Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2317/07.4TAAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
FUNDAMENTAÇÃO
DESPACHO
JUNÇÃO DE PARECER
ALEGAÇÕES
RECURSO
PROVA PERICIAL
QUESTÕES
PERITO
RECUSA DE MÉDICO
Data do Acordão: 04/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE BAIXO VOUGA - AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 284º CP, 97º Nº 5, 151º, 159º, 163º Nº 1,165º Nº 3 E 358º CPP
Sumário: 1.- O despacho que comunica a alteração não substancial dos factos ao arguido não é um ato decisório, consistindo numa alteração à peça acusatória do processo bastando-se a fundamentação com a referência feita de forma genérica de que tal alteração proveio da discussão da causa, sem curar de estabelecer qualquer correspondência entre cada facto e cada prova.

2.- Não é admissível a junção de pareceres com as alegações de recurso.

3.- A prova pericial destina-se a apreciar os factos que exijam especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, sendo este juízo técnico, científico ou artístico que está subtraído à livre apreciação do julgador;

4.- Para além disso o que vincula o julgador são as conclusões periciais, devidamente fundamentadas e sempre dentro do circunstancialismo enunciado. Já a base factual de que parte o perito para formular os seus juízos, essa não é do domínio do perito, é sim do domínio do julgador. A investigação da causa, o apuramento dos factos, pertence ao juiz, cabendo ao perito emitir os juízos que exijam os tais especiais conhecimentos;

5.- Os esclarecimentos prestados por um dos peritos intervenientes na perícia sobre o objeto da diligência gozam do mesmo valor legal da perícia: o valor probatório deste meio de prova estende-se aos esclarecimentos prestados por um seu elemento, desde que circunscritos ao âmbito da mesma.

6.- No crime de recusa de médico o comportamento ilícito é não a criação de perigo para a vida ou de perigo grave para a integridade física de outra pessoa – factos cuja punição está reservada, nomeadamente, para os crimes de homicídio e de ofensa à integridade física -, mas sim a recusa de auxílio quando em causa esteja uma situação de perigo para a vida ou de perigo grave para a integridade física de outra pessoa.

7.- Sendo o tipo objetivo integrado pela não prestação dos cuidados médicos indicados, o tipo subjetivo resultará de, não obstante o agente conhecer qual o tratamento indicado pelas leges artis para o caso, não o ministrar.

Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


1.

Nos presentes autos os arguidos A..., B...e C... foram condenados nas penas de, respetivamente, 10 meses de prisão, substituída por 300 dias de multa à taxa diária de 15 €, 10 meses de prisão, substituída por 300 dias de multa à taxa diária de 15 €, e 5 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa à taxa diária de 15 €, pela prática de um crime de recusa de médico, do art. 284º do Código Penal.

O pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante V... foi julgado parcialmente procedente e a responsabilidade no seu ressarcimento foi assim distribuída:

- o demandado A... e a empresa K..., Lda, foram condenados solidariamente a pagar ao demandante a quantia de 3600 €;

- o demandado B...e a empresa K..., Lda, foram condenados a pagar ao demandante a quantia de 3600 €;

- o demandado C... e o Centro Hospitalar X..., EPE, foram condenados solidariamente a pagar ao demandante a quantia de 1800 €,

todas acrescidas de juros à taxa legal, vencidos desde a notificação do pedido de indemnização civil, e ainda da sanção pecuniária compulsória à taxa de 5% a partir do trânsito em julgado da decisão.

As demandadas Companhia de Seguros AA..., Companhia de Seguros BB...S.A., e a CC...Seguradora, foram absolvidas do pedido de indemnização.

2.

Inconformados, a demandada K..., o assistente e os arguidos recorreram, concluindo do seguinte modo:

A – K...

«a) O tribunal à quo estabeleceu que em causa está assim a responsabilidade, nos termos do art. 500º do C. Civil, isto é a responsabilidade do comitente por actos do comissário.

b) Estabelece o art. 500º do CC que "aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar".

c) Acrescentou ainda que, "O termo comissão tem aqui o sentido amplo de serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem (...), pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo (...)" Segue-se a doutrina da Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol.1 Almedina Coimbra, 7ª edição, pags.634 e ss.

d) Por conseguinte, "no caso, os arguidos foram contratados pela empresa K... para prestarem serviço no Hospital Y de Aveiro, A empresa organizou o turno, determinou o local e horário de trabalho, pagou o que foi estipulado entre a empresa e os arguidos. É assim patente que os arguidos, embora trabalhassem no Hospital Y de Aveiro e usando os meios deste hospital, o faziam sob direcção e orientação da empresa. Como é óbvio fica salvaguardada a independência técnica e cientifica dos médicos (como fica relativamente a qualquer administração hospitalar)".

e) Considerou que a recorrente e os arguidos estabeleceram um contrato de trabalho.

f) Estando subjacente a este a subordinação jurídica, conforme se transcreve da sentença "a empresa organizou o turno, determinou o local e horário de trabalho, pagou o que foi estipulado entre a empresa e os arguidos. É assim patente que os arguidos, embora trabalhassem no Hospital Y de Aveiro e usando os meios deste hospital, o faziam sob direcção e orientação da empresa".

g) Mas, de facto foi celebrado um contrato de prestação de serviços entre a recorrente e os arguidos.

h) Importa também referenciar que é visível, ao longo da sentença, na parte que respeita à demandada K..., ora recorrente, sistemática e deliberadamente são confundidos os poderes e as competências da recorrente e o hospital.

i) Relembramos, que caso assim não fosse, o tribunal à quo não teria concluído pela existência de subordinação jurídica entre as partes - recorrente e arguidos, logo a primeira vir a ser demandada e consequentemente ser responsabilizada à luz do disposto no artigo 500.º do CC.

j) Os turnos, horários e local de trabalho dos arguidos supra aludidos foram de facto estabelecidos pela recorrente.

k) Contudo, a fixação se encontrava, de facto, sujeita a consenso permanente entre os arguidos e o hospital, tomando-se sempre em consideração, na definição dos mesmos, a disponibilidade horária manifestada pelos arguidos e necessidade dos hospitais, no caso em concreto o de Aveiro.

l) A existência de tal horário e turnos é imposta pelas necessidades de organização do próprio hospital.

m) É uma, entre várias, das condições mínimas exigidas para o bom funcionamento dos hospitais.

n) Nunca a recorrente influiu, por qualquer via, na prestação desenvolvida pelos arguidos.

o) Até porque, repita-se, estava legalmente impedida de o fazer.

p) Os arguidos prestavam o resultado da sua actividade de modo absolutamente independente, sem estar integrado na estrutura organizativa da recorrente e sem sujeição a qualquer poder de direcção ou poder disciplinar desta.

q) Nunca existiu qualquer subordinação dos arguidos à recorrente, pois esta não exercia qualquer autoridade, fiscalização ou interferência na actividade desenvolvida pelos arguidos.

r) Da recorrente e como oportunamente já foi mencionado apenas recebiam a contrapartida financeira.

s) Esgotava-se aí a intervenção da recorrente relativamente aos arguidos.

t) Os arguidos desenvolviam a sua actividade de acordo com o seu saber científico e capacidade, com total autonomia técnica não se encontrando sujeitos às ordens, estrutura hierárquica, fiscalização e autoridade por banda da recorrente.

u) Com efeito, os arguidos prestavam o resultado da sua actividade de modo absolutamente independente, sem estar integrado na estrutura organizativa da recorrente e sem sujeição a qualquer poder de direcção ou poder disciplinar desta.

v) Ter seguro profissional é condição sine quo non para a recorrente contratar os prestadores de serviços, estes têm que demonstrar que o seguro está activo.

w) Aliás, até porque o modelo de contratação estabelecido - prestação de serviços, carece inevitavelmente daquele seguro.

x) Até porque como são profissionais liberais, tal seguro é obrigatório.

y) Por forma, a que se ocorrer alguma eventualidade, tal como ocorreu, o seguro deverá ser accionado,

z) E por seu turno a seguradora vir a ser demandada, e consequentemente responsabilizada, e não como já oportunamente foi explanado a recorrente.

aa) Em suma: afastamos a conclusão emanada pelo tribunal à quo, no que respeita ao preenchimento dos pressupostos para a existência de um contrato de trabalho.

bb) E consequentemente, subjacente ao contrato de trabalho a existência de uma relação entre as partes - recorrente e arguidos de comitente comissário conforme o disposto no artigo 500.º do Código Civil».

B – V...

«1 - O recorrente considera incorrectamente julgado o quatum indemnizatório fixado pelo tribunal a quo na douta sentença em recurso, porquanto a prova produzida em julgamento, pertinente aos factos, correctamente apreendida, apreciada e valorada justifica uma decisão diversa da recorrida.

2 - O recorrente, discorda da comparação que é feita sobre a indemnização que o assistente recebeu pelos danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes de um acidente de viação e a indemnização que lhe é devida pelos danos não patrimoniais resultantes da conduta levada a cabo pelos arguidos e que foi objecto deste processo, sendo vários os motivos:

a) Não tem o tribunal ad quo quaisquer elementos que lhe permitam aferir da razoabilidade ou não do valor que o recorrente recebeu na sequência dos danos emergentes do acidente de viação em que se viu envolvido, não sendo este um critério equitativo, violando desta feita o artigo 496.º e 494.º do Código Civil.

b) Não pode o tribunal estabelecer um termo de comparação entre o montante global peticionado pelo assistente, uma vez que não estamos perante responsabilidade solidária e para além disso, o que foi peticionado foi o montante de €30 000,00 a cada arguido pela responsabilidade que foi assacada a cada um deles.

c) A indemnização resultante da conduta ilícita dos arguidos não pode nunca ser confundida, nem comparada com a circunstância que motivou a entrada do assistente no hospital, até porque esta poderia no campo das hipóteses nunca gerar responsabilidade civil.

4 - Manda a lei que na fixação do montante de indemnização por danos não patrimoniais se deve atender e proceder segundo a equidade, ou seja, o tribunal ao definir o montante da indemnização, não o pode tomar tão escasso que seja objectivamente irrelevante, nem tão elevado que possa significar um enriquecimento injustificado e ainda que devem ser indemnizados os danos que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.

5 - A este propósito refere a sentença que "poucos ou nenhuns valores serão superiores aos valores da vida e da saúde e poucos ou nenhuns medos serão superiores ao medo de os perder."

6 - Ficou ainda provado que “durante as onze horas que esperou pela cirurgia o ofendido sentiu muitas dores, sofrimento, incerteza e angústia, causadas pela ausência de cuidados médicos. Sentiu-se abandonado, sem vislumbrar o alcance dos cuidados q deveria receber, não sendo informado sobre a sua situação ou tratamentos a adoptar”.

7 - Atendendo aos factos considerados provados e à motivação referida no texto da douta sentença de que se recorre, não soube o tribunal à quo atender devidamente ao critério que deve nortear a fixação da indemnização por danos não patrimoniais, ou seja, ao princípio da equidade.

8 - Não logrou o tribunal à quo salvaguardar a natureza mista da reparação, pois para além do ressarcimento dos danos pressupõe-se também assegurar a vertente punitiva. Ou seja, o valor fixado para a indemnização não pode ser uma quantia insignificante que não cause sequer um transtorno a quem a ela está obrigado, o que acontece in casu, atenta à situação económica desafogada dos arguidos.

9 - Naturalmente, que para considerar a vertente punitiva terá o julgador de ter em conta, nos termos e para os efeitos do artigo 496.º do CC, o grau de culpabilidade do agente.

Esse grau de culpabilidade não pode deixar de se reflectir no carácter punitivo da reparação. Tal como na determinação concreta da pena a aplicar ao agente esse carácter punitivo far-se-à em função da sua culpa e bem assim, da necessidade da prevenção que este tipo de ilícito encerra. Tanto a culpa como a prevenção aparecem no mesmo plano, sendo igualmente determinantes para consubstanciar o carácter punitivo da reparação e a tutela do bem jurídico que a incriminação protege.

10 - A questão de prevenção geral num crime específico, ainda para mais, que contende com os bens jurídicos da vida, da integridade física e da saúde deverá merecer uma tutela do direito que reprima comportamentos idênticos de outros profissionais de saúde, o que ainda se torna mais grave quando estamos a falar do SNS.

11 - Também a nível da prevenção especial, a medida da pena e da indemnização destina-se a reprimir comportamentos idênticos futuros dos próprios arguidos, o que é tão premente quando estes se mantêm em funções, como é o caso.

12 - Atendendo ao caso concreto que nos ocupa, não podemos deixar de considerar que o valor a que o tribunal condenou cada um dos arguidos a pagar ao ofendido, nos montantes em que o fez, mediante a sua situação económica "desafogada", para além de não compensar devidamente o assistente, se revela igualmente insignificante por forma a demove-los de comportamentos idênticos no futuro, o mesmo valendo para os seus pares.

13 - Relativamente ao arguido C..., veja-se que o mesmo declarou a propósito da sua situação económica que auferia €2 500,00 de ordenado apenas no Sistema Nacional de Saúde, sendo esta quantia parte do rendimento por si auferido mensalmente, uma vez que o restante é auferido no sector privado, não tendo sido o seu montante concretizado pelo arguido, mas que naturalmente será substancialmente superior, atento os encargos fixos por si declarados (€ 3.650,00).

14 - Relativamente aos arguidos A... e B...diga-se que têm uma situação económica desafogada, pois auferem para além do vencimento no sector público, outros rendimentos no sector privado, que por norma são superiores. Sublinhe-se ainda, em relação a estes dois últimos que nenhum deles tem dependentes ao seu encargo, conforme resulta dos factos provados».

C – A...

«1. Mesmo à luz da matéria dada como provada, é absolutamente impossível configurar a possibilidade de construção dogmática do crime de recusa de acto médico p.p. pelo art. 284 do Código Penal.

2. Pois que da actuação do arguido/recorrente não resultou perigo grave para a vida ou para a integridade física do ofendido nem o recorrente algum dia se recusou a prestar o auxílio e tratamentos médicos, os quais prestou e forneceu nos termos em que o seu juízo profissional, técnico e científico lhe forneceu.

3. Conforme o STJ tem repetidamente afirmado, o médico exerce a sua profissão com toda a independência, impondo-se reconhecer-lhe a liberdade dos meios de diagnóstico ou de tratamento que, no seu critério, se perfilem os mais adequados - cfr. Ac. do STJ de 5.11.97, in CJ, Acs. STJ, V, 3, pág. 227.

4. Ao fornecer-lhe os apoios e os tratamentos médicos que entendeu adequados - e que se revelaram eficazes, pois nenhum dano resultou para o ofendido - o arguido cumpriu o seu dever de auxílio médico de prestação de assistência e terapêutica, pelo que, para além de não existirem os elementos ou pressupostos típicos do crime, também não pode existir qualquer dolo.

5. E a própria sentença recorrida que reconhece expressamente não ter havido qualquer agravamento das condições de saúde do paciente causadas pela acção do arguido (pág. 29) e também não ter havido omissão de tratamento, o que logo faz caducar qualquer hipótese normativa constante do art. 284 do CP.

6. Os tratamentos médicos prestados pelo arguido ao ofendido logo de início foram os adequados, logo porque em face da ingestão de alimentos pelo paciente, outros, como os que a douta sentença recorrida clinicamente aconselha, não eram passíveis de ser utilizados sob pena de pôr em risco a vida do ofendido.

7. Não pode a douta sentença recorrida impôr ao arguido qualquer solução clínica, quando ele, em sua actuação clínica soberana, decidiu adaptar a terapêutica que muitos outros especialistas aconselharam para o caso concreto.

8. No regresso do doente a Aveiro, pelas 5h28m da manhã, e atendendo à entrada de uma equipa nova, mais fresca, o arguido e o colega actuaram com cuidado e diligência, ao prescreverem a medicação adequada e aguardarem a entrada de uma equipa de cirurgia mais fresca e apta a iniciar a cirurgia (ponto 46 da matéria de facto).

9. Tal comportamento foi aliás aplaudido pelo sr. perito, prof. dr. T..., em esclarecimentos prestados ao relatório pericial, e assim subtraídos à livre apreciação do julgador (art.º 163, n.º 1, do CPP) que aplaudiu o comportamento do arguido como correspondendo à justeza e à sensatez que a situação exigia (acta n.º 17716993 de 4.03.13, minutos 1.08.07).

10. Há manifesta contradição insanável entre a fundamentação e entre esta e a decisão logo no facto de no ponto 69 (pág. 16) se dizer que os únicos cuidados médicos susceptíveis de eliminar o perigo era a imediata sujeição a cirurgia, para logo na pág. 28 se reconhecer que tal cirurgia não podia efectuar-se antes de passado um período de 6 a 8 horas (art.º 410, n.º 2, alínea b), do CPP).

11. Há manifesta ilegalidade e abuso de poder quando, contra toda a verdade, e sem qualquer apoio probatório nos autos - antes pelo contrário, com toda a prova produzida em contrário - se diz ter o arguido sabido que o tratamento clínico imposto pela sentença era o único que podia afastar o perigo alegado (que é coisa inteiramente diferente de tal tratamento hipoteticamente o pudesse ser), com o objectivo de alcançar o elemento doloso necessário para a condenação.

12. Há porém erro notório quando, para além de não haver qualquer elemento que afirme essa consciência dolosa, o próprio perito, em juízo subtraído à avaliação do julgador (art.º 163, n.º 1, do CPP), na sessão de 4.03.13, acta 17716993, minuto 32.43, afirmou, conforme transcrição atrás integrada, que o arguido havia actuado na melhor das intenções, exercitando todo o seu conhecimento e experiência, no sentido de tratar adequadamente o doente (art. 410, n.º 2, alínea c), do CPP).

13. Há também erro notório na apreciação da prova e erro de julgamento quando a pág. 29 se diz que "neste tipo de lesão, nunca é aconselhável a intervenção da cirurgia plástica" quando, para além de testemunhas credenciadas, também o perito, em juízo subtraído à livre apreciação do julgador, disse exactamente o contrário (sessão de 4.03.13, acta n.º 17716993, minuto 10.53, 23.09, 27.30 e 30.30 da respectiva transcrição atrás integrada).

14. Se se diz no ponto 69 (pág. 16) que os únicos cuidados médicos susceptíveis de eliminar o perigo era a imediata sujeição a cirurgia, para logo se reconhecer (pág. 28 em consonância com o ponto 25 de pág. 10) que tal não era possível, face à imperiosa necessidade de aguardar o período de 6 a 8 horas, terminando por condenar o arguido por não ter recorrido àquela cirurgia dentro deste período, é evidente e manifesta a contradição entre a fundamentação e entre esta e a decisão (art. 410, n.º 2, alínea b), do CP).

15. Ao concluir (pág. 29) que neste tipo de lesão nunca é aconselhável a intervenção da cirurgia plástica quando, para além de variadíssimos especialistas, foi o próprio perito a dizer e a esclarecer o contrário, nas suas declarações em audiência, sessão de 4.03.13, acta 17716993, minutos 10.53, 23.09, 27.30 e 30.30, transcrição atrás integrada na presente motivação, violou a douta sentença recorrida o disposto nos art. 163, n.º 1 e 127º do CPP.

16. Existe manifesta contradição insanável entre a matéria do ponto 10 (pág. 16) onde se diz que o arguido e o colega, quando o doente lhes foi reenviado, nada fizeram, e os pontos 46 a 49 (págs. 13/14) onde se diz que eles reexaminaram o doente e prescreveram medicação que indicaram ao enfermeiro para que fosse aplicada ao doente, como efectivamente foi feito.

17. Há pois evidente contradição insanável entre a fundamentação (art. 410, n.º 2, alínea b), do CPP).

18. Existe contradição e ininteligibilidade no ponto 22 da matéria de facto dada como provada, susceptível de configurar contradição insanável, uma vez que a taxa de infecção aí apontada no limite se refere a situações a que não tenha havido tratamento, o que não sucedeu no caso vertente, em que houve tratamento que a sentença recorrida reputa de insuficiente, pelo que nunca poderia aplicar-se à hipótese sub-judice.

19. Para mais, sendo a própria sentença recorrida a aceitar que não houve omissão de tratamento (pág. 24), encontra-se automaticamente excluída a figura do crime de recusa tipificado no art.º 284 do Código Penal.

20. Há manifesta e insanável contradição entre a fundamentação e a decisão (art.º 410, n.º 2, alínea b), do CPP) na matéria elencada nos pontos 15 e 43 da matéria de facto dada como provada, porquanto se se reconhece que o paciente comera cerca das 22 horas e que não poderia ter sido operado antes de terem passado seis a oito horas, nunca ele poderia ter sido operado pelo arguido/recorrente às 4.00h da manhã, não só porque ainda não tinham decorrido oito horas sobre a ingestão da refeição, mas também porque o paciente só regressou de Coimbra às 5.28h.

21. Há manifesto erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP) nas formulações conjugadas dos pontos 67 a 73 (págs. 15 e segs), pois que se confundem as lesões que resultaram directamente do acidente e que nunca podiam ser minoradas pela actuação do arguido com o perigo concreto que foi invocado (eventuais infecções).

22. Isso mesmo aliás se revela na contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410, n.º 2, alínea b), do CPP) quando é a própria sentença, a págs. 28/29, a proclamar que os perigos eram de infecção, que foram grandemente minorados pela actuação do arguido e que, no caso, não houve agravamento das condições de saúde do doente causadas pelo protelamento do tratamento.

23. Que não houve aliás qualquer perigo - muito menos grave, como a lei exigiria - para a integridade física do arguido, acaba ainda a própria sentença recorrida por confirmar, quando (pág. 31) assevera, sem dúvida alguma, que o arguido médico de Coimbra observou o doente às 2.11 h e que este não corria perigo - nem grave nem leve - para a sua integridade física.

24. Há pois aqui contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410, n.º 2, alínea b), do CPP), também aqui se revelando a gravíssima confusão errática em que assenta a condenação do arguido.

25. Questão aliás que a M.mª juiz quis «tirar a limpo» com o perito, no sintomático e esclarecedor diálogo atrás transcrito (sessão de 4.03.13, acta 17716993, minuto 58.57) em que este garante que tais lesões sempre resultariam inevitáveis para o arguido do acidente, independentemente dos tratamentos a que fosse submetido.

26. A sentença recorrida viola assim, de forma grosseira, o disposto no art. 284 do Código Penal que interpreta manifestamente contra o princípio constitucional da legalidade, previsto, entre outros, no art.º 29, n.º 1 e 3 da CRP, pelo que, na interpretação concreta que a sentença dele (art.º 284 do CP) faz, no sentido de nele ver tipificada a actuação do arguido médico, quando este recebeu, prescreveu e mandou aplicar ao doente o tratamento e a medicação que, em seu juízo técnico, científico e profissional, entendeu o melhor, faz padecer aquele preceito (art. 284 do Código Penal) do vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio constitucional da legalidade consagrada, entre outros, nos art.º 29, n.º 1 e 3 da CRP.

27. Foi dado como provado pelo tribunal a quo no ponto 20 que ''A descrita fractura exposta de grau IlI constitui uma urgência ortopédica e, segundo a boa prática médica, deve ser imediatamente (logo de início) estabilizada com osteotaxia e sujeita a limpeza cirúrgica (desbridamento), feita mediante anestesia e no bloco operatório".

28. E no ponto 21 dos factos provados que "Esse tratamento deve ser efectuado no mais curto espaço de tempo possível, sendo de preferência efectuado antes de decorridas 6 horas."

29. Na formação da sua convicção o tribunal teve em consideração o parecer do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal, complementado pelos esclarecimentos prestados em audiência pelo sr perito prof. doutor T... e de toda a prova testemunhal.

30. Contudo a prova produzida, quer a pericial (sr prof doutor T..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17716993 de 04/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 04/03/2013, das 14.29.31 às 15.39.57), quer a testemunhal (testemunha D..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17851273 de 14/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 14/03/2013, das 15.17.17 às 16.31.15), testemunha G..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 10.29.39 às 11.27.06. e das 11.38.51 às 12.48.53, testemunha F..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 14.46.33 às 16.14.37, testemunha H..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18172806 de 12/0412013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 1210412013, das 14.36.38 às 15.27.06, testemunha I..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18419291 de 06/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 06/05/2013, das 14.35.43 às 15.47.19, testemunha L.... depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 15.28.40 às 16.43.27 e testemunha U..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 16.45.15 às 17.42.25), impõe decisão diferente, nomeadamente de que nem só a osteotaxia e o desbridamento cirúrgico são o tratamento adequado, e de que tal tratamento não tem de ser efectuado logo de início, de preferência nas primeiras 6 horas.

31. Assim, e em face da prova produzida, apenas poderia ter sido dado como provado que: No ponto 20 - "A descrita fractura exposta de grau IlI constitui uma urgência ortopédica e pode ser estabilizada com osteotaxia e sujeita a limpeza cirúrgica (desbridamento), feita mediante anestesia e no bloco operatório."

32. E no ponto 21 com a redacção "Esse tratamento deve ser efectuado no mais curto espaço de tempo possível, estando reunidas todas as condições de tratamento para o doente."

33. Pelo que foram os pontos 20 e 21 incorrectamente julgados nos termos e para os efeitos do art. 412º nº 3 al. a) e al. b) do CPP, por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP.

34. Quanto ao ponto 22 dos factos provados, o tribunal a quo deu como provado o seguinte: "O decurso do tempo sem o tratamento descrito potencia o aparecimento de lesões seque/ares e ficam também potenciados os riscos hemorrágicos, neurológicos e infecciosos, sendo que a taxa de infecção chega a atingir 40%, na ausência de tratamento."

35. E no ponto 23, por referência ao supra citado ponto 22, dos factos provados, deu como provado: "O afastamento desses riscos e lesões só podia ser efectuado com a realização imediata da cirurgia que inclui a limpeza cirúrgica e a estabilização da fractura mediante a colocação de fixadores provisórios no membro superior direito, ainda que a imobilização com tala gessada, a limpeza da ferida feita com o soro e desinfectante e a administração de antibiótico diminua, temporariamente, esses riscos".

36. Na formação da sua convicção o tribunal teve em consideração o parecer do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal, complementado pelos esclarecimentos prestados em audiência pelo sr perito prof. doutor T... e de toda a prova testemunhal.

37. Desde logo existe uma contradição na própria redacção do ponto 22 dos factos provados, pois que se refere inicialmente ao "... decurso do tempo sem o tratamento descrito ..." (reportando-se aqui ao descrito nos pontos 20 e 21 dos factos provados) e no final, conclui "... na ausência de tratamento". Naturalmente que, ou se refere ao tratamento descrito nos pontos 20 e 21, ou à total ausência de tratamento!

38. Existe assim erro notório na apreciação da prova e contradição insanável com a própria fundamentação e com a decisão, pelo violou assim e desde logo o tribunal a quo o art. 410º nº 2 do CPP.

39. Por outro lado, da prova pericial (sr prof doutor T..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17716993 de 04/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 04/03/2013, das 14.29.31 às 15.39.57), e da testemunhal (testemunha G..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 10.29.39 às 11.27.06. e das 11.38.51 às 12.48.53, testemunha F..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 14.46.33 às 16.14.37, testemunha H..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18172806 de 12/04/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 12/04/2013, das 14.36.38 às 15.27.06, testemunha W... depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 14.58.35 às 15.27.30, testemunha I..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18419291 de 06/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 06/05/2013, das 14.35.43 às 15.47.19, testemunha J..., constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 09.52.27 às 11.24.31, testemunha L..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a ref8 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 15.28.40 às 16.43.27 e testemunha U..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 16.45.15 às 17.42.25), produzida em audiência de julgamento, resultou que os cuidados prestados pelo arguido recorrente e pelo seu companheiro de equipa consubstanciam tratamento, e que não se tendo verificado riscos de infecção, ficou comprovado que existiu tratamento e que o mesmo foi eficaz.

40. Assim, entende o recorrente que de toda a prova produzida resulta que apenas poderia ter sido dado como provado o seguinte no ponto 22: "O decurso do tempo sem tratamento potencia o aparecimento de lesões seque/ares e ficam também potenciados os riscos hemorrágicos, neurológicos e infecciosos, sendo que a taxa de infecção chega a atingir 40%, na ausência de tratamento."

41. E o ponto 23 deveria ter sido dado como provado com a seguinte redacção - "O afastamento desses riscos e lesões podia ser efectuado com a realização da cirurgia que inclui a limpeza cirúrgica e a estabilização da fractura mediante a colocação de fixadores provisórios no membro superior direito, ainda que a imobilização com tala gessada, a limpeza da ferida feita com o soro e desinfectante e a administração de antibiótico diminua, temporariamente, esses riscos".

42. Pelo que foram os pontos 22 e 23 incorrectamente julgados nos termos e para os efeitos do art. 412º nº 3 al. a) e al. b) do CPP, por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP.

43. O tribunal a quo deu como provado no ponto 25 dos factos provados que: "A final, os arguidos não efectuaram o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da factura com osteotaxia, decorrido que fosse o prazo de seis a oito horas após a ingestão de alimentos.

44. Fundou a sua convicção o tribunal no parecer do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal, complementado pelos esclarecimentos prestados em audiência pelo sr. perito prof. doutor T... e em toda a prova testemunhal.

45. Na verdade, e de toda a prova produzida, quer pericial, sr. prof. doutor T..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17716993 de 04/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 04/03/2013, das 14.29.31 às 15.39.57), quer testemunhal (testemunha D..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a ref 17851273 de 14/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 14/03/2013, das 15.17.17 às 16.31.15), testemunha G..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 10.29.39 às 11.27.06. e das 11.38.51 às 12.48.53, testemunha F..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a ref 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 14.46.33 às 16.14.37, testemunha H..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18172806 de 12/04/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 12/04/2013, das 14.36.38 às 15.27.06, testemunha I..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18419291 de 06/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 06/05/2013, das 14.35.43 às 15.47.19, testemunha J..., constante da acta com a ref 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 09.52.27 às 11.24.31, testemunha L..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 1010512013, das 15.28.40 às 16.43.27 e testemunha U..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 16.45.15 às 17.42.25), resultou claro que os arguidos não podiam, nem deviam ter internado de imediato o doente para o submeter à cirurgia ortopédica por não existirem condições de jejum por parte do doente.

46. Na verdade, considera o recorrente que da prova produzida em audiência de julgamento apenas poderia ter sido dado como provado que: Ponto 25 "A final, os arguidos não efectuaram o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da factura com osteotaxia, decorrido que fosse o prazo de seis a oito horas após a ingestão de alimentos”.

47. Pelo que foi o ponto 25 incorrectamente julgado nos termos e para os efeitos do art. 412º nº 3 al. a) e b) do CPP por violação do por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP.

48. O ponto 27 foi dado como provado que: "Antes da transferência, não diligenciaram no sentido de averiguar se estes hospitais dispunham dessa especialidade”.

49. Contudo, da prova produzida, apenas poderia ter resultado a dúvida no tribunal a quo, já que o arguido recorrente e o arguido C... depuseram de maneira oposta, tendo contudo a testemunha E... corroborado as dificuldades que se sentiam muitas vezes em concretizar o contacto com os X....

50. Assim, e tomando em conta a prova produzida, do ponto 27 dos factos provados apenas poderia ter sido dado como provado o seguinte: ponto 27 "Antes da transferência, não lograram saber se estes hospitais dispunham dessa especialidade."

51. Pelo que foi o ponto 27 incorrectamente julgado nos termos e para os efeitos do art. 412º nº 3 al. a) e b) do CPP, por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP.

52. O tribunal a quo deu como provado no pronto 45 que: "Estes dois arguidos não efectuaram novamente o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da factura com osteotaxia, quando o deviam e podiam ter feito, porquanto tinham conhecimentos para tal e existiam todas as condições para o efeito."

53. E no ponto 46 como provado que: "Resolveram, antes e tão-só, prescrever medicação e deixar os cuidados médicos a prestar ao assistente, designadamente, a realização da cirurgia e a estabilização com osteotaxia, para os colegas da nova equipa do serviço de urgência de ortopedia que entraria de serviço às oito horas da manhã."

54. O tribunal a quo fundou a sua convicção em toda a prova documental, pericial e testemunhal.

55. Sobre esta matéria foi produzida prova quer pericial, sr. prof. doutor T..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17716993 de 04/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 04/03/2013, das 14.29.31 às 15.39.57), quer testemunhal (testemunha D..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17851273 de 14/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 14/03/2013, das 15.17.17 às 16.31.15), testemunha G..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 10.29.39 às 11.27.06. e das 11.38.51 às 12.48.53, testemunha F..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 14.46.33 às 16.14.37, testemunha H..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18172806 de 12/04/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 12/04/2013, das 14.36.38 às 15.27.06, testemunha I..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18419291 de 06/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 06/05/2013, das 14.35.43 às 15.47.19, testemunha J..., constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 09.52.27 às 11.24.31, testemunha L..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/0512013, das 15.28.40 às 16.43.27 e testemunha U..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 16.45.15 às 17.42.25), considerando o recorrente que nenhum dos pontos 45 e 46 poderia ter sido dado como provado com a redacção com que foi.

56. Na verdade, não existiam ainda condições de jejum por parte do doente que permitissem o seu internamento imediato para cirurgia.

57. Por outro lado, o arguido e o seu companheiro de equipa encontravam-se de serviço há 22 horas, sendo que a equipa fresca que iria entrar ao serviço 2 horas depois estaria em melhores condições para realizar com sucesso a cirurgia a que houvesse que submeter o doente.

58. Não existia risco para o doente, que se encontrava estabilizado, o que foi verificado pelo companheiro de equipa do arguido, que aliás prescreveu medicação (como é reconhecido no ponto 46 dos factos provados).

59. Assim, da prova produzida apenas resultou matéria suficiente para dar como provado no ponto 45 "Estes dois arguidos não efectuaram novamente o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da factura com osteotaxia."

60. E no ponto 46 "Resolveram prescrever medicação e deixar o tratamento definitivo a prestar ao assistente, designadamente, a realização da cirurgia e a eventual estabilização com osteotaxia, para os colegas da nova equipa do serviço de urgência de ortopedia que entraria de serviço às oito horas da manhã."

61. Pelo que foram os pontos 45 e 46 incorrectamente julgados nos termos e para os efeitos do art. 412º nº 3 al. a) e b) do CPP, por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP.

62. Nos pontos 67 e 68 dos factos provados foi erradamente dado como provado que as lesões que o assistente sofreu resultaram de alguma forma do tratamento realizado pelo arguido A....

63. Assim, do ponto 67 consta: "O assistente ficou, assim, com sequelas afectam de modo grave a utilização do seu corpo e a sua capacidade de trabalho, para além de o desfigurarem de forma grave e permanente (fls. 1088 a 1092).".

64. E do ponto 68 que "Os arguidos sabiam que o assistente apresentava uma factura exposta de grau III traduzida em esfacelo grave do membro superior direito com fractura exposta e muito complexa do cotovelo e que essas lesões constituíam uma situação de urgência médica e representavam um perigo substancial para a integridade física dele, nos termos descritos, susceptível de afectar a saúde e de modo grave a utilização do corpo e a capacidade de trabalho dele e de o desfigurar de forma grave e permanente."

65. Fundou a sua convicção o tribunal no parecer do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal, complementado pelos esclarecimentos prestados em audiência pelo sr. perito prof. doutor T... e em toda a prova testemunhal.

66. Contudo, de acordo com as testemunhas ouvidas e também do perito médico sr. prof. doutor T..., as lesões/sequelas com que o assistente ficou resultam directa e exclusivamente do acidente gravíssimo de que foi vítima.

67. Quanto a esta questão específica dos pontos 67 e 68, foi produzida prova pericial (sr. perito médico, prof. doutor T... que explicou, explicitou e esclareceu o parecer técnico-científico do Conselho Médico-Legal de tis 172 e ss, em sede de audiência de discussão e julgamento (constantes da acta com a refª 17716993 de 04/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 04/03/2013, das 14.29.31 às 15.39.57) e bem assim prova testemunhal, (testemunha I..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento (constante da acta com a refª 18419291 de 06/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 06/05/2013, das 14.35.43 às 15.47.19), testemunha J..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento (constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 09.52.27 às 11.24.31.), e testemunha L..., no depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento (constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 15.28.40 às 16.43.27), confirmando todos que as sequelas com que o assistente ficou se devem à fractura e à gravidade da mesma e não a qualquer ausência ou insuficiência do tratamento dos arguidos.

68. Assim, e da prova produzida resulta que apenas poderia ter sido dado como provado no ponto 67 que "O assistente ficou com sequelas que afectam de modo grave a utilização do seu corpo e a sua capacidade de trabalho, para além de o desfigurarem de forma grave e permanente (fls. 1088 a 1092), como resultado exclusivamente do acidente que sofreu.".

69. E no ponto 68 "O assistente apresentava uma factura exposta de grau IlI traduzida em esfacelo grave do membro superior direito com fractura exposta e muito complexa do cotovelo, que tais lesões constituíam uma situação de urgência médica."

70. Pelo que foram os pontos 67 e 68 incorrectamente julgados nos termos e para os efeitos do art. 412º nº 3 al. a) e b) do CPP, por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127° do CPP.

71. Nos termos do supra alegado e não tendo o arguido cometido o crime por que foi condenado, nem se encontrando preenchidos os requisitos do tipo legal de crime, deve o pedido de indemnização civil ser julgado improcedente por não provado.

72. Na verdade, nenhum dano patrimonial ou não patrimonial sofrido pelo assistente se pode imputar a uma conduta (ou à ausência dela) do arguido recorrente.

73. O arguido tudo fez para que ao assistente fossem prestados os melhores cuidados possíveis (pedido de cirurgia plástica, respeito pelo tempo de jejum e bem assim escolha de equipa fresca para realizar cirurgia).

74. Sem prescindir, sempre se diga que o montante indemnizatório de € 9.000,00 (total) e de € 3.600,00 (parcial para o arguido recorrente) que foi fixado a título de danos não patrimoniais é manifestamente excessivo.

75. Tendo, a este título, a sentença recorrida violado, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos art. 483, n.º 1, 562 e 566 do Código Civil».

D – B...

«1ª Mantém-se integral interesse nos recursos interlocutórios interpostos do despacho que declarou receber a pronúncia e do despacho de 30.07.13 que desatendeu a arguição de nulidade de fls. 2743, cujas motivações deram entrada em juízo respectivamente em 7.SET.2012 e 26.AGO.2013 e aqui se dão como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais (art. 412º, nº 5, do C.P.P.)

2ª Mesmo à luz da matéria dada como provada, é absolutamente impossível configurar a possibilidade de construção dogmática do crime de recusa de acto médico p.p. pelo art. 284 do Código Penal.

3ª Pois que da actuação do arguido/recorrente não resultou perigo grave para a vida ou para a integridade física do ofendido nem o recorrente algum dia se recusou a prestar o auxílio e tratamentos médicos, os quais prestou e forneceu nos termos em que o seu juízo profissional, técnico e científico lhe forneceu.

4ª Conforme o STJ tem repetidamente afirmado, o médico exerce a sua profissão com toda a independência, impondo-se reconhecer-lhe a liberdade dos meios de diagnóstico ou de tratamento que, no seu critério, se perfilem os mais adequados - cfr. Ac. do STJ de 5.11.97, in CJ, Acs. STJ, V, 3, pág. 227.

5ª Ao fornecer-lhe os apoios e os tratamentos médicos que entendeu adequados - e que se revelaram eficazes, pois nenhum dano resultou para o ofendido - o arguido cumpriu o seu dever de auxílio médico de prestação de assistência e terapêutica, pelo que, para além de não existirem os elementos ou pressupostos típicos do crime, também não pode existir qualquer dolo.

6ª E a própria sentença recorrida que reconhece expressamente não ter havido qualquer agravamento das condições de saúde do paciente causadas pela acção do arguido (pág. 29) e também não ter havido omissão de tratamento, o que logo faz caducar qualquer hipótese normativa constante do art. 284 do CP.

7ª Os tratamentos médicos prestados pelo arguido ao ofendido logo de início foram os adequados, logo porque em face da ingestão de alimentos pelo paciente, outros, como os que a douta sentença recorrida clinicamente aconselha, não eram passíveis de ser utilizados sob pena de pôr em risco a vida do ofendido.

8ª Não pode a douta sentença recorrida impôr ao arguido qualquer solução clínica, quando ele, em sua actuação clínica soberana, decidiu adaptar a terapêutica que muitos outros especialistas aconselharam para o caso concreto.

9ª No regresso do doente a Aveiro, pelas 5h28m da manhã, e atendendo à entrada de uma equipa nova, mais fresca, o arguido e o colega actuaram com cuidado e diligência, ao prescreverem a medicação adequada e aguardarem a entrada de uma equipa de cirurgia mais fresca e apta a iniciar a cirurgia (ponto 46 da matéria de facto).

10ª Tal comportamento foi aliás aplaudido pelo sr. perito, prof. dr. T..., em esclarecimentos prestados ao relatório pericial, e assim subtraídos à livre apreciação do Julgador (art.º 163, n.º 1, do CPP) que aplaudiu o comportamento do arguido como correspondendo à justeza e à sensatez que a situação exigia (acta n.º 17716993 de 4.03.13, minutos 1.08.07).

11ª Há manifesta contradição insanável entre a fundamentação e entre esta e a decisão logo no facto de no ponto 69 (pág. 16) se dizer que os únicos cuidados médicos susceptíveis de eliminar o perigo era a imediata sujeição a cirurgia, para logo na pág. 28 se reconhecer que tal cirurgia não podia efectuar-se antes de passado um período de 6 a 8 horas (art.º 410, n.º 2, alínea b), do CPP).

12ª Há manifesta ilegalidade e abuso de poder quando, contra toda a verdade, e sem qualquer apoio probatório nos autos - antes pelo contrário, com toda a prova produzida em contrário - se diz ter o arguido sabido que o tratamento clínico imposto pela sentença era o único que podia afastar o perigo alegado (que é coisa inteiramente diferente de tal tratamento hipoteticamente o pudesse ser), com o objectivo de alcançar o elemento doloso necessário para a condenação.

13ª Há porém erro notório quando, para além de não haver qualquer elemento que afirme essa consciência dolosa, o próprio perito, em juízo subtraído à avaliação do Julgador (art.º 163, n.º 1, do CPP), na sessão de 4.03.13, acta 17716993, minuto 32.43, afirmou, conforme transcrição atrás integrada, que o arguido havia actuado na melhor das intenções, exercitando todo o seu conhecimento e experiência, no sentido de tratar adequadamente o doente (art. 410, n.º 2, alínea c), do CPP).

14ª Há também erro notório na apreciação da prova e erro de julgamento quando a pág. 29 se diz que "neste tipo de lesão, nunca é aconselhável a intervenção da cirurgia plástica" quando, para além de testemunhas credenciadas, também o perito, em juízo subtraído à livre apreciação do julgador, disse exactamente o contrário (sessão de 4.03.13, acta n.º 17716993, minuto 10.53, 23.09, 27.30 e 30.30 da respectiva transcrição atrás integrada).

15ª Se se diz no ponto 69 (pág. 16) que os únicos cuidados médicos susceptíveis de eliminar o perigo era a imediata sujeição a cirurgia, para logo se reconhecer (pág. 28 em consonância com o ponto 25 de pág. 10) que tal não era possível, face à imperiosa necessidade de aguardar o período de 6 a 8 horas, terminando por condenar o arguido por não ter recorrido àquela cirurgia dentro deste período, é evidente e manifesta a contradição entre a fundamentação e entre esta e a decisão (art. 410, n.º 2, alínea b), do CP).

16ª Ao concluir (pág. 29) que neste tipo de lesão nunca é aconselhável a intervenção da cirurgia plástica quando, para além de variadíssimos especialistas, foi o próprio perito a dizer e a esclarecer o contrário, nas suas declarações em audiência, sessão de 4.03.13, acta 17716993, minutos 10.53, 23.09, 27.30 e 30.30, transcrição atrás integrada na presente motivação, violou a douta sentença recorrida o disposto nos art. 163, n.º 1 e 127º do CPP.

17ª Existe manifesta contradição insanável entre a matéria do ponto 10 (pág. 16) onde se diz que o arguido e o colega, quando o doente lhes foi reenviado, nada fizeram, e os pontos 46 a 49 (págs. 13/14) onde se diz que eles reexaminaram o doente e prescreveram medicação que indicaram ao enfermeiro para que fosse aplicada ao doente, como efectivamente foi feito.

Há pois evidente contradição insanável entre a fundamentação (art. 410, n.º 2, alínea b), do CPP).

18ª Existe contradição e ininteligibilidade no ponto 22 da matéria de facto dada como provada, susceptível de configurar contradição insanável, uma vez que a taxa de infecção aí apontada no limite se refere a situações a que não tenha havido tratamento, o que não sucedeu no caso vertente, em que houve tratamento que a sentença recorrida reputa de insuficiente, pelo que nunca poderia aplicar-se à hipótese sub-judice.

19ª Para mais, sendo a própria sentença recorrida a aceitar que não houve omissão de tratamento (pág. 24), encontra-se automaticamente excluída a figura do crime de recusa tipificado no art.º 284 do Código Penal.

20ª Há manifesta e insanável contradição entre a fundamentação e a decisão (art.º 410, n.º 2, alínea b), do CPP) na matéria elencada nos pontos 15 e 43 da matéria de facto dada como provada, porquanto se se reconhece que o paciente comera cerca das 22 horas e que não poderia ter sido operado antes de terem passado seis a oito horas, nunca ele poderia ter sido operado pelo arguido/recorrente às 4.00h da manhã, não só porque ainda não tinham decorrido oito horas sobre a ingestão da refeição, mas também porque o paciente só regressou de Coimbra às 5.28h.

21ª Há manifesto erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP) nas formulações conjugadas dos pontos 67 a 73 (págs. 15 e segs), pois que se confundem as lesões que resultaram directamente do acidente e que nunca podiam ser minoradas pela actuação do arguido com o perigo concreto que foi invocado (eventuais infecções).

22ª Isso mesmo aliás se revela na contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410, n.º 2, alínea b), do CPP) quando é a própria sentença, a págs. 28/29, a proclamar que os perigos eram de infecção, que foram grandemente minorados pela actuação do arguido e que, no caso, não houve agravamento das condições de saúde do doente causadas pelo protelamento do tratamento.

23ª Que não houve aliás qualquer perigo - muito menos grave, como a lei exigiria - para a integridade física do arguido, acaba ainda a própria sentença recorrida por confirmar, quando (pág. 31) assevera, sem dúvida alguma, que o arguido médico de Coimbra observou o doente às 2.11 h e que este não corria perigo - nem grave nem leve - para a sua integridade física.

Há pois aqui contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410, n.º 2, alínea b), do CPP), também aqui se revelando a gravíssima confusão errática em que assenta a condenação do arguido.

24ª Questão aliás que a M.mª juiz quis «tirar a limpo» com o perito, no sintomático e esclarecedor diálogo atrás transcrito (sessão de 4.03.13, acta 17716993, minuto 58.57) em que este garante que tais lesões sempre resultariam inevitáveis para o arguido do acidente, independentemente dos tratamentos a que fosse submetido.

25ª A sentença recorrida viola assim, de forma grosseira, o disposto no art. 284 do Código Penal que interpreta manifestamente contra o princípio constitucional da legalidade, previsto, entre outros, no art.º 29, n.º 1 e 3 da CRP, pelo que, na interpretação concreta que a sentença dele (art.º 284 do CP) faz, no sentido de nele ver tipificada a actuação do arguido médico, quando este recebeu, prescreveu e mandou aplicar ao doente o tratamento e a medicação que, em seu juízo técnico, científico e profissional, entendeu o melhor, faz padecer aquele preceito (art. 284 do Código Penal) do vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio constitucional da legalidade consagrada, entre outros, nos art.º 29, n.º 1 e 3 da CRP.

26ª Foi dado como provado pelo tribunal a quo no ponto 20 que ''A descrita fractura exposta de grau IlI constitui uma urgência ortopédica e, segundo a boa prática médica, deve ser imediatamente (logo de início) estabilizada com osteotaxia e sujeita a limpeza cirúrgica (desbridamento), feita mediante anestesia e no bloco operatório".

27ª E no ponto 21 dos factos provados que "Esse tratamento deve ser efectuado no mais curto espaço de tempo possível, sendo de preferência efectuado antes de decorridas 6 horas."

28ª Na formação da sua convicção o tribunal teve em consideração o parecer do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal, complementado pelos esclarecimentos prestados em audiência pelo sr perito prof. doutor T... e de toda a prova testemunhal.

29ª Contudo a prova produzida, quer a pericial (sr. prof. doutor T..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17716993 de 04/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 04/03/2013, das 14.29.31 às 15.39.57), quer a testemunhal (testemunha D..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17851273 de 14/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 14/03/2013, das 15.17.17 às 16.31.15), testemunha G..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 10.29.39 às 11.27.06. e das 11.38.51 às 12.48.53, testemunha F..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 14.46.33 às 16.14.37, testemunha H..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18172806 de 12/0412013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 1210412013, das 14.36.38 às 15.27.06, testemunha I..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18419291 de 06/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 06/05/2013, das 14.35.43 às 15.47.19, testemunha L..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 15.28.40 às 16.43.27 e testemunha U..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 16.45.15 às 17.42.25), impõe decisão diferente, nomeadamente de que nem só a osteotaxia e o desbridamento cirúrgico são o tratamento adequado, e de que tal tratamento não tem de ser efectuado logo de início, de preferência nas primeiras 6 horas.

30ª Assim, e em face da prova produzida, apenas poderia ter sido dado como provado que: No Ponto 20 - "A descrita fractura exposta de grau IlI constitui uma urgência ortopédica e pode ser estabilizada com osteotaxia e sujeita a limpeza cirúrgica (desbridamento), feita mediante anestesia e no bloco operatório." 31ª E no Ponto 21 com a redaccão "Esse tratamento deve ser efectuado no mais curto espaço de tempo possível, estando reunidas todas as condições de tratamento para o doente."

32ª Pelo que foram os pontos 20 e 21 incorrectamente julgados nos termos e para os efeitos do art. 412º nº 3 al. a) e al. b) do CPP, por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP.

33ª Quanto ao ponto 22 dos factos provados, o tribunal a quo deu como provado o seguinte: "O decurso do tempo sem o tratamento descrito potencia o aparecimento de lesões seque/ares e ficam também potenciados os riscos hemorrágicos, neurológicos e infecciosos, sendo que a taxa de infecção chega a atingir 40%, na ausência de tratamento."

34ª E no ponto 23, por referência ao supra citado ponto 22, dos factos provados, deu como provado: "O afastamento desses riscos e lesões só podia ser efectuado com a realização imediata da cirurgia que inclui a limpeza cirúrgica e a estabilização da fractura mediante a colocação de fixadores provisórios no membro superior direito, ainda que a imobilização com tala gessada, a limpeza da ferida feita com o soro e desinfectante e a administração de antibiótico diminua, temporariamente, esses riscos".

35ª Na formação da sua convicção o tribunal teve em consideração o parecer do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal, complementado pelos esclarecimentos prestados em audiência pelo sr perito prof. doutor T... e de toda a prova testemunhal.

36ª Desde logo existe uma contradição na própria redacção do ponto 22 dos factos provados, pois que se refere inicialmente ao "... decurso do tempo sem o tratamento descrito ..." (reportando-se aqui ao descrito nos pontos 20 e 21 dos factos provados) e no final, conclui "... na ausência de tratamento". Naturalmente que, ou se refere ao tratamento descrito nos pontos 20 e 21, ou à total ausência de tratamento!

37ª Existe assim erro notório na apreciação da prova e contradição insanável com a própria fundamentação e com a decisão, pelo violou assim e desde logo o tribunal a quo o art. 410º nº 2 do CPP.

38ª Por outro lado, da prova pericial (sr prof doutor T..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17716993 de 04/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 04/03/2013, das 14.29.31 às 15.39.57), e da testemunhal (testemunha G..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 10.29.39 às 11.27.06. e das 11.38.51 às 12.48.53, testemunha F..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 14.46.33 às 16.14.37, testemunha H..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18172806 de 12/04/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 12/04/2013, das 14.36.38 às 15.27.06, testemunha W... depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 14.58.35 às 15.27.30, testemunha I..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18419291 de 06/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 06/05/2013, das 14.35.43 às 15.47.19, testemunha J..., constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 09.52.27 às 11.24.31, testemunha L..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a ref8 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 15.28.40 às 16.43.27 e testemunha U..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 16.45.15 às 17.42.25), produzida em audiência de julgamento, resultou que os cuidados prestados pelo arguido recorrente e pelo seu companheiro de equipa consubstanciam tratamento, e que não se tendo verificado riscos de infecção, ficou comprovado que existiu tratamento e que o mesmo foi eficaz.

39ª Assim, entende o recorrente que de toda a prova produzida resulta que apenas poderia ter sido dado como provado o seguinte no ponto 22:

40ª Ponto 22: - "O decurso do tempo sem tratamento potencia o aparecimento de lesões seque/ares e ficam também potenciados os riscos hemorrágicos, neurológicos e infecciosos, sendo que a taxa de infecção chega a atingir 40%, na ausência de tratamento."

41ª E o ponto 23 deveria ter sido dado como provado com a seguinte redacção - "O afastamento desses riscos e lesões podia ser efectuado com a realização da cirurgia que inclui a limpeza cirúrgica e a estabilização da fractura mediante a colocação de fixadores provisórios no membro superior direito, ainda que a imobilização com tala gessada, a limpeza da ferida feita com o soro e desinfectante e a administração de antibiótico diminua, temporariamente, esses riscos".

42ª Pelo que foram os pontos 22 e 23 incorrectamente julgados nos termos e para os efeitos do art. 412º nº 3 al. a) e al. b) do CPP, por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP.

43ª O tribunal a quo deu como provado no ponto 25 dos factos provados que: "A final, os arguidos não efectuaram o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da factura com osteotaxia, decorrido que fosse o prazo de seis a oito horas após a ingestão de alimentos.

44ª Fundou a sua convicção o tribunal no parecer do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal, complementado pelos esclarecimentos prestados em audiência pelo sr perito prof. doutor T... e em toda a prova testemunhal.

45ª Na verdade, e de toda a prova produzida, quer pericial, sr. prof. doutor T..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17716993 de 04/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 04/03/2013, das 14.29.31 às 15.39.57), quer testemunhal (testemunha D..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17851273 de 14/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 14/03/2013, das 15.17.17 às 16.31.15), testemunha G..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a ref 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 10.29.39 às 11.27.06. e das 11.38.51 às 12.48.53, testemunha F..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a ref 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 14.46.33 às 16.14.37, testemunha H..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18172806 de 12/04/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 12/04/2013, das 14.36.38 às 15.27.06, testemunha I..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18419291 de 06/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 06/05/2013, das 14.35.43 às 15.47.19, testemunha J..., constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 09.52.27 às 11.24.31, testemunha L..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 1010512013, das 15.28.40 às 16.43.27 e testemunha U..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 16.45.15 às 17.42.25), resultou claro que os arguidos não podiam, nem deviam ter internado de imediato o doente para o submeter à cirurgia ortopédica por não existirem condições de jejum por parte do doente.

46ª Na verdade, considera o recorrente que da prova produzida em audiência de julgamento apenas poderia ter sido dado como provado que:

47ª Ponto 25 "A final, os arguidos não efectuaram o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da factura com osteotaxia, decorrido que fosse o prazo de seis a oito horas após a ingestão de alimentos”.

48ª Pelo que foi o ponto 25 incorrectamente julgado nos termos e para os efeitos do art. 412º nº 3 al. a) e b) do CPP por violação do por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP.

49ª O ponto 27 foi dado como provado que: "Antes da transferência, não diligenciaram no sentido de averiguar se estes Hospitais dispunham dessa especialidade”.

50ª Contudo, da prova produzida, apenas poderia ter resultado a dúvida no tribunal a quo, já que o arguido recorrente e o arguido C... depuseram de maneira oposta, tendo contudo a testemunha E... corroborado as dificuldades que se sentiam muitas vezes em concretizar o contacto com os X....

51ª Assim, e tomando em conta a prova produzida, do ponto 27 dos factos provados apenas poderia ter sido dado como provado o seguinte:

52ª Ponto 27 "Antes da transferência, não lograram saber se estes Hospitais dispunham dessa especialidade."

53ª Pelo que foi o ponto 27 incorrectamente julgado nos termos e para os efeitos do art. 412º nº 3 al. a) e b) do CPP, por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP.

54ª O tribunal a quo deu como provado no pronto 45 que: "Estes dois arguidos não efectuaram novamente o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da factura com osteotaxia, quando o deviam e podiam ter feito, porquanto tinham conhecimentos para tal e existiam todas as condições para o efeito."

55ª E no ponto 46 como provado que: "Resolveram, antes e tão-só, prescrever medicação e deixar os cuidados médicos a prestar ao assistente, designadamente, a realização da cirurgia e a estabilização com osteotaxia, para os colegas da nova equipa do serviço de urgência de ortopedia que entraria de serviço às oito horas da manhã."

56ª O tribunal a quo fundou a sua convicção em toda a prova documental, pericial e testemunhal.

57ª Sobre esta matéria foi produzida prova quer pericial, sr. prof. doutor T..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17716993 de 04/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 04/03/2013, das 14.29.31 às 15.39.57), quer testemunhal (testemunha D..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17851273 de 14/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 14/03/2013, das 15.17.17 às 16.31.15), testemunha G..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 10.29.39 às 11.27.06. e das 11.38.51 às 12.48.53, testemunha F..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 17887531 de 18/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 18/03/2013, das 14.46.33 às 16.14.37, testemunha H..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18172806 de 12/04/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 12/04/2013, das 14.36.38 às 15.27.06, testemunha I..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18419291 de 06/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 06/05/2013, das 14.35.43 às 15.47.19, testemunha J..., constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 09.52.27 às 11.24.31, testemunha L..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/0512013, das 15.28.40 às 16.43.27 e testemunha U..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 16.45.15 às 17.42.25), considerando o recorrente que nenhum dos pontos 45 e 46 poderia ter sido dado como provado com a redacção com que foi.

58ª Na verdade, não existiam ainda condições de jejum por parte do doente que permitissem o seu internamento imediato para cirurgia.

59ª Por outro lado, o arguido e o seu companheiro de equipa encontravam-se de serviço há 22 horas, sendo que a equipa fresca que iria entrar ao serviço 2 horas depois estaria em melhores condições para realizar com sucesso a cirurgia a que houvesse que submeter o doente.

60ª Não existia risco para o doente, que se encontrava estabilizado, o que foi verificado pelo companheiro de equipa do arguido, que aliás prescreveu medicação (como é reconhecido no ponto 46 dos factos provados).

61ª Assim, da prova produzida apenas resultou matéria suficiente para dar como provado no ponto 45 "Estes dois arguidos não efectuaram novamente o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da factura com osteotaxia."

62ª E no ponto 46 "Resolveram prescrever medicação e deixar o tratamento definitivo a prestar ao assistente, designadamente, a realização da cirurgia e a eventual estabilização com osteotaxia, para os colegas da nova equipa do serviço de urgência de ortopedia que entraria de serviço às oito horas da manhã."

63ª Pelo que foram os pontos 45 e 46 incorrectamente julgados nos termos e para os efeitos do art. 412º nº 3 al. a) e b) do CPP, por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP.

64ª Nos pontos 67 e 68 dos factos provados foi erradamente dado como provado que as lesões que o Assistente sofreu resultaram de alguma forma do tratamento realizado pelo arguido B....

65ª Assim, do ponto 67 consta: "O assistente ficou, assim, com sequelas afectam de modo grave a utilização do seu corpo e a sua capacidade de trabalho, para além de o desfigurarem de forma grave e permanente (fls. 1088 a 1092).".

66ª E do ponto 68 que "Os arguidos sabiam que o assistente apresentava uma factura exposta de grau III traduzida em esfacelo grave do membro superior direito com fractura exposta e muito complexa do cotovelo e que essas lesões constituíam uma situação de urgência médica e representavam um perigo substancial para a integridade física dele, nos termos descritos, susceptível de afectar a saúde e de modo grave a utilização do corpo e a capacidade de trabalho dele e de o desfigurar de forma grave e permanente."

67ª Fundou a sua convicção o tribunal no parecer do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal, complementado pelos esclarecimentos prestados em audiência pelo sr. perito prof. doutor T... e em toda a prova testemunhal.

68ª Contudo, de acordo com as testemunhas ouvidas e também do perito médico sr. prof. doutor T..., as lesões/sequelas com que o assistente ficou resultam directa e exclusivamente do acidente gravíssimo de que foi vítima.

69ª Quanto a esta questão específica dos pontos 67 e 68, foi produzida prova pericial (sr. perito médico, prof. doutor T... que explicou, explicitou e esclareceu o parecer técnico-científico do Conselho Médico-Legal de fls 172 e ss, em sede de audiência de discussão e julgamento (constante da acta com a refª 17716993 de 04/03/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 04/03/2013, das 14.29.31 às 15.39.57) e bem assim prova testemunhal, (testemunha I..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento (constante da acta com a refª 18419291 de 06/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 06/05/2013, das 14.35.43 às 15.47.19), testemunha J..., depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento (constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 09.52.27 às 11.24.31.), e testemunha L..., no depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento (constante da acta com a refª 18466467 de 10/05/2013, gravado no sistema Habilus, referente à gravação de dia 10/05/2013, das 15.28.40 às 16.43.27), confirmando todos que as sequelas com que o assistente ficou se devem à fractura e à gravidade da mesma e não a qualquer ausência ou insuficiência do tratamento dos arguidos.

70ª Assim, e da prova produzida resulta que apenas poderia ter sido dado como provado no ponto 67 que "O assistente ficou com sequelas que afectam de modo grave a utilização do seu corpo e a sua capacidade de trabalho, para além de o desfigurarem de forma grave e permanente (fls 1088 a 1092), como resultado exclusivamente do acidente que sofreu.".

71ª E no ponto 68 "O assistente apresentava uma factura exposta de grau IlI traduzida em esfacelo grave do membro superior direito com fractura exposta e muito complexa do cotovelo, que tais lesões constituíam uma situação de urgência médica."

72ª Pelo que foram os pontos 67 e 68 incorrectamente julgados nos termos e para os efeitos do art. 412º nº 3 al. a) e b) do CPP, por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP.

73ª Nos termos do supra alegado e não tendo o arguido cometido o crime por que foi condenado, nem se encontrando preenchidos os requisitos do tipo legal de crime, deve o pedido de indemnização civil ser julgado improcedente por não provado.

74ª Na verdade, nenhum dano patrimonial ou não patrimonial sofrido pelo assistente se pode imputar a uma conduta (ou à ausência dela) do arguido recorrente.

75ª O arguido tudo fez para que ao assistente fossem prestados os melhores cuidados possíveis (pedido de cirurgia plástica, respeito pelo tempo de jejum e bem assim escolha de equipa fresca para realizar cirurgia).

76ª Sem prescindir, sempre se diga que o montante indemnizatório de € 9.000,00 (total) e de € 3.600,00 (parcial para o arguido recorrente) que foi fixado a título de danos não patrimoniais é manifestamente excessivo.

77ª Tendo, a este título, a sentença recorrida violado, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos art. 483, n.º 1, 562 e 566 do Código Civil».

E – C...

«1ª - A sentença de que se recorre padece de erros, não apenas quanto à apreciação e valoração da prova produzida em julgamento (testemunhal e pericial) com a consequente factualidade que deu como provada, bem assim na sua fundamentação e também na sua subsunção aos princípios legais aplicáveis

2ª - Importa desde já referir um facto essencial em todo este processo e que, pela sua relevância condicionou quer a acusação quer a defesa e o julgamento: A redacção inicial dos artigos da acusação (com base no parecer do Conselho Médico Legal) considerou a situação clínica como uma emergência ortopédica que obrigava a uma actuação clínica ortopédica de estabilização no mais curto espaço de tempo

3ª - A verdade clínica só foi reposta pelo perito médico legal, prof. T..., quando ouvido em julgamento e, referindo-se ao caso como urgência, respondeu de imediato e de forma muito instintiva - quando questionado se afinal era uma urgência ou emergência - que era uma urgência. Assumindo que o uso da palavra emergência no parecer fora um erro.

4ª - Ora, a sentença ponderou pouco ou nada esse facto que foi transversal ao processo - a redacção inicial dos artigos da acusação (com base no parecer do Conselho Médico Legal) considerou a situação clínica como uma emergência ortopédica que obrigava a uma actuação clínica ortopédica de estabilização no mais curto espaço de tempo - pois condicionou a acusação e a decorrente defesa do arguido C... (e dos restantes arguidos) quer em fase de instrução quer na fase de julgamento.

5ª - Daí que um facto essencial como o ter comido cerca de meia hora antes (registo da entrada no hospital) e ter sido medicado com morfina nem tivessem sido considerados.

6ª - Facto ainda mais relevante por, em emergência - o quadro da acusação - o tempo anestésico para realização do acto cirúrgico não poder ser respeitado por estar em causa a vida ou em perigo grave a integridade física.

7ª - Pois no caso concreto do doente - não sendo o caso uma emergência ortopédica - a boa prática médica não aconselhava a realização de qualquer acto médico que envolvesse anestesia geral, fosse a osteotaxia (sempre em bloco operatório com anestesia geral), fosse a limpeza cirúrgica em bloco operatório com anestesia geral, antes de decorridas no mínimo 8 horas.

8ª - Daí que os actos médicos imediatamente praticados - Antiobioterapia c/Tazobac, Morfina, Aspegic, Primperam, Voluven, limpeza, lavagem, penso com tala gessada - fossem os correctos e adequados pois a limpeza e desbridamento cirúrgicos bem como a osteotaxia imediata dependem de cada caso concreto, da avaliação clínica de cada doente.

9ª - Cuidados clínicos esses, conservadores, que, sem se substituírem à intervenção cirúrgica com lavagem, desbridamento e osteotaxia, afastaram o risco e estabilizaram o doente e,

10ª - afastaram ou permitiram tomar pouco provável os riscos descritos nos pontos 22 e 23.

11ª - O médico pode e deve, de acordo com a legis artis e considerando o estado e situação clínica do doente, actuar provisoriamente com a utilização de outros procedimentos na sala de emergência cirúrgica (onde se procede a actos cirúrgicos básicos e, em casos limite, alguns actos cirúrgicos mais avançados em caso de emergência e impossibilidade de acesso a bloco operatório) existentes nos serviços de urgência, nomeadamente nos hospitais de Aveiro e de Coimbra.

12ª - O que, no caso do doente, e quando da observação pela equipa do arguido C... foi efectuado - ver referência no processo clínico "refazer o penso" - com limpeza cirúrgica (com desbridamento simples, básico, envolvendo corte de tecidos necrosados) e lavagem com soro e desinfectante e cobertura com penso esterelizado e imobilização provisória com tala gessada.

13ª - O doente não estava na situação dita normal em termos anestésicos e estava estabilizado com intervenções conservadoras que permitiam e permitiram, com elevado grau de segurança (como se veio a revelar), afastar riscos elevados para a sua vida.

14ª - O arguido e a sua equipa observaram e trataram, estabilizando provisoriamente, a lesão e decidiram, assumindo o arguido C... essa decisão, reenviar o doente para Aveiro por entenderem em decisão clínica ser o melhor para o doente já que,

15ª - O doente iria necessitar de várias cirurgias subsequentes, era a sua área de residência, era o hospital competente e especialmente, por terem concluído da observação e avaliação clínica do doente, que não havia risco e era a melhor decisão clínica naquele quadro.

16ª - A decisão é claramente clínica com o mais - ter-se certificado em contacto telefónico com o colega médico de Aveiro de que podia reenviar o doente por não haver problemas na equipa de ortopedia de Aveiro que apenas o enviara para Coimbra por entender que carecia de cirurgia plástica.

17ª - Note-se que a expressão/palavra "imediata" do Artº 59º vem da acusação no pressuposto da situação dos autos se tratar de um caso de emergência. Ora, pelas razões já expostas não tem cabimento numa situação de urgência em que, para além de terem sido tomadas medidas clínicas conservadoras e estabilizadoras do doente, não há condições de efectuar a cirurgia de que vai necessitar, com anestesia em bloco operatório, devido à ingestão de alimentos e ao factor ainda mais condicionante do tempo anestésico, ter tomado morfina.

18ª - O arguido C... nunca configurou nem representou 'o perigo de grave lesão da integridade física do assistente, nem teve consciência da indispensabilidade e da adequação daqueles cuidados médicos que devia ter prestado e omitiu' pelo simples facto de, ele próprio e a sua equipa de médicos, terem observado o doente, efectuado um diagnóstico clínico de que o doente estava estabilizado e sem correr perigo relevante ou significativo que exigisse qualquer intervenção cirúrgica imediata.

19ª - Face ao afirmado no ponto A impugnam-se os pontos 20, 21, 22, 23, 40, 41, 68, 69, 70, 71, 72 os quais devem ser considerados como não provados

20ª - Da factualidade correctamente dada como provada retira-se, a nosso ver sem qualquer dúvida que o arguido C..., quer de per si quer enquanto chefe da equipa de urgência, actuou de acordo com a legis artis.

21ª - O tribunal invoca (cfr. a paginas 35 da sentença e seguintes) argumentos acessórios utilizados pelo arguido para explicar a sua conduta para procurar justificar a condenação.

22ª - Argumentos que apenas foram referidos após o arguido ter deixado claro (tal como resulta da prova produzida nos autos - cfr. o afirmado supra) que observou o paciente e praticou os actos clínicos que considerou e foram adequados à situação concreta.

23ª - Sendo que só depois de terem sido praticados todos os actos que considerou clinicamente adequados e necessários e, tendo inclusive ponderado o pós-operatório, é que decidiu remeter (e só após ter contactado previamente os médicos de Aveiro e confirmado que estes estavam em condições de o receber) o doente para Aveiro.

24ª - Os factos dados como provados não integram o tipo objectivo e subjectivo do crime de recusa de médico, p. e p. pelo art. 284º do Código Penal.

25ª - O tribunal a quo incorre em erro na compreensão e caracterização do tipo legal de crime em causa previsto no artigo 284º do C.P.

26ª - Sem conceder, o tipo de crime previsto no Artº 284º do C.P. não pune a violação das legis artis que regem a profissão médica.

27ª - Sendo que a violação das legis artis não é, enquanto tal, objecto de censura penal, outro sim pode relevar para efeitos de responsabilidade disciplinar e para efeitos de responsabilidade criminal na medida em que cause um dano ou um perigo criminalmente tipificado o que não se verifica no caso concreto.

28ª - Recusar o auxílio da profissão de médico, como violação do dever qualificado de solidariedade social que sobre esta profissão impende, não equivale a não adoptar os procedimentos terapêuticos que eventualmente se mostrassem mais adequados no caso.

29ª - O arguido prestou efectivamente o auxílio da sua profissão, cumprindo as regras de referenciação hospitalar, e a eventual distonia da sua actuação com as leges artis é irrelevante para o preenchimento do art. 284º do CP.

30ª - Por outro lado resulta claramente dos autos que o arguido não representou que o único meio de remover o perigo era proceder ele próprio (ou a sua equipa) a uma limpeza cirúrgica.

31ª - Depois do exame e do tratamento efectuado o arguido convenceu-se - bem ou mal, é irrelevante para este efeito - de que não se verificava qualquer perigo no seu envio para Aveiro.

32ª - Consequentemente, o arguido, em virtude dos seus conhecimentos e do exame do paciente, nunca sequer representou a existência do elemento "perigo", quando muito teria agido com erro.

33ª - Por tudo o exposto a sentença ora recorrida violou o Artº 284º do C.P. devendo em consequência ser revogada e o arguido absolvido em conformidade.

34ª - Acresce que, por não se verificar o incumprimento do dever médico de prestar auxílio nem a violação de um qualquer direito, nos termos expostos a sentença violou, ao condenar o arguido no PIC, os artigos 483º,496º, 562º e 566º do Código Civil».

A acompanhar o recurso o arguido C... juntou os seguintes documentos:

- um “parecer técnico-científico”, subscrito um professor auxiliar de ortopedia da FMUP e assistente graduado do hospital de S. João, do Porto, datado de 11-11-2013;

- um “parecer técnico-científico” subscrito por um médico especialista de ortopedia e traumatologia, chefe de serviço de ortopedia e diretor de serviços de ortopedia do CHVN Gaia/Espinho, datado de 8-11-2013;

- um “parecer” subscrito por um médico anestesiologista, datado de 12-11-2013.

Mais tarde juntou, também, um parecer jurídico, subscrito por um professor da FDUC, datado de 6-1-2014.

Todos os recursos foram admitidos.

3.

O assistente respondeu aos recursos da sentença, defendendo a manutenção do decidido.

Relativamente à alegada impossibilidade legal de subsumir as condutas ao crime de recusa de médico, invocada pelos arguidos A... e B..., diz que o que está em causa não são lesões efetivas, do art. 144º do Código Penal, mas a potencialidade da sua verificação, sendo certo que para o preenchimento do crime imputado basta o que consta do ponto 22.

Para além disso, defende, o crime de recusa de médico acontece não apenas quando o agente se recusa a prestar qualquer tipo de cuidados, mas também quando recusa prestar os cuidados médicos adequados, em tempo útil, à situação de perigo para a vida ou saúde determinados pelas leges artis.

Quanto à reclamada independência e liberdade de escolha dos meios de diagnóstico ou de tratamento dos médicos, diz que esta independência se move dentro das leges artis e a perícia realizada concluiu que os arguidos não respeitaram tais limites.

Sobre a impossibilidade de intervir cirurgicamente devido ao facto de o assistente ter comido recentemente, apenas referida em sede de recurso, como diz, alega que para além de os arguidos não terem invocado essa razão como motivo da sua não intervenção, a refeição feita, de conteúdo desconhecido, sempre teria que ter ocorrido antes das 22h.

Em relação à essencialidade da cirurgia plástica, que foi a razão destes arguidos terem enviado o assistente para o hospital de Coimbra, diz que as palavras do perito médico são esclarecedoras: quando está em causa uma lesão grave o médico tem que obedecer às leges artis e este dever de obediência afasta a discricionariedade que, em geral, ele tem quanto à escolha da metodologia a seguir.

Quanto ao facto de os arguidos também não terem realizado qualquer intervenção ao assistente quando este regressou a Aveiro, realça que neste momento a necessidade de cirurgia plástica já não foi invocada, sendo a razão avançada a circunstância do turno já ir longo e ser preferível que a intervenção fosse realizada por uma equipa fresca, portanto do turno seguinte. Recorda que os arguidos sabiam a situação do assistente, sabiam que ele não iria ficar em Coimbra e, não obstante, nem prepararam as coisas para o intervencionarem assim que ele chegasse, de novo, a Aveiro, e nem sequer o examinaram.

Sobre as contradições e erros notórios invocados, alega que a sentença é escorreita. Os arguidos invocam tais vícios na base de argumentos insubsistentes e manipulando os factos de que se servem.

Finalmente sobre as indemnizações fixadas, diz que devem ser mantidas pois os respetivos pressupostos foram preenchidos com a atuação dos arguidos.

Sobre o recurso do arguido C... começa por suscitar a questão da impossibilidade de junção de pareceres com as alegações de recurso, nos termos do nº 2 do art. 651º do novo C.P.C.

Quanto à alegação relativa à qualificação da situação como emergente, refere que o arguido, médico, especialista em ortopedia e professor de uma faculdade de medicina, teve conhecimento do relatório pericial desde sempre e nunca colocou em causa a qualificação feita, nomeadamente em sede de instrução.

Sobre a ingestão de alimentos, este facto também sempre constou da acusação, sendo que o período de jejum comummente apontado foi de 6 horas.

Relativamente à impugnação desferida aos factos 20 e 21, esta matéria insere-se num quadro de urgência ortopédica e assim deve ser entendida, situação de que o arguido era conhecedor, como ele próprio reconhece.

Realça o facto de o arguido retirar termos e expressões do contexto para esgrimir argumentos contra a decisão de as colocar na matéria assente.

Sobre o alegado cumprimento das leges artis, o relatório pericial é esclarecedor quanto à autação dos arguidos.

Quanto à subsunção dos factos ao art. 284º do Código Penal, refere que o tipo legal se preenche com a não prestação dos cuidados médicos indicados, pelo que a violação das legis artis é objeto de censura penal.

Assim, o tipo objetivo está preenchido, tal como o tipo subjetivo, já que o arguido conhecia a gravidade da lesão e o que fazer para afastar o perigo de infeção, sendo que não interveio por motivos infundados.

O Ministério Público também respondeu e também defendeu a manutenção do decidido.

Sobre a alegação dos arguidos A... e B..., de os factos não preencherem o crime imputado, refere que o tipo legal em causa se basta com o facto de, perante um determinado perigo grave, o agente estar obrigado a atuar, de acordo com as leges artis: se o perigo existe e se o médico dele tem conhecimento e se pode ministrar o tratamento adequado, não o fazendo comete o crime de recusa de acto médico.

Sobre qual o tratamento adequado ao caso, remete para a prova pericial produzida: o relatório pericial foi claro ao afirmar que o tratamento era a osteotaxia, a realizar no mais curto espaço de tempo possível.

E no caso a ministração deste tratamento era possível, pois que o assistente deu entrada num estabelecimento de saúde, foi presente a médicos que, portanto, tomaram conhecimento do seu estado de saúde, sendo que não havia qualquer impedimento técnico ou funcional para a prática imediata do tratamento devido no caso, e isto uma primeira vez no Hospital Y de Aveiro, pelas 23h, depois no hospital de Coimbra, por volta das 2h, e de novo no Hospital Y de Aveiro, às 5h30.

No entanto, e sem motivo válido, decidiram não praticar o acto médico necessário e imprescindível a afastar o perigo.

Quanto ao facto de o assistente ter comido antes do acidente que sofreu, refere que, sendo certo não se saber a que horas o assistente comeu e o que comeu, se os arguidos A... e B...tivessem a menor intenção de assistir o assistente, teriam aguardado para o poder fazer, ao invés de o enviarem para Coimbra.

Já em Coimbra o arguido C... omitiu o tratamento médico necessário e adequado ao caso, que sabia e podia prestar.

Quanto à verificação do elemento subjetivo do crime, ele é integrado por uma componente cognitiva e outra subjectiva. A componente cognitiva do dolo é constituída pelo conhecimento do médico sobre os factos que integram os elementos objectivos do tipo de crime em causa: a sua qualidade de médico, as circunstâncias de facto geradoras do perigo concreto, o conhecimento do ato adequado a minimizá-lo e a sua imprescindibilidade. Tudo isto se verifica no caso. Ao decidirem não atuar naquele circunstancialismo os arguidos completaram o quadro legal.

4.

Anteriormente o arguido B...interpusera recurso do despacho e indeferiu o pedido de retificação do despacho de saneamento do processo e do despacho que indeferiu a nulidade imputada ao despacho que procedeu à alteração dos factos, proferido na sessão de julgamento realizada em 12-7-2013, recursos admitidos a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e em cuja decisão declarou manter interesse.

No primeiro destes recursos apresentou as seguintes conclusões:

«1ª A decisão instrutória exclui expressamente – com clara e inequívoca fundamentação – do objecto da fase de julgamento a aduzida ilicitude do comportamento do arguido na fase que antecedeu a remissão do assistente para os X...´s;

2ª Na função de saneamento do processo que lhe atribui o art. 311º, nº 1, do CPP, o M.mo juiz, interpretando o teor da decisão instrutória, deveria ter excluído do objecto de julgamento as questões atrás aduzidas, por terem sido analisadas e excluídas expressamente pela decisão instrutória, a tal não obstando a declaração final genérica desta peça processual de remissão para as razões de facto e de direito constantes da acusação que, como é óbvio, só poderiam ser as remanescentes por ela, decisão instrutória, não excluídas do objecto de julgamento;

3ª Assim sendo violou a douta decisão recorrida, explicitada no esclarecimento de fls., por errada interpretação e aplicação, o disposto nos art. 308º, nº 1, 310º, nº 1, in fine, e 311º, nº 1, do CPP, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que decida em conformidade com o peticionado, assim se fazendo a habitual justiça».

O Ministério Público respondeu, concluindo pelo não provimento do recurso.

Refere que o despacho que designa data para julgamento contem, sob pena de nulidade, os factos e normas aplicáveis, o que pode ser feito por remissão.

Aqui o juiz analisa o cumprimento das normas regulamentares, não podendo manifestar-se sobre a suficiência dos indícios.

Refere, ainda, que o arguido poderia ter recorrido da pronúncia, na medida em que não pronunciou pelos factos constantes da acusação, o que não fez.

O assistente também respondeu dizendo que o juiz de julgamento decidiu sujeitar os arguidos a julgamento, nos precisos termos constantes da decisão instrutória que, por sua vez, remete para a acusação. O arguido não recorreu da decisão instrutória e não pode, agora, atacá-la, recorrendo do despacho em questão.

No recurso do despacho que indeferiu a nulidade imputada ao despacho que procedeu à alteração dos factos concluiu do seguinte modo:

«1ª O despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 358º, nº 1, do CPP, que determina alteração do objecto factual da acusação só pode ser proferido se os novos factos resultarem da audiência de discussão e julgamento e mais ainda se tiverem relevância para a decisão da causa, conforme aquele preceito determina;

2ª Tais pressupostos devem ser afirmados e fundamentados por despacho que decida usar de tal faculdade, de modo a que o arguido, que estruturou a sua defesa em função do objecto da acusação, tal qual ela lhe foi notificada, possa impugnar a legalidade de tal despacho, no sentido de defender que se não encontravam verificados aqueles pressupostos, como exige o ónus de fundamentação legal constante da lei ordinária (art. 97º, nº 5, do CPP) e supra ordinária (art. 205º, nº 1, do CPP);

3ª O direito ao exercício do contraditório sobre tal questão resulta com clareza do disposto na lei ordinária (art. 283º nº 1 e 315º, nº 1, do CPP) e do próprio travejamento constitucional (art. 32º, nº 1 e 5, da CRP);

4ª E radica sempre, em consonância, na possibilidade de o arguido poder defender que o objecto do processo se deve manter estável, com a consagração, em concreto, da vinculação temática do tribunal ao teor do libelo acusatório, despido de qualquer alteração, em cumprimento do princípio constitucional do acusatório consagrado no art. 32º, nº 5, da CRP;

5ª Ao decidir alterar o objecto da acusação, sem qualquer justificação, para além da referência à norma do art. 358º, nº 1, do CPP, violou o douto despacho recorrido o princípio da vinculação temática imposto pelo princípio do acusatório (art. 32º, nº 5, da CRP) e o dever geral de fundamentação que deve presidir a todo o acto jurisdicional decisório (art. 97º, nº 5, do CPP e art. 205º, nº 1, da CRP);

6ª Sendo que, na interpretação concreta que o douto despacho recorrido faz do art. 358º, nº 1, do CPP, no sentido de a alteração não substancial aí prevista se bastar com a respectiva comunicação ao arguido, sem necessidade de fundamentação, fica aquele preceito a padecer de inconstitucionalidade material por violação dos princípios constitucionais da legalidade, do acusatório e do direito ao contraditório previsto nos art. 32º, nº 1 e 5 e 205º, nº 1, da CRP);

7ª Devia pois o douto despacho recorrido ter atendido a nulidade invocada pelo arguido e, por força do disposto no art. 120º, nº 2, alínea d), do CPP, proceder à fundamentação correspondente, de modo a permitir o exercício do contraditório, assim respeitando o disposto nos preceitos legais invocados nas conclusões antecedentes, que assim se acham violadas».

O assistente respondeu.

Alega que o despacho que decide a alteração não substancial dos factos se basta com a comunicação da nova realidade a considerar, sendo que o dever de fundamentação se cumpre com a indicação que tal alteração resultou da discussão da causa. Assim, aquele despacho não padecia de qualquer nulidade. Entender de modo diferente significa que no referido despacho o juiz antecipasse a decisão final, aduzindo aqui os fundamentos que devem constar da sentença.

Quanto ao princípio do contraditório, ele foi amplamente respeitado, pois que o arguido pronunciou-se sobre tal alteração através de requerimentos escritos e com apresentação de novas provas.

Para além disso não estamos perante um acto decisório do art. 97º, do C.P.P.

O Ministério Público também respondeu, alegando que se o recurso se dirige ao despacho que determinou a alteração não substancial dos factos, resulta que tal recurso é extemporâneo.

Relativamente à alegada nulidade, refere que ela não consta do elenco dos art. 119º e 120º do C.P.P.

Quanto à norma do art. 358º do C.P.P., refere que ela se destina a proteger os arguidos de decisões surpresa. Comunicada a alteração o arguido ou alega que a prova produzida não conduz àquela alteração ou requer prova suplementar que afaste a possibilidade de considerar provados os novos factos.

Quanto à fundamentação dos novos factos, ela só é exigível em sede de motivação da sentença, se eles vierem a ser julgados como provados. A fundamentação anterior equivaleria a obrigar a fundamentar factos não julgados provados.

5.

Nesta Relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer.

Sobre os recursos interlocutórios diz que a faculdade de, no despacho que designa dia para julgamento, os factos a julgar poderem ser indicados por remissão para a acusação ou pronúncia decorre da circunstância de serem estas peças que delimitam o objeto do processo e quanto à necessidade de o despacho que procede à alteração não substancial dos factos estar fundamentado, não se tratando de ato decisório não carece da fundamentação proposta pelo arguido.

Quanto ao mais, entende que a sentença recorrida não padece de qualquer vício nem incorreu em qualquer erro de julgamento, pelo que quer a matéria de facto, quer a decisão final devem manter-se.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

O arguido B...respondeu, relembrando que os esclarecimentos prestados pelo perito médico o ilibam, completamente.

O assistente pronunciou-se sobre o conteúdo do parecer jurídico.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.


*

*


FACTOS PROVADOS

6.

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

«1. No dia 20 de Maio de 2007, pelas 22 horas, o assistente V... teve um acidente de viação, quando seu veículo automóvel onde seguia se despistou e foi embater contra um muro.

2. Devido aos ferimentos sofridos, foi socorrido e transportado pelo INEM ao hospital Y... de Aveiro.

3. Apresentava traumatismo do membro superior direito, com fracturas, e foi-lhe prescrito pelo médico do INEM e administrado Voluven (500cc), Metoclopramida (1 ampola) e Morfina (6+2+2) (fls. 29 e 30).

4. Pelas 22h 50m, chegou ao hospital Y... de Aveiro e deu entrada nos serviços de urgência.

5. Efectuada a triagem, foi-lhe atribuída prioridade vermelha, com queixa inicial de “acidente de viação com esfacelo do braço direito” e “hemorragia exsanguinante” (fls. 28).

6. Foi encaminhado imediatamente para a sala de emergência.

7. Aí, foi observado pelo médico especialista em cirurgia geral E.... (com a cédula profissional 36 340), assistido pela enfermeira FF... (nº 2 943).

8. Foram colocadas talas a imobilizar membro superior direito, que se apresentava sangrante.

9. Foi efectuado raio-x ao tórax e ao membro superior direito.

10. Foi-lhe colocada sonda nasogástrica, por se apresentar nauseado.

11. Foi-lhe prescrito pelo médico e foi-lhe administrado, designadamente, pelas 23 horas, Tazobac 4,5 g, Aspegic 1 gr e Morfina 0,6 pelos enfermeiros FF... (nº 2943) e GG... (nº 2901) (fls. 26 verso e 31).

12. Avaliado o estado do assistente, foi identificado esfacelo grave do membro superior direito com fractura exposta e muito complexa do cotovelo.

13. Encontrava-se estável a nível hemodinânico e foram excluídas lesões traumáticas crâneo-encefálicas, abdominais ou torácicas que pusessem em perigo a vida do assistente nos momentos ou horas imediatas e excluídas lesões passíveis ou a carecer de tratamento por cirurgia geral.

14. Assim, após observação, dada a inexistência de lesões do foro de cirurgia geral e a necessidade de tratamento das lesões descritas por ortopedia, foi encaminhado para esta especialidade.

15. Na informação clínica, foi exarado pelo referido médico especialista EE... o seguinte registo:

“Esfacelo do membro superior direito com fractura exposta do cotovelo. Sem outras lesões. Já fez 10mg de morfina + metoclopramida 1 amp. Pedido análises + Rx MSD e tórax. Comeu há meia hora. Coloca-se SNG. Alta da cirurgia. Para orientação para ortopedia (rubrica do médico) nº ordem 36340” (fls. 26).

16. Nessa noite, no serviço de urgência de ortopedia do hospital Y... encontravam-se de serviço o arguido B...(com a cédula profissional nº 19 275) e o arguido A... (com a cédula profissional nº 34 487), médicos especialistas em ortopedia, aos quais coube toda a observação do assistente e a determinação da assistência médica e da medicação a efectuar.

17. Os dois arguidos não pertenciam aos quadros do hospital e iam aí prestar serviço de ortopedia através da empresa “ K..., Lda”, sendo inclusivamente esta empresa que procedia à sua selecção, recrutamento, organizava a escala de serviço (fls. 653) e pagava aos médicos, não exercendo qualquer controlo quanto à forma como o serviço era efetuado, dentro da instituição hospitalar.

18. No serviço de urgência não existia a especialidade de cirurgia plástica.

19. Após observação, foram identificadas pelos arguidos no membro superior direito do assistente as seguintes lesões: fractura exposta grau III do cotovelo, fractura do terço inferior diáfise umeral, fractura multiesquilorosa supra e intracondiliana do úmero, fractura cominutiva do terço proximal do cúbito, fractura do taciculo radial, lesão do nervo radial e esfacelo extenso com perda considerável de substância da região posterior do cotovelo.

20. A descrita fractura exposta de grau III constitui uma urgência ortopédica e, segundo a boa prática médica, deve ser imediatamente (logo de início) estabilizada com osteotaxia e sujeita a limpeza cirúrgica (desbridamento), feita mediante anestesia e no bloco operatório,

21. Esse tratamento deve ser efetuado no mais curto espaço de tempo possível, sendo de preferência efetuado antes de decorridas 6 horas.

22. O decurso do tempo sem o tratamento descrito potencia o aparecimento de lesões sequelares e ficam também potenciados os riscos hemorrágicos, neurológicos e infecciosos, sendo que a taxa de infecção chega a atingir 40%, na ausência de tratamento.

23. O afastamento desses riscos e lesões só podia ser efectuado com a realização imediata da cirurgia que inclui a limpeza cirúrgica e a estabilização da fractura mediante a colocação de fixadores provisórios no membro superior direito, ainda que a imobilização com tala gessada, a limpeza da ferida feita com soro e desinfectante e a administração de antibiótico diminua, temporariamente, esses riscos.

24. Observado o assistente, foram efectuados penso, limpeza e lavagem da ferida e imobilização gessada do membro superior direito.

25. A final, os arguidos não efectuaram o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da fractura com osteotaxia, quando o deviam e podiam ter feito, porquanto tinham conhecimentos para tal e existiam todas as condições para o efeito, decorrido que fosse o prazo de seis a oito horas após a ingestão de alimentos.

26. Resolveram, antes, transferi-lo para os Hospitais X... por entenderem que carecia de cuidados de cirurgia plástica.

27. Antes da transferência, não diligenciaram no sentido de averiguar se estes hospitais dispunham dessa especialidade.

28. O serviço de urgência dos X... não tinha cirurgia plástica entre as 0h e as 9h.

29. Na informação clínica, foi exarado pelo arguido B...o seguinte registo:

“fractura exposta grau III do cotovelo E

lesão do nervo radial e esfacelo extenso com perda de substância do cotovelo E

fractura 1/3 inferior diáfise umeral

fractura multiesquilorosa supra e intracondiliana úmero E

fractura cominutiva do 1/3 proximal cúbito E

fractura tacicula radial E

Transf. p/ Coimbra por falta de C. Plástica (rubrica de médico - 19275” (fls. 26 verso).

30. Na ficha de transferência do doente, foi exarado pelo arguido B...o seguinte registo:

“Diagnóstico provisório/definitivo

- fractura exposta grau III do cotovelo E

- fractura 1/3 inferior diáfise umeral E

- fractura multiesquilorosa supra e intracondiliana úmero E

- fractura cominutiva do 1/3 proximal cúbito E

- fractura taciculo radial E

- lesão do nervo radial

- v. compromisso art. cubital E

- esfacelo extenso com perda considerável de substância da região posterior cotovelo E

Realizou:

Prof. Antib. c/ Tazobac 4,5 g

Morfina 0,6 cc + 10 cc

Aspegic 1 f. IV

Primperan 1 f. IV

Voluven 500 cc

Limpeza e lavagem.

Penso + tala gessada posterior … (rubrica do médico) nº da ordem 19275)" (fls. 32).

31. Pela 1h 20m, foi transportado em ambulância medicalizada, com acompanhamento pelo enfermeiro GG..., aos Hospitais X..., onde chegou às 2h05m (fls. 32).

32. Pelas 2h 11m deu entrada no serviço de urgência e fez a triagem, com o diagnóstico de "politraumatismo (esfacelo) do membro superior direito" (fls. 36).

33. Foi observado em cirurgia geral pela médica interna que lhe deu alta e pediu orientação pelos colegas de ortopedia (fls. 37 e 38).

34. Foi, então, encaminhado para o serviço de ortopedia onde se encontrava de serviço, na qualidade de chefe de equipa de ortopedia, o arguido C..., especialista em ortopedia (médico com a cédula profissional nº 25 358).

35. Como o assistente foi sem qualquer contacto prévio do Hospital Y de Aveiro, o arguido C... falou telefonicamente com o arguido A... que lhe afirmou que lhe enviava o assistente porque carecia de cuidados de cirurgia plástica.

36. Informou o colega de Aveiro que o serviço de urgência dos Hospitais X... não tinha cirurgia plástica entre as 0h e as 9h e que, se o tivesse contactado previamente, não se teria justificado esse envio.

37. Disse-lhe ainda que, após avaliação do assistente, se não se justificasse uma actuação emergente da parte da equipa de ortopedia dos Hospitais X... lho iria devolver e reforçou a necessidade de o mesmo ser operado e de lhe serem aplicados fixadores externos.

38. Entretanto um dos médicos da equipa verificou a viabilidade do membro e refez-se o penso, constatando ausência de sangramento significativo e função da mão conservada.

39. Entendeu o arguido e os outros médicos que faziam parte da equipa de urgência que não existia indicação para cirurgia plástica imediata, que, à data, nem sequer era de prever enquanto não houvesse condições de estabilidade óssea e definição da massa cutânea e muscular.

40. O arguido, como chefe de equipa, não efectuou o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da fractura com osteotaxia, quando o devia e podia ter feito, porquanto tinha conhecimentos para tal e existiam todas as condições para o efeito decorrido que fosse o prazo de seis a oito horas após a ingestão de alimentos.

41. Resolveu, antes, reenviá-lo para o hospital Y... de Aveiro para aí ser efectuada lavagem, limpeza cirúrgica e estabilização do cotovelo, por entender que a cirurgia e aplicação dos fixadores externos estava ao alcance de qualquer equipa de ortopedia de urgência.

42. Na respectiva informação clínica, exarou o seguinte registo: “Doente enviado do Hosp. de Aveiro, sem qualquer contacto prévio, sem qualquer justificação para indicação do porquê da sua vinda. Contactado o Hospital Y de Aveiro falou-se com o colega de ortopedia, que referiu tratar-se de uma situação a justificar cirurgia plástica. O doente deu entrada no Hosp. Aveiro às 22:58 e chegou aos X... às 2:11. Reabriu-se penso que se refez – não há indicação para cobertura plástica imediata (nem sequer é de prever enquanto não houver condições de estabilidade óssea e definição da massa cutânea e muscular). Acresce que a partir das 0 h não há Cirurgia Plástica nos X....

O doente apresenta ausência de sangramento significativo e função da mão conservada. Atendendo ao seu estado geral o doente pode regressar ao Hosp. de Aveiro, para lavagem, limpeza cirúrgica e estabilização do cotovelo…, o que está ao alcance de qualquer equipa de ortopedia de urgência” (fls. 38).

43. Posto isto, o assistente regressou de ambulância ao Hospital Y de Aveiro, onde chegou às 5h 28m (fls. 40).

44. É encaminhado para o serviço de urgência de urtopedia onde ainda se encontravam em funções o arguido B...e o arguido A... e o enfermeiro GG....

45. Estes dois arguidos não efectuaram novamente o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da fractura com osteotaxia, quando o deviam e podiam ter feito, porquanto tinham conhecimentos para tal e existiam todas as condições para o efeito.

46. Resolveram, antes e tão-só, prescrever medicação e deixar os cuidados médicos a prestar ao assistente, designadamente, a realização da cirurgia e a estabilização com osteotaxia, para os colegas da nova equipa do serviço de urgência de ortopedia que entraria de serviço às oito horas da manhã.

47. Assim, após o regresso do assistente ao Hospital Y de Aveiro, o arguido B...exarou na informação clínica o seguinte registo:

“Doente reenviado dos X... (ver proc. anterior) rubrica nº de ordem 19275” (fls. 34).

48. Por sua vez, o enfermeiro GG... exarou nas “notas de enfermagem" o seguinte registo:

"5:44 – contactado ortopedista de serviço refere para doente ficar para amanha para nova equipa, para administrar paracetamol se dor …(rubrica 2901)" (fls. 34 verso).

49. E no registo da medicação administrada ao doente consta:

"Paracetamol 1g IV SOS

Cefazolina 2g IV 6-6 7h30

Gentamicina 240 mg IV dia 7h30…" (fls. 34 verso).

50. Às 8 horas, houve mudança na escala da equipa médica no serviço de urgência de ortopedia e entraram ao serviço o médico especialista em ortopedia D... (com a cédula profissional nº 40934) e o médico especialista assistente graduado em ortopedia dr. N....

51. O médico D... observou o assistente.

52. Prescreveu-lhe, e foi-lhe administrada, pelas 9h 05m, Petidina (50 mg IM) e Metoclopramida (1 ampola EV) (fls. 34 verso).

53. Pelas 9h 15m, decidiu pelo internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia (fls. 35 verso e 27 verso e 43).

54. A cirurgia teve início às 9h 25m, e nela intervieram como operador o médico N... e como ajudante, entre outros, o referido médico D....

55. Foram efectuados limpeza e desbridamento cirúrgico, osteotaxia do úmero e encavilhamento do cúbito.

56. Da folha operatória consta o seguinte registo:

“- doente em decúbito dorsal

- preparação asséptica MSD

- lavagem abundante da ferida com SF (soro fisiológico) + betadine espuma

- RAF (redução aberta e fixação) côndilos umerais com fios K (kirschen) em cruz

- osteotaxia diáfise umeral dta com fixador Hoffman e 4 cravos Hoffman (2+2) na diáfise umeral + 2 craves na diáfise radial. Encavilhamento … diáfise umeral com fio de K.

- RAF com fio de K e cerclage com fio dos fragmentos da # cominutiva do 1/3 proximal da diáfise do cúbito

- controlo sob intensificador de imagem

- encerramento da pele com fio não reabsorvível com pontos de encerramento das feridas e alguns de aproximação

- mantém exposição (…) (fls. 48).

57. Foi sujeito a nova operação em 28/06/2007 e a outra operação em 27/07/2007, primeiro para estabilização definitiva das fracturas e posteriormente para remoção da osteotaxia mantida (fls. 45 verso, 53 e 46 verso).

58. Teve alta a 8 de Agosto de 2007.

59. Foi tratado na HH... de Aveiro de 23/10/2007 a 15/05/2008, data da alta definitiva.

60. Aí foi operado novamente em 21/11/2007 e em 27/02/2008 (fls. 901 a 903 e 1018 a 1023).

61. Fez fisioterapia para recuperação da mobilidade e força muscular.

62. Em 11/03/2009, constata-se consolidação da fractura do úmero com placas e parafusos, fractura do cotovelo que teve perda de osso no rádio e no cúbito e grandes perdas de partes moles, pseudoartrose grave do cotovelo com instabilidade articular e rigidez na extensão que só atinge 120º (fls. 879 e 887).

63. Em 14/10/2010, foi sujeito a exame médico-legal, constatando-se que o assistente apresentava as seguintes lesões: cicatriz com depressão profunda e perda de massa muscular, abaixo do cotovelo, no terço superior da face posterior do antebraço com 14cmx12cm, que inclui enxerto cutâneo; apenas 30º de extensão e cerca de 90º de flexão do antebraço; atrofia muscular do braço e do antebraço; três cicatrizes operatórias verticais, no braço, a maior com 15cm, posterior, do terço médio ao cotovelo; cicatriz operatória no antebraço, no terço médio do bordo lateral com 9,5cmx1,5cm.

66. Tais lesões determinaram 361 dias para a consolidação, todos com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

67. O assistente ficou, assim, com sequelas que afectam de modo grave a utilização do seu corpo e a sua capacidade de trabalho, para além de o desfigurarem de forma grave e permanente (fls. 1088 a 1092).

68. Os arguidos sabiam que o assistente apresentava uma fractura exposta de grau III traduzida em esfacelo grave do membro superior direito com fractura exposta e muito complexa do cotovelo e que essas lesões constituíam uma situação de urgência médica e representavam um perigo substancial para a integridade física dele, nos termos descritos, susceptível de afectar a saúde e de modo grave a utilização do corpo e a capacidade de trabalho dele e de o desfigurar de forma grave e permanente.

69. Os arguidos sabiam também que, na situação concreta, conhecidas as lesões e a situação de perigo, os únicos cuidados médicos susceptíveis de eliminar esse perigo eram a imediata sujeição a cirurgia para limpeza cirúrgica e a estabilização logo de início com osteotaxia e que tinham o dever específico de os prestar, por ser a única forma de afastar tal perigo e por terem os conhecimentos e as condições necessárias para os prestar.

70. Não obstante isso, os arguidos quiseram não prestar esses cuidados médicos imediatos indispensáveis e adequados a remover tal perigo, comportamento omissivo que o arguido C... teve quando, observado o assistente em Coimbra, nada fez e o reenviou para Aveiro, para serem os arguidos B...e A... a realizarem a cirurgia e a estabilização com osteotaxia e comportamento omissivo que estes dois arguidos também tiveram quando assistiram o assistente pela primeira vez e o enviaram para Coimbra e que reiteraram quando, reenviado o assistente de Coimbra, nada fizeram e o deixaram para a equipa médica seguinte, sendo que foi esta que veio a realizar tal cirurgia cerca de onze horas depois da produção das lesões e da entrada do assistente no Serviço de Urgência do Hospital Y de Aveiro.

71. Dessa forma, os arguidos representaram o perigo de grave lesão da integridade física do assistente, tinham consciência da indispensabilidade e da adequação daqueles cuidados médicos que deviam ter prestado e omitiram e, dessa forma, violaram o dever que lhes incumbia de proceder de imediato a limpeza cirúrgica e à estabilização da fractura com osteotaxia e de, assim, prestar a concreta assistência médica que se lhes impunha de acordo com o conjunto de regras recomendadas pela ciência e técnica médicas, e, não obstante isso, conformaram-se com esse perigo, demonstrando uma atitude de indiferença perante a situação.

72. Agiram sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas e proibidas pela penal.

73. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

74 - Durante as onze horas que esperou pela cirurgia o ofendido sentiu muitas dores, sofrimento, incerteza e angústia, causadas pela ausência de cuidados médicos.

Sentiu-se abandonado, sem vislumbrar o alcance dos cuidados que deveria receber, não sendo informado sobre a sua situação ou tratamentos a adoptar

75. Por contrato de seguro titulado pela apólice 54603030, em vigor na data a que os presentes autos se referem, o demandado B... havia transferido a responsabilidade civil por eventuais danos decorrentes da sua actividade profissional, até ao montante de 75.000 € para a Companhia de Seguros II....

76. Consta do art. 6º a) das condições gerais que o presente contrato exclui:

a) A responsabilidade decorrente de actos ou omissões dolosas do segurado (…) bem como por actos ou omissões que constituam violação consciente de normas legais ou regulamentos”

77. O demandado C... era e é médico em regime de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado no então Hospital X... era e é médico em regime de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado no atual Centro Hospitalar X... - actual Centro Hospitalar X....

78. O demandado C... celebrou com a Seguradora CC ... um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional titulado pela apólice n.º 525003176, nos termos do qual a Seguradora se obrigou a indemnizar terceiros por danos emergentes de actos médicos praticados pelo demandado no exercício da sua profissão.

79. Nos termos do art. 2 ponto 1.2 das condições especiais do contrato de seguro

“Ficam expressamente excluídas as reclamações derivadas de:

(…)

g) actos dolosos ou derivados do incumprimento voluntário de normas legais, éticas ou profissionais aplicáveis.

80. O assistente recebeu da JJ... Companhia de Seguros S.P.A a quantia de 72.500 € relativa à indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do acidente referido no ponto 1 da matéria provada.

81. As redes de referenciação hospitalar constituem sistemas através dos quais se pretende regular as relações de complementaridade e de apoio técnico entre os hospitais e centros hospitalares do SNS, contribuindo para que cada um possa responder com eficiência e qualidade às necessidades de saúde da população que serve.

82. As redes de referenciação hospitalar refletem a oferta existente e possibilitam que a organização da rede hospitalar de prestação de cuidados seja efetuada numa óptica de complementaridade entre as diferentes instituições, assegurando, nas diversas especialidades médico-cirúrgicas, a articulação funcional entre hospitais do SNS, de modo a garantir que a prestação de cuidados ocorra no local que apresente a diferenciação técnica e tecnológica capaz de disponibilizar a resposta que é exigida pela situação clínica do doente.

83. O arguido B...exerce funções no Centro Hospitalar do LL....

Aufere 1800 € por mês a que acrescem os rendimentos provenientes da medicina privada que também exerce.

Tem encargos mensais fixos de 1100 €/mês. Não tem ninguém a seu cargo.

84. O arguido A... exerce funções no Hospital MM... em Lisboa.

Aufere 1800 € por mês a que acrescem os rendimentos provenientes dos serviços de urgência que faz através de uma empresa de contratação de serviços.

Tem um encargo de 210.000 € de crédito à habitação. Não tem ninguém a seu cargo.

85. O arguido C... exerce funções nos X....

Aufere cerca de 2500 € a que acrescem os rendimentos provenientes da medicina privada que também exerce.

Tem encargos fixos de 3650 € mensais (despesas de lar da mãe, crédito bancário, despesas com filha a cargo).

86. Todos os arguidos são considerados, pelos colegas de profissão, médicos competentes, zelosos e interessados pelos doentes».

7.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:

«- nos CRCs de fls. 1692 a 1694

- no documento de fls. 6, mormente no que se refere à fotografia do ofendido, sendo nela bem patente a lesão que o mesmo apresentava.

- Na informação de fls. 23 e 24 que identifica o pessoal médico e de enfermagem que contactou com o ofendido, quer através do nome quer através do seu número mecanográfico (usado nos elementos clínicos como elemento identificador).

- Nos registos clínicos constante de fls. 26 a 32 dos autos que descreve a forma como o ofendido foi atendido no Hospital Y..., desde que aí deu entrada às 22h50m até que foi transferido para Coimbra. Estes registos suportam a matéria factual vertida nos pontos 2 a 16 e 19e 29 a 31 da matéria provada.

- No registos clínico dos X..., constantes de fls. 37 a 39 - Da leitura desse registo se extrai que o ofendido vindo do Hospital Y de Aveiro, chegou a Coimbra às 02h11m foi primeiro visto na cirurgia e depois enviado para a ortopedia, onde o médico que o viu escreveu o que consta da acusação.

Estes registos suportam a matéria factual dos pontos 31 a 35, 38 a 39, 41 e 42.

- Nos registos clínicos de fls. 34 e 35 que retratam o atendimento dado ao ofendido desde que foi reenviado dos X... às 5h28 m até que é internado cerca das 09h15.

Desse registo é patente que a equipa médica nada fez para além de anotar “doente reenviado dos X...”.

Das notas de enfermagem é que resulta que contactado o ortopedista de serviço, este refere que o doente deve ficar para a equipa seguinte. Não é apresentada qualquer justificação para esse facto.

Dos registos clínicos constante de fls. 26 a 32 também resulta que o doente foi visto e medicado cerca das 09h00 da manhã, tendo os médicos que nessa altura estavam de serviço procedido ao seu internamento.

Estes registos suportam a matéria constante dos pontos 44 a 53 dos factos provados.

- Nos registos de fls. 41 a 110 que documentam os tratamentos efetuados no Hospital Y... desde a altura do internamento até à data da alta.

Estes registos suportam a matéria constante dos pontos 54 a 58.

Nas informações de fls. 213 e 214 e 423/424 relativas à identidade do pessoal médico e de enfermagem que viu o assistente.

Nos documentos de fls. 633 e 648 relativo à situação em que o arguido B...prestava serviço no Hospital Y....

- No documento de fls. 652 relativo à escala dos ortopedistas de serviço no Hospital Y... na data em questão, escala organizada pela empresa K....

No documento de fls. 677 quanto à situação em que o arguido A... prestava serviço no Hospital Y....

No documento de fls. 680 no que se refere ao transporte do assistente para Coimbra.

No documento de fls. 879 e 887 relativo às lesões que o ofendido apresentava a 11/03/2009

Nos documentos de fls. 901 a 903 e 1018 a 1021 quanto aos tratamentos realizados na HH...

No relatório de perícia de avaliação do dano corporal constante de fls. 1089 e ss;

No documento de fls. 1934 e ss relativo à indemnização recebida pelo ofendido (ponto 77 da matéria provada.

Nos documentos de fls. 1945 a 1953 relativo ao contrato de seguro celebrado entre o arguido B... e a Companhia de Seguros II ....

Nos documentos de fls. 1975 a 1980 relativo ao contrato de seguro celebrado entre o arguido C... e a CC ....

No documento de fls. 2707 relativo à rede de serviços de urgência e de referenciação hospitalar.

No parecer técnico científico de fls. 172 e ss, elaborado pelo Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal, onde se entende que houve, por parte das duas instituições hospitalares envolvidas, procedimentos desadequados e reveladores de má prática médica da parte das equipas ortopédicas.

Refere-se nesse parecer também que “uma fractura exposta de grau III constitui uma emergência ortopédica e deveria ter sido logo estabilizada como manda a boa prática. A taxa de infecção chega a atingir os 40% se ultrapassarem as primeiras 6 horas e o aparecimento de lesões sequelares fica claramente potenciado.

O doente em causa só foi operado 10 horas após o acidente e sem recurso a médicos de cirurgia plástica. Se se entendia que a lesão podia necessitar do envolvimento de outras especialidade deveria ter sido estabilizada com osteotaxia o mais rapidamente possível. Fazê-lo tantas horas depois vai potenciar os riscos hemorrágicos, neurológicos e infecciosos.

Este parecer foi depois complementado com os esclarecimentos prestados pelo seu subscritor que precisou e detalhou ou rectificou alguns termos nele usados.

Foi sobre o teor deste parecer que, maioritariamente depuseram as testemunhas arroladas sendo também juntos elementos que visaram pôr em causa o teor das conclusões deste parecer.

Assim:

O arguido veio juntar parecer elaborado pela Ordem dos Médicos – Colégio da Especialidade de Ortopedia (fls. 2338 e ss dos autos e 2282 e ss dos autos)

Aí se refere a propósito dos quesitos elaborados pelo arguido

- não estava em causa uma situação de emergência médica que pressupõe risco de vida, uma vez que a situação hemorrágica estava controlada. Contudo a limpeza cirúrgica da ferida de qualquer fractura exposta deve ser realizada no mais curto espaço de tempo possível de forma a reduzir o risco de infecção.

- No período agudo da evolução da fractura não está indicado o seu encerramento, nomeadamente com recurso a técnicas cirúrgicas específicas da área de actuação da cirurgia plástica.

- A estabilização com fixador externo embora importante na grande maioria das fracturas expostas grau II e III, pode ser realizado posteriormente, desde que a limpeza cirúrgica e uma imobilização provisória sejam efetuados no tratamento inicial.

- o tipo de fractura em causa condiciona invariavelmente sequelas definitivas.

- As medidas tomadas (lavagem mecânica e química da ferida e administração de antibióticos e imobilização com tala gessada) poderão justificar a ausência de infecção, sendo que o risco de infecção, no entanto, está sempre presente.

- Da actuação da equipa de Coimbra não resultou qualquer risco para a vida ou para a integridade física do doente

- As modernas estatísticas em que se comprova que o desbridamento cirúrgico quando realizado até às 12 horas sobre a lesão não acarreta riscos significativos de infecção quando comparados com a clássica janela das 6 horas carecem de demonstração de evidência científica.

Conclui o referido relatório que “não sendo a situação clínica uma emergência médica (perigo de vida) deve no entanto ser efetuado tratamento cirúrgico no mais curto espaço de tempo.

Assim, os procedimentos clínicos realizados não foram incorrectos mas insuficientes nas duas instituições”.

Foi igualmente junto parecer elaborado por médico especialista com competência em peritagem médica da Segurança Social e Competência em Avaliação do Dano Corporal (fls. 2344 e ss) com as seguintes conclusões:

- O sinistrado foi devidamente acompanhado durante todas as suas fases de tratamento hospitalar.

- a primeira acção terapêutica de profilaxia da infecção foi realizada no HIDP nas primeiras três horas após a fractura e, portanto, muito antes das seis horas referidas na consulta técnico-científica ou das dez horas correspondentes ao chamado tempo livre de Friedrich.

- transferido para os X..., onde deu entrada pelas duas horas e onze minutos, alegadamente por necessitar da intervenção da cirurgia plástica (?!), constatou-se não haver indicação para a referida participação da cirurgia plástica ou reconstrutiva, pelo que o doente foi devolvido para o HIDP como mandam as normas procedimentais hospitalares de encaminhamento de doentes neste tipo de situações.

Nesta conformidade, não existiu qualquer falha nos procedimentos adoptados no tratamento do sinistrado em causa, tendo sido cumpridas, no essencial, todas as regras deontológicas e científicas e respeitados os procedimentos institucionais em exercício para a Rede de Referenciação Hospitalar de Urgência/Emergência.

- as sequelas resultantes do traumatismo ficam a dever-se à gravidade da lesão óssea e articular que atingiu o cotovelo do sinistrado;

- não existe no processo qualquer indício de sepsis aguda ou de infecção crónica residual a que se possa imputar o agravamento de lesões ou o potenciar de eventuais disfunções residuais.

Note-se que este relatório mais não é do que o depoimento desta testemunha passado a escrito.

Foi igualmente junto um artigo de 2012 de uma revista científica “The Journal of Bone and Joint Surgery, Incorporated” no qual se conclui que “Os dados não apontaram para uma relação entre o desbridamento tardio e uma taxa mais elevada de infecções, tendo em conta a totalidade das infecções, apenas as infecções graves ou apenas as lesões mais graves provocadas por fraturas expostas. Com base nesta análise, a “regra das seis horas” histórica tem pouca fundamentação na literatura existente. É importante entender que há necessidade de estudos adicionais cuidadosos e que não se recomenda o atraso discricionário do tratamento de pacientes com fracturas expostas.

Foram ouvidos os arguidos B...e A.... Depuseram no sentido de terem enviado o doente para Coimbra por, em seu entender, dever existir, no caso, uma intervenção multidisciplinar, com intervenção da cirurgia plástica, para reconstituição dos tecidos moles. O arguido A... afirmou que tentou contactar o hospital de Coimbra, não existindo, no entanto qualquer registo da chamada. Nunca colocaram a hipótese de não existir urgência de cirurgia plástica. Não conhecem a rede de referenciação hospitalar.

Quando o doente voltou de Coimbra não tornaram a ver a ferida e não começaram a intervenção cirúrgica porque, possivelmente, não teriam tempo de a terminar e porque a situação estava estável. Confirmaram que, antes do reenvio do doente foram contactados pelo colega de Coimbra.

Quanto ao arguido C... afirmou que, no caso, não estava minimamente indicada a intervenção da cirurgia plástica, pelo que o doente nunca deveria ter sido transferido para Coimbra, que, aliás, não tem urgência desta especialidade, no período nocturno. Assim, quando o doente chegou a Coimbra, na falta de cirurgia plástica, foi enviado para a ortopedia, onde o arguido estava de serviço. Aí o doente foi observado, e constatando-se que a situação estava estável, foi reenviado para Aveiro, por ser o hospital do domicílio do doente, sendo o competente para o tratar segundo a rede de referenciação hospitalar. Contactou com os colegas de Aveiro que nada opuseram ao reenvio. Não lhe foi transmitido que não operariam o doente. Se o tivessem feito, teria feito ele a intervenção cirúrgica em Coimbra. Mais disse que o doente não correu qualquer risco por ser reenviado para Aveiro pois que a ferida estava limpa, a lesão imobilizada e o doente estava com cobertura antibiótica.

Disse ainda que a cirurgia plástica nas fracturas com a gravidade da presente, nunca deve intervir na fase aguda da lesão, havendo primeiro que imobilizar o osso através de uma osteotaxia (fixador externo). Aliás, a ferida não deve ser fechada pois que podem existir tecidos necrosados, que só se venham a manifestar depois.

Foi ouvido o perito médico que realizou o relatório constante de fls. 173 e ss, prof. doutor T... que especificou que o parecer é uma decisão colegial, sendo o relatório elaborado de acordo com a opinião dos membros do Conselho médico-legal.

Reforçou o conteúdo do relatório, afirmando que a primeira intervenção teria de ser sempre da ortopedia, só tendo cabimento a intervenção da cirurgia plástica numa fase posterior.

Mais disse que numa fractura como a que está em causa deve haver logo uma limpeza cirúrgica isto é uma limpeza feita no bloco operatório, e que implica a remoção de todos os tecidos mortos (desbridamento) e a imobilização da fractura através da colocação de fixadores externos (osteotaxia). Só mais tarde poderá surgir interesse na intervenção da cirurgia plástica.

Quanto ao período de seis horas, é o período aconselhado, sendo óbvio que nem sempre pode ser respeitado. O que é certo é que a intervenção deve ser feita o mais depressa possível, para prevenir o risco de infecção, que existe sempre apesar de poder ser minorado com a administração de antibióticos.

No caso, não houve omissão de tratamento mas tratamento insuficiente, quer em Aveiro, quer em Coimbra.

Precisou ainda que se está perante um caso de urgência e não de emergência.

Quanto às sequelas que o doente ainda hoje apresenta elas são compatíveis com o tipo de lesão, não sendo possível concluir que foram agravadas pela demora do tratamento.

Foi ouvido o assistente que relatou o que aconteceu nessa noite, narrando ter sido visto primeiro em Aveiro, sendo depois transferido para Coimbra e regressando a Aveiro. Não percebe por que razão foi para Coimbra e de novo transferido para Aveiro, sendo que nada lhe foi explicado quanto a essas transferências. Depois que chegou de novo a Aveiro, vestiram-lhe uma bata e esteve à espera, no corredor, numa maca até cerca das 8h00, altura em que foi visto por médicos. Cerca das 09h30 m disseram-lhe que ia ser operado. Durante todo este tempo sentiu dores, tinha frio, ninguém lhe explicou o que estava a acontecer, dizendo para esperar. Sentiu que ninguém queria tratar dele.

A testemunha Natália, companheira do assistente, confirmou a sensação de abandono que o mesmo sentiu.

Foram ouvidas as testemunhas EE..., cirurgião, e GG..., enfermeiro que viram o assistente na noite do acidente, no Hospital Y de Aveiro, e que confirmaram os registos clínicos.

A primeira testemunha afirmou que quando há perda de tecidos moles, a cirurgia plástica deve intervir mas só num segundo momento. A prioridade é recuperar a funcionalidade do membro.

A testemunha NN..., enfermeiro nos X... e que nessa noite estava de serviço afirmou não se lembrar da situação.

Foram ouvidos os médicos D... e N... que entraram de serviço às 8h00, sendo estes os médicos que operaram o doente.

Receberam o doente sem terem tido qualquer contacto por parte dos arguidos, só tendo conhecimento da situação pela observação do doente e pela consulta dos registos clínicos. Explicaram ainda que, na altura, existia uma relação tensa com a administração do hospital por causa do pagamento das horas extraordinárias, estando o serviço de urgência a ser assegurado por equipas que não pertenciam aos quadros do hospital e com as quais não tinham qualquer contacto, não havendo passagem de turno.

Afirmaram que o que eles fizeram por volta das 09h00, deveria ter sido feito quando o doente chegou ao hospital por volta das 23 horas, não existindo motivo para a sua transferência para Coimbra. No essencial confirmaram o teor do depoimento do perito médico.

Disseram ainda que a operação por si realizada durou cerca de duas horas.

Foram ouvidas diversas testemunhas arroladas pelos arguidos, todos médicos ortopedistas. As testemunhas G..., chefe de serviço de ortopedia do hospital D. Maria, F... e H..., ortopedistas no Hospital das LL ... e E..., na altura ortopedista do Hospital Y..., foram arrolados pelos arguidos B...e A....

Todos afirmaram que no tipo de fratura em questão pode haver interesse na intervenção da cirurgia plástica, logo num primeiro momento, pelo que entendem que os arguidos fizeram bem em enviar o doente para Coimbra. É usual existir um contacto prévio, mas este nem sempre é feito.

Acham normal que os arguidos não tivessem posto a hipótese de não existir urgência de cirurgia plástica em Coimbra, no período nocturno, sendo que em Lisboa existe urgência de cirurgia plástica 24 horas por dia.

Atendendo ao envio do doente para Coimbra, o tipo de imobilização usado – imobilização gessada – era o indicado, devendo a imobilização com fixadores externos (osteotaxia) ser feita no hospital de Coimbra, em colaboração com a cirurgia plástica. De igual forma, considerando que o doente ia ser transferido para Coimbra, não se justificava a realização de um desbridamento cirúrgico (que inclui anestesia) em Aveiro, sendo suficiente uma lavagem abundante da ferida.

Quanto ao facto de os arguidos não terem começado a cirurgia quando o doente lhes é devolvido de Coimbra, entendem esse facto pois que tal aconteceu quase no fim da urgência de 24 horas, estando os arguidos, naturalmente, cansados.

O período de seis horas após o acidente, considerado habitualmente como o aconselhado para se fazer a intervenção cirúrgica, está ultrapassado com a cobertura antibiótica que é feita atualmente.

Foram também ouvidos os médicos J..., M..., W... (estes dois últimos na noite em que ocorreram os factos também estava de urgência nos X...), L..., director de serviço do Hospital PP ... e U..., director de serviço, dos X..., todos arrolados pelo arguido C....

Todos afirmaram que, no caso, não estava indicada qualquer intervenção da cirurgia plástica, num primeiro momento.

As testemunhas M... e W... observaram o doente e constataram a lesão que o mesmo tinha. Afirmaram que, como o doente vinha referenciado para a cirurgia plástica, esta não era necessária e não existia no momento nos X..., decidiram reenviar o doente para Aveiro, por ser este o hospital da sua residência e não existir inconveniente para a saúde do mesmo nesse reenvio. Mais disseram que, na altura, disso foi dado conhecimento ao doente que nada opôs.

Explicaram ainda as testemunhas M... e J... que a rede de referenciação hospitalar pressupõe que os hospitais centrais acolham apenas as situações que não possam ser tratadas pelos hospitais locais, sendo que a aceitação de todos os casos que lhes venham mal encaminhados pode gerar um entupimento de serviços e impedir mesmo que situações, de facto merecedoras de tratamento em hospitais centrais, sejam tratadas de forma conveniente, por os meios disponíveis estarem ocupados em tarefas da competência dos hospitais locais.

Particularmente impressivo foi o depoimento da testemunha L... que depôs de forma muito clara, isenta e objectiva, demonstrando ter um conhecimento profundo da matéria, para além de demonstrar ter grande prática médica. É professor do Instituto de Ciências Biomédicas. Apesar de ter sido arrolado pelo arguido C... não hesitou em depor de forma contrária aos interesses deste, quando entendeu que assim devia fazer.

O seu depoimento foi, por isso, particularmente importante e relevante.

Depôs de forma muito concordante com o perito médico T....

De forma categórica, negou o interesse na intervenção da cirurgia plástica num primeiro momento.

Mais disse que a intervenção cirúrgica deve ser feita no mais curto espaço de tempo possível e assim que estiverem reunidas as condições para tal (por exemplo não ter o doente comido há pouco tempo) a fim de prevenir o risco de infecção (através da lavagem cirúrgica, sendo que a lavagem mecânica diminui esse risco mas não com a mesma eficácia) e o risco de lesões secundárias (através da osteotaxia, tipo de mobilização indicada para o caso, sendo que a tala gessada embora diminua esse risco não o faz com a mesma eficácia).

Assim, em sua opinião, o doente não deveria ter sido transferido para Coimbra, sendo que qualquer ortopedista tem competência para tratar da lesão em causa.

Uma vez que houve transferência, e estando o doente estabilizado, através de lavagem da ferida, imobilização gessada e administração de antibióticos admite que pudesse ser reenviado para Aveiro. No entanto, ele não o teria feito, estando o doente em sofrimento físico e psicológico. Em sua opinião, o colega de Coimbra deveria ter tratado o doente e depois, se entendia que tinha havido um envio abusivo, comunicar a situação à administração hospitalar a fim de evitar que envios sem sentido voltassem a acontecer.

Mais disse que na área do país onde trabalha (o Hospital PP ..., recebe doentes de toda a zona norte do país) nunca se envia um doente sem contacto prévio, sendo esta uma norma observada por todos os profissionais.

Foi ainda focado por quase todas as testemunhas que, caso o doente tivesse comido, como foi o caso, a cirurgia deveria ser protelada pelo período de seis horas a oito horas, devido aos riscos de uma anestesia durante o decurso desse tempo. Só em circunstâncias absolutamente excepcionais, e caso haja perigo eminente para, a vida esse prazo não é respeitado.

Algumas conclusões são claras e facilmente extraíveis do teor dos documentos juntos e dos depoimentos ouvidos:

- em causa estava uma urgência médica e não uma emergência médica (que implica risco de vida).

- decorre dessa situação de urgência que embora não tenha de existir intervenção imediata, sob pena de a vida do doente perigar, essa intervenção tem de ser feita o mais depressa possível, assim que estiverem reunidas todas as condições;

- embora os perigos de infecção sejam grandemente minorados com a limpeza da ferida e a administração de antibióticos, esse perigo existe sempre enquanto não existir uma limpeza cirúrgica ou desbridamento (isto é uma limpeza feita no bloco operatório, e que implica a remoção de todos os tecidos mortos),

- a osteotaxia é o sistema de imobilização indicado para o caso, só devendo ser usado outro meio de imobilização com motivo justificado.

- no caso não houve agravamento das condições de saúde do doente causadas pelo protelamento do tratamento.

Se estas conclusões são claras porque todas as testemunhas e relatórios são unânimes, outras conclusões implicam uma apreciação crítica sobre a prova produzida, pois que aspectos houve em que existe uma clara discrepância entre os depoimentos das testemunhas ouvidas. E aqui assume particular relevância saber se no caso, era ou não necessária a intervenção da cirurgia plástica ou reconstrutiva, num primeiro momento e antes da fixação provisória por osteotaxia, como foi defendido pelos arguidos B...e A..., justificando assim o envio para Coimbra.

Ora, ponderada toda a prova produzida, fica a convicção forte que, num primeiro momento, e neste tipo de lesão, nunca é aconselhável a intervenção da cirurgia plástica. De facto, nesse sentido, foram absolutamente cristalinos quer o relatório do Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal quer o parecer elaborado pela Ordem dos Médicos – Colégio da Especialidade de Ortopedia.

Ora, quanto ao relatório do Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal este tem um valor probatório que se presume subtraído à livre apreciação do julgador, nos termos do art. 163º n.º 1 do CPP.

Para que a convicção do julgador possa divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve essa convicção ser fundamentada.

Não parece, assim, que seja suficiente para abalar o juízo pericial que o julgador fique com dúvidas sobre o conteúdo da perícia. O julgador tem de se convencer que esse juízo pericial está errado e fundamentar porquê.

No entanto, note-se que, no caso, não restaram, sequer, duvidas ao julgador quanto à veracidade do conteúdo da perícia.

De facto, ambos os relatórios acima aludidos merecem toda a credibilidade, provindo de instituições que dão garantia de isenção e competência.

Foram confirmados, de forma impressiva, quer pelo perito médico, quer pela já referida testemunha L..., quer pelos médicos que operaram o assistente, quer pelos médicos que atenderam o assistente em Coimbra, quer pelo próprio arguido C..., quer por todos os restantes médicos que foram arrolados por este arguido.

Os depoimentos das testemunhas arroladas pelos arguidos B...e A..., não foram convincentes ao ponto de porem em causa quer os relatórios juntos quer o depoimento das testemunhas ouvidas.

De facto, todas elas trabalham ou trabalharam já com algum dos arguidos B...ou A..., tendo com estes um relacionamento pessoal.

Desconhece-se qual seja a sua competência técnica. No entanto, não existindo qualquer motivo para duvidar do teor do relatório elaborado pelo Conselho Médico legal e do relatório elaborado pelo Colégio de Especialidade, ambos integrados por reconhecidos médicos, como atestam aliás os seus graus académicos, relatórios confirmados por outros médicos da especialidade, a sua opinião terá, sem dúvida, de prevalecer.

Passando agora à fundamentação da convicção de que os arguidos agiram com intenção de não prestar auxílio médico ao doente

Como já se disse não existem dúvidas quanto à absoluta desnecessidade de enviar o doente para Coimbra.

Quanto à real intenção dos arguidos (poderia dizer-se que agiram de forma errada do ponto de vista cientifico, mas convencidos de que essa era a melhor forma de tratar o doente) também não restam dúvidas de que os arguidos não quiseram de facto tratar o doente. Aliás qualquer dúvida fica completamente dissipada face à conduta dos arguidos A... e B...quando, de novo, recebem o doente, reenviado de Coimbra (reenvio que lhes foi previamente comunicado e ao qual nada opuseram).

Ao invés de começarem de imediato a prepararem a operação e operarem o ofendido de imediato, logo que chegasse a Aveiro ou justificarem a razão da não operação imediata, limitam-se a remeter o doente para a equipa que entraria em funções mais de duas horas depois, sem qualquer explicação ou indicação de motivo, fosse ele qual fosse (mesmo cansaço, como foi praticamente unanimemente focado por todas as testemunhas e admitido pelo perito médico que afirmou compreender a posição dos arguidos neste segundo momento), cansaço que, se admite, pudesse existir.

O doente não tornou a ser visto pelos médicos, nem estes se preocuparam em lhe dar qualquer explicação ou conforto, sendo certo que este já esperava tratamento desde cerca das 23 h.

Ora, conjugando estes dois momentos, primeiro o envio desnecessário para Coimbra e depois o recebimento do doente reenviado de Coimbra e que continuam a não tratar, sem qualquer justificação, não restam dúvidas que a intenção real dos arguidos foi a de não prestar o tratamento necessário e, porventura, complexo de que o doente necessitava, “mandando o gato para quintal alheio”, como, impressivamente, foi dito por uma das testemunhas.

Passando agora à análise da conduta do arguido C..., os factos são claros como absolutamente clara foi a intenção do arguido. Não há dúvida que viu o ofendido, verificou que este não corria risco imediato para a sua vida ou integridade física.

Concluiu que não necessitava de tratamentos que só pudessem ser efetuados em hospital central.

Assim, reenviou-o para o local do seu domicílio para aí ser tratado.

Qualificar esta conduta é já matéria de direito de que a seguir se tratará.

Quanto ao facto de o doente ter comido pouco antes do acidente, tal é focado nos relatórios médicos. No entanto, em nenhum local é apontado esse motivo para o protelamento da cirurgia, sendo que, considerando o prazo mínimo de seis horas, poderia ser operado cerca das 04h00 da madrugada.

Este prazo foi largamente debatido já em sede de produção suplementar de prova, ao abrigo do art. 358º do CPC.

Nesse âmbito foram ouvidas as testemunhas O..., P..., Q..., R...reinquirida a testemunha G... e inquirido a testemunha S..., todos médicos ortopedistas, com exceção do último que é anestesista.

Depuseram também quanto ao tipo de limpeza aconselhada, depondo de forma praticamente unânime no sentido de que uma lavagem abundante sem intervenção no bloco operatório e acompanhada da administração de antibióticos é adequada no caso de não estarem reunidas as circunstâncias para se proceder à limpeza cirúrgica (que no entanto é o tratamento mais eficaz, como também resultou da maioria dos depoimentos).

No caso esta não seria possível pois só é feita após a administração de anestesia a qual não podia ser efetuada uma vez que o ofendido tinha comido.

Não se duvida que, de facto, antes das 04horas da manhã ou 6 horas da manhã, considerando o prazo de 8 horas após a ingestão de alimento, o ofendido não pudesse ser operado. De facto, como depuseram todas as testemunhas inquiridas já nesta fase de produção suplementar de prova, só havendo perigo eminente para a vida, o que não era o caso, se fazem intervenções cirúrgicas nesse intervalo de tempo após a ingestão de alimentos.

No entanto, nada resulta da conduta dos médicos que esta tenha sido a razão para a não operação (aliás este argumento de defesa já aparece numa altura tardia do processo). E obviamente, essa impossibilidade de facto de proceder à limpeza cirúrgica e osteotaxia não explica o envio do doente de Aveiro para Coimbra e depois novamente para Aveiro, nem explica porque razão o ofendido não foi operado quando regressou a Aveiro, quando já tinham decorrido as 8 horas de intervalo após a ingestão de alimentos.

Foi dito pelos médicos que atenderam o ofendido em Coimbra que, quando o reenviaram para Aveiro, disso lhe foi dado conhecimento e obtida a sua concordância, pois que todos os posteriores tratamentos ocorreriam também em Aveiro. No entanto, estes depoimentos são contrariados, de modo inequívoco, pelo depoimento do ofendido, sendo de presumir que se esse reenvio estivesse dependente da concordância do doente, os médicos, nomeadamente o arguido C..., fizesse constar esse facto do relatório clínico que elaborou, conforme fez constar tudo o mais, descrito nos factos provados.

Em sede de últimas declarações, o arguido C..., falou de uma quezília pessoal, antiga, existente entre si e o perito médico T... e, aparentemente, ainda não resolvida. Não se crê que esse mau relacionamento pessoal possa pôr em causa o juízo pericial. De facto, nunca ao longo de todo o processo essa questão foi levantada, só o sendo já depois das alegações finais. Ora não se crê possível que, se o arguido entendesse que esse mau relacionamento o prejudicasse, não levantasse a questão mais cedo ainda em sede de inquérito, instrução, em sede de contestação ou mesmo no decurso do julgamento, directamente ou através do seu mandatário. Fazê-lo numa altura em que já está encerrada a fase de produção de prova, não confere qualquer seriedade a uma hipotética dúvida que se pudesse lançar sobre a isenção do perito e não abona a favor da conduta processual do arguido.

Os arguidos prestaram depoimento no que se refere às suas condições pessoais.

No que se refere ao pedido de indemnização civil em que é demandada a K... foi ouvida a testemunha OO..., funcionária da mesma. Explicou que a empresa selecciona e recruta os médicos, consoante as necessidades que lhes são apresentadas pelos hospitais. Essa selecção e recrutamento são feitos através de anúncios. É a empresa que paga aos médicos, mas estabelecem com os mesmos uma relação de prestação de serviços, não existindo qualquer poder de direcção da empresa sobre os médicos. Estes trabalham segundo as regras dos hospitais onde prestam serviços».


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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação são as seguintes as questões a decidir:

A – Recursos interlocutórios

1º – recurso do despacho que designou dia para julgamento

I – Violação do disposto nos art. 308º, nº 1, 310º, nº 1, in fine, e 311º, nº 1, todos do C.P.P. por, no âmbito da função de saneamento, o juiz não ter excluído do objecto de julgamento as questões expressamente dele excluídas pela decisão instrutória

2º – recurso do despacho que indeferiu a nulidade imputada ao despacho que procedeu à alteração dos factos

I – Violação do princípio da vinculação temática imposto pelo princípio do acusatório, do art. 32º, nº 5, da Constituição, e do dever geral de fundamentação dos atos decisórios, dos art. 205º, nº 1, da Constituição e 97º, nº 5, do C.P.P., por a senhora juíza ter procedido à alteração do objeto da acusação sem ter fundamentado o decidido, para além da referência à norma do art. 358º, nº 1, do C.P.P.

B – Recursos da sentença

1º – recursos dos arguidos A... e B...

I – Impossibilidade de, perante os factos, configurar o crime de recusa de médico

II – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

III – Vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão

IV – Vício do erro notório na apreciação da prova

V – Impugnação da decisão que condenou em indemnização

2º – recurso do arguido C...

I – Impugnação da decisão da matéria de facto

II – Impugnação do enquadramento jurídico dos factos

3º – recurso do assistente V...

I – Impugnação do montante indemnizatório fixado

4º – recurso da demandada K...

I – Impugnação da condenação em indemnização


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A – Recursos interlocutórios

1º – Recurso do despacho que designou dia para julgamento

Na sequência de queixa apresentada por V..., entretanto constituído assistente, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos imputando-lhes a prática de um crime de recusa de médico, do art. 284º do Código Penal.

Os arguidos requereram a abertura de instrução, o que foi atendido, finda a qual foi proferida pronúncia, onde se decidiu:

- que o envio do assistente para o hospital de Coimbra por parte dos arguidos A... e B...não integrava a previsão do art. 284º do Código Penal, porque «foi feito um diagnóstico e estabelecido um plano de tratamento imediato, cuja execução» estes arguidos puseram em marcha;

- quanto à atuação do arguido C... em Coimbra e dos arguidos A... e B...quando o assistente regressou ao Hospital Y de Aveiro, foram as respetivas condutas qualificadas como integrando a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de recusa do medido, do art. 284º do Código Penal.

Remetido o processo para julgamento, foi proferido o seguinte despacho:

«Tribunal é o competente.

O MP tem legitimidade para promover o processo penal.

Inexistem nulidades insanáveis ou questões prévias ou incidentais de que cumpre conhecer, susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa.

Autue como processo comum singular.

Recebo a pronúncia contra os arguidos A..., C... e B...pelos factos e disposições legais constantes de fls. 1200 e ss e 1673 e ss dos autos que aqui se têm por reproduzidos.

Nos termos do art. 312º, nº 1 e 2 do CPP designo para audiência de julgamento o dia 17 de Setembro de 2012, pelas 9.30h, no tribunal judicial de Aveiro.

Em caso de adiamento, desde já fica fixado o dia 24 de Setembro de 2012, pelas 9h30m, neste tribunal.

Pedido de indemnização …

Estatuto coactivo …».

O arguido entende que, de acordo com a função de saneamento atribuída por lei a este despacho, a senhora juíza deveria ter excluído do objecto de julgamento as questões dele excluídas na decisão instrutória. Ao não o fazer violou os art. 308º, nº 1, 310º, nº 1, in fine, e 311º, nº 1, do C.P.P.

O art. 308º do C.P.P., que integra o capítulo relativo ao encerramento da instrução, determina, no seu nº 1, que «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia».

O art. 310º termina aquele capítulo e versa sobre a recorribilidade do despacho que pronúncia.

O art. 311º, com a epígrafe “saneamento do processo”, inicia o capítulo relativo ao julgamento, e diz:

«1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.

2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

d) Se os factos não constituírem crime».

O arguido invoca a violação do art. 311º do C.P.P. porque, em respeito pela norma, este despacho devia ter afastado do âmbito dos poderes de cognição do tribunal de julgamento o conhecimento das questões que a decisão instrutória havia afastado.

Nos termos da lei o dever do juiz de sanear o processo circunscreve-se à decisão das nulidades, das questões prévias e/ou das questões incidentais de que possa, desde logo, conhecer.

Aqui «manda a lei que o juiz examine o processo e se certifique da inexistência de motivo impeditivo do conhecimento do seu objecto … Deverá verificar, pois, da eventual ocorrência de qualquer circunstância, seja de natureza substantiva, seja de natureza adjectiva, que impeça o conhecimento da questão de fundo. Podem impedir a apreciação do mérito a existência de invalidade processual, excepção dilatória ou peremptória, bem como a ocorrência de causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo» 1.

A questão invocada pelo arguido não integra o instituto das nulidades nem se configura como questão prévia ou incidental que possa impedir o conhecimento da questão de fundo, pois aqui do que se trata é do conhecimento de questões relativas aos pressupostos processuais ou de natureza substantiva que obstem ao conhecimento da questão de fundo, como, por exemplo, a prescrição.

E, no caso, não surgiu qualquer obstáculo a este conhecimento. O que sucedeu é que a decisão instrutória deu novos contornos à questão.

Portanto, o tribunal recorrido não cometeu qualquer violação de lei no que respeita ao despacho de saneamento dos autos.

Quanto ao despacho, proferido em simultâneo com o anterior, que designa dia para julgamento deste têm que constar os factos e as disposições legais aplicáveis, o que pode ser feito por remissão para a acusação ou para a pronúncia, conforme permite a al. a), do nº 1 do art. 313º do C.P.P.

No caso o despacho que designou dia para julgamento declarou receber «a pronúncia contra os arguidos A..., C... e B...pelos factos e disposições legais constantes de fls. 1200 e ss e 1673 e ss dos autos que aqui se têm por reproduzidos».

Portanto, também nesta parte foi cumprida a lei.

Improcede, por isso, o recurso.

Fixa-se em 4 UC´s a taxa de justiça, devida pelo arguido.


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2º – Recurso do despacho que indeferiu a nulidade imputada ao despacho que procedeu à alteração dos factos

Entretanto deu-se início ao julgamento e na sessão de 12-7-2013 foi proferido o seguinte despacho:

«Após a realização da audiência de julgamento e produção de toda a prova entende-se que se deve alterar a matéria vertida na acusação da seguinte forma:

O ponto 20 passa a ter a seguinte formulação:

A descrita fractura exposta de grau III constitui uma urgência ortopédica e, segundo a boa prática médica, deve ser imediatamente (logo de início) estabilizada com osteotaxia e sujeita a limpeza cirúrgica (desbridamento), feito mediante anestesia e no bloco operatório.

O ponto 21 passa a ter a seguinte formulação:

21 – Esse tratamento deve ser efectuado no mais curto espaço de tempo possível, sendo de preferência efectuado antes de decorridas 6 horas.

O ponto 22 passa a ter a seguinte formulação:

22. O decurso do tempo sem o tratamento descrito potencia o aparecimento de lesões sequelares e ficam também potenciados os riscos hemorrágicos, neurológicos e infecciosos, sendo que a taxa de infecção chega a atingir 40%, na ausência de tratamento.

O ponto 23 passa a ter a seguinte formulação:

23. O afastamento desses riscos e lesões só podia ser efectuado com a realização imediata da cirurgia que inclui limpeza cirúrgica e a estabilização da fractura mediante a colocação de fixadores provisórios no membro superior direito, ainda que a imobilização com tala gessada, a limpeza da ferida com soro fisiológico e desinfectante e a administração de antibiótico diminuam, temporariamente, esses riscos.

O ponto 25 fica com a seguinte formulação:

Afinal os arguidos não efectuaram o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da fractura com osteotaxia, quando o deviam e podiam ter feito, porque tinham conhecimentos para tal e existiam todas as condições para o efeito, decorrido que fosse o prazo de seis a oito horas após a ingestão de alimentos.

O ponto 40 fica com a seguinte formulação:

40. O arguido não efectuou o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da fractura com osteotaxia, quando o deviam e podiam ter feito, porquanto tinha conhecimentos para tal e existiam todas as condições para o efeito decorrido que fosse o prazo de seis a oito horas após a ingestão de alimentos.

O ponto 45 fica com a seguinte formulação:

45. Estes dois arguidos não efectuaram novamente o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da fractura com osteotaxia, quando o deviam e podiam ter feito, porquanto tinham conhecimentos para tal e existiam todas as condições para o efeito.

O ponto 69 fica com a seguinte formulação:

69. Os arguidos sabiam também que, na situação concreta, conhecidas as lesões e a situaçãod e perigo, os únicos cuidados médicos susceptíveis de eliminar esse perigo eram a imediata sujeição a cirurgia para limpeza cirúrgica e a estabilização logo de início com osteotaxia e que tinham o dever específico de os prestar, por ser a única forma de afastar tal perigo e por terem os conhecimentos e as condições necessárias para os prestar.

O ponto 71 fica com a seguinte formulação:

71. Dessa forma os arguidos representaram o perigo de grave lesão da integridade física do assistente, tinham consciência da indispensabilidade e da adequação daqueles cuidados médicos que deviam ter prestado e omitiram e, dessa forma, violaram o dever que lhes incumbia de proceder de imediato a limpeza cirúrgica e à estabilização da fractura com osteotaxia e de, assim, prestar a concreta assistência médica que se lhes impunha de acordo com o conjunto de regras recomendadas pela ciência e técnica médicas e, não obstante isso, conformaram-se com esse perigo, demonstrando uma atitude de indiferença perante a situação.

Dos pontos que ficaram elencados entende-se que constitui alteração não substancial dos factos as expressões:

- limpeza cirúrgica (desbridamento), feito mediante anestesia e no bloco operatório;

- esse tratamento deve ser efectuado no mais curto espaço de tempo possível;

- a expressão limpeza cirúrgica repetida nos diversos pontos acima elencados.

Assim só estas expressões poderão ser sujeitas a nova produção de prova só se tendo reproduzido os pontos de facto provados acima elencados para contextualizar as expressões referidas.

Estas alterações constituem uma alteração não substancial dos factos, nos termos do art. 358º, nº 1, do C.P.P., pelo que se interpelam os ilustres defensores dos arguidos no sentido de informarem se pretendem prazo para preparação da defesa ou prescindem desse prazo».

Todos os arguidos pediram prazo para preparação de defesa, bem como a sua audição imediata sobre as alterações comunicadas, tendo ambos os pedidos sido deferidos.

Em 15-7-2013 o arguido B...arguiu a nulidade do despacho de alteração não substancial dos factos, nos termos seguintes:

«… o douto despacho em questão declara apenas, como fundamento para proceder aos acrescentamentos e alterações produzidos … que “após a realização da audiência de discussão e julgamento e produção de toda a prova, entende-se que se deve alterar a matéria vertida na acusação, da forma seguinte”.

Ora, não está na disponibilidade do julgador decidir assim, discricionariamente, alterar a matéria da acusação da qual o arguido se defendeu … a alteração permitida por aquele preceito legal … só se pode verificar se essa alteração resultar ou tiver como fundamento qualquer materialidade ocorrida no decurso da audiência de discussão e julgamento e se ela tiver relevo para a decisão … para poder deitar mão de tal instituto sempre teria a m.ma juíza que demonstrar e comunicar a verificação desses dois pressupostos, como o exige o princípio da legalidade … as decisões judiciais têm que ser fundamentadas, nos termos do disposto no art. 97º, nº 5, do C.P.P., com consagração do princípio constitucional plasmado no art. 205º, nº 1, da CRP. Foi, pois, cometida a nulidade prevista no art. 120º, nº 2, al. d), do C.P.P. ou, para quem entender qualificar tal omissão como irregularidade, foi praticado o vício previsto no art. 123º …».

O assistente respondeu ao requerido, defendendo que a decisão de alteração não substancial dos factos se basta com a indicação de que foi da discussão da causa em audiência que resultaram as alterações.

Sobre o requerido foi proferida o seguinte despacho:

«Não existe qualquer nulidade pois que no despacho através do qual se comunicou a alteração não substancial se remeteu para a prova produzida (isto é a arrolada pela acusação e a apresentada pelos arguidos – testemunhas ouvidas, documentos e perícia constante dos autos), bastando essa remessa genérica para fundamentar a decisão.

A comunicação da alteração não substancial de factos não constitui fundamentação de facto de qualquer decisão, constituindo antes uma alteração à peça acusatória do processo.

Ora, nas peças acusatórias enumeram-se genericamente os elementos de prova, não sendo necessária qualquer fundamentação que ultrapasse esta enumeração nem o estabelecimento da correspondência entre cada concreto meio de prova e cada facto descrito na acusação.

Pelo exposto, indefere-se o requerido».

Foi, precisamente, deste despacho que foi interposto recurso.

A questão da fundamentação do despacho que comunica a alteração não substancial dos factos, do art. 358º do C.P.P., já foi tratada pela jurisprudência, quer desta relação, quer da relação de Lisboa, no sentido de que a fundamentação se bastará com a referência genérica de que tal alteração proveio da discussão da causa 2.

O dever de fundamentação das decisões dos tribunais tem assento constitucional, no art. 205º, que estabelece, no seu nº 1, que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».

A Constituição impõe o dever de fundamentação deixando, porem, à lei ordinária a sua concretização.

E a lei ordinária concretiza este dever, desde logo, no art. 97º do C.P.P., que enumera os atos judiciais que carecem de fundamentação.

Assim, nos termos do nº 5 do art. 97º do C.P.P. «os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».

Portanto, nos termos da lei carecem de fundamentação os atos decisórios.

Agora teremos que indagar o que são atos decisórios.

Normalmente a doutrina e jurisprudência dividem os atos do juiz em atos decisórios e atos de mero expediente.

São atos de mero expediente os que se destinam a regular os termos do processo.

Quanto aos outros, dispõe o nº 1 do art. 97º do C.P.P. que são atos decisórios as «a) sentenças, quando conhecerem a final do objecto do processo» e os «b) despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior».

Assim, nos termos do nº 1 do art. 205º da Constituição e 97º, nº 5, do C.P.P., carecem de fundamentação as sentenças, quando conhecerem a final do objecto do processo, e os despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo.

Sobre a fundamentação de que os atos decisórios carecem, é unânime o entendimento que ela variará segundo a natureza da decisão, pelo que só caso a caso é que se poderá saber se uma concreta fundamentação é fundamentação bastante.

O despacho que comunica a alteração não substancial dos factos ao arguido não é sentença, não conhece de questão interlocutória e nem põe termo ao processo.

Portanto, não é um ato decisório.

Mas também é certo que não se trata de um despacho que regule o andamento do processo.

Por isso se diz que integra um terceiro género, porque não sendo ato de mero expediente, também não traduz a solução de qualquer questão 3.

Mas se o ato de comunicação da alteração não substancial dos factos não incorpora a solução de qualquer questão não é um ato decisório e, se não o é, não carece de fundamentação, nem à luz da lei ordinária, nem à luz da Constituição.

Como se sabe, os poderes de cognição do juiz estão limitados ao objeto do processo e o objeto do processo é definido pela acusação ou pela pronúncia, pois é destas que o arguido tem de se defender.

Mas é possível ao juiz conhecer outros factos para além dos que constem destas peças, se estes tiverem resultado da discussão da causa e se tiverem relevo para a decisão.

Para que isto aconteça tem o juiz, previamente à decisão, que dar a conhecer ao arguido que outros factos, com relevo para a causa, resultaram da discussão e que podem vir a ser considerados a final.

Ou seja, o conhecimento de novos factos só é possível no enquadramento do art. 358º do C.P.P. (e no do nº 3 do art. 359º), que dispõe que, com exceção dos casos de a alteração derivar de factos alegados pelo arguido, «se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa» - nº 1.

Assim, quando da discussão da causa resulte o conhecimento de novos factos que podem ser relevantes à decisão o juiz dará conhecimento disso ao arguido. E aqui se esgota o conteúdo deste despacho: na constatação de que novos factos relevantes resultaram da discussão.

Não é este o entendimento do arguido B..., que defende que para recorrer ao instituto da alteração não substancial o juiz tem que demonstrar que ocorreu a alegada alteração e que ela tem relevo para a decisão.

O que nos parece é que esta demonstração, pretendida pelo arguido, equivale à fundamentação da matéria de facto, do art. 374º, nº 2, do C.P.P., que estabelece como um dos requisitos da sentença a fundamentação e descreve o respetico conteúdo.

A proceder esta tese o despacho do nº 1 do art. 358º do C.P.P. redundaria, então, numa antecipação da sentença no que à decisão da matéria de facto relativa àqueles factos respeita.

Mas, assim, a sua natureza mudaria: deixaríamos de estar perante um despacho a comunicar uma alteração e passaríamos a estar perante um despacho que decidiria, parcialmente, a matéria de facto. Ou seja, quando houvesse lugar a esta alteração parte da decisão sobre os factos seria tomada neste momento e a outra parte seria remetida para a sentença.

Isto não é legalmente possível: para além de alterar os poderes conferidos pela norma, significaria cindir a decisão do caso.

Aderindo, por inteiro, à sentença recorrida diremos que o despacho de alteração não substancial dos factos consiste numa alteração à peça acusatória do processo, onde a fundamentação é feita de forma genérica para as provas, sem curar de estabelecer qualquer correspondência entre cada facto e cada prova.

Comunicada a alteração aos arguidos o que aconteceu depois é conhecido: os arguidos foram ouvidos sobre aqueles concretos factos, tal como requereram aquando da comunicação, e foi-lhes concedido prazo para se defenderem destes novos factos, como requereram aquando da comunicação.

Por todo o exposto improcede o recurso.

Fixa-se em 4 UC´s a taxa de justiça, devida pelo arguido.


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B – Recursos da sentença

Antes de entrarmos na apreciação destes recursos há que abordar a questão suscitada na resposta do assistente relativa ao facto de o arguido C... ter acompanhado as suas alegações de recurso de quatro pareceres, três de natureza médica e um jurídica.

Sobre isto alega o assistente que nos termos do art. 52º, nº 1, do novo Código de Processo Civil, de aplicação imediata aos processos pendentes, a junção de pareceres ao processo tem como prazo limite o início do prazo para a elaboração do projecto de acórdão, face ao que a junção daqueles pareceres ocorreu para além do prazo, pelo que devem eles ser desentranhados.

O art. 651º do novo C.P.C. dispõe que as partes apenas podem juntar documentos às alegações quando o não puderam fazer anteriormente ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância, podendo os pareceres de jurisconsultos ser juntos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão.

O art. 4º do C.P.P. estabelece que nos casos omissos em que as normas deste Código não possam aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.

Mas o C.P.P. não é omisso nesta matéria. O seu art. 165º disciplina a junção de documentos ao processo nos seguintes termos:

«1 - O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.

2 - Fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.

3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a pareceres de advogados, de jurisconsultos ou de técnicos, os quais podem sempre ser juntos até ao encerramento da audiência».

Assim, a regra para a junção de documentos é durante o inquérito e a instrução. Quando isso não for possível podem os documentos ser juntos, excecionalmente, até ao encerramento da audiência.

A audiência aqui referida é a audiência de 1ª instância, como não podia deixar de ser, atenta a natureza do recurso penal que, como remédio que é, se destina não a proferir uma nova decisão sobre o caso mas, mas a analisar a decisão proferida, no exato circunstancialismo em que o foi.

O objeto do recurso não é o caso mas a decisão do caso.

Como se refere no C.P.P. comentado, 2014, pág. 699, a redação do nº 1 da norma reporta-se aos ciclos processuais e enquanto o processo se encontra na 1ª instância, pois que admitir-se a junção do processo de um documento depois de fixada a matéria de facto significaria que o recurso já não versaria integralmente sobre as provas produzidas e que basearam a convicção do juiz: por isso «os documentos serão juntos durante o inquérito ou a instrução, consoante a fase em que o processo se encontra; excepcionalmente poderão ser juntos até ao encerramento da audiência … desde que provada a impossibilidade da sua junção durante o inquérito ou a instrução» 4.

A norma relativa ao momento de junção de documentos ao processo aplica-se, também, à junção de pareceres de advogados, jurisconsultos ou de técnicos que, porém, podem sempre ser juntos até ao encerramento da audiência (que, já vimos, é a audiência de 1ª instância).

Portanto, não é admissível a junção de pareceres com as alegações de recurso 5.

A conclusão a tirar do exposto é que não deveria ter sido admitida a junção dos pareceres que acompanharam as alegações do recurso do arguido C..., nem do parecer que foi junto mais tarde, por violação da norma que disciplina a matéria, constante do nº 3 do art. 165º do C.P.P.

Por isso, tais documentos não serão considerados.


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1º – Recurso dos arguidos

I – Impugnação do enquadramento jurídico/Impossibilidade de, perante os factos, configurar o crime de recusa de médico

Os arguidos A... e B...começam por alegar que perante a matéria assente é impossível configurar a prática do crime de recusa de médico, por da sua atuação não ter resultado perigo grave para a vida ou para a integridade física, para além de não terem recusado a prestação dos tratamentos médicos que, no seu juízo profissional, caberia prestar.

Não obstante a questão seja suscitada desde já, relegamos a decisão para mais tarde.


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II – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Os arguidos A... e B...impugnam a decisão de dar como provados os factos constantes dos pontos 20, 21, 22, 23, 25, 27, 45, 46, 67 e 68 propondo, em relação a todos estes pontos, redações alternativas consentâneas com o que dizem que se provou.

Já o arguido C... impugna os factos constantes dos pontos 20, 21, 22, 23, 25, 40, 41 e 68 a 72 defendendo que devem deixar de figurar na matéria assente.


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Nos termos do art. 428º, nº 1, do C.P.P. as relações conhecem de facto e de direito. Na lei actual o poder de cognição da relação abrange, sempre, a decisão sobre a matéria de facto, caso tenha sido impugnada.

Mais do que conhecê-la a relação pode alterar essa decisão, conforme decorre do art. 431º do C.P.P., que diz: «sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou

c) Se tiver havido renovação da prova».


Os arguidos impugnam a matéria de facto suscitando a questão da sua desconformidade com a prova socorrendo-se, para tanto, do mecanismo estabelecido no art. 412º do C.P.P.

Nos termos do nº 3 desta norma «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas».

Acrescenta o seu nº 4 que «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação».

Portanto, quando o recorrente pretenda ver alterada a matéria de facto por via do mecanismo previsto no art. 412º, nº 3 e 4, do C.P.P. tem os seguintes ónus a cumprir:

1º - especificar os factos erradamente julgados;

2º - concretizar a(s) prova(s) que impõe(m) decisão diversa da recorrida;

3º - quando se trate de prova oral tem, finalmente, que localizar no respectivo suporte o excerto de que se socorreu para demonstrar o erro da decisão e que impõe, na sua tese, decisão diversa. Por dia do acórdão de fixação de jurisprudência 3/2012 a localização das declarações relevantes pode ser substituída pela sua transcrição.

Estes cuidados da lei no iter procedimental a seguir em caso de impugnação da decisão da matéria de facto por via do preceituado no art. 412º resulta da natureza do recurso, ainda agora falada.

Não obstante incidir sobre a prova produzida e o seu reflexo na matéria assente, o recurso não configura um novo julgamento. Se estivéssemos perante um novo julgamento as especificações exigidas seriam, claro está, inúteis. Mas sendo o recurso um remédio, então o que pretende é corrigir os concretos erros de julgamento no que à matéria de facto respeita. Por isso a lei impõe que os erros que o recorrente entende existirem estejam especificados e que as provas que demonstram a sua existência estejam, também elas, especificadas e localizadas.

Há, então, que sindicar a conformidade da decisão com a prova.

Mas previamente a este conhecimento há que fazer um parêntesis para abordar a questão da prova pericial, que se percebe ter sido essencial para o desfecho do caso.


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O presente processo teve início em 10-10-2007, data em que o assistente apresentou queixa contra terceiros não identificados pelo sucedido em 10-5-2007.

Alegou que neste dia deu entrada no Hospital Y de Aveiro por volta das 23h, vítima de acidente de viação, na sequência do qual sofreu fratura exposta do membro superior direito.

Disse ter sido atendido no serviço de urgência por médicos que aí estavam de serviço, que lhe colocaram uma fita no braço para estancar a hemorragia e o submeteram a raio-x.

De seguida, e sem qualquer explicação diz, chamaram os bombeiros e enviaram-no para os X..., em Coimbra, onde chegou entre a 1h e as 2h.

Aqui foi visto por médicos e enfermeiros, que lhe tiraram radiografias ao braço direito, onde tinha o osso à mostra e uma enorme ferida aberta da qual jorrava muito sangue. Examinaram-no e colocaram-lhe uma fita para estancar a hemorragia.

Aguardou, sem que lhe tivessem dito nada nem o tivessem medicado, e às 5h30 foi enviado para o Hospital Y de Aveiro. Cerca das 8h foi para o bloco operatório, aguardou até às 10h, altura em que foi operado por outros médicos, que tinham entrado de manhã.

O Ministério Público instaurou inquérito e em 14-1-2008 decidiu solicitar ao INML a realização de perícia médico legal, ao abrigo dos art. 151º e 152º do C.P.P., segundo diz para «aquilatar da prática médica seguida, designadamente sobre a observância das legis artis».

Em 18-1-2008 deu entrada no processo uma informação remetida pelo sr. presidente do INML, comunicando que o pedido havia sido remetido para o conselho médico-legal que, por sua vez, informou ele seria apreciado por este conselho, nos termos do nº 2 do art. 6º do D.L. nº 131/2007, de 27/4.

A perícia foi distribuída a T..., médico ortopedista e elemento do conselho médico-legal.

Entretanto, em reunião de 28-5-2008 o conselho aprovou por unanimidade o relatório apresentado pelo relator.

Depois disso foi este relatório de “consulta técnico-científica” junto ao processo, a fls. 172/173.

Sobre o conteúdo da consulta técnico-científica realizada, depois de reproduzir o diagnóstico feito ao assistente quer em Aveiro, quer em Coimbra, diz ela, além do mais, que «a situação em apreço configura da parte das duas instituições hospitalares envolvidas procedimentos desadequados e reveladores de má prática médica da parte das equipas ortopédicas. Uma fractura exposta de grau III constitui uma emergência ortopédica que deveria ter sido logo estabilizada como manda a boa prática. A taxa de infecção chega a atingir os 40% se ultrapassarem as primeiras 6 horas e o aparecimento de lesões sequelares fica claramente potenciado. O doente em causa só foi operado 10 horas após o acidente e sem recurso a médicos de cirurgia plástica. Se se entendia que a lesão podia necessitar do envolvimento de outras especialidades deveria ter sido estabilizada com osteotaxia o mais rapidamente possível. Fazê-lo tantas horas depois vai potenciar os riscos hemorrágicos, neurológicos e infecciosos.

A conduta da equipa de ortopedia dos X... é inaceitável também, atendendo ao registo que é feito da situação. Reenviar um doente com esta gravidade e nesta situação para o hospital de origem representa uma grave violação dos princípios éticos, técnicos e científicos.

Em face do exposto, somos de opinião que houve inobservância das “legis artis” nas duas instituições hospitalares envolvidas no tratamento deste doente».

Do exposto resulta, portanto, que segundo a consulta técnico-científica, isto é, segundo a perícia médico-legal, os cuidados ministrados pelos arguidos não corresponderam aos que as leges artis estabelecem como sendo os indicados para o caso.


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Nos termos do art. 151º do C.P.P. «a prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos».

Dado o enorme relevo atribuído pelo novo código à prova pericial o legislador português optou pelo modelo de perícia pública, oficial. Por isso, conforme determina o nº 1 do art. 152º do C.P.P., a perícia deve ser realizada, por regra, em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial.

Especificamente sobre as perícias médico-legais e forenses a lei determina, no nº 1 do art. 159º do C.P.P., que elas são realizadas pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, a menos que ocorra manifesta impossibilidade dos serviços (nº 2).

A perícia é, então, a actividade de perceção ou apreciação dos factos probandos efectuada por pessoas dotadas dos referidos especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos 6, é o meio de prova que visa a avaliação dos vestígios da prática do crime quando ela careça destes especiais conhecimentos.

Em síntese conclusiva, considerando que a prova pericial se destina a apreciar os factos que exijam especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, é este juízo técnico, científico ou artístico que está subtraído à livre apreciação do julgador: o que está subtraído à livre convicção é quando a descoberta da verdade exige técnicas especializadas, que não se compadeçam com a aplicação das regras da experiência comum. Diferentemente se passam as coisas relativamente a questões que, mesmo que abordadas pela perícia, não exijam aqueles conhecimentos especiais: nesta parte já a regra da livre apreciação domina.

Para além disso o que vincula o julgador são as conclusões periciais, devidamente fundamentadas e sempre dentro do circunstancialismo enunciado. Já a base factual de que parte o perito para formular os seus juízos, essa não é do domínio do perito, é sim do domínio do julgador. A investigação da causa, o apuramento dos factos, pertence ao juiz, cabendo ao perito emitir os juízos que, repete-se, exijam os tais especiais conhecimentos.

E é neste enquadramento que a prova pericial tem a tal especial força probatória de que fala a lei no art. 163º, nº 1, do C.P.P. – «o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador» -, e que integra, como se sabe, uma das exceções à regra da livre apreciação, consignada no art. 127º do C.P.P..

Por isso se diz que esta é uma prova tarifada ou taxada, porque o seu valor probatório, o seu peso para a formação da convicção para a decisão da matéria de facto, está pré-estabelecida na lei, radicando este peso acrescido na segurança e certeza dos juízos emitidos, pois que o «papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem» 7.

Uma vez que se trata de prova com um especial peso probatório o juiz deve acatar o juízo emitido no âmbito dessa prova.

No entanto, é possível um juízo divergente mas para isto poder suceder o juiz tem, diz a lei, que fundamentar a divergência. Sendo certo que, como já vimos, os despachos decisórios têm que ser fundamentados, o dever de fundamentação aqui consignado tem que ter um significado especial.

Este dever de fundamentação significa um mais em relação ao dever geral de fundamentação. Servindo-nos das palavras de Figueiredo Dias 8 diremos que «se os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação … já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é susceptível de uma crítica igualmente material ou científica …».

Portanto, sendo certo que o julgador pode divergir da prova pericial, para o fazer terá que fundamentar cientificamente a divergência estribando-se numa crítica da mesma natureza, ou seja, científica, técnica ou artística 9 (daí que o vício de violação do valor da prova legal possa ser tido ou como erro notório na apreciação da prova, ou como falta de fundamentação).

A perícia realizada foi levada a cabo pelo conselho médico-legal, órgão do Instituto Nacional de Medicina Legal ao qual compete, nomeadamente, exercer funções de consultadoria técnico-científica e emitir pareceres sobre questões técnicas e científicas no âmbito da medicina legal – art. 7º, nº 1, al. a) e b), do D.L. nº 166/2012, de 31/7.

Este órgão intervém através da consulta técnico-científica,

Do art. 8º do diploma consta a composição do conselho. Nele têm assento, além do mais, um representante dos conselhos regionais disciplinares de cada uma das secções regionais da Ordem dos Médicos, dois docentes do ensino superior de cada uma das áreas científicas de clínica cirúrgica, clínica médica, obstetrícia e ginecologia e direito e um docente do ensino superior de cada uma das seguintes áreas científicas: anatomia patológica, ética e ou direito médico, ortopedia e traumatologia, neurologia ou neurocirurgia e psiquiatria.

Perante a composição do conselho há que concluir que a consulta técnico-científica do conselho médico-legal será, se é que se pode dizer, a perícia das perícias, uma perícia especialmente avalizada, pois que provém de um órgão colegial especialmente dotado de conhecimentos técnicos e científicos para se pronunciar sobre a questão que lhe é colocada.


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Retomando o conhecimento deste segmento do recurso relativo à impugnação da decisão da matéria de facto os arguidos A... e B...começam por impugnar o conteúdo dos pontos 20 e 21, que é o seguinte:

- «20. A descrita fractura exposta de grau III constitui uma urgência ortopédica e, segundo a boa prática médica, deve ser imediatamente (logo de início) estabilizada com osteotaxia e sujeita a limpeza cirúrgica (desbridamento), feita mediante anestesia e no bloco operatório»;

- «21. Esse tratamento deve ser efetuado no mais curto espaço de tempo possível, sendo de preferência efetuado antes de decorridas 6 horas».

Os arguidos A... e B...defendem que o que deve constar é que

- 20 - «A descrita fractura exposta de grau IlI constitui uma urgência ortopédica e pode ser estabilizada com osteotaxia e sujeita a limpeza cirúrgica (desbridamento), feita mediante anestesia e no bloco operatório»;

- 21 - «Esse tratamento deve ser efectuado no mais curto espaço de tempo possível, estando reunidas todas as condições de tratamento para o doente».

A alteração, alegam os arguidos, impõe-se pois foi neste sentido se que pronunciou quer a prova pericial, quer a prova testemunhal.

O arguido C... alega que a sentença considerou os novos factos resultantes da discussão da causa sem atentar se estavam reunidas as condições clínicas do doente, facto não ponderado nem na perícia do conselho médico-legal, nem no parecer do colégio de ortopedia da Ordem dos Médicos.

De facto, diz, a consulta científica apelidou, erradamente, a situação do assistente como configurando uma emergência médica – quando na realidade se tratava de uma urgência médica, como o sr. perito também veio a reconhecer -, nomenclatura que inquinou todo o processo, pois foi na base de tal classificação que tudo se desenvolveu, não refletindo a sentença essa alteração, que condiciona a apreciação do seu comportamento.

Os srs. peritos que intervieram na consulta técnico-científica, apreciando a conformidade do comportamento dos arguidos com as leges artis, concluíram que a situação do assistente configurava uma emergência ortopédica.

Este parecer está nos autos quase há seis anos e nenhum dos arguidos suscitou qualquer questão sobre isto até à audiência presumindo-se que saberiam, desde o primeiro momento em que leram tal relatório, o que isso significaria. E o que significaria era uma situação muito mais gravosa do que aquela que, afinal, ocorreu.

Apesar de os arguidos não terem refletido para o processo a sua divergência em relação àquela classificação o sr. perito relator esclareceu esta questão em audiência.

Aliás, esclareceu várias questões.

O senhor perito médico relator do relatório da consulta foi ouvido em audiência, na sessão de 4-3-203, onde prestou esclarecimentos sobre a mesma.

Os esclarecimentos prestados por um dos peritos intervenientes na perícia sobre o objeto da diligência gozam do mesmo valor legal da perícia: o valor probatório deste meio de prova estende-se aos esclarecimentos prestados por um seu elemento, desde que circunscritos ao âmbito da mesma.

Seguindo o depoimento prestado, o primeiro esclarecimento que foi pedido ao sr. perito foi relativo ao período máximo de 6 horas em que deveria ser prestado tratamento médico, sob pena de risco de infeção, concretamente se entende que ainda hoje este é o período de tempo em que se tem que fazer a intervenção ou se o seu entendimento já é diferente, se aquele período já pode ser maior, face aos novos desenvolvimentos da medicina.

Antes de entrar na questão o sr. perito recordou que o relatório não é singular, que não é de sua autoria, mas retrata uma opinião plural, do conselho médico-legal, que aprovou por unanimidade o parecer por si proposto. Portanto, conclusão óbvia, o relatório que consta do processo corresponde à opinião do conselho-médico legal, é o entendimento do colégio dos peritos sobre as questões colocadas.

Sobre a questão acima colocada respondeu que «cada vez mais as fraturas expostas de grau III, que é o que está aqui registado, uma fratura exposta de grau III é uma fratura urgente barra emergente. E porquê? Porque há uma exposição de tecido ósseo em contacto com o exterior numa extensão relativamente grande e o risco de infeção é enorme. E não é só o risco de infeção. O risco de infeção, o risco de sequelas.

Portanto, uma fratura exposta é sempre, sempre, sempre, uma urgência, hoje em 2013, como era em 2008, como em 2006.

Portanto, as regras não se alteraram … não vamos agora branquear uma fratura exposta de grau III. Uma fratura exposta de grau III é sempre uma fratura exposta de grau III, ou seja, muito grave, que exige uma atuação cirúrgica, em meu entendimento e em entendimento do conselho, uma atuação cirúrgica urgente. São das fraturas urgentes …

Portanto, do ponto de vista conceptual, as coisas não se alteraram, mantém-se exatamente na mesma».

Perguntado se as 10 horas que decorreram entre o acidente e a intervenção a que o assistente foi submetido ainda é um prazo aceitável, considerando as boas práticas médicas, disse querer subdividir a questão nas seguintes duas respostas:

- por um lado há situações em que não é possível intervir porque não há condições, porque há outra situação, porque não é aconselhável, concluindo que ninguém pode garantir que as sequelas resultantes da fratura seriam menores se a intervenção tivesse ocorrido mais cedo;

- por outro lado disse não ser admissível que em Portugal um indivíduo com uma fratura de grau III seja transferido para outro hospital da forma como aconteceu neste caso: «não é aceitável que um doente ande recambiado de um lado para o outro com uma fratura exposta com os ossos à mostra … não é aceitável».

Sobre a explicação avançada em Aveiro para o envio do assistente para Coimbra – necessidade de intervenção multidisciplinar que exigiria, também, cirurgia plástica -, disse: «um esfacelo é uma lesão grave. A primeira atuação tem que ser ortopédica, para estabilizar os ossos, e depois a cirurgia plástica, ou vascular, ou o que quer que seja, intervêm posteriormente. Não é neste momento, com o braço a badalar, sem ao menos ter fixado a fratura com um fixador externo, como acabaram por fazer 10 horas depois, é que eu acho inaceitável. Continuamos a pensar desta forma».

Perguntado se, caso houvesse, a valência de cirurgia plástica interviria respondeu que este tipo de doentes pode exigir várias valências, mas há sempre uma hierarquia e a primeira intervenção é sempre ortopédica. Por isso a primeira coisa a fazer seria sempre a fixação dos ossos.

Perguntado se os riscos de infeção não podiam ser controlados com medicação, isto para prolongar o prazo da intervenção para além das 6 horas depois do acidente, respondeu que uma coisa não obsta a outra: «à partida uma fratura exposta, por definição, é sempre uma fratura potencialmente infetada. O facto de o osso estar em comunicação com o exterior à partida esta fratura está infetada. Claro que a antibioterapia é fundamental, é uma guide line indispensável no tratamento de uma fratura exposta e por isso foi instituída. Agora não chega, é curto. Se a antibioterapia não for associada a uma limpeza, desbridamento cirúrgico, é insuficiente»: a antibioterapia controla o perigo de infeção mas não o afasta, disse.

Perguntado se há alguma distinção entre emergência médica e emergência ortopédica, disse que no caso a emergência médica era do foro ortopédico. Para além disso uma situação de emergência não tem, necessariamente, que fazer perigar a vida do doente. No caso a lesão não fazia perigar a vida mas era uma lesão urgente barra emergente, pelas razões referidas.

Sobre os critérios de classificação das situações como de urgência, respondeu que eles estão fixados internacionalmente. Segundo tais critérios as fraturas expostas estão classificadas em 3 graus e esta classificação tem mais de 30 anos e não mudou, mantém-se ainda hoje: fratura exposta de grau I até 1centímetro de exposição; fratura exposta de grau II de 1 a 3 cm de exposição; fratura exposta de grau III mais de 3 cm de exposição. Grau III A é possível cobrir cutaneamente a ferida; grau III B não é possível cobrir cutaneamente a ferida e necessitará eventualmente de cirurgia plástica; grau III C existe uma lesão vascular associada.

Concluiu que qualquer fratura exposta, mesmo de grau I, é uma situação urgente.

Perguntado que intervenção é que as boas práticas apontavam para o caso, disse: «quando se fala em boa prática no tratamento de uma fratura exposta de grau III implica a osteotaxia, quer dizer fixadores externos, desinfeção e desbridamento cirúrgico. O que é que isto significa? Não basta desinfetar todos os tecidos necrosados, sujos, conspurcados, em contacto com o exterior. Têm que ser removidos. Sempre. Portanto, implica desinfeção, desbridamento cirúrgico, antibioterapia e fixação com fixadores externos. Isto são as normas para tratar uma fratura exposta de grau III … qualquer interno do 1º ano aprende estas regras».

Sobre a intervenção dos arguidos, em Aveiro e em Coimbra, disse que houve omissão de tratamento quer num local, quer no outro. Deviam ter feito, nomeadamente, osteotaxia e não fizeram.

Sobre a intenção dos arguidos ao agirem como agiram, disse que não lhe passava pela cabeça que qualquer médico agisse com outra motivação que não o que achava melhor, o que não significa que o tratamento tivesse sido o correto. Houve, repetiu, omissão de tratamento.

Relativamente ao período de 6 horas, como período máximo de intervir, disse que era «inflexível» nesta questão: as 6 horas continuam a ser o tempo máximo adequado para intervir.

Sobre o conceito de urgência e emergência, disse que uma situação emergente é aquela em que a atuação clínica, seja de que área for, tem que ser imediata, sob pena de o doente poder morrer. Uma urgência é aquela situação em que a atuação clínica não tem que ser imediata.

Intervenção imediata numa situação de urgência pode ter que ocorrer mais cedo, ou pode demorar mais, dependendo do caso. Mas no caso em análise, que é o que releva porque foi esse o objeto do parecer, tratava-se de uma urgência, que exigia uma intervenção no prazo de 6 horas. Repetiu, de novo, que era o prazo máximo a considerar.

A necessidade de intervir rapidamente é, desde logo, para minimizar o risco de infeções, que podem não se manifestar de imediato, mas mais tarde.

Perguntado, mais uma vez, se mantinha que o assistente não careceria de cirurgia plástica respondeu, mais uma vez, que mesmo que ele carecesse de cirurgia plástica não era aceitável que não lhe tivesse sido fixada a fratura desde logo.

Sobre a atuação dos arguidos A... e B..., de não operarem, quando o assistente regressou a Aveiro, achou-a adequada, porque se tratava de uma fratura grave e a nova equipa, que ia entrar às 8h00, estaria em melhores condições para agir. Esclareceu que este ponto não tinha sido debatido no conselho, pelo que a opinião emitida era a sua opinião pessoal.

Solicitado, de novo, para se pronunciar sobre a necessidade de intervenção imediata da valência da cirurgia plástica respondeu que ela era questionável, tanto que quando, finalmente, o assistente foi operado essa necessidade não surgiu e resolveram o problema, no sítio de origem, sem necessidade de cirurgia plástica.

Ainda sobre a dispensabilidade de tal intervenção o senhor perito leu o que foi escrito em Coimbra no processo clínico do doente, para reforçar o que já havia dito: disse ele «está escrito no processo em Coimbra, “às 2h11 da manhã reabriu-se penso, que se refez”. E escreveram no processo clínico “não há indicação para cobertura plástica imediata e nem sequer é de considerar enquanto não houver condições de estabilidade óssea e definição de massa cutânea a muscular. Em Coimbra … disseram claramente e está escrito não há indicação para cirurgia plástica imediata e por isso reenviaram para Aveiro».

Disse que esta atuação, de reenvio do doente para Aveiro, também foi errada. Por isso o conselho entendeu que a atuação dos médicos de Aveiro e de Coimbra não foi adequada. Pecou por omissão. Foi esta, disse, a opinião do conselho médico-legal.

Sobre a atuação em Coimbra, onde não intervieram porque não havia cirurgia plástica nem havia necessidade dessa especialidade, disse que o conselho entendeu que o reenvio do doente para Aveiro também foi errado. Sendo certo que a decisão de o enviar para Coimbra foi errada, Coimbra deveria ter operado o assistente e ter-lhe fixado a fratura. Quer em Aveiro, quer em Coimbra a limpeza cirúrgica e osteotaxia eram obrigatórias, deviam ter sido feitas.

Disse que os procedimentos a seguir em caso de fratura exposta é conhecido, é igual seja onde for e todos os médicos os conhecem.

Conjugando o parecer com os esclarecimentos resulta da prova pericial que, de acordo com as boas práticas médicas, a fratura que o assistente sofreu devia ter sido logo estabilizada, nos termos indicados. Não o tendo sido logo então a estabilização, de acordo com essas boas práticas, deveria ter ocorrido até 6 horas depois da verificação da lesão.

O que se discute no caso é não que intervenções médicas poderiam ser desenvolvidas perante uma lesão como a que o assistente sofreu, mas sim que intervenção médica é que as boas práticas médicas impunham no caso.

A resposta a esta questão deu-a a perícia. Mas não só.

Ainda em relação ao período de 6 horas entre o surgimento da lesão e a intervenção, nos termos apontados, o sr. perito disse-se «inflexível» quanto a isto: as 6 horas continuam a ser o tempo máximo adequado para intervir. O tempo máximo para intervir em casos como o que está em análise, que foi o que foi submetido a consulta, referiu ele.

Há uma crítica desferida ao texto da perícia por ela se ter pronunciado no sentido de a intervenção ter que ser imediata dado tratar-se de uma emergência médica.

Face ao texto parece-nos uma crítica pouco conseguida porque, não obstante falar em emergência médica, a perícia diz que a intervenção indicada teria que ser feita nas primeiras 6 horas.

E se a crítica, perante o texto, não é firme, ela soçobra por completo depois de ouvidos os esclarecimentos do sr. perito.

Portanto, ao decidir dar como provados os factos constantes dos pontos 20 e 21 a sentença recorrida limitou-se a acolher a tese do conselho médico legal. E tendo-o feito a fundamentação do decidido basta-se com a referência a tal meio de prova. Só em caso de divergência, como vimos, é que seria necessário desenvolver uma especial fundamentação para explicar os motivos da não aceitação das conclusões da perícia.

É isso mesmo que consta da sentença recorrida, quando ali se diz «Para que a convicção do julgador possa divergir do juízo contido no parecer dos peritos deve essa convicção ser fundamentada. Não parece, assim, que seja suficiente para abalar o juízo pericial que o julgador fique com dúvidas sobre o conteúdo da perícia. O julgador tem de se convencer que esse juízo pericial está errado e fundamentar porquê. No entanto note-se que, no caso, não restaram, sequer, dúvidas ao julgador quanto à veracidade da perícia. De facto, ambos os relatórios acima aludidos merecem toda a credibilidade, provindo de instituições que dão garantia de isenção e competência» (fls. 2926/2927 do processo).

Como se vê a sentença não se limitou a remeter para a perícia. Logo aqui fala num outro relatório. E que outro relatório é este?

A resposta a esta pergunta está algumas folhas antes.

A fls. 2918, e depois de falar na perícia médico-legal, a sentença refere que o arguido juntou aos autos parecer elaborado pela Ordem dos Médicos-Colégio da Especialidade de Ortopedia.

Vejamos, então.

Na sessão de julgamento de 4-3-2013, a solicitação do arguido C..., foi junto ao processo um parecer emitido pelo colégio da especialidade de ortopedia da Ordem dos Médicos.

Do documento resulta que em 10-10-2012 o arguido solicitou ao colégio da especialidade de ortopedia da Ordem dos Médicos que se pronunciasse sobre o caso. Depois de descrever o que, em seu entendimento, se passou com o assistente na noite em causa, pede resposta às seguintes questões:

- se a situação configurava uma emergência ortopédica;

- se na ausência de atitudes terapêuticas quanto mais horas decorressem desde a ocorrência da lesão mais potenciado ficaria o risco de aparecimento de leões sequelares e riscos hemorrágicos, neurológicos e infecciosos;

- se, naquele quadro, ter sido efetuada depois das primeiras 6h a cirurgia para estabilização com fixadores provisórios configurava como provável a possibilidade de ocorrência de infeção;

- se, naquele quadro, o risco de infeção podia atingir 40%;

- se, naquele quadro clínico e dos procedimentos terapêuticos adotados, fica potenciado o aparecimento de lesões e riscos acima referidos;

- se os procedimentos clínicos realizados em Aveiro e Coimbra foram clinicamente corretos.

Em 16-1-2013 o colégio da especialidade de ortopedia da Ordem dos Médicos respondeu à pergunta se «a situação clínica do doente configurava uma emergência ortopédica» do seguinte modo: «se entendermos como emergência médica uma situação clínica capaz de por em perigo a vida do doente, essa não nos parece ser o caso, tendo em consideração a informação que dispomos pois a situação hemorrágica estava aparentemente controlada. Contudo a limpeza cirúrgica da ferida de qualquer fratura exposta deve ser realizada no mais curto espaço de tempo possível de forma a reduzir o risco de infeção».

Portanto, para além de expor o entendimento que, perante os factos que conheceu, a situação era de urgência, o colégio de ortopedia também disse que aquela lesão carecia de «limpeza cirúrgica da ferida … no mais curto espaço de tempo possível de forma a reduzir o risco de infeção».

Ou seja, há concordância total entre a consulta técnico-científica, complementada com os esclarecimentos do sr. perito relator, e o parecer da Ordem dos Médicos.

Este parecer também refere os riscos de infeção em caso de ausência de qualquer atitude terapêutica e à questão «se no quadro clínico do doente e dos procedimentos clínicos (terapêuticas) efetuados o terem sido ultrapassadas as primeiras seis horas desde a produção da lesão e a cirurgia para a estabilização com fixadores provisórios configurava como provável a possibilidade de ocorrência de infeção» responde assim: «a estabilização com fixador externo embora importante na grande maioria das fraturas expostas grau II e III, pode ser realizada posteriormente, desde que a limpeza cirúrgica e uma imobilização provisória seja efetuados no tratamento inicial».

A este propósito cumpre recordar os procedimentos feitos ao assistente: em Aveiro, da primeira vez, os arguidos B...e A... efetuaram «penso, limpeza e lavagem da ferida e imobilização gessada do membro superior direito»; em Coimbra refizeram o penso; em Aveiro, da segunda vez, medicaram.

Sobre os riscos de infeção de fraturas expostas grau III, entendeu o colégio de ortopedia que naquele tipo de fratura o risco de infeção atinge os 20%, percentagem que aumenta na ausência de terapêutica, podendo atingir 40% ou mais.

Quanto ao tratamento ministrado em Aveiro, responderam que caso tenha sido efetuada limpeza cirúrgica o risco de infeção não se agravaria pelo facto de o doente ter sido enviado para Coimbra.

E o parecer termina do seguinte modo: «Não sendo a situação clínica uma emergência médica (perigo de vida) deve no entanto ser efetuado tratamento cirúrgico no mais curto espaço de tempo. Assim os procedimentos clínicos realizados não foram incorretos mas insuficientes nas duas instituições. Permita-se ainda informar que a gravidade da lesão inicial – fratura cominutiva supra e intercondiliana do úmero e rádio agravada pela exposição, condicionará invariavelmente sequelas funcionais definitivas».

Como se provou, a limpeza cirúrgica foi feita apenas quando o assistente foi intervencionado, depois das 9h30 do dia 21-5-2007.

Também foi junto pelo arguido C... um intitulado “parecer medico pericial”, subscrito por J..., que à pergunta se foram observadas as leges artis no que respeita aos procedimentos efetuados ao assistente, respondeu que sim.

Em 15-2-2013 o arguido C... dirigiu novo pedido ao colégio da especialidade de ortopedia da Ordem dos Médicos de resposta às seguintes questões:

- se a situação clínica configurava uma emergência ortopédica;

- se naquela fratura exposta grau III b, como noutras com a mesma qualificação, está indicado realizar o seu encerramento primário no período agudo de evolução, nomeadamente com recurso a técnicas cirúrgicas específicas da área da cirurgia plástica;

- se concordam que as medidas básicas de tratamento local da lesão produzida pela fratura, associada a uma cobertura antibiótica de largo espetro e estabilização provisória da mesma, constituem a norma de atuação no período agudo da fratura ou precocemente durante o período primário, e quando instituídas nesse período são o meio mais eficaz de combate à infeção e poderão justificar o facto de o doente não ter desencadeado qualquer infrção;

- se, atentos estes princípios, seria de esperar da atuação da equipa de Coimbra uma taxa de infeção de 40%;

- se concordava «com as modernas estatísticas, em que se comprova que o desbridamento cirúrgico quando realizado até às 12h sobre a lesão não acarreta riscos significativos de infeção, quando comparados com a clássica janela das 6h»;

- se da atuação da equipa de Coimbra resultou risco de vida ou para a integridade física;

- se da atuação desta equipa, da sua avaliação do doente, das medidas aplicadas, cuidados com o reenvio, chegada a Aveiro 6h e 28m depois da primeira entrada resultou perda de oportunidade de realização de tratamento atempado, com violação das legis artis.

O colégio de ortopedia reuniu em 18-2-2013 e respondeu do seguinte modo:

- mantiveram que o caso não constituiria uma situação de emergência, caso a situação hemorrágica estivesse controlada, «contudo a limpeza cirúrgica da ferida de qualquer fratura exposta deve ser realizada no mais curto espaço de tempo possível de forma a reduzir o risco de infeção»;

- sobre a necessidade de intervenção primária da cirurgia plástica, responderam negativamente;

- disseram, ainda, que a gravidade das lesões iria condicionar sequelas funcionais definitivas;

- quanto ao risco de infeção, mantiveram o que já haviam dito;

- sobre as modernas estatísticas mencionadas, que apontam para que o desbridamento cirúrgico realizado até às 12h sobre a lesão não acarretaria riscos significativos de infeção, responde dizendo que «as referidas “modernas estatísticas” carecem de demonstração de evidência científica».

- entenderam que da atuação da equipa de Coimbra não resultou risco de vida ou para a integridade física;

- concluíram dizendo, de novo, que os procedimentos foram insuficientes quer no Hospital Y de Aveiro, quer no hospital de Coimbra.

Portanto, os tais relatórios de que fala a sentença na fundamentação da matéria de facto são o relatório da consulta técnico-científica, que constitui prova pericial, e o relatório emitido pelo colégio da especialidade de ortopedia da Ordem dos Médicos, provas estas que coincidiram em múltiplos pontos, nomeadamente na necessidade de limpeza cirúrgica o mais rapidamente possível, para reduzir o risco de infeção, e na conclusão da insuficiência dos procedimentos clínicos realizados nos hospitais de Aveiro e Coimbra.

O referido “parecer medico pericial”, claramente discordante dos anteriores, não foi acolhido pela sentença recorrida.

Portanto, à demonstração dos factos impugnados a prova indicada é a bastante, pelas razões amplamente referidas.

Quanto ao ponto 22 da matéria provada os arguidos A... e B...pretendem que ao invés de constar «o decurso do tempo sem o tratamento descrito potencia o aparecimento de lesões sequelares e ficam também potenciados os riscos hemorrágicos, neurológicos e infecciosos, sendo que a taxa de infecção chega a atingir 40%, na ausência de tratamento» passe a constar «o decurso do tempo sem tratamento potencia o aparecimento de lesões sequelares e ficam também potenciados os riscos hemorrágicos, neurológicos e infecciosos, sendo que a taxa de infecção chega a atingir 40%, na ausência de tratamento», sendo que o arguido C... entende que deve transitar para os factos não provados.

As razões para que se mantenha na matéria assente todo o conteúdo do ponto 22 é a que já foi referida: a prova pericial produzida aponta para aí, prova esta que até foi apoiada por outras provas disponíveis no processo, e a perícia é fundamentação suficiente.

O mesmo acontece quanto ao ponto 23 impugnado, que diz «o afastamento desses riscos e lesões só podia ser efectuado com a realização imediata da cirurgia que inclui a limpeza cirúrgica e a estabilização da fractura mediante a colocação de fixadores provisórios no membro superior direito, ainda que a imobilização com tala gessada, a limpeza da ferida feita com soro e desinfectante e a administração de antibiótico diminua, temporariamente, esses riscos», pretendendo aqueles arguidos que diga «o afastamento desses riscos e lesões podia ser efectuado com a realização da cirurgia que inclui a limpeza cirúrgica e a estabilização da fractura mediante a colocação de fixadores provisórios no membro superior direito, ainda que a imobilização com tala gessada, a limpeza da ferida feita com o soro e desinfectante e a administração de antibiótico diminua, temporariamente, esses riscos».

Os arguidos A... e B...também defendem a alteração do ponto 25, entendendo o arguido C... que ele deve desaparecer da matéria assente.

Aqui foi dado como provado que «a final, os arguidos não efectuaram o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da fractura com osteotaxia, quando o deviam e podiam ter feito, porquanto tinham conhecimentos para tal e existiam todas as condições para o efeito, decorrido que fosse o prazo de seis a oito horas após a ingestão de alimentos» e os primeiros arguidos defendem que se provou, neste particular, que «a final, os arguidos não efectuaram o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da factura com osteotaxia, decorrido que fosse o prazo de seis a oito horas após a ingestão de alimentos».

Também aqui improcede a impugnação, pelas razões já referidas: a prova pericial assim o diz.

Como sabemos a demonstrada omissão do tratamento devido pelos arguidos B...e A... radicou no entendimento destes que o assistente necessitava da intervenção imediata da valência da cirurgia plástica, que não existia em Aveiro. Daí a transferência para Coimbra.

Mas no ponto 27 da matéria provada consta que «antes da transferência [os arguidos B...e A...] não diligenciaram no sentido de averiguar se estes Hospitais [de Coimbra] dispunham dessa especialidade».

Os arguidos pretendem que este ponto 27 desapareça do elenco da matéria provada porque, dizem, não se provou.

A prova que indicam, demonstrativa deste alegado erro de julgamento, consiste nas declarações dos próprios e do arguido C..., bem como nas declarações da testemunha E.... Concluem eles que sendo os depoimentos dos arguidos opostos e atendendo às declarações da testemunha daí deveria ter resultado um estado de dúvida obstativo daquela decisão.

Vejamos, então.

Perguntado se não era costume contactarem os serviços para onde enviavam doentes, previamente ao envio, o arguido B...respondeu que «costume, costume não é propriamente, mas às vezes ocorre sobretudo em casos de dimensão mais elevada, como era o caso. E tanto quanto julgo saber, não fui eu que o fiz pessoalmente, mas penso que o meu colega A... tentou entrar em contacto com Coimbra nesse sentido. Acho que não conseguiu, porque às vezes não se consegue falar com as pessoas, mas tentou fazer esse aviso prévio. De qualquer maneira o aviso não condicionava o envio, quer dizer, nós entendíamos que devíamos enviar, com aviso ou sem aviso. Mas o aviso foi tentado, de qualquer maneira».

Portanto, o arguido B...entende que não há necessidade de contacto prévio com a unidade para onde se envie um doente – foi neste estrito circunstancialismo que a questão se colocou -, que não é costume o contacto, que o contacto não condiciona o envio, que no caso não tentou e que acha/tem a certeza que o arguido A... tentou o contacto com Coimbra.

Parece-nos evidente que a resposta do arguido não teve em conta o contexto. Pois se a decisão de envio do assistente para Coimbra – tomada depois das 23h do dia 20-5-2007 e executada depois das 0h do dia 21 - tinha sido devida à invocada necessidade de intervenção imediata da cirurgia plástica («transf. H. Coimbra por falta de C. Plástica», segundo consta), não entendemos como é que o arguido apresenta o contacto prévio como dispensável e como é que também entende que o envio não dependia de um tal contacto prévio.

Ouvido o arguido A... o depoimento começou com a incompreensão que o arguido manifestou perante a pergunta inicial, sobre o que é que ele tinha a dizer sobre os factos. Depois percebe-se que esta incompreensão derivará do facto de, embora fale muito bem o português, não estar totalmente familiarizado com o significado de determinadas expressões típicas da língua portuguesa, como esta «o que é que tem, então, a dizer …», pois a sua primeira resposta a esta pergunta foi que estava a exercer ortopedia no hospital MM ....

Foi-lhe explicada a pergunta e A..., depois de ter dito não saber que em Coimbra não existia cirurgia plástica, declarou que raciocinou do seguinte modo: «foi uma lógica simples, hospital central tem muitas valências, inclusive plástica, tem que ter … Sem conhecer pormenores».

Perguntado se não contactou Coimbra, disse «eu tentei, mas não foi registado em lado nenhum. Já não me lembro qual era a causa, ou foram jantar, ou o enfermeiro, foi uma coisa».

Perguntado como é que contactou o hospital de Coimbra disse «pedi telefonista para ligar, depois atendeu a auxiliar ou não sei quê e diz “doutor esteve cá agora, mas acabou de sair, liga mais tarde”, ou uma coisa assim, foi isso».

Sobre o mesmo assunto o arguido C... disse, logo a iniciar o seu depoimento, o seguinte: «em quase 30 anos de experiência clínica infelizmente foi o primeiro caso que eu recebi sem qualquer contacto prévio. E naquela altura, se não pondo em causa que o colega tenha contactado, eu encontrava-me perto do telefone. Mesmo que me tenha ausentado para ver um doente de certeza que me avisariam dessa situação. Inclusivamente o INEM quando põe um doente no ar avisa que vai mandar o doente de helicóptero. Portanto, é uma coisa que não é comum. Por outro lado também se tem sido feito o contacto telefónico eu teria dito ao colega que não dispúnhamos de cirurgia plástica e provavelmente evitar-se-ia essa situação».

Finalmente, a testemunha I... perguntado em que hospitais existe a especialidade de cirurgia plástica, declarou que ela existe em todos os hospitais centrais e que era para Coimbra que todos os doentes de Aveiro eram transferidos quando se impunha a necessidade de intervenção daquela valência. Referido que Coimbra não teria cirurgia plástica das 0h às 9h, disse que não sabia, que nunca tinha sido informado disso.

Perguntado se, quando enviavam um doente para Coimbra, telefonavam ou não a Coimbra, antecipadamente, disse: «podia telefonar-se. Às vezes, ou grande parte das vezes, não se conseguia contactar com a pessoa que se pretendia, porque o telefonema se perdia, ou ia para aqui, ou ia para ali, e depois não havia contacto e, eventualmente, alguns seguiriam sem haver contacto». Perguntado se enviava doentes sem comunicar respondeu que isso acontecia.

Ainda sobre a comunicação e perguntado se não era suposto comunicar à instituição para onde encaminhavam um doente o seu encaminhamento, isto para que uma boa assistência fosse dispensada tão rapidamente quanto possível, respondeu que quando um doente era transferido ele era portador de todo o processo, de todas as informações pelo que, concluímos, era despiciendo prestar qualquer informação telefónica.


*

Nos termos do art. 127º do C.P.P. «… a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» excepto quando a lei disser o contrário (como sucede, por exemplo, quanto à prova pericial).

A convicção é a certeza adquirida, o convencimento. Então a livre convicção é o processo de convencimento do juiz sobre os factos, feito de acordo com as regras da experiência.

O juiz, na apreciação da prova, está liberto das amarras que a prova tarifada impõe podendo, ao invés, socorrer-se de toda a sua experiência, aqui incluída a experiência do homem comum suposto pela ordem jurídica, ao serviço da averiguação da verdade.

Sendo que a verdade que o processo persegue não é a verdade ontológica, absoluta, pois que a reconstrução exacta dos factos ocorridos é impossível e o juiz, que não é divino, não consegue alcançar um tal patamar, mas não se bastando o processo com a verdade formal – apesar de a nossa lei de processo conter espartilhos que, por vezes, a impõem -, então o objetivo é a verdade material acessível: verdade material porque afastada da influência que a acusação e a defesa exerçam sobre ela; verdade material porque verdade judicial, prática, e obtida não a todo o preço mas de forma processualmente válida 10.

Daí que a prova, para alguns, mais não seja do que uma demonstração do racional, um esforço de razoabilidade: é a verdade contextual e possível que resulta, precisamente, do trabalho de apreciação da prova, apreciação esta que é livre.

Mas uma vez que esta liberdade não é arbitrariedade, o juiz tem uma margem de liberdade de apreciação, mas dentro dos limites fixados na lei, limites estes constituídos por vectores, essenciais e que integram a base do nosso sistema processual penal, e que são o grau de convicção exigido para a decisão, a proibição de determinados meios de prova e o respeito absoluto pelos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo 11.

Trilhado todo este percurso surge, então, a decisão, que consiste, afinal, na opção por uma das versões em conflito no processo, já que, conforme sabemos, na esmagadora maioria dos casos defrontam-se, pelo menos, duas versões do julgamento da causa. Não sendo opção do julgador não decidir 12, terá ele que fazer a sua opção de acordo com as regras enunciadas.

Esta livre convicção não se forma contabilizando os depoimentos e decidindo de acordo com o números de afirmações feitas para cada lado. Também não se forma apenas e só a partir de depoimentos claros, inequívocos, que relatem todos os pormenores, que recordem todos os episódios. Do mesmo modo não exige coincidência absoluta entre todos os depoimentos relevados na decisão.

A valoração da prova por declarações depende, para além do conteúdo das concretas declarações prestadas, do modo como as mesmas são assumidas pelo declarante e da forma como são transmitidas ao tribunal, circunstâncias que relevam para efeitos de determinação da credibilidade. A credibilidade dos depoimentos há-de ser averiguada - afirmada ou negada - no confronto do conteúdo concreto da sua descrição dos factos, num quadro de averiguação cuidadosa da motivação e do interesse de cada um nesses factos, por forma a afastar a credibilidade dos depoimentos se se ficar com a percepção que os mesmos visam a alteração da verdade ou criação de uma realidade virtual.

Para que um qualquer facto se tenha por provado não basta que as testemunhas se pronunciem num determinado sentido, tendo o juiz que aceitar, acriticamente, esse sentido ou versão, por muitas que sejam.

Depois, um testemunho não é necessariamente todo verdadeiro, nem necessariamente todo falso: qualquer depoimento – seja do(s) arguido(s), do(s) ofendido(s), da(s) testemunha(s) -, está sujeito à avaliação e esta avaliação pode considerá-lo todo verdadeiro, todo falso, assim como poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras 13.

Finalmente, um determinado facto pode ser julgado provado por resultar do conjunto unânime da prova, pode derivar de um meio de prova, tal como pode assentar nas declarações de um só participante processual, que pode ser uma testemunha, o assistente, o ofendido, o arguido. Tudo depende da credibilidade que deva ser atribuída a essas declarações, a apreciar, como diz a lei, «segundo as regras da experiência comum e a livre convicção».

É a qualidade da prova, em contraponto com a quantidade, que tem o papel decisivo na formação da convicção do julgador.

Então a falta de unanimidade na prova não é fundamento para um non liquet e consequente intervenção do princípio in dubio pro reo. Defender isto significaria, no fundo, exigir a confissão para que um facto desfavorável ao agente pudesse ser dado como provado.

A existência de versões díspares, mesmo contraditórias, sobre os factos relevantes não implica que se aplique o princípio in dubio pro reo, pois a disparidade e contraditoriedade de provas não determina, por si só, a impossibilidade de o juiz formar uma convicção firme sobre os factos desfavoráveis ao agente.

É nos casos em que, finda a análise da prova, o tribunal não consegue chegar ao estado de certeza quanto à prática, pelo agente, de factos desfavoráveis, quanto à sua culpa, quando não consegue formar a sua convicção nesse sentido, que convoca o princípio in dubio pro reo e decide através dele, usando-o como filtro. E a decisão, em tais situação, terá que dar como não provados os factos desfavoráveis.

É por esta razão que este princípio constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação, do art. 127º.


*

Dito isto cumpre, então, decidir do invocado erro de julgamento em que o tribunal a quo alegadamente incorreu ao dar como provado o facto constante do ponto 27 da matéria assente.

E começando pelo fim, resulta que a decisão recorrida tem total apoio na prova produzida.

É certo que os arguidos A... e B...apresentaram três depoimentos alegadamente demonstrativos da sua tese, sendo que apenas um foi no sentido oposto, ainda por cima o depoimento de um co-arguido cujos interesses, digamos assim, serão opostos.

Mas este é um argumento que não impressiona.

Primeiro, temos os arguidos A... e B...que decidiram remeter o assistente para Coimbra porque, é bom lembrar, este hospital tinha a valência de uma especialidade tida como indispensável para a prestação dos cuidados de saúde ao assistente, que desde logo se impunha.

Sobre o contacto o arguido B...disse que foi o colega que telefonou. E o arguido A... disse que telefonou, é verdade, mas o depoimento não convenceu: fê-lo com uma tal falta de convicção que transpareceu que até ele percebeu isso mesmo.

Para corroborar a dispensabilidade, por um lado, o facto de a comunicação não ser a regra, antes a exceção, e, finalmente, que as comunicações acabavam por não se fazer dada a dificuldade que existia, surgiu a testemunha I... que, depois de falar da sua experiência dizendo que às vezes telefonava-se, às vezes não, e depois de explicar que, no fundo, a comunicação era desnecessária, concluiu que se tentava contactar mas grande parte das vezes não conseguiam falar.

Seguramente que os hospitais, como qualquer instituição, terão grandes/pequenas deficiências no funcionamento 14. Mas a ideia que estes arguidos e a testemunha tentaram transmitir é que as comunicações entre unidades hospitalares simplesmente não funcionam porque, usando uma linguagem muito coloquial e crua, ninguém liga, ninguém quer saber, melhor dizendo, no hospital de Coimbra não querem saber.

Não sabemos se assim é, mas as declarações do arguido C... surgem em total contraponto.

Estas declarações foram convincentes, desde logo porque aquilo que transmitiu é o que o senso comum aponta como razoável naquela circunstância.

E o senso comum é um valor que tem que ser sempre considerado, a menos que se avancem argumentos válidos que o ponham em causa.

Assim, o razoável é que quando há uma transferência de um doente se comunique ao local de destino essa transferência. A ilustrar isto temos a afirmação do arguido C..., quando disse que em 30 anos de prática clínica esta tinha sido a primeira vez que recebeu um doente sem que lhe tivesse sido comunicada previamente a transferência.

Percebe-se que assim seja. Para além de o contacto evitar que casos como o dos autos aconteçam – enviar um doente para intervenção de uma especialidade que não existe -, vão-se adiantando procedimentos, por exemplo, adiantamento que pensamos ser relevante quando, desde logo, se trate de uma emergência.

No caso, em que a transferência foi feita pela tal necessidade de intervenção da cirurgia plástica, era elementar, básico, apurar se tal especialidade existia, isto é, se a especialidade que determinara a transferência estava disponível para intervir quando o assistente chegasse ao destino. Dizer-se que achavam que a especialidade existia/que estava sempre disponível é um argumento de leigo e os arguidos são profissionais.

Depois, quando se estava perante uma lesão tão grave, comunicar a gravidade surge não como um excesso, mas como a diligência normal a ter por um profissional normal.

Por tudo isto não entendemos as palavras de I... quando defendeu a total dispensabilidade de comunicação por o doente ser portador de todo o processo e, desse modo, o estabelecimento de saúde para onde ele fosse ficar inteirado de todas as informações necessárias através da sua leitura.

Pelas razões expostas improcede também este segmento da impugnação.

O arguido C... impugna os pontos 40 e 41, dizendo que não existiam as condições para a realização da cirurgia em segurança, por ainda não terem passado 6 a 8 horas depois da ingestão de alimentos pelo assistente.

Deles consta que «40. O arguido [ C...], como chefe de equipa, não efectuou o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da fractura com osteotaxia, quando o devia e podia ter feito, porquanto tinha conhecimentos para tal e existiam todas as condições para o efeito decorrido que fosse o prazo de seis a oito horas após a ingestão de alimentos» e «41. Resolveu, antes, reenviá-lo para o Hospital Y... de Aveiro para aí ser efectuada lavagem, limpeza cirúrgica e estabilização do cotovelo, por entender que a cirurgia e aplicação dos fixadores externos estava ao alcance de qualquer equipa de ortopedia de urgência».

Ora, nada provou relativamente ao conteúdo e quantidade da comida ingerida pelo assistente. Mas o que é certo é que tendo o acidente ocorrido às 22h, a ter comido tinha que ser antes desta hora.

Sendo certo, repetimos, que não se sabe o que é que o assistente comeu/bebeu – ouvido o seu depoimento ele nada referiu sobre isto, mas também disse que não sabia se num hospital e no outro falou com algum médico porque ficou no corredor, praticamente ninguém falava consigo e só o mandavam esperar -, o que está em causa, como já dissemos, é a não realização da intervenção determinada pelas leges artis e a decisão de reenviar o assistente sem essa intervenção feita logo que fosse possível.

Sobre isto o sr. perito pronunciou-se dizendo que não era aceitável que, atualmente, um doente andasse de hospital em hospital com o braço a badalar.

E embora houvesse colegas dos arguidos que secundariam este comportamento, de reenviar o assistente para Aveiro sem ir intervencionado, também houve quem se insurgisse contra uma tal prática. Falamos da perícia.

Os arguidos A... e B...impugnam, ainda, os pontos 45 e 46 da matéria assente, dos quais consta:

- «45. Estes dois arguidos não efectuaram novamente o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da fractura com osteotaxia, quando o deviam e podiam ter feito, porquanto tinham conhecimentos para tal e existiam todas as condições para o efeito»;

- «46. Resolveram, antes e tão-só, prescrever medicação e deixar os cuidados médicos a prestar ao assistente, designadamente, a realização da cirurgia e a estabilização com osteotaxia, para os colegas da nova equipa do Serviço de Urgência de Ortopedia que entraria de serviço às oito horas da manhã»,

defendendo que devem ser alterados de molde a que passe a constar que

- «45. Estes dois arguidos não efectuaram novamente o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da factura com osteotaxia»;

- «46. Resolveram prescrever medicação e deixar o tratamento definitivo a prestar ao assistente, designadamente, a realização da cirurgia e a eventual estabilização com osteotaxia, para os colegas da nova equipa do Serviço de Urgência de Ortopedia que entraria de serviço às oito horas da manhã».

As razões das alterações propostas decorrem, conforme fundamentam, do facto de ainda não existirem condições de jejum que permitissem o internamento imediato para cirurgia do assistente, do facto de os arguidos estarem de serviço há 22 horas e a equipa seguinte estar em melhores condições para operar e de esta decisão não comportar riscos para o doente, o que foi verificado pelo companheiro de equipa (aqui ambos os arguidos alegam que foi o companheiro de equipa que comprovou a inexistência de risco), que até o medicou, tudo conforme resultou dos depoimentos de T..., D..., G..., F..., H..., I..., J..., L... e U....

O relatório pericial não se debruçou sobre o comportamento dos arguidos nesta segunda vez que o assistente deu entrada no Hospital Y de Aveiro e o sr. perito esclareceu que, de facto, esta questão não havia sido debatida pelo conselho.

Perguntado o que é que achava da decisão de os arguidos terem decidido que deveria ser a equipa seguinte a seguir o assistente, por estar em melhores condições, respondeu que achou a decisão adequada, porque a equipa seguinte estaria em melhores condições de agir.

D..., médico ortopedista, declarou que viu o assistente por volta das 9h e porque se tratava de um caso grave foi falar com os colegas mais graduados, mas não falou com os colegas que estiveram no turno anterior.

Chamou os colegas mais graduados e decidiram levar o doente para o bloco, porque se tratava de esfacelo grave, que necessitava de limpeza e estabilização. Perguntado se teria tomado esta decisão, de o levar para o bloco operatório de imediato, caso o doente tivesse acabado de entrar ido do exterior, respondeu que sim.

Disse que não colocaram a hipótese de equipa multidisciplinar. Perguntado quanto tempo demorou a cirurgia, disse que demorou cerca de uma hora e meia.

Sobre a razoabilidade de passar o doente para a equipa seguinte, por estar mais fresca, respondeu que se a situação pudesse esperar seria uma boa opção.

Perguntado se a situação em que o doente se encontrava não exigia a intervenção imediata, disse que quanto mais rápida fosse a intervenção melhor para o doente, isto independentemente da quantidade de antibiótico que lhe tenha sido ministrada: uma ferida aberta é sempre uma porta aberta para entrada dos agentes. Claro que havendo limpeza e medicação estes riscos seriam menores. Naquele tipo de lesões, fratura exposta grau III, o risco de infeção é muito elevado e mantém-se por muito tempo, dias ou semanas.

No caso o fundamental era estabilizar o doente e prestar os primeiros socorros: estabilizar a ferida, fazer uma limpeza, desbridamento, ver se havia lesão vascular e neurológica e ver se havia cobertura suficiente.

Perguntado se no caso acharam que era necessária a intervenção da cirurgia plástica, disse que não e por isso fizeram a intervenção.

Perguntado se no Hospital Y de Aveiro havia algum protocolo para estes casos, disse que o único protocolo que conhecia era sobre antibioterapia, mas que havia os conhecimentos adquiridos durante a formação. O que aprendeu é que para aquele caso o período razoável para se fazer a intervenção era o mais rapidamente possível, na primeira hora: numa fratura exposta de grau III, esfacelo, convinha ir logo, de imediato, para o bloco, pelo menos limpar e estabilizar a fratura.

A propósito do intervalo de tempo entre a ingestão de alimentos e a realização de uma anestesia geral com segurança a testemunha G... respondeu que, tanto quanto ouvia os colegas anestesistas dizer, isso dependia do que se comia e bebia: líquidos claros é um tempo; líquidos escuros é outro; sólidos é outro, sendo que o tempo pode ir até às 6, 8, 10 horas.

Portanto, o tempo de intervalo entre o acidente e a intervenção dependeria do que o doente tivesse ingerido. E o que temos é que durante uma noite inteira nenhum dos arguidos perguntou ao assistente o que é que ele tinha comido.

Será um disparate que num caso de uma tal gravidade, com necessidade de rápida realização de determinado tipo de intervenção, se indagasse junto do doente o que é que ele tinha, concretamente, ingerido? Ninguém se pronunciou sobre isto.

Quanto ao depoimento da testemunha F..., médico ortopedista, o que nos ficou foi o facto de não responder às questões: a cada questão colocada juntava uma hipótese, sobre a qual depois ia discorrendo.

Mas concretamente sobre o que agora releva disse que a decisão tomada pelos colegas de Aveiro, na segunda vez, de remeterem o assistente para a equipa seguinte por estar mais fresca, tinha sido a decisão correta.

H..., médico ortopedista, perguntado da bondade da decisão tomada pelos arguidos, de terem deixado o assistente para a equipa seguinte, por estar mais fresca, respondeu que achava que tinha sido uma boa decisão.

O mesmo respondeu I..., médico ortopedista.

A testemunha J..., médico ortopedista, perguntado se o desbridamento num período próximo da lesão, com o doente medicado e com morfina, podia ser feito sem ir ao bloco e sem anestesia, disse logo que provavelmente ele nem podia ir ao bloco, se tivesse o estômago cheio. Isto significaria que, em tal caso, os procedimentos cirúrgicos não poderiam ser feitos sob anestesia geral.

L..., médico ortopedista no hospital PP..., no Porto, começou por dizer que daquilo que leu o caso era grave, pois tratava-se de uma fratura exposta com lesões de partes moles e lesões ósseas.

Lavagem desinfeção, antibioterapia, imobilização não é tratamento cirúrgico e não o substitui e o doente precisava de cirurgia, não de plástica. Disse achar ridículo falar em tempos para a realização da cirurgia, mas também disse que esta tinha que ser feita no mais curto prazo: o doente devia ter sido operado o mais rapidamente possível.

Sobre o que era o mais rapidamente possível, disse que caso o doente tivesse comido aguardaria o tempo de jejum, entre 6 a 8 horas, isto se ele estivesse controlado: no caso, dado o que já lhe haviam feito, aguardaria o decurso desse prazo.

Relativamente ao facto de os arguidos terem remetido o assistente para a equipa que ia entrar, repetiu que o tratamento cirúrgico deveria ser feito o mais brevemente possível, perante as condições do caso: ver se o doente estava/não estava em jejum, se havia equipa, se havia instalações, etc.. Se tudo isto se verificasse o doente devia ter sido intervencionado o mais rapidamente possível: quer em Aveiro, da primeira como da segunda vez, quando lá entrou de novo, quer em Coimbra.

U..., médico ortopedista no Centro Hospitalar X..., disse que soube do caso por conversas com o arguido C... e por consulta do processo clínico.

Disse que a situação era grave, pois um esfacelo grau III implica uma lesão grande, mas o doente foi tratado adequadamente para as necessidades. Disse que em Coimbra, nestes casos, o que se faz é lavar a ferida abundantemente, tiram-se todos os tecidos inviabilizado e tapa-se a ferida. Muitas vezes estas feridas carecem de estabilização e, depois, até de um fixador externo. Isto não significa que tenha que ser feito logo, 5 minutos depois.

Do que viu no processo o doente tinha comido. Anestesiar um doente que comeu é um risco, pode haver aspiração de vómito, pelo que tem que se dilatar no tempo.

No caso ministraram analgésicos, limparam a ferida de tudo o que a pudesse contaminar. A partir daqui ou é preciso salvar a vida ou, não estando a vida em causa, então a questão é outra. Se o doente comeu, ele tem que fazer uma pausa. Mete-se uma sonda nasogástrica, lava-se e se for preciso retardar algumas horas, espera-se. Se estiver em causa a vida então intervém-se, porque o risco de vida de não fazer a intervenção é maior do que o risco de a fazer.

O período de jejum a aguardar, em situação de rotina, ronda as 8 horas, e pode ir até às 6 horas.

Como dissemos, esta questão, entretanto tão debatida, não mereceu qualquer relevo ao longo do processo, pois nem mesmo os arguidos se lhe tinham referido, apesar de essa indicação constar do processo desde sempre.

Como entender esta omissão?

Parece-nos que a única explicação é que se a referência estava no processo e não foi relevada porque, perante o quadro apresentado, ela não tinha relevo.

Reparemos no seguinte.

Lendo os elementos do processo resulta que a decisão dos arguidos A... e B..., de transferirem o assistente para Coimbra, foi devida, apenas, à necessidade da intervenção da cirurgia plástica, que o Hospital Y de Aveiro não tinha.

Depois, no hospital de Coimbra a decisão de reenviar o assistente para Aveiro sem ser intervencionado deveu-se, apenas, ao facto de não haver indicação para cobertura plástica imediata, não haver cirurgia plástica a partir das 0h e por o estado geral que o doente apresentava permitir o regresso a Aveiro.

Finalmente, quando o assistente regressou a Aveiro, onde entrou às 5h28m, da ficha de triagem consta apenas a seguinte indicação, aposta pelo arguido B...: «doente reenviado dos X... (ver proc. ant)».

Nas “notas de enfermagem”, elaboradas pelo enfermeiro GG..., consta:

«5:44 – contactado ortopedista de serviço refere para doente ficar para amanha para nova equipa, para administrar paracetamol se dor …».

Nenhuma das decisões dos arguidos, de não fazerem o tratamento necessário, foi condicionada pelo facto de constar que o assistente comera.

De repente este facto surgiu como fulcral na discussão, mas nada altera, porque a resposta também já estava no processo: os cuidados de saúde que as leges artis impunham que fossem aplicados deveriam tê-lo sido até à sexta hora depois do surgimento da lesão.

O sr. perito disse que o tratamento devido tinha que ser ministrado tão prontamente quanto possível, tal como o colégio de ortopedia da Ordem dos Médicos. E o sr. perito também disse que o tratamento tinha que ser ministrado nas primeiras 6 horas, caso não fosse possível fazê-lo de imediato.

Portanto, o respeito pelo período de jejum era compatível com o tratamento nas primeiras 6 horas.

Tendo o acidente ocorrido às 22h o assistente entrou, de novo, no Hospital Y de Aveiro 7h30 depois das 22h.

Como o assistente tinha comido antes do acidente já sabemos que o desbridamento e osteotaxia não podiam ser feitos de imediato. Mas, então, o assistente deveria ter aguardado – em repouso, tranquilamente, sem o acréscimo de ansiedade, dor, desconforto, provocada por duas viagens dizemos nós -, na unidade de saúde até que lhe pudesse ser ministrado o tratamento devido.

Analisada a prova indicada, tudo de acordo com o disposto no art. 127º do C.P.P., nenhuma prova foi feita no sentido de que os arguidos não deviam e/ou não podiam ter feito o internamento imediato do assistente, quando este regressou a Aveiro pelas 5h28m, por por razões ligadas ao assistente.

Para além disso a situação clínica do assistente era grave – esta conclusão é unânime -, e nos casos daquela gravidade as regras da profissão determinam que os tratamentos devidos devem ser ministrados nas primeiras 6 horas após a verificação da lesão.

Portanto, não é verdade que a decisão de remeter o assistente para a equipa seguinte não comportava riscos para o doente. Ao invés, comportava muitos riscos e eram estes riscos que impunham o tal limite do tratamento durante as 6h depois do surgimento da lesão.

Por isso o argumento agora invocado nada vale.

Sobre os conhecimentos dos arguidos para a realização de limpeza cirúrgica e estabilização da fratura com osteotaxia, a indicação dada é que se trata de procedimentos básicos e, por isso, acessíveis a qualquer ortopedista. Para além disso nunca se aventou a hipótese de os arguidos os não saberem ministrar e de o Hospital Y de Aveiro não reunir, naquele momento, as condições objetivas para a sua realização.

Tudo visto também improcede a impugnação da matéria constante destes pontos.

De seguida os arguidos A... e B...impugnam os factos dos pontos 67 e 68, alegando que nestes foi dado como provado, erradamente, que as lesões do assistente derivaram do tratamento que lhe foi ministrado por eles.

É a seguinte a sua redação:

- «67. O assistente ficou, assim, com sequelas que afectam de modo grave a utilização do seu corpo e a sua capacidade de trabalho, para além de o desfigurarem de forma grave e permanente (fls. 1088 a 1092)»;

- «68. Os arguidos sabiam que o assistente apresentava uma fractura exposta de grau III traduzida em esfacelo grave do membro superior direito com fractura exposta e muito complexa do cotovelo e que essas lesões constituíam uma situação de urgência médica e representavam um perigo substancial para a integridade física dele, nos termos descritos, susceptível de afectar a saúde e de modo grave a utilização do corpo e a capacidade de trabalho dele e de o desfigurar de forma grave e permanente».

Ao invés, defendem que dos mesmos deve constar que:

- 67 - «O assistente ficou com sequelas que afectam de modo grave a utilização do seu corpo e a sua capacidade de trabalho, para além de o desfigurarem de forma grave e permanente (fls 1088 a 1092), como resultado exclusivamente do acidente que sofreu»;

- 68 - «O assistente apresentava uma factura exposta de grau IlI traduzida em esfacelo grave do membro superior direito com fractura exposta e muito complexa do cotovelo, que tais lesões constituíam uma situação de urgência médica».

Os pontos 67 e 68 constituem e epílogo da história do assistente, no que respeita a este momento da sua vida.

Nos pontos 1 e seguintes conta-se o acidente, fala-se na medicação ministrada ao assistente pelo médico do INEM, a entrada no Hospital Y de Aveiro, as lesões que apresentava, a primeira observação, o encaminhamento para a ortopedia, a avaliação em ortopedia.

Depois descrevem-se as lesões sofridas pelo assistente, os riscos que estas comportam, o tratamento que, de acordo com as leges artis, deve ser dispensado e os riscos que o atraso neste tratamento provoca.

De seguida retoma-se a descrição relatando os cuidados dispensados ao assistente pelos arguidos, a decisão de transferência e as vicissitudes que a rodearam.

Transferido o assistente para Coimbra relata-se o que aconteceu no hospital desta cidade: a observação feita pelo arguido C..., a conclusão de que não havia indicação para cirurgia plástica e a decisão de reenviar o assistente para Aveiro sem, antes, ter feito os procedimentos cirúrgicos de que ele carecia.

Depois temos o sucedido no Hospital Y de Aveiro, quando o assistente regressou, com a descrição da conduta dos arguidos A... e B....

Nos pontos 50 e seguintes relata-se a entrada da nova equipa de urgência, a observação que um dos médicos fez ao assistente, os procedimentos iniciais desenvolvidos, a decisão de realização de cirurgia, descrevendo-se o que nesta foi feito.

Nos pontos 57 a 63 descrevem-se as cirurgias a que o assistente foi, depois, submetido – em 28-6-2007, 27-7-2007, 21-11-2007 e 27-2-2008 – e sua situação em 11-3-2009 e 14-10-2010, de acordo com os exames feitos nestas datas.

E no fim de tudo isto aparece o ponto 67, que resume as consequências do acidente.

Ou seja, este ponto não se refere, de forma alguma, nem à atuação dos arguidos, nem ao que derivou para o assistente desta atuação.

Sobre o ponto 68 é evidente que os arguidos sabiam as lesões que o assistente sofrera, sabiam que essas lesões eram graves e que careciam de tratamento urgente e também sabiam as consequências que essas lesões podiam gerar: os arguidos observaram o assistente e não se provou que não tivessem os conhecimentos para avaliar o caso, conhecimentos estes que, a atentar nas palavras do sr. perito, eram básicos.

Dizendo-se, embora, que os arguidos «sabiam … que essas lesões constituíam uma situação de urgência médica e representavam um perigo substancial para a integridade física dele, nos termos descritos, susceptível de afectar a saúde e de modo grave a utilização do corpo e a capacidade de trabalho dele e de o desfigurar de forma grave e permanente» não se diz, como os arguidos alegam, que este perigo resultou da atuação desenvolvida: o perigo relatado reporta-se às lesões que o assistente apresentava.

Não há, portanto, razões para alterar o decidido.

O arguido C... impugna, ainda os factos constantes dos pontos 69 a 72 por não haver sido feita prova que a equipa de Coimbra não adotou os procedimentos exigíveis por capricho ou decisão não clínica.

São os seguintes os factos em discussão:

«69. Os arguidos sabiam também que, na situação concreta, conhecidas as lesões e a situação de perigo, os únicos cuidados médicos susceptíveis de eliminar esse perigo eram a imediata sujeição a cirurgia para limpeza cirúrgica e a estabilização logo de início com osteotaxia e que tinham o dever específico de os prestar, por ser a única forma de afastar tal perigo e por terem os conhecimentos e as condições necessárias para os prestar.

70. Não obstante isso, os arguidos quiseram não prestar esses cuidados médicos imediatos indispensáveis e adequados a remover tal perigo, comportamento omissivo que o arguido C... teve quando, observado o assistente em Coimbra, nada fez e o reenviou para Aveiro, para serem os arguidos B...e A... a realizarem a cirurgia e a estabilização com osteotaxia e comportamento omissivo que estes dois arguidos também tiveram quando assistiram o assistente pela primeira vez e o enviaram para Coimbra e que reiteraram quando, reenviado o assistente de Coimbra, nada fizeram e o deixaram para a equipa médica seguinte, sendo que foi esta que veio a realizar tal cirurgia cerca de onze horas depois da produção das lesões e da entrada do assistente no Serviço de Urgência do Hospital Y de Aveiro.

71. Dessa forma, os arguidos representaram o perigo de grave lesão da integridade física do assistente, tinham consciência da indispensabilidade e da adequação daqueles cuidados médicos que deviam ter prestado e omitiram e, dessa forma, violaram o dever que lhes incumbia de proceder de imediato a limpeza cirúrgica e à estabilização da fractura com osteotaxia e de, assim, prestar a concreta assistência médica que se lhes impunha de acordo com o conjunto de regras recomendadas pela ciência e técnica médicas, e, não obstante isso, conformaram-se com esse perigo, demonstrando uma atitude de indiferença perante a situação.

72. Agiram sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas e proibidas pela penal».

Sobre o ponto 69, cabe repetir que, como resultou da perícia, a situação era grave, que uma fratura exposta cria um grave risco de infeção e que uma infeção é uma situação perigosa.

Do mesmo modo a perícia também concluiu que o tratamento da lesão do assistente exigia concretos procedimentos, a realizar num determinado período do tempo.

E sobre estes procedimentos o que o sr. perito disse é que todos os internos do 1º ano da da especialidade os conheciam.

A ser assim, a única conclusão possível é que se os arguidos não agiram de acordo com as tais leis da profissão.

O dolo na atuação é um processo mental, íntimo.

Então, se assim é, como é que o julgador o conhece, de onde é que o retira?

Uma das possibilidades é a confissão, é o agente verbalizar, de modo consciente e sabendo as consequência das suas palavras, que praticou o ilícito sabendo o que estava a fazer.

Mas e quando isto não acontece?

No que concerne aos factos atinentes à intenção e motivação do agente convém recordar a lição de Cavaleiro Ferreira 15, quando diz que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica, aos quais apenas se poderá aceder através de prova indirecta (presunções naturais não jurídicas), a extrair de factos materiais comuns e objectivos dados como provados.

Ou seja, a menos que o agente confesse, os factos do mundo interior alcançam-se por via indireta, através dos factos do mundo exterior 16.

O que está em discussão é se os arguidos prestaram ao assistente os cuidados de saúde impostos pelas leges artis.

A consulta técnico-científica concluiu que não. Diz-se no respetivo relatório, e citamos, «… uma fratura exposta de grau III deveria ter sido logo estabilizada como manda a boa prática».

Depois, na audiência, aquando da prestação de esclarecimentos o sr. perito reafirmou o entendimento do conselho médico-legal dizendo, por exemplo:

- «um esfacelo é uma lesão grave. A primeira atuação tem que ser ortopédica, para estabilizar os ossos …»;

- «… boa prática no tratamento de uma fratura exposta de grau III implica a osteotaxia, quer dizer fixadores externos, desinfeção e desbridamento cirúrgico»;

- «Não basta desinfetar todos os tecidos necrosados, sujos, conspurcados, em contacto com o exterior. Têm que ser removidos. Sempre. Portanto, implica desinfeção, desbridamento cirúrgico, antibioterapia e fixação com fixadores externos. Isto são as normas para tratar uma fratura exposta de grau III … qualquer interno do 1º ano aprende estas regras».

Então, e repetindo as palavras do sr. perito, qualquer interno do 1º ano sabe que um esfacelo é uma lesão grave e que a boa prática no tratamento de uma fratura exposta de grau III implica a osteotaxia, desinfeção e desbridamento cirúrgico.

O internato médico é o processo único de formação médica especializada, teórica e prática, que ocorre depois da licenciatura em medicina e que visa habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado na sua área profissional de especialização – art. 2º, nº 1, do D.L. nº 60/2007, de 13/3.

Os internos são os licenciados em medicina que frequentam o internato médico. E os internos do 1º ano são os que frequentam o 1º ano do internato médico.

Ora, se é tão evidente que a boa prática no tratamento de uma fratura exposta de grau III implica a osteotaxia, desinfeção e desbridamento cirúrgico, se o conhecimento de que é este o procedimento médico a adotar é básico, de tal forma que qualquer interno do 1º ano o sabe, não vemos como fugir à conclusão, desde logo por maioria de razão, que um ortopedista sabe que a boa prática no tratamento de uma fratura exposta de grau III implica a osteotaxia, desinfeção e desbridamento cirúrgico, a fazer até às 6h depois do surgimento.

No entanto existe uma nuance no desenvolvimento do raciocínio desenvolvido pela sentença recorrida.

É que quer em Aveiro, quando o assistente aí entrou pela primeira vez, quer em Coimbra o assistente não reunia as condições para lhe ser ministrado aquele tratamento, desde logo, dada a sua impossibilidade de ser submetido a anestesia geral, razão pela qual há que introduzir algumas alterações a estes pontos.

Assim, altera-se a redação dos pontos 69 a 72 da matéria assente, nos seguintes termos:

- «69. Os arguidos sabiam também que, na situação concreta, conhecidas as lesões e a situação de perigo, os únicos cuidados médicos susceptíveis de eliminar esse perigo eram a sujeição a cirurgia para limpeza cirúrgica e a estabilização com osteotaxia e que tinham o dever específico de os prestar, por ser a única forma de afastar tal perigo e por terem os conhecimentos para os prestar.

70. Os arguidos A... e B...e C... não prestaram esses cuidados médicos imediatos quando o assistente entrou no Hospital Y de Aveiro pela primeira vez e no hospital de e comportamento omissivo que os arguidos A... e B...tiveram quando assistiram o assistente pela segunda vez quando, reenviado de Coimbra, nada fizeram e o deixaram para a equipa médica seguinte, sendo que foi esta que veio a realizar tal cirurgia cerca de onze horas depois da produção das lesões e da entrada do assistente no Serviço de Urgência do Hospital Y de Aveiro.

71. Os arguidos representaram o perigo de grave lesão da integridade física do assistente, tinham consciência da indispensabilidade e da adequação daqueles cuidados médicos e ao não os terem prestado quando o assistente regressou ao Hospital Y de Aveiro os arguidos A... e B..., dessa forma, violaram o dever que lhes incumbia de proceder de imediato a limpeza cirúrgica e à estabilização da fractura com osteotaxia e de, assim, prestar a concreta assistência médica que se lhes impunha de acordo com o conjunto de regras recomendadas pela ciência e técnica médicas, e, não obstante isso, conformaram-se com esse perigo, demonstrando uma atitude de indiferença perante a situação.

72. Os arguidos A... e B...agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas e proibidas pela penal».

Pelo exposto procede, nos termos expostos, a impugnação.


*

II – Vício da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação

e a decisão

Nos termos do nº 2 do art. 410º do C.P.P. «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova».

O conhecimento, pelo tribunal ad quem, destes vícios é característico do modelo de revista alargada adoptado pelo C.P.P. de 1987, que pretendeu quebrar com a tradição do conhecimento restrito às questões de direito.

Conforme resulta da norma, todos estes vícios têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Isto significa que se trata de vícios da sentença, não de vícios do julgamento.

Os arguidos A... e B...alegam a ocorrência do vício da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão.

Este vício ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição entre a fundamentação e a decisão.

Na primeira situação invocada os arguidos alegam haver contradição entre a fundamentação e entre esta e a decisão e o ponto 69 da matéria assente, quando refere que os cuidados médicos aptos a eliminar a situação de perigo eram a imediata sujeição a cirurgia para, depois, se reconhecer que a cirurgia não podia realizar-se antes de decorridas 6 a 8 horas.

Considerando a alteração introduzida nestes pontos entendemos que a decisão sobre a alegação perdeu razão de ser no que respeita à primeira intervenção dos arguidos, pois que na altura a intervenção imediata não era possível.

No entanto, sempre se refere que na fundamentação da decisão da matéria de facto diz-se: «foi ainda focado por quase todas as testemunhas que, caso o doente tivesse comido, como foi o caso, a cirurgia deveria ser protelada pelo período de seis horas a oito horas, devido aos riscos de uma anestesia durante o decurso desse tempo. Só em circunstâncias absolutamente excepcionais, e caso haja perigo eminente para a vida, esse prazo não é respeitado».

Relembrando os esclarecimentos prestados pelo sr. perito médico, ele disse que o conceito de intervenção imediata dependia de caso para caso e podia significar logo de seguida, imediatamente, podendo, também, abranger situações em que entre a ocorrência e a intervenção mediasse um intervalo de tempo de algumas horas.

Portanto, os conceitos, as expressões, têm que ser entendidas no seu contexto.

Na segunda situação de contradição alegam os arguidos: «Existe manifesta contradição insanável entre a matéria do ponto 10 (pág. 16) onde se diz que o arguido e o colega, quando o doente lhes foi reenviado, nada fizeram, e os pontos 46 a 49 (págs. 13/14) onde se diz que eles reexaminaram o doente e prescreveram medicação que indicaram ao enfermeiro para que fosse aplicada ao doente, como efectivamente foi feito».

O ponto 10, que não figura na pág. 16 da sentença, reporta-se aos cuidados prestados ao assistente no Hospital Y de Aveiro pelo médico especialista em cirurgia geral e diz, concretamente, «foi-lhe colocada sonda nasogástrica, por se apresentar nauseado».

Dos pontos 46 a 49 da sentença, relativos à atuação dos arguidos A... e B...quando o assistente deu entrada no Hospital Y de Aveiro, ido de Coimbra, consta o seguinte:

«46. Resolveram, antes e tão-só, prescrever medicação e deixar os cuidados médicos a prestar ao assistente, designadamente, a realização da cirurgia e a estabilização com osteotaxia, para os colegas da nova equipa do Serviço de Urgência de Ortopedia que entraria de serviço às oito horas da manhã.

47. Assim, após o regresso do assistente ao Hospital Y de Aveiro, o arguido B...exarou na informação clínica o seguinte registo:

“Doente reenviado dos X... (ver proc. anterior) rubrica nº de ordem 19275” (fls. 34).

48. Por sua vez, o enfermeiro GG... exarou nas “notas de enfermagem" o seguinte registo:

"5:44 – contactado ortopedista de serviço refere para doente ficar para amanha para nova equipa, para administrar paracetamol se dor …(rubrica 2901)" (fls. 34 verso).

49. E no registo da medicação administrada ao doente consta:

"Paracetamol 1g IV SOS

Cefazolina 2g IV 6-6 7h30

Gentamicina 240 mg IV dia 7h30…" (fls. 34 verso)».

Antes destes pontos estão os pontos 44 e 45, o primeiro que diz que o assistente foi encaminhado para o serviço de ortopedia, onde os arguidos ainda estavam, e o segundo que diz «estes dois arguidos não efectuaram novamente o internamento imediato do assistente em ortopedia para ser sujeito a cirurgia para limpeza cirúrgica e para estabilização da fractura com osteotaxia, quando o deviam e podiam ter feito, porquanto tinham conhecimentos para tal e existiam todas as condições para o efeito».

A expressão «nada fizeram e o deixaram para a equipa médica seguinte», reportada à atuação dos arguidos A... e B...quando o assistente regressou de Coimbra, quando retirada do contexto e apresentada da forma desgarrada, como os arguidos a apresentaram, aparenta estar em contradição com o demais.

Mas analisada dentro do contexto em que foi proferida e no enquadramento do vício é claro não haver qualquer contradição, porque a expressão “nada fizeram” reporta-se à atuação que deveriam ter desenvolvido segundo as leges artis e não desenvolveram.

Os arguidos também integram no mesmo vício a taxa de infeção referida no ponto 22, sendo que ela se refere a situações a que não tenha havido tratamento, o que não sucedeu no caso vertente, em que houve tratamento.

Primeiro, é claro que esta situação, assim colocada, nunca integraria o vício invocado, dados os seus contornos conceptuais já referidos.

Para além disso, e mais uma vez, o que os arguidos fazem é retirar expressões, dados, do contexto para, descontextualizando-os, argumentarem. Ora, o que se diz no ponto 22 é que «o decurso do tempo sem o tratamento descrito potencia o aparecimento de lesões sequelares e ficam também potenciados os riscos hemorrágicos, neurológicos e infecciosos, sendo que a taxa de infecção chega a atingir 40%, na ausência de tratamento».

Ou seja, do ponto 22 consta que a não prestação dos cuidados médicos indicados pelas leges artis potencia as situações nele referidas, nomeadamente infeção cuja taxa chega a atingir 40%.

Mais uma vez não é a omissão de um qualquer tratamento que está em causa, mas sim a omissão do tratamento imposto pelas leges artis.

Mantendo-nos no vício da contradição, os arguidos alegam haver manifesta e insanável contradição entre a fundamentação e a decisão «na matéria elencada nos pontos 15 e 43 da matéria de facto dada como provada, porquanto se se reconhece que o paciente comera cerca das 22 horas e que não poderia ter sido operado antes de terem passado seis a oito horas, nunca ele poderia ter sido operado … às 4.00h da manhã, não só porque ainda não tinham decorrido oito horas sobre a ingestão da refeição, mas também porque o paciente só regressou de Coimbra às 5.28h».

No ponto 43 diz-se que «o assistente regressou de ambulância ao Hospital Y de Aveiro, onde chegou às 5h28m» e no ponto 15 diz-se, além do mais, que o assistente comera há meia hora.

Para além de nada se ter provado relativamente ao conteúdo e quantidade da comida ingerida pelo assistente, o que é certo é que tendo o acidente ocorrido às 22h, esta indicação aposta na informação clínica – que comera à meia hora -, não está correta, considerando que a triagem foi efetuada às 23h00. E não se diga que é uma diferença irrelevante: na situação do assistente, de grande sofrimento físico e com uma lesão muito grave, qualquer lapso de tempo é considerável.

Mas, para além disso, o que está em discussão, tal como os arguidos sabem, é a validade científica da decisão de transferirem o assistente para o hospital de Coimbra com a justificação de, na intervenção a que ele deveria ser submetido, ter que ser convocada a cirurgia plástica. Para além disso entre as 0h e as 9h não havia uma tal valência no hospital para onde o assistente foi enviado.

Não ter sido tomada esta decisão – de enviar o assistente para o hospital de Coimbra -, significava que o assistente teria permanecido em Aveiro – onde se deveria ter mantido, a atentar nas palavras do sr. perito -, apoiado, seguido, aguardando em ambiente tranquilo, para ser intervencionado, então, pelas 4h.

Assim, e seguindo todo o raciocínio, desvanece-se qualquer possibilidade de ter o referido como contraditório.

A contradição seguinte respeita aos pontos 67 a 73 no que às lesões respeita, dizendo os arguidos neste particular que se confundem as lesões que resultaram directamente do acidente, e que nunca podiam ser minoradas pela actuação do arguido, com o perigo concreto que foi invocado. Acrescentam, ainda, que é a própria sentença que diz que os perigos de infeção foram minorados com a sua atuação e que não houve perigo para a integridade física do assistente.

O ponto 67 da matéria assente consigna as sequelas de que o assistente ficou a padecer na sequência do acidente de que foi vítima, conforme avaliação realizada na perícia de avaliação do dano corporal, cujo relatório consta de fls. 1088 e segs. do processo.

Dos pontos 68 e 69 consta, como acima se viu, que os arguidos sabiam as lesões com que o assistente apareceu no Hospital Y de Aveiro, na noite de 20-5-2007, o que tais lesões configuravam e os cuidados de que careciam.

Mais uma vez a dúvida dos arguidos resulta da falta de visão de conjunto.

Primeiro, resulta claramente da leitura que o perigo que aqui se fala é o resultante das lesões que o assistente apresentava quando deu entrada no Hospital Y de Aveiro, lesões estas de que os arguidos tomaram conhecimento.

Depois, está assente que os arguidos prestaram cuidados de saúde ao assistente. O que foi censurado, repete-se, foi o facto de não terem prestado os cuidados específicos que se impunha terem prestado.

Depois, e quanto ao invocado perigo, é evidente que se havia, digamos, uma graduação de eficácia entre os cuidados prestados e os cuidados que deveriam ter sido prestados, então a lógica diz que tendo os cuidados prestados sido de eficácia, qualidade, inferior, não preveniriam da mesma forma os perigos que no caso existiam.

A análise do conjunto tem a virtualidade de sanar eventuais desconformidades que pareçam surgir quando se decompõe o caso em múltiplos quadros, independentes uns dos outros.

Mais à frente, e em sede de invocação do mesmo vício, os arguidos alegam que há contradição nos pontos 22 e 23 porque, se bem percebemos, o primeiro fala nos perigos resultantes do atraso na prestação de cuidados e, simultaneamente, nos perigos resultantes da não prestação de cuidados.

Lendo o ponto 22 percebe-se que ele se reporta ao que o sr. perito considerou que se verificou: atraso na prestação dos cuidados que o caso reclamava. Por isso se considerou que o tratamento dispensado – diferente do que era devido -, diminuiu os riscos que o assistente correu em consequência da lesão sofrida no acidente.

Aqui chegados conclui-se que improcede o vício da contradição insanável, do nº 2, al. b), do art. 410º do C.P.P.


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IV – Vício do erro notório na apreciação da prova

Os arguidos alegam, também, que a sentença padece do vício do erro notório na apreciação da prova, da al. c), do nº 2 do art. 410º do C.P.P.

Tal como o anterior, este é um vício da decisão, não do julgamento, pelo que tem que resultar do seu texto, sendo que, conceptualmente, acontece quando ocorram distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, quando se verifica uma apreciação manifestamente ilógica, insustentável. Sobre o seu caráter notório entende-se que ele terá que ser evidente para a JJ ...dade das pessoas.

Os arguidos começam por enquadrar neste vício a decisão que afirmou a consciência dolosa na prestação de cuidados de saúde ao assistente, isto apesar de o sr. perito ter afirmado que eles teriam atuado com a melhor das intenções.

Vamos repetir o que já dissemos.

A perícia concluiu que os arguidos não prestaram ao assistente os cuidados de saúde impostos pelas leges artis.

O sr. perito reafirmou o que o conselho médico-legal havia dito: um esfacelo é uma lesão grave; boa prática no tratamento de uma fratura exposta de grau III implica a osteotaxia, quer dizer fixadores externos, desinfeção e desbridamento cirúrgico.

E rematou dizendo que qualquer interno do 1º ano sabe estas regras.

Então, ao agirem como agiram os arguidos quiseram não prestar ao assistente os cuidados médicos que as leges artis impunham para o caso.

Esta conclusão adere integralmente à perícia, pelo que não entendemos a argumentação dos arguidos quando invocam a ilegalidade e até o abuso de poder por o tribunal recorrido ter entendido que o tratamento clínico referido na sentença era o único a implementar.

Já se sabe que o tratamento clínico referido na sentença não era o único possível: desde logo também havia o tratamento desenvolvido pelos arguidos. Mas não são as opções que estão em discussão.

Depois, «o tratamento clínico imposto pela sentença» foi aquele que a sentença recolheu da prova com especial valor probatório que foi produzida nos autos e que os arguidos estão sempre a esquecer.

Pelo exposto improcede, também, este vício.


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V – Enquadramento jurídico

A sentença recorrida, depois de afirmar que o crime em questão pune a não prestação de cuidados médicos, decidiu pelo enquadramento dos factos na norma citada na base da seguinte argumentação:

«… O bem jurídico protegido é a vida ou a integridade física, devendo a integridade física ser entendida em sentido lato …

No entanto, no que se refere à integridade física, a mesma só é tutelada contra um grave perigo.

Assim, no que toca a este último aspecto, esta norma tem de ser conjugada com o disposto no art. 144º do CP. Só se preencherá este tipo de crime se algum dos bens aí tutelados tiver sido, efectivamente, posto em perigo.

O crime é de perigo concreto, quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos – vida e integridade física – e de resultado quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção. A não prestação de cuidados consiste numa omissão, numa recusa de prestar os cuidados médicos indicados, em tempo útil, uma vez conhecida, directa ou indirectamente, a situação de perigo para a vida ou saúde.

O tipo objectivo de ilícito exige ainda que o perigo não possa ser removido de outra maneira, sendo a actuação médica, em concreto, o único meio capaz de eliminar o perigo

No que se refere ao tipo subjectivo, tem de existir dolo

Terá de haver o dolo de perigo concreto, ou seja, no caso da recusa de médico, a representação do perigo para a vida ou do perigo de grave lesão da integridade física, a consciência acerca da “indispensabilidade e adequação do auxílio médico que o omitente podia ter prestado” e a conformação (atitude de indiferença) perante tal situação. Se o agente se mantém passivo, apesar de ter consciência do perigo e da imprescindibilidade (para remoção do perigo) de auxílio médico, que podia prestar, poderá concluir-se que, no mínimo, se conformou com esse perigo, demonstrando uma atitude de indiferença (dolo eventual) …

No caso, impendia sobre os arguidos um dever de garante …

Ora, no caso os arguidos, a prestar serviço na urgência do hospital no qual compareceu o doente, tinham a obrigação de lhe prestar todos os cuidados de saúde que o mesmo exigia.

Ao invés, enviaram-no para um outro hospital sem qualquer causa válida e, quando o doente regressou ao Hospital Y de Aveiro, relegaram o tratamento do mesmo para a equipa seguinte.

Assim, não restam dúvidas que a sua conduta integra uma situação de recusa de médico».

Dispõe o art. 284º do Código Penal que pratica o crime de recusa de médico «o médico que recusar o auxílio da sua profissão em caso de perigo para a vida ou de perigo grave para a integridade física de outra pessoa, que não possa ser removido de outra maneira …».

Face à formulação legal é evidente que o comportamento ilícito é não a criação de perigo para a vida ou de perigo grave para a integridade física de outra pessoa – factos cuja punição está reservada, nomeadamente, para os crimes de homicídio e de ofensa à integridade física -, mas sim a recusa de auxílio quando em causa esteja uma situação de perigo para a vida ou de perigo grave para a integridade física de outra pessoa.

E como é que esta recusa de auxílio se configura? Dado que nenhum dos arguidos se recusou a prestar cuidados de saúde ao assistente será, então, que houve erro de direito, conforme defendem?

Diz Taipa de Carvalho, no comentário à norma que consta do Comentário Conimbricense do Código Penal 17, que «as omissões de auxílio por parte dos médicos poderão constituir uma violação do dever de garante (art. 10º-2), uma violação do dever específico de assistência médica (art. 284º) ou uma violação do dever geral de auxílio (art. 200º-1), e, consequentemente, a sua não prestação de auxílio poderá configurar o crime de homicício ou de ofensas corporais por omissão, o crime de recusa de médico ou o crime de omissão de auxílio …».

Primeira conclusão: o tipo consiste na violação do dever específico de assistência médica.

Sobre a configuração do tipo legal em discussão diz, depois, este mesmo autor: «elemento fundamental e característico deste crime é a não prestação dos cuidados médicos indicados para o tratamento da situação de perigo para a vida ou para a saúde».

Daí que o termo recusar usado na lei não possa ser entendido em sentido literal – não aceitar, declinar, rejeitar -, «mas no sentido amplo que compreende tanto o negar-se como o protelar, o ficar indiferente. Portanto, recusar significa a não prestação de auxílio médico em tempo útil, uma vez conhecida, directa ou indirectamente, a situação de perigo» 18.

A sentença recorrida acolheu este entendimento quando decidiu que o tipo consiste na omissão de prestação dos cuidados médicos indicados em tempo útil.

Os arguidos alegam, também, que exercendo o médico a sua profissão com total independência isto significa que tem a liberdade de escolher os meios de diagnóstico ou de tratamento que, no seu critério, se afigurem como os mais adequados ao caso.

Os arguidos entendem esta independência no sentido de que tendo eles concluído que a intervenção que desenvolveram era aquela que se impunha, isto significa que uma tal opção não é sindicável, precisamente pela liberdade de escolha de tratamento que lhes assiste.

Efetivamente, o art. 142º do Código Deontológico dos Médicos estabelece a liberdade de escolha dos meios de diagnóstico e tratamento.

No entanto, estabelece, igualmente, no seu nº 3, que esta liberdade «não obsta à existência de orientações, normas e protocolos respeitantes à utilização de meios complementares de diagnóstico e tratamento …».

Parece-nos que será aqui que se integrarão as chamadas leges artis, enquanto complexo de regras técnico-científicas e princípios de deontologia e ética profissionais que um médico medianamente competente, sensato, prudente, diligente, conhece e utiliza corretamente, estabelecidas pelos profissionais de medicina, regras estas dinâmicas, em constante atualização, face às novas conquistas e conhecimentos.

E parece que aquilo que os arguidos propõem, com a sua argumentação, é, ao fim e ao cabo, a extinção destas “leis” de bom procedimento, estabelecidas para cada caso.

E neste momento já se percebe que o crime em causa consista na não prestação dos cuidados médicos devidos, isto é, dos cuidados determinados pelas leges artis para o caso concreto.

Aceitamos que haverá casos em que será difícil assentar nas tais regras, ou porque o caso é novo e elas não existem, ou porque é muito complicado e há regras que se cruzam e se excluem mutuamente.

Mas não é esta a situação em análise. Para as lesões do assistente havia regras claras e clássicas, de todos conhecidas.

Sendo o tipo objetivo integrado pela não prestação dos cuidados médicos indicados, é claro que o tipo subjetivo resultará de, não obstante o agente conhecer qual o tratamento indicado pelas leges artis para o caso, não o ministrar.

Cabe, agora, analisar cada um dos procedimentos médicos do caso, que são três:

- o procedimento dos arguidos A... e B...na primeira vez que assistiram o assistente, no dia 20-5-2007 depois das 23h;

- o procedimento do arguido C... quando assistiu o assistente, cerca das 2h30 do dia 21-5-2007;

- o procedimento dos arguidos A... e B...na segunda vez que assistiram o assistente, no dia 21-5-2007 às 5h28.

Resultou da prova que a ingestão de comida obsta à realização de qualquer procedimento que exija anestesia, pelo risco que implica para a vida do paciente. Isto se a lesão não puser, ela própria, em risco a vida do doente, caso em que se impõe a realização da intervenção. As razões são óbvias.

No caso constava da ficha clínica que o assistente havia comido por volta da altura do acidente.

Para além disso também se provou que a lesão sofrida pelo assistente não punha em causa a sua vida, dada que estava controlado.

Perante estes dados todas as provas foram unânimes em afirmar que se teria que aguardar o período de jejum, que foi balizado nas 6 horas.

Se é assim, nem quando o assistente entrou no Hospital Y de Aveiro no dia 20, nem depois, quando ele entrou no hospital de Coimbra no dia 21 as 6h haviam decorrido.

E se não haviam decorrido e tinha que se aguardar, resulta que os procedimentos médicos impostos pelas leges artis não poderiam ter sido ministrados assistente nem numa situação, nem na outra.

Então, a omissão da ministração imediata do tratamento imposto pelas leges artis deveu-se ao facto de o paciente não reunir, num caso como no outro, as condições necessárias para que essa intervenção fosse feita.

Como já dissemos, a razão constante do processo clínico para a não intervenção, num caso e no outro, não foi o facto de o assistente ter comido. Mas tendo a questão sido suscitada e tendo a prova produzida sido no sentido indicado, não podemos desconsiderá-la.

Independentemente da motivação dos arguidos, o que é certo é que o assistente não reunia as condições para que lhe fosse ministrado o tratamento devido, de imediato, porque, na altura, não podia ser submetido à anestesia que o tratamento exigia.

Donde a omissão do tratamento devido pelos arguidos A... e B..., no dia 20-5-2007, e C... não é enquadrável no art. 284º do Código Penal, pois a prestação dos cuidados impostos pelas leges artis, na altura, não era possível.

Por isso a conduta não integra qualquer ilícito penal.

Se é ou não etica e deontologicamente censurável um indivíduo com uma fratura daquela gravidade andar «recambiado» de um lado para o outro com o «braço a badalar» (palavras do sr. perito) não é o que cumpre aqui decidir.

O que está em causa é saber se aqueles factos integram um ilícito penal e vimos que não.

O mesmo já não sucede quanto ao terceiro procedimento médico, o dos arguidos A... e B...na segunda vez que assistiram o assistente.

Aqui o período de jejum já tinha decorrido, a gravidade da lesão mantinha-se mas os riscos eram maiores do que na primeira vez, dado o tempo já decorrido.

Para além disso a indicação do tempo máximo de 6 horas para atuar também se mantinha. O sr. perito repetiu-a do princípio ao fim.

Se é assim, então é totalmente contraditório com a perícia a opinião pessoal manifestada pelo sr. perito quando disse que a decisão de os arguidos A... e B...de remeterem o assistente para a equipa que ia entrar tinha sido adequada. Ainda por cima quando esta decisão foi tomada às 5h30 e a equipa seguinte ia entrar às 8h.

Por isso o argumento da frescura da nova equipa nada vale. Dispensamo-nos de expor as razões, repetidas ad nauseum.

Assim, ao não terem, nesta altura, feito ao assistente a limpeza cirúrgica e fixação da fratura com fixadores externos, os arguidos A... e B...omitiram a prestação dos cuidados que as leges artis impunham e que sabiam ter que prestar, sabendo ainda as consequências que dessa omissão poderiam advir para o paciente.

Cometeram, pois, os arguidos um crime de recusa de médico, do art. 284º do Código Penal.


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Na sentença recorrida estes arguidos foram condenados por um só crime, mas integrado por dois momentos consubstanciadores de recusa: o primeiro, ocorrido aquando da primeira entrada, e o segundo, aquando da segunda entrada.

Na operação de quantificação da sanção os factos concretos são considerados de molde a que a pena lhes seja adequada. É isso que a lei impõe.

Então, se se conclui que parte dos factos não são criminalmente puníveis, entendemos que a sanção terá que ser refeita, para continuar a observar os princípios de adequação e proporcionalidade devidos, por respeito ao decidido, isto mesmo que ela não esteja concretamente suscitada.

Mas também entendemos que, por via indireta, a sanção aplicada é visada nos recursos: ao impugnar o enquadramento legal dos atos e ao proceder a alegação relativamente a um deles, então terá que se tirar, daqui, todas as consequências devidas. Mas as consequências a tirar só podem versar, entendemos nós, no quantum da pena aplicada.

No entanto não acolhemos um eventual entendimento possa aflorar que o que haverá a fazer é, digamos, partir a sanção ao meio: se se aplicou X por dois factos, aplicar-se-á X/2 a um facto.

É uma lógica fácil, mas não é a lógica correta.

É que aquando da segunda entrada no Hospital Y de Aveiro havia condições para ministrar, ao assistente, os cuidados que se impunham, porque o período de jejum já havia decorrido.

Para além disso os riscos que o assistente corria eram, agora, muito maiores do que antes, porque também já haviam decorrido mais de 6h desde o surgimento da lesão, fronteira a partir da qual os perigos aumentam muito mais.

Acautelar a situação do assistente, acautelar estes perigos era o que se impunha.

Assim, e pelo crime cometido, aplica-se a cada um dos arguido A... e B...a pena de 6 meses de prisão, substituídos por 180 dias de multa, à taxa diária de 15 €.


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VI – Impugnação da decisão que condenou em indemnização

Os arguidos A... e B...terminam impugnando a decisão que determinou a obrigação de indemnizarem o assistente.

A sentença recorrida decidiu condenar cada um dos arguidos A... e B...a pagarem ao assistente V... a quantia de 3600 € a título de danos não patrimoniais, pelo sofrimento que este sentiu em resultado das dores, da sensação de angústia, de incerteza e do abandono sentidos, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, a contar da notificação do pedido de indemnização civil e da sanção pecuniária compulsória, à taxa de 5%, a partir do trânsito em julgado da sentença.

Perante os factos a sentença recorrida teve o comportamento dos arguidos como integrando os pressupostos da obrigação de indemnizar decorrente da responsabilidade civil extracontratual.

Mantendo-se a decisão de facto, resulta que os pressupostos da obrigação de indemnizar estão preenchidos.


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2º – Recurso do assistente V...

Impugnação do montante indemnizatório fixado

O assistente também impugnou a decisão que fixou em 3600,00 € e 1800,00 €, respetivamente, a quantia devida pelos arguidos A..., B...e C..., a titulo de danos não patrimoniais.

Relativamente ao arguido C... não havendo crime não pode subsistir a condenação em indemnização, que o teve como pressuposto.

O assistente havia pedido a condenação de cada um dos arguidos a indemnizarem-no em 30000,00 €, alegando para tanto que entre o acidente e o momento em que foi intervencionado viveu um “jogo do empurra” sem receber os cuidados devidos, que nenhum dos arguidos queria ministrar, que lhe devotaram total desinteresse e desconsideração, sendo que durante todo aquele período sofreu muitas dores, para além de incerteza e angústia resultantes da ausência dos cuidados médicos que lhe deveriam ter sido ministrados.

Dispensando-nos de repetir toda a demais factualidade provada, apenas diremos que resultou provado que «durante as onze horas que esperou pela cirurgia o ofendido sentiu muitas dores, sofrimento, incerteza e angústia, causadas pela ausência de cuidados médicos. Sentiu-se abandonado, sem vislumbrar o alcance dos cuidados que deveria receber, não sendo informado sobre a sua situação ou tratamentos a adoptar» (ponto 74).

Sobre o montante indemnizatório a sentença recorrida decidiu fixar os montantes referidos do modo seguinte:

«… desde já se diga que o montante peticionado é manifestamente exagerado. Basta lembrar que o assistente recebeu a quantia de 72.500 € relativa à indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do acidente e com o recebimento dessa quantia se considerou ressarcido.

Não pode agora pretender receber uma indemnização de 90.000 €, no total, pelo sofrimento que teve durante uma noite

No entanto, atendendo ao sofrimento que ofendido sentiu e que foi necessariamente grande e que inclui para além das dores, a sensação de angústia de incerteza e de abandono; considerando, também, que os arguidos têm uma condição económica desafogada; considerando que a conduta dos arguidos B...e A... é mais grave que a conduta do arguido C..., entendo adequado fixar uma indemnização total de a pagar ao ofendido no valor de 9000 €, sendo que os arguidos B...e A... deverão pagar, cada um, a quantia de 3600 € e o arguido C... a quantia de 1800 € …».

Nos termos do art. 129º do Código Penal «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil».

A lei civil diz, no art. 483º, nº 1, do Código Civil que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

São, pois, pressupostos da obrigação de indemnizar:

- o facto voluntário do agente;

- a ilicitude do facto;

- a imputação do facto ao lesante, a título de dolo ou mera culpa;

- a ocorrência de dano;

- a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.

A única questão que se coloca é a da quantificação dos danos sofridos pelo assistente pelo ato ilícito cometido.

A obrigação de indemnizar está prevista e disciplinada no Código Civil.

O princípio geral desta obrigação consta do art. 562º, que diz que «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação», restringindo-se a obrigação «aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão» - art. 563º.

Os danos indemnizáveis decorrentes da prática de um crime são os danos patrimoniais e os danos não patrimoniais. Os danos patrimoniais respeitam à frustração de utilidades susceptíveis de avaliação pecuniária, como é o caso da destruição da coisa, e os danos não patrimoniais são aqueles que gerando um mal relevante ao lesado são insuscetíveis de expressão pecuniária, como sejam as dores físicas e morais sofridas.

A indemnização pelo dano patrimonial corresponde à diferença entre a situação patrimonial actual e a que existiria se não tivesse ocorrido o evento lesivo (art. 562º e 563º do Código Civil) e abrange o dano emergente (prejuízo causado) e o lucro cessante (benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão) – art. 564º do Código Civil.

Quanto aos danos não patrimoniais, nem todos eles são indemnizáveis. Nos termos da lei só são atendíveis para efeitos indemnizatórios aqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – art. 496º do Código Civil.

Relativamente à sua quantificação, dada a natureza de tais danos ela faz-se com recurso à equidade.

A fixação da indemnização de acordo com a equidade significa que o seu valor é determinado considerando a culpa do agente, a sua situação económica e a situação económica do lesado, as especiais circunstâncias do caso, a gravidade do dano, etc., ou seja, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida 19: a indemnização deve ser proporcional à gravidade do dano, a avaliar objetivamente, e ser fixada de acordo com critérios de boa prudência e ponderação das realidades da vida.

E não podia deixar de ser assim porque a indemnização por danos não patrimoniais não visa pagar, nem apagar, os danos provocados pelo facto, porque sobre eles não podem incidir regras de cálculo. O que aqui se pretende é atenuar, minorar e de certo modo compensar os danos sofridos pelo lesado 20, atribuindo-lhe uma soma em dinheiro que lhe permita um acréscimo de bem-estar que sirva de contraponto ao sofrimento moral provocado pela lesão, na medida em que lhe pode proporcionar alegrias que compensem a dor, tristeza ou sofrimento ocasionado pelo facto danoso.

Sendo essa a função da indemnização pelo dano não patrimonial não pode ela ser meramente simbólica, a menos que seja isso que se pretenda.

Conforme resulta do art. 496.º do C. Civil, para o ressarcimento destes danos a lei confia ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso e nesta apreciação releva não o rigor contabilístico da adição de custos, despesas, ou de ganhos (como acontece quando se procede ao cálculo da maior parte dos danos patrimoniais), mas o desiderato de, prudentemente, dar alguma correspondência compensatória ou satisfatória entre uma maior ou menor quantia de dinheiro a arbitrar à vítima e a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ela se viu afectada 21.

A jurisprudência entende que as decisões em cujo julgamento intervém a equidade são passíveis de alteração nas hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as regras da boa prudência, de bom sendo prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida 22.

Entendemos quando o arguido alega que o pedido indemnizatório aqui formulado não pode ser comparado com a indemnização recebida pelo acidente sofrido.

É verdade que são factos diferentes e são danos diferentes que estão em discussão.

No entanto, é razoável a comparação estabelecida, desde logo para encontrar balizas uma vez que, como se referiu, nesta indemnização não há elementos objetivos auxiliadores. Atende-se apenas à equidade.

Por isso se pode, e deve, considerar outros casos como um elemento coadjuvante nesta função de quantificar dores e sofrimento.

Por exemplo, no acórdão de 26-1-2012, processo 220/2001, o S.T.J. fixou em 40.000,00 € a indemnização ao lesado por danos não patrimoniais decorrentes de um internamento hospitalar de 3 meses, com várias intervenções cirúrgicas, que, depois, teve necessidade de ajuda permanente de terceira pessoa, com dores de grau 5 numa escala até 7 e cuja incapacidade absoluta para o trabalho, na vertente não patrimonial, se prolongou por ano e meio tendo ficado, estabilizada a situação, com dores e dismetria dos membros inferiores.

Numa outra decisão de 29-6-2011, processo 345/06.6PTPDL, o mesmo tribunal fixou em 25.000,00 € a indemnização por danos não patrimoniais derivados de fratura do cotovelo, que obrigou a intervenção cirúrgica e a um período de 30 dias de incapacidade temporária geral e profissional total, seguido de um período de 177 dias de incapacidade temporária geral e profissional parcial, com um quantum doloris de grau 5, numa escala de 7, e com um dano estético fixado no grau 3, numa escala até 7.

Concordamos, pois, com a decisão recorrida quando entende excessivo o pedido formulado, por comparação com a indemnização recebida pelo acidente.

Mas isto não significa que o valor fixado seja de manter e que seja de diminuir devido ao facto de parte dos atos praticados terem sido excluídos da decisão penal.

O assistente sofreu dores. Mas além das dores temos o sentimento de abandono a que foi sujeito, por andar «recambiado» de um lado para o outro «com o braço a badalar». As dores eram fortes, potenciaram o sofrimento, incerteza, angústia, abandono, bem retratados quando disse que ninguém falava consigo, que só o mandavam esperar.

O tratamento humano, compassivo, é o que se espera de um profissional perante alguém especialmente carente e diminuído, como é o caso de um doente em ambiente hospitalar.

Quando o profissional cuja função é tratar essa pessoa lhe devota distância e ostensivo desinteresse, aquele sentimento torna-se avassalador.

Tudo isto nos ensina a experiência comum, as regras da vida.

Depois, quando a lesão é grave, então o sofrimento físico e psíquico multiplicam-se.

Outro dado muito importante era o de risco acrescido de infeção que, naquele momento, já existia, pois a lesão tinha mais de 6h. Nada aconteceu, é certo, mas a efetivação do perigo não é pressuposto necessário.

Para além disso, sendo certo que o primeiro comportamento dos arguidos não integra o ilícito típico, já é passível de consideração nesta sede, na medida em que eles sujeitaram o assistente a deslocações manifestamente inúteis, que agravaram os danos não patrimoniais que se visam ressarcir.

Por isso não só entendemos que não há que seguir aqui a lógica seguida a propósito da sanção penal – em que se tem que atender à menor gravidade que o caso veio a assumir fazer refletir isto na pena -, como deverá elevar-se a indemnização a atribuir, por a fixada não ser adequada.

Por tudo isto temos por mais correto fixar em 4.000,00 a indemnização devida ao assistente por cada um dos arguidos A... e B....


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3º – Recurso da demandada K...

Na sequência da acusação veio o assistente V... deduzir pedido de indemnização contra os arguidos pelos danos sofridos com as suas atuações.

Os arguidos B...e A... contestaram alegando, além do mais, que o assistente já fora indemnizado dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.

O assistente respondeu dizendo, além do mais, que a indemnização recebida derivou dos danos sofridos na sequência do acidente de viação de que foi vítima e para cujo tratamento deu entrada nos hospitais de Aveiro e Coimbra.

Posteriormente o assistente requereu a intervenção provocada do hospital Y..., de Aveiro, por conta de quem o arguido B...trabalharia aquando da prática dos atos julgados no processo.

O pedido não foi admitido, por do processo constar que os arguidos A... e B...não eram funcionários daquele hospital, mas sim da empresa K....

O assistente veio, então, requerer a intervenção provocada desta empresa, nos termos dos art. 500º do Código Civil e 325º, nº 1, do C.P.C.

O pedido foi admitido, nos seguintes termos: «Conforme consta da acusação, dois dos arguidos eram na altura da prática dos factos funcionários dessa empresa. Assim esta pode ser responsabilizada nos termos do art. 500º do Código Civil. Assim, nos termos do art. 325º do CPC defiro o pedido de intervenção principal provocada …».

A demandada, notificada da acusação, do pedido de indemnização e das contestações dos arguidos, opôs-se ao pedido alegando que a sua atividade reside no recrutamento, seleção e colocação de profissionais de saúde em unidades de saúde. No que respeita a médicos tal significa o seguinte: a unidade de saúde adjudica, por concurso ou ajuste direto, prestação de serviços médicos, sobretudo de urgência, de determinada especialidade e para um determinado período de tempo; após a adjudicação a demandada contacta os médicos que tem na sua base de dados e que preencham o perfil pretendido; depois de reunir o número de médicos necessários envia os respetivos currículos para a unidade de saúde, para aprovação; depois da aprovação a demandada limita-se a preencher as escalas que a unidade de saúde envia mensalmente com os médicos selecionados e aprovados. As escalas consistem num mapa que a unidade de saúde envia à demandada e do qual constam os dias e horas, referente ao serviço de urgência, que a unidade de saúde não consegue preencher por si.

Diz que relação que estabelece com os médicos é uma relação de prestação de serviços: o médico não é seu funcionário, não existe qualquer contrato de trabalho entre ambos, nem qualquer subordinação, pois não dá ordens ou orientações ao médico quanto à forma como desempenhar as suas funções. O médico presta serviço no local indicado pela demandada, mas com os equipamentos da unidade de saúde, sob as orientações do diretor de serviço e de acordo coma s regras da instituição, sendo o diretor de serviço da instituição que organiza os trabalho e que dá as instruções ao nível de procedimentos.

A demandada obriga-se a prestar um serviço ao hospital, que é o recrutamento e seleção de médicos, limitando-se a organizar a sua escala em função das necessidades da instituição e da disponibilidade do médico. Depois paga os honorários do médico de acordo com as horas trabalhadas e de acordo com o acordado.

Julgada a causa provou-se, no que agora releva, que:

- «16. Nessa noite, no Serviço de Urgência de Ortopedia do Hospital Y... encontravam-se de serviço o arguido B...(com a cédula profissional nº 19 275) e o arguido A... (com a cédula profissional nº 34 487), médicos especialistas em ortopedia, aos quais coube toda a observação do assistente e a determinação da assistência médica e da medicação a efectuar»;

- «17. Os dois arguidos não pertenciam aos quadros do Hospital e iam aí prestar serviço de ortopedia através da empresa “ K..., Lda”, sendo inclusivamente esta empresa que procedia à sua selecção, recrutamento, organizava a escala de serviço (fls. 653) e pagava aos médicos, não exercendo qualquer controlo quanto à forma como o serviço era efetuado, dentro da instituição hospitalar».

A final a sentença decidiu, quanto à responsabilidade da demandada K..., o seguinte:

«… A mesma foi chamada aos autos por, alegadamente, os arguidos B...e A... serem seus funcionários ao tempo em que ocorreram os factos, tendo sido contratados por esta empresa.

Em causa está assim a responsabilidade, nos termos do art. 500º do C. Civil, isto é a responsabilidade do comitente por actos do comissário.

Estabelece o art. 500º do CC que “aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.

Pressupostos da obrigação de indemnizar por parte da K..., (independentemente de culpa, sendo por isso um caso de responsabilidade objectiva) são portanto que:

- sobre os arguidos recaia a obrigação de indemnizar, questão que não coloca qualquer dúvida, sendo óbvio que sim, face a tudo o que já foi exposto;

- haja uma relação de comissão entre a K... e os arguidos, havendo por isso que definir o que seja essa relação de comissão.

Segue-se a doutrina da Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol.1 Almedina Coimbra, 7ª edição, pags.634 e ss “O termo comissão tem aqui o sentido amplo de serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem (…), pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo.

(…)

A relação de subordinação pode ter carácter permanente ou duradouro, como quando provém de um contrato de prestação continuada ou periódica, ou ser puramente transitória, ocasional, limitada a actos materiais ou jurídicos de curta duração,

Ora, no caso, os arguidos foram contratados pela empresa K... para prestarem serviço no Hospital Y de Aveiro. A empresa organizou o turno, determinou o local e horário de trabalho, pagou o que foi estipulado entre a empresa e os arguidos. É assim patente que os arguidos, embora trabalhassem no Hospital Y de Aveiro e usando os meios deste hospital, o faziam sob direcção e orientação da empresa. Como é óbvio fica salvaguardada a independência técnica e cientifica dos médicos (como fica relativamente a qualquer administração hospitalar).

Deve por isso a empresa ser responsabilizada nos termos do art. 500º do CC».

No recurso interposto a demandada alega que a sentença recorrida partiu do princípio que existe uma relação laboral com os arguidos, quando o que sucede é que o contrato celebrado era de prestação de serviços. Diz que declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal a toma e é um elemento valioso de interpretação do negócio jurídico e, no caso, é claro que as partes celebraram um contrato de prestação de serviços.

A sentença recorrida condenou a demandada com base no art. 500º do Código Civil, que estabelece o seguinte quanto à responsabilidade do comitente:

«1. Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.

2. A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.
3. O comitente que satisfizer a indemnização tem o direito de exigir do comissário o reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da sua parte; neste caso será aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 497.º».

Como resulta, a responsabilidade do comitente é objetiva: ele responde independentemente de culpa e responde mesmo que o comissário tenha agido contra as instruções.

Mas para o comitente responder terá que haver comissão.

Sobre isso diz Antunes Varela 23 que «o termo comissão tem aqui um sentido amplo de serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem [não é usado com o sentido técnico preciso das relações comerciais], podendo essa actividade traduzir-se tanto num acto isolado como numa função duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual, etc.».

Sobre a relação de dependência suposta na figura diz o mesmo autor: «A comissão pressupõe uma relação de dependência (droit de direction, de surveillance et de controle, na expressão da jurisprudência francesa) entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo. É o caso típico do criado em face do patrão, do operário ou empregado em relação à entidade patronal, do procurador quanto ao mandante ou do motorista perante o dono do veículo».

Nesta relação o comitente é a pessoa que encarrega outra pessoa de um serviço ou comissão, paga ou não, no seu próprio interesse, permanente ou ocasional. Esta pessoa, o comissário, encontra-se numa relação de subordinação ou dependência em relação ao comitente, tendo este o direito de lhe dar ordens ou instruções precisas sobre a finalidade e os meios de execução da comissão, bem como de fiscalizar directamente o seu desempenho 24.

São apontados vários elementos como indiciadores da relação de subordinação que carateriza a comissão.

Um deles é o local: se a atividade é desenvolvida nas instalações do comitente ou em local por este designado, isso indicia a existência de trabalho subordinado.

Outro elemento tido como indiciador é a existência de um horário de trabalho estabelecido pelo comitente.

O terceiro elemento normalmente apontado como revelador de dependência é a exclusividade, isto é, o facto de o comissário não prestar a sua atividade para mais ninguém.

A existência de retribuição é outro fator tido como indiciador da subordinação.

Do mesmo modo se a titularidade dos utensílios, matéria primas, produtos necessários forem fornecidos pelo comitente isso gera a convicção da existência de subordinação.

Ou seja, a natureza dependente ou independente do trabalho afere-se pelo conjunto das circunstâncias e, dependendo do que se conclua, assim se apelidará a relação existente como de comissão ou não.

No caso o que se provou é que os arguidos prestavam serviço no hospital Y... «através da empresa “ K...», sendo «esta que procedia à sua selecção, recrutamento, organizava a escala de serviço (fls. 653) e pagava aos médicos, não exercendo qualquer controlo quanto à forma como o serviço era efetuado, dentro da instituição hospitalar».

Não nos parece possível concluir, daqui, pela verificação de uma situação de comissão, no sentido apontado, pois dos factos não ressalta a necessária subordinação típica.

É verdade que em 15-3-2005 25 o S.T.J. decidiu que o art. 500º do Código Civil não exigia uma relação de dependência entre o comitente e o comissário como condição da responsabilidade do primeiro, pois isso seria incoerente e ilógica face à redação do nº 2, que mantém a responsabilidade objectiva do comitente quando o comissário aja intencionalmente ou contra as suas instruções.

Com o respeito devido entendemos que as situações são distintas.

Recordando, o nº 2 do art. 500º mantém a responsabilidade do comitente mesmo quando o facto danoso tenha sido praticado intencionalmente ou contra as suas instruções.

Mas aqui há uma relação de comissão, embora o comissário a tenha violado ao agir contra as instruções, enquanto que a inexistência de subordinação descarateriza, ab initio, como comissão a relação existente.

Daí entendermos que a condenação não se pode manter.


*

DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos decide-se:

I – Quanto aos recursos:


a. negar provimento aos recursos intercalares interpostos pelo arguido B...;


b. conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido C... e, em consequência:

1 - alterar a decisão sobre a matéria de facto no que aos factos constantes dos pontos 69 a 72 da matéria assente respeita, que passam a ter a seguinte redação:

- «69. Os arguidos sabiam também que, na situação concreta, conhecidas as lesões e a situação de perigo, os únicos cuidados médicos susceptíveis de eliminar esse perigo eram a sujeição a cirurgia para limpeza cirúrgica e a estabilização com osteotaxia e que tinham o dever específico de os prestar, por ser a única forma de afastar tal perigo e por terem os conhecimentos para os prestar»;

- «70. Os arguidos A... e B...e C... não prestaram esses cuidados médicos imediatos quando o assistente entrou no Hospital Y de Aveiro pela primeira vez e no hospital de e comportamento omissivo que os arguidos A... e B...tiveram quando assistiram o assistente pela segunda vez quando, reenviado de Coimbra, nada fizeram e o deixaram para a equipa médica seguinte, sendo que foi esta que veio a realizar tal cirurgia cerca de onze horas depois da produção das lesões e da entrada do assistente no Serviço de Urgência do Hospital Y de Aveiro»;

- «71. Os arguidos representaram o perigo de grave lesão da integridade física do assistente, tinham consciência da indispensabilidade e da adequação daqueles cuidados médicos e ao não os terem prestado quando o assistente regressou ao Hospital Y de Aveiro os arguidos A... e B..., dessa forma, violaram o dever que lhes incumbia de proceder de imediato a limpeza cirúrgica e à estabilização da fractura com osteotaxia e de, assim, prestar a concreta assistência médica que se lhes impunha de acordo com o conjunto de regras recomendadas pela ciência e técnica médicas, e, não obstante isso, conformaram-se com esse perigo, demonstrando uma atitude de indiferença perante a situação»;

- «72. Os arguidos A... e B...agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas e proibidas pela penal».

2 - absolvê-lo da prática do crime de recusa de médico e da condenação em indemnização civil, em que havia sido condenado;


c. conceder parcial provimento aos recursos interpostos pelos arguidos A... e B...e, pela prática de um crime de recusa de médico, condenar cada um deles na pena de 6 meses de prisão, substituídos por 180 dias de multa, à taxa diária de 15 €;


d. conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo assistente V... e, em consequência, condenar cada um dos arguidos A... e B...a pagarem-lhe, a título de danos não patrimoniais, a quantia de 4.000,00 €, acrescida de juros à taxa legal, vencidos desde a notificação do pedido de indemnização civil, e ainda da sanção pecuniária compulsória à taxa de 5% a partir do trânsito em julgado da decisão;


e. conceder provimento ao recurso interposto pela demandada K..., Ldª, e absolve-la do pedido de indemnização.

II – Quanto à tributação:
a. pelo decaimento nos recursos intercalares interpostos vai o arguido B...condenado em 4 UC´s de taxa de justiça em cada um desses dois recursos;
b. quanto aos recursos da sentença final, vai cada um dos arguidos A... e B...condenado nas custas relativas à parte crime, fixando-se em 6 UC´s a taxa de justiça;
c. quanto à parte civil, condenam-se os arguidos e assistente, na proporção do decaimento.



Olga Maurício (Relatora)

Luis Teixeira

Coimbra, 2014-04-30

1 C.P.P. comentado, 2014, de Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, pág. 1029.

2 Da relação de Coimbra processo 20/05.9TATMR, de 28-5-2008, relatado pelo sr. desembargador Vasques Osório, e da relação de Lisboa processo 233/03.8PDFUN, de 6-11-2010, relatado pela srª desembargadora Filomena Lima.

3 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2002, pág. 19.

4 Sobre a mesma questão vide também, entre muitos outros, os acórdãos do S.T.J., processo 08P2832, de 22-10-2008, relatado pelo sr. conselheiro Armindo Monteiro, da Relação do Porto de 9-12-2004, processo 0415010, relatado pelo sr. desembargador Fernando Cardoso, da Relação de Lisboa de 19-9-2007, processo 6513/2007, relatado pelo sr. desembargador Varges Gomes, e desta relação, de 5-11-2008, processo 13/05.6TAAND, relatado pelo sr. desembargador Jorge Raposo.

5 Ainda, os acórdãos desta relação de Coimbra de 7-5-2008, processo 50/06.3GCCTB, relatado pelo sr. desembargador Jorge Raposo, da Relação de Lisboa de 17-4-2007, processo 2989/07, relatado pelo sr. desembargador Ribeiro Cardoso, e da Relação do Porto de 18-3-2009, processo 0747205, relatado pelo sr. desembargador Jorge Jacob.

6 Acórdão do S.T.J. de 1-10-2008, processo 08P2035, relatado pelo sr. conselheiro Raúl Borges.

7 Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. IV, 1981, pág. 171.

8 Direito Processual Penal, 2004, pág. 209.

9 Vide acórdão do S.T.J. de 5-5-1993, processo 044111, relatado pelo sr. conselheiro Ferreira Dias, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2002, pág. 198.

10 Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, pág. 193/194.

11 Limites enumerados por Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário ao Código de Processo Penal, 1ª ed., pág.335.

13 Enrico Altavilla, Psicologia Judiciária, vol. II, 3ª ed., pág. 12.

14 Quanto a isto por exemplo o depoimento de E... foi muito esclarecedor.

15 Curso de Processo Penal, vol. I, 1981, pág. 292.

16 Acórdão da Relação do Porto de 28-2-1990, processo 0123684, relatado pelo sr. desembargador Luciano Cruz.

17 Tomo II, 1999, pág. 1017 e segs..

18 Autor e obra citados, pág. 1019.

19 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2003, pág. 602 e segs.

20 Antunes Varela, obra e local citados.

21 Acórdão do T.R.P. de 9-7-1998, CJ, Ano XXIII, tomo IV, pág. 185, citando Pessoa Jorge, in Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil.

22 Vide, entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 17-6-2004, processos 2364/04-5, de 29-11-2001, processo 3434/01-5, e de 13-7-2006, processo 06P2046.

23 Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed., pág. 640.

24 Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed., pág 406 e segs.

25 Processo 04A4808.Proc. nº 2317/07.4TAAVR.C1 - 12 Nos termos do nº 2 do art. 3º do Estatuto dos Magistrados Judiciais estes «não podem abster-se de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da lei, ou em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado».