas para escrituras diversas numero sessenta e um C, a fls 28 e 29, por não corresponder a verdade  que o Réu é dono e legitimo proprietário do prédio urbano inscrito sob o artigo ...03, por o ter adquirido por doação feita por EE em 1995, e, em consequência, declara-se a ineficácia dessa escritura pública de justificação, considerando ineficaz a aquisição desse imóvel, determinando-se o cancelamento de quaisquer registos já feitos ou que venham a ser feitos sobre o mesmo, declarando-se que  o prédio urbano referido faz parte integrante do hoje prédio rústico inscrito na matriz da União de Freguesia ... e ... sob o numero ...83 de que os AA. são donos e legítimos proprietários.

            Custas pelo R/apelado.

                                                            Coimbra, 19 de Março de 2024

   (Maria Teresa Albuquerque)
Cristina Neves)  
(António Fernando Marques da Silva)                                                                                

(…)


                [1] - Diário da República, I Série, n.º 63, de 31.03.2008,
                [2]  - Cfr Ac STJ 25.06.2015 (Abrantes Geraldes)
                [3] - Relatora, Margarida Sousa Afonso Cabral de Andrade
                [4] - Cfr Ac STJ 13/9/2011 (Nuno Cameira)