Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2171/20.0T8CSC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: CASO JULGADO
Data do Acordão: 09/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 580.º, 581.º E 628.º, TODOS DO CPC
Sumário:
Se o executado alegou, como fundamento da oposição à execução a titularidade do direito real sobre o bem sobre que foi constituída a garantia patrimonial representada pela penhora e a irresponsabilidade desse bem pela satisfação da obrigação exequenda, e o exequente adquiriu, na execução, que prosseguiu por força da decisão de improcedência daquela oposição, aquele direito real, o caso julgado constituído sobre essa decisão, impede o reconhecimento ou a declaração, em acção posterior, contra o exequente, de que o executado é titular daquele direito real e o cancelamento do registo, daquela aquisição, a favor do exequente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

O autor, AA interpôs recurso da sentença do Senhor Juiz de Direito do Juízo Central Cível de Leiria, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, que julgando procedente a excepção dilatória do caso julgado oposta pela ré, H..., SA, absolveu a última da instância.

O apelante – que pede, no recurso, a revogação desta decisão e a sua substituição por acórdão que ordene o prosseguimento da instância – rematou a sua alegação com estas conclusões:

I. O PRESENTE RECURSO TEM COMO OBJECTO TODA A MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO DA SENTENÇA PROFERIDA NOS PRESENTES AUTOS.

II. A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA PELO DO TRIBUNAL A QUO NO QUE CONCERNE Á AÇÃO PARA DECLARAÇÃO DA NULIDADE DOS ATOS DE REGISTO PRATICADOS PELA RÉ, ORA RECORRIDA, NA CONSERVATÓRIA DE REGISTO PREDIAL DE ... PROPOSTA PELO RECORRENTE, QUE JULGOU O PEDIDO IMPROCEDENTE, INVOCADO A APLICAÇÃO DA EXCEÇÃO DO CASO JULGADO, E ABSOLVEU A RÉ DA INSTÂNCIA, DEVE SER MODIFICADA.

III. DIZ A SENTENÇA ORA EM CRISE QUE ESTAMOS DIANTE DA EXCEPÇÃO (DILATÓRIA) DE CASO JULGADO, FUNDAMENTANDO ESTAREM PREENCHIDOS TODOS OS REQUISITOS DO ARTº 581 DO CPC.

IV. PARA TANTO ARGUMENTA QUE HÁ UMA TRÍADE DE IDENTIDADE;

V. EFECTIVAMENTE EXISTE IGUALDADE DE SUJEITOS EM AMBAS AS ACÇÕES, EMBORA OS SUJEITOS OCUPEM POSIÇÕES JURÍDICAS ANTAGÓNICAS, FIGURANDO O RECORRENTE ANTES COMO EXECUTADO E AGORA COMO AUTOR E A RECORRIDA ANTECEDENTEMENTE COMO EXEQUENTE E AGORA COMO RÉ.

VI. CONTRARIAMENTE AO SENTENCIADO E RELATIVAMENTE À IDENTIDADE DO PEDIDO TEMOS DUAS ACÇÕES DISTINTAS, QUE ASSENTAM EM CAUSAS DE PEDIR TAMBÉM ELAS DIFERENTES.

VII. OU SEJA, A QUESTÃO FUNDAMENTAL NÃO É A MESMA NAS DUAS ACÇÕES, COMO NÃO É O MESMO, O EFEITO JURÍDICO PRETENDIDO.

VIII. TUDO PARA DIZER QUE NÃO REALIZAMOS ONDE É QUE A DECISÃO A PROFERIR NESTA ACÇÃO POSSA COLIDIR COM AS OUTRAS DECISÕES PROFERIDAS POIS A QUESTÃO QUE NELA FOI SUBMETIDA A APRECIAÇÃO, NUNCA FOI OBJECTO DE PRONUNCIAMENTO NA SENTENÇA PROFERIDA NA ACÇÃO EM QUE O AQUI AUTOR FOI PARTE OU MESMO NOUTRAS.

IX. FOI A RECORRIDA QUE INTENTOU DIVERSAS ACÇÕES EXECUTIVAS, TAIS COMO OS PROCESSOS Nº 268/2000 E Nº34/2001, Nº147/11.8TBPNI.

X. PROCESSO Nº 268/2000, NO MONTANTE DE 60.773.09 EUROS – CORRESPONDENTE AO VALOR TOTAL DO IMÓVEL, QUE EM 2014 DEU ORIGEM AO PROCESSO 2375/14.5T8ENT, TENDO CULMINADO EM 2016 COM A ADJUDICAÇÃO DA METADE DO IMÓVEL À H..., SA, ORA RECORRIDA.,

XI. PROCESSO Nº34/2001 QUE PASSOU A TER O Nº 401/14.7TBPNI CUJO OBJECTIVO ERA A PENHORA DA TOTALIDADE DO IMÓVEL, PROCESSO QUE FOI EXTINTO;

XII. PROCESSO Nº147/11.8TBPNI, NO QUAL ERAM EXECUTADOS MARIA PILAR E O ORA RECORRENTE.

XIII. AO LONGO DE MAIS DE 15 ANOS DECORRERAM EM SILMULTÂNEO OU SEGUIDAS UMAS DAS OUTRAS, ACÇÕES SEMPRE SOBRE O MESMO IMÓVEL, A MAIORIA DAS VEZES COM OS MESMOS SUJEITOS PROCESSUAIS, A MESMA CAUSA DE PEDIR E PEDIDO.

XIV. SEM NUNCA TER SIDO INVOCADA A EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO E QUE VIERAM PERMITIR À RECORRIDA REGISTAR A TOTALIDADE DO IMÓVEL.

XV. OU SEJA DOIS TÍTULOS (SENTENÇAS) QUE CONFEREM À RECORRIDA EXACTAMENTE O MESMO (1/2 DO IMÓVEL) PERMITIRAM O REGISTO DA TOTALIDADE DA PROPRIEDADE DO PRÉDIO.

XVI. PELO QUE O QUE ESTÁ EM CAUSA NOS PRESENTES AUTOS É A DUPLICAÇÃO DE DECISÕES QUE PERMITIRAM À RECORRIDA ADQUIRIR OS TÍTULOS E COM ELES REGISTAR TODO O IMÓVEL QUANDO EFECTIVAMENTE E NO ENTENDER DO RECORRENTE AQUELES TÍTULOS SÓ PERMITIRIAM REGISTAR 1/2.

XVII. PORQUANTO, NO QUE CONCERNE ÀS DUAS ACÇÕES SUB JUDICE, NÃO DESCORTINAMOS, SALVO MELHOR OPINIÃO, ONDE SE ENCONTRA A REPETIÇÃO DA CAUSA.

XVIII. E NÃO DESCORTINAMOS ONDE ESTA ÚLTIMA ACÇÃO POSSA COLIDIR COM A DECISÃO PROFERIDA NO PROCESSO EXECUTIVO SUPRA MENCIONADO, SE A QUESTÃO SUBMETIDA AGORA A APRECIAÇÃO NUNCA FOI OBJECTO DE PRONUNCIAMENTO (NEM PODERIA TER SIDO, POIS O REGISTO É POSTERIOR).

XIX. NO PROCESSO 147/11.8TBPNI-B O PEDIDO EFETUADO CONSISTIU NA TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE DE ½ DO IMÓVEL ADJUDICADO À RÉ.

XX. NA PRESENTE ACÇÃO O AUTOR APENAS VEM REQUERER QUE SEJA DECLARADA A NULIDADE DOS ATOS DE REGISTO PRATICADOS PELA RÉ (RECORRIDA) NA CONSERVATÓRIA DE REGISTO PREDIAL ....

XXI. EM CONFORMIDADE COM O DECIDIDO PELO AC. DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 14.12.2016, PROC. Nº 219/14.7TVPRT-C.P1.S1, “NÃO OCORRE A EXCEÇÃO DE CASO JULGADO QUANDO AS PRETENSÕES MATERIAIS FORMULADAS NAS DUAS AÇÕES EM CONFRONTO, PARA ALÉM DE REPRESENTAREM VIAS JURÍDICAS ALTERNATIVAS E ESTRUTURALMENTE DIFERENCIADAS PARA ALCANÇAR A TUTELA JURÍDICA DE DETERMINADO INTERESSE, ASSENTES EM PRESSUPOSTOS LEGAIS PERFEITAMENTE AUTÓNOMOS, IMPLICARAM A FORMULAÇÃO DE PEDIDOS ESTRUTURALMENTE DIFERENTES, ENVOLVENDO A VIA SEGUIDA NA PRIMEIRA AÇÃO, JÁ DEFINITIVAMENTE JULGADA (…), A FORMULAÇÃO DE PEDIDOS DE RECONHECIMENTO E CONDENAÇÃO NUMA OBRIGAÇÃO DE TRANSMITIR OU RESTITUIR DETERMINADOS VALORES PATRIMONIAIS”.

XXII. ASSIM, NÃO EXISTE CASO JULGADO POR NÃO SE ENCONTRAREM PREENCHIDOS OS REQUISITOS LEGAIS PREVISTOS NO ARTIGO 581 DO CPC.

Não foi oferecida resposta.  

2. Factos provados.

2.1. O Tribunal de que provém o recurso considerou provados os factos seguintes:

1. Na presente acção o Autor formula contra a Ré o seguinte pedido «Declarada a nulidade do registo feito na Conservatória ..., e em consequência deverá o mesmo ser rectificado, devendo ainda a Ré ser condenada reconhecer o direito de propriedade do Autor.» e para o efeito, muito sinteticamente, o Autor alegou que no ano de 2008 adquiriu por escritura pública de compra e venda a fracção autónoma – letra ..., correspondente ao primeiro andar frente do prédio urbano sito em ... ou ..., Avenida ..., Lugar ..., Freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial sob o artº...84, descrito na Conservatória do Registo Predial ... – a BB e mulher CC, que antes disso, a fracção referida havia sido adquirida por BB e esposa, no dia 9 de Setembro de 2005 a DD, e EE, que o autor, sem que nada devesse a ninguém, foi alvo em 2011 de uma acção executiva por parte da H..., SA, Processo nº 147/11...., Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ... - Juiz ..., contudo a hipoteca mostra-se extinta.

2. E no processo n.º 147/11.8TBPNI-B que correu termos no Juízo de Execução ... - Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., onde o Autor foi Executado e a Ré Exequente, o Autor deduziu Embargos de Executado onde pediu a extinção da execução, alegando para o efeito e em síntese que o título executivo não é oponível ao executado, porque por escritura de compra e venda adquiriu a BB e mulher CC a fracção autónoma em causa pelo preço de €63.000,00, e desta consta que sobre a mesma fracção constam duas penhoras e uma hipoteca registadas, cujos cancelamentos se encontram assegurados, pelo que a venda é feita livre de ónus e encargos.

3. No âmbito do aludido processo n.º 147/11.8TBPNI-B foi proferida sentença onde se decidiu indeferir liminarmente a oposição à execução por manifesta improcedência com fundamento essencialmente que o ali oponente (aqui Autor) apesar de não ser o responsável pessoal pela dívida contraída pelos demais executados relativa ao contrato de mútuo celebrado, mas o imóvel que adquiriu continua onerado com hipoteca constituída a favor do exequente e como tal sujeito a execução, as questões relativas às circunstâncias subjacentes ao negócio que celebrou são irrelevantes porque não são oponíveis ao exequente, que o oponente (aqui Autor) estava ciente que existia hipoteca voluntária sobre o imóvel que adquiriu, como não poderia deixar de ser em face da publicidade do registo, que deveria ter celebrado o negócio de compra e venda caso estivesse efectivamente assegurado o cancelamento ou a expurgação da hipoteca o que implicava evidentemente a intervenção da instituição de crédito – como é usual neste tipo de situações o preço devido é entregue directamente à instituição de crédito para liquidação do empréstimo e, em consequência, esta emite o denominado de título de distrate, o que não sucedeu.

4. Resulta do registo predial da fracção em causa a inscrição de hipoteca datada de 1996 e a inscrição da aquisição a favor do Autor datada de 2008.

2.2. Aos factos referidos em 2.1., devem adicionar-se, por virtude da prova documental produzida logo na instância de que provém o recurso e que não se mostra impugnada, os factos seguintes:

1. A aquisição, por compra em processo de execução, de um ½ do direito real de propriedade sobre a fracção referida em 2.1.1. encontra-se inscrita no registo predial a favor da apelada desde 29 de Dezembro de 2016.

2. A aquisição, por adjudicação, na execução referida em 2.1.1., de um ½ do direito real de propriedade sobre a fracção referida em 2.1.1., encontra-se inscrita no registo predial a favor da apelada desde 13 de Julho de 2017.

3. A decisão referida em 2.1.3. transitou em julgado.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635.º nºs 2, 1ª parte, e 3.º a 5.º, do CPC).

Maneira que, considerando os parâmetros, assim definidos, da competência decisória desta Relação, é uma só a questão concreta controversa que importa resolver; a de saber se, no caso, se verifica ou não a excepção dilatória do caso julgado.

E a apreciação desse objecto exige, naturalmente, o exame, ainda que leve, deste pressuposto processual negativo, que se resolve numa excepção dilatória própria e, dado que a decisão de improcedência a que se assinala o valor da indiscutibilidade característica do caso julgado foi proferida em embargos de executado, a determinação da exacta eficácia preclusiva dessa mesma decisão. Realmente, a eficácia e o âmbito do caso julgado da decisão que julgue os embargos é objeto de previsão específica, ponto a decisão impugnada não se mostrou sensível, dado que, patentemente, nunca se lhe referiu e, portanto, não a escolheu ou ponderou para enquadrar o caso concreto (art.º 732.º, n.º 6, do CPC).

3.2. Excepção dilatória própria do caso julgado.

A nossa lei adjectiva define o caso julgado a partir da preclusão dos meios de impugnação da decisão: o caso julgado é a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão – despacho, sentença ou acórdão – decorrente do seu trânsito em julgado (art.º 628.º do CPC).

O caso julgado é, evidentemente, uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver[1].

A partir do âmbito da sua eficácia, há que fazer um distinguo entre o caso julgado formal e o caso julgado material: o primeiro tem um valor estritamente intraprocessual, dado que só vincula no próprio processo em que a decisão que o adquiriu foi proferida; o segundo é sempre vinculativo no processo em que foi proferida a decisão, mas também pode sê-lo em processo distinto (artºs 620.º, nº 1 e 621.º do CPC).

O caso julgado resolve-se na inadmissibilidade da substituição ou da modificação da decisão por qualquer tribunal – mesmo por aquele que proferiu a decisão.

Todavia, o caso julgado não se limita a produzir um efeito processual negativo – traduzido na insusceptibilidade de qualquer tribunal, mesmo também daquele que é o autor da decisão, se voltar a pronunciar sobre essa mesma decisão. Ao caso julgado deve também associar-se um efeito processual positivo: a vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente, de outros tribunais, ao resultado da aplicação do direito ao caso concreto que foi realizada por aquele tribunal, ou seja, ao conteúdo da decisão desse mesmo tribunal.

A eficácia do caso julgado material – único que releva para a economia do recurso – varia, porém, em função da relação entre o âmbito subjectivo e o objecto da decisão transitada e o âmbito subjectivo e o objecto do processo posterior.

Se o âmbito subjectivo e o objecto da decisão transitada for idêntico ao processo posterior, i.e., se ambas as acções possuem o mesmo âmbito subjectivo e a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo subsequente, como excepção do caso julgado – excepção que tem por finalidade evitar que o tribunal da acção posterior seja colocado na desagradável alternativa de reproduzir ou de contradizer a decisão transitada (artºs 580.º nº 1, in fine, e 2, e 581.º, nºs 3 e 4 do CPC). O caso julgado acarreta para o tribunal do processo subsequente a dupla proibição de contradição ou de repetição da decisão transitada, o que explica que se resolva num pressuposto processual negativo e, portanto, numa excepção dilatória própria (art.º 577.º, i) do CPC).

Se, porém, a relação entre o objecto da decisão transitada e o da acção subsequente, não for de identidade, mas de prejudicialidade, nem por isso, o caso julgado deixa de ser relevante: a decisão proferida sobre o objecto prejudicial – i.e., que constitui pressuposto ou condição de julgamento de outro objecto – vale como autoridade de caso julgado na acção que no qual se discuta o objecto dependente. Quando isso suceda, o tribunal da acção posterior – acção dependente – está vinculado à decisão proferida na causa anterior – acção prejudicial.

Realmente – como é corrente na doutrina[2] e na jurisprudência[3] – neste domínio há que fazer um distinguo entre a excepção do caso julgado – e a autoridade do caso julgado. E a distinção é de extraordinária relevância, dado que, não se tratando da excepção do caso julgado, mas da autoridade do caso julgado, não é exigível a apontada relação de identidade, i.e., a tríplice homotropia de sujeitos, pedido e de causa petendi.

  Na verdade, só no tocante à excepção do caso julgado – dado que assenta na ideia de repetição de causas – deve reclamar-se uma identidade quanto aos elementos subjectivos – partes – e objectivos – pedido e causa de pedir – da instância (art.º 580.º, n.º 1, do CPC).

No tocante a identidade de sujeitos, cumpre notar que a parte processual é entendida pela sua qualidade jurídica perante o objecto da causa: a identidade jurídica não tem que coincidir com a identidade física, apenas se exigindo que actuem como titulares da mesma relação jurídica substancial – abrangendo o primitivo titular e o respectivo sucessor. Da mesma maneira, essa identidade não é excluída pela diversidade da sua posição processual (art.º 581.º, n.º 2, do CPC). A identidade relevante é, portanto, a identidade jurídica, do que resulta a vinculação ao caso julgado de todos aqueles que, perante o objecto apreciado, possam se equiparados, atendendo à sua qualidade jurídica, às partes na acção. Assim, a essas partes são equiparados, por exemplo, todos os terceiros que sucedam, inter vivos ou mortis causa, na titularidade do objecto processual apreciado.

Relativamente à identidade de pedido, há que atender ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem[4]. É, portanto, suficiente uma identidade meramente relativa, dado que fica abrangido não só o efeito jurídico obtido no primeiro processo – como qualquer outro efeito jurídico que houvesse estado implícita, mas necessariamente em causa[5].

Efectivamente, a identidade de pedido deve ter-se por verificada quanto sejam coincidentes os enunciados da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e o conteúdo e objecto do direito para o qual se reclama aquela tutela e na concretização do efeito jurídico que, pela acção, se pretende obter - mas a enunciação da tutela jurisdicional relevante não é apenas a explicitada, mas também a que lhe esteja necessariamente implícita[6].  O pedido, enquanto efeito jurídico que o autor pretende obter não deve, portanto, ser entendido ou interpretado de modo puramente literal, mas com o alcance que decorre da sua conjugação com os seus fundamentos, de modo a que se individualize a forma específica de tutela visada[7]. É, assim, suficiente que as partes tenham conhecimento do efeito prático que pretendam alcançar, embora careçam da representação do efeito jurídico, pelo o que interessará não o efeito jurídico que as partes formulem; o objecto mediato deve entender-se como o efeito prático que o autor pretende obter e não como a qualificação jurídica que dá a sua pretensão[8].

Este ponto é deveras significante nos casos em que a enunciação do efeito jurídico visado pelo autor é invariável, no sentido de que não reflecte o seu fundamento, como sucede, patentemente, nos embargos de executado em que o pedido do executado consiste na extinção da execução, dado que é precisamente este efeito jurídico que é declarado ou produzido pela decisão de procedência dos embargos, seja qual for o fundamento que a justifique (art.º 732.º, n.º 4, do CPC). Com efeito, nos embargos de executado, seja qual for o seu fundamento, v.g. a prescrição da obrigação ou a sua compensação ou um direito real, o pedido é sempre, ne varietur, o mesmo – a extinção da execução – e a decisão do tribunal que os julgue procedentes é também uma só: essa extinção. O efeito jurídico da improcedência dos embargos é, também, um só – o prosseguimento da execução com o fim último de satisfazer coactivamente o crédito objecto do pedido executivo. O que significa que a exacta determinação do efeito jurídico visado com os embargos de executado só é conseguida tendo em atenção o fundamento em que assenta e considerando a forma de tutela que tem implícita. Assim, se o fundamento dos embargos consiste, por exemplo, num direito real, há que considerar que o pedido formulado envolve o reconhecimento desse direito, o mesmo sucedendo com a decisão que os julgue procedentes: se essa procedência tiver como fundamento um direito real, a decisão de extinção da execução tem, necessariamente implícita a declaração ou o reconhecimento desse mesmo direito. A improcedência dos embargos produz, evidentemente, o efeito inverso.

Entendendo-se - como se deve – por causa de pedir os factos – necessários – dos quais deriva a pretensão material ou o direito invocado pelo autor, haverá identidade de causas petendi sempre o facto jurídico concreto de que procede o direito ou interesse alegado pela parte seja o mesmo[9]. Note-se, porém, que o caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objecto apreciado, dado que o releva é a identidade de causa de pedir – i.e., os factos concretos com relevância jurídica – e não a identidade das qualificações jurídicas que esse fundamento comporte (artºs 580.º, n.º 1, e 581.º, n.º 4 do CPC).

O caso julgado está, porém, sujeito a limites, designadamente objectivos, subjectivos e temporais.

No tocante aos limites objectivos – i.e., ao quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal que recebe o valor da indiscutibilidade do caso julgado – este abrange, decerto, a parte decisória do despacho, da sentença ou do acórdão, i.e., a conclusão extraída dos seus fundamentos (art.º 607.º. n.º 3, do CPC).

O problema está, porém, em saber se - de harmonia com uma concepção restritiva[10], apenas cobre a parte decisória da sentença ou antes se estende – de acordo com uma concepção ampla - a toda a matéria apreciada, incluindo os fundamentos da decisão.

Apesar do carácter espinhoso do problema, tem-se por preferível uma concepção intermédia, para o qual se orienta, ao menos maioritariamente, a jurisprudência[11]: o caso julgado abrange todas as questões apreciadas que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença[12]. Realmente, como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado, não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos – e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão[13]. Ou noutra formulação: os pressupostos da decisão são cobertos pelo caso julgado – enquanto pressupostos da decisão, ficando fora do caso julgado tudo o que esteja contido na sentença, mas que não seja essencial ao iter iudicandi[14].
Por último, o caso julgado está sujeito a limites temporais.

O caso julgado é temporalmente limitado, embora o referencial temporal relevante não seja o momento em foi proferida a decisão transitada – mas, em regra, o do encerramento da discussão, no processo em que foi proferida essa mesma decisão (art.º 604º, n.º 3, c) do CPC).

A referência temporal do caso julgado a esse momento traz, desde logo, implicada várias consequências, das quais se destaca uma referida ao passado: a preclusão da invocação, no processo subsequente, das questões não suscitadas no processo em foi proferida a decisão transitada, mas anteriores ao encerramento da discussão e que nele podiam ter sido apresentadas. A mesma solução vale evidentemente para o caso de essas questões terem sido invocadas, mas essa invocação tenha, por qualquer motivo, sido julgada ineficaz.

Como o réu está vinculado ao ónus de apresentar toda a defesa na contestação, a preclusão que o atinge é, aliás, independente do caso julgado[15], mas por força dessa preclusão, ficam precludidos todos os factos que podiam ter sido invocados como fundamento dessa contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada e, por isso, com aquele que foi apreciada pelo tribunal (art.º 573.º, n.º 1, do CPC). Preclusão que compreende igualmente as qualificações jurídicas que objecto da causa possa comportar, mas que não foram utilizadas pela decisão transitada.

Assim, por exemplo, se a sentença anterior reconheceu, no todo ou em parte, o direito real de propriedade do do autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do réu – mesmo aqueles que ele não chegou a deduzir e até aqueles que podia deduzir com base num direito seu, por exemplo, ser ele réu, o proprietário do prédio reivindicado. Vale, neste sentido, a máxima segundo a qual o caso julgado cobre o deduzido e o deductível: tantum iudicatum quantum disputatam vel disputari debetat[16].

Realmente, o reconhecimento, por exemplo, de um direito absoluto de propriedade plena do autor sobre uma certa coisa corpórea é, obviamente, incompatível de um ponto de vista jurídico, com o ulterior reconhecimento de uma propriedade plena sobre a mesma coisa, por quem participou, como réu, na acção em que foi proferida a sentença favorável ao autor. Trata-se de um fenómeno designado de extensão inversa por incompatibilidade, do caso julgado: a propriedade plena é incompatível com outra propriedade sobre a mesma coisa; afirmado que x é do autor, com força de caso julgado, fica reflexamente indiscutível, dentro dos limites objectivos do caso julgado, que não o é do réu[17].

Efectivamente, o titular do direito real de propriedade dispõe de uma permissão normativa plena ou total de aproveitamento das utilidades da coisa corpórea atingida por ele (artº 1305 do Código Civil). Além da plenitude, o direito real de propriedade é ainda dotado de uma outra qualidade: é exclusivista em relação a coisa. O direito real de propriedade não admite, no tocante à mesma coisa, a concorrência de outro direito de conteúdo igual.

Desta característica decorre, irrecusavelmente, este corolário: decidido, por sentença passada em julgado, por exemplo, que o autor é titular do direito real de propriedade sobre uma coisa, segue-se, como corolário lógico, que não pode ser recusado, que, observados os limites objectivos da res judicata, o réu não pode ser titular desse mesmo direito.

Maneira que, julgada procedente, v.g., uma acção de reivindicação, não é lícito ao réu propor uma acção da mesma espécie contra o autor, fundado em que tinha adquirido por usucapião a propriedade do respectivo prédio: se a nova acção pudesse proceder e valesse a decisão correspondente, seria contrariada a força de caso julgado formado sobre a sentença anterior, dado que se tirava ao réu – da acção subsequente – um bem que a mesma sentença lhe tinha dado. Esta consequência também pode explicar-se por um dos valores do caso julgado: o valor enunciativo, por força do qual fica excluída toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na sentença passada em julgado. Se na acção anterior o autor foi reconhecido como titular do direito real de propriedade sobre o prédio, então o réu não o é: o réu não pode, por isso, propor uma nova acção pedindo que se declare que é ele e não o autor o titular daquele mesmo direito real.

Os embargos de executado são um instrumento de oposição à execução e resolvem-se num processo declarativo instaurada pelo executado contra o exequente, tendo por finalidade a impugnação da execução pendente, com um fundamento de ordem processual ou material, respeitante à inexequibilidade do título executivo que serve de base à execução, à falta de pressupostos do processo executivo e ainda à inexequibilidade intrínseca da obrigação cuja realização coactiva é pedida (art.ºs 728.º, n.º 1, 856.º, n.º 1, 860.º, n.º 1, 868.º, n.º 2, 875.º, n.º 2 e 876,º, n.º 2).

Os embargos de executado não são, todavia, o único meio processual no qual se pode deduzir uma qualquer circunstância susceptível de contestar a exequibilidade do título executivo ou da obrigação exequenda, sendo admissíveis outros meios de impugnação, como por exemplo, a acção de simples apreciação negativa, no qual o devedor peça, v.g., a declaração da inexistência daquela obrigação ou a acção de reivindicação proposta pelo executado contra o exequente (art.ºs 10.º, n.º 3, do CPC e 1311.º do Código Civil). Qualquer destes meios concorrentes de contestação da execução, pendentes antes da instauração do processo executivo, não são impeditivos da dedução dos embargos de executado, dado que estes são o único meio de oposição reconhecido pela lei de processo, ainda que nestes se reproduzam os fundamentos alegados na acção concorrente pendente, caso em que ocorrerá, não uma relação de litispendência – mas numa relação de prejudicialidade desta acção relativamente aos embargos.

A decisão de mérito proferida nos embargos à execução produz caso julgado, desde logo, quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda (art.º 732.º, n.º 6, do CPC). Realmente, se os embargos forem julgados improcedentes, é sinal inequívoco de que o tribunal não reconheceu o fundamento da inexistência, invalidade ou inexigibilidade da obrigação exequenda, invocado pelo executado. O caso julgado da decisão de improcedência dos embargos importa não só a definição de que a obrigação exequenda não é inexistente, inválida ou inexigível com base no fundamento alegado pelo executado – mas também que a obrigação é existente, válida e eficaz, do que deriva um irrecusável efeito preclusivo quanto à possibilidade de alegação de qualquer outro fundamento de inexistência, invalidade ou inexigibilidade daquela obrigação (art.º 611.º, n.º 1, do CPC).

Deste efeito preclusivo decorre, irrecusavelmente: que o executado tem o ónus de invocar, logo na petição dos embargos todos os possíveis fundamentos de inexistência, invalidade ou inexigibilidade da obrigação exequenda[18].  Realmente, uma vez decidido que esta obrigação não é inexistente, inválida ou inexigível pelo fundamento alegado pelo executado, é inevitável a execução da obrigação exequenda na acção executiva de que os embargos constituem dependência, pelo que não é admissível que ao executado possa vir a ser reconhecido, posteriormente, qualquer direito contra o exequente.

Por isso que, julgados improcedentes os embargos por decisão de mérito, fica irremediavelmente precludido, desde logo, o recurso a quaisquer outros meios concorrentes, fundamentados em qualquer circunstância susceptível de afectar a execução.

Note-se que, rigorosamente, não é o caso julgado da decisão proferida nos embargos de executado (= oposição à execução) que preclude a invocação de um fundamento diverso daquele que o executado invocou naqueles embargos. Realmente a preclusão da invocação de qualquer outro fundamento de contestação da execução e que impeça a realização coactiva da prestação dela objecto, não ocorre com o trânsito em julgado da decisão – mas no momento em que o executado deduz os embargos. A partir desse momento, ao executado deixou de ser lícita a invocação de qualquer outro fundamento de oposição à execução ou que exclua os efeitos nela produzidos. Daí vem que essa preclusão passa a actuar através da excepção do caso julgado, se o fundamento distinto, não alegado nos embargos, for indevidamente alegado numa acção posterior.

Se o executado embargou a execução, por exemplo, como fundamento na prescrição da obrigação exequenda e os embargos são julgados improcedentes, numa outra acção não lhe é lícito alegar, por exemplo, qualquer outra causa de inexistência daquela obrigação, dado que nos embargos ficou decidido, com força de caso julgado, que nada obstava à execução da obrigação exequenda.

Isto é assim, uma vez que na oposição à execução o executado tem o ónus de concentrar na respectiva petição, todos os fundamentos que podem justificar o pedido que formula, e a inobservância desse ónus implica a preclusão dos fundamentos não alegados naquela petição, pelo que, após o trânsito da decisão proferida nos embargos aquela preclusão actua através do caso julgado, ainda que não exista entre a primeira e a segunda acção identidade de fundamentos e, portanto, identidade de objecto.

Estas considerações são suficientes para decidir a – única – questão concreta controversa que constitui objecto do recurso.

3.3. Concretização.

Em primeiro lugar, cumpre notar que, ao contrário do que alega no recurso, a apelante não se limitou a pedir, na acção, a declaração de nulidade dos registos da aquisição a favor da apelada do direito real de propriedade - por compra e adjudicação em execução- sobre a fracção à custa da qual foi satisfeito coactivamente, designadamente na acção executiva a que se opôs por embargos, o crédito objecto do pedido executivo; a apelante formulou ainda – cumulativamente – um outro pedido de maior relevo ou alcance: a condenação da apelante no reconhecimento do seu direito real de propriedade sobre aquele mesmo bem imóvel. E é este, de resto, o fundamental efeito jurídico que o apelante se propõe obter com a acção: a declaração de que é e ele – e não a apelada - o titular do direito real de propriedade sobre o bem imóvel sobre que foi constituída, na execução, a garantia patrimonial representada pela penhora e à custa do qual foi satisfeito, por adjudicação, o crédito da apelada, e é mesmo tal declaração que é susceptível de determinar o cancelamento do registo da aquisição daquele direito real a favor da recorrida, por evidente desconformidade entre a situação jurídica publicitada pelo registo – a titularidade desse direito pela apelada - e a realidade jurídica subjacente – a titularidade desse mesmo direito pelo apelante.

Consabidamente, o bem onerado para garantir o pagamento de uma obrigação pecuniária pode pertencer a terceiro, seja porque a garantia real foi originariamente constituída sobre bens de terceiro, seja porque o terceiro adquiriu os bens onerados com essa garantia. Se a garantia tiver sido constituída ou incidir sobre um bem que não pertence ao devedor, o direito de execução recai sobre o mesmo bem (art.º 818.º, 1.ª parte, do Código Civil). Na hipótese de o bem onerado pertencer a terceiro, verifica-se uma cisão entre a titularidade do débito – que é o devedor – e o sujeito que é responsável – que é o terceiro. Mas, mesmo neste caso, a legitimidade do terceiro assenta, ainda, na responsabilidade patrimonial.

Ora como decorre da petição de oposição à execução e da decisão que a indeferiu in limine, aquela tinha por fundamento o facto de a titularidade do direito real de propriedade sobre aquele o bem se encerrar na titularidade do apelante, por o ter adquirido por compra, e de aquele não ser devedor da quantia exequenda e, portanto, aquele bem não responder pela satisfação do crédito exequendo - fundamento de oposição exasperadamente infundado, dado que o bem se encontrava onerado por uma garantia real – a hipoteca – uma vez que o apelante o adquiriu com esta garantia.

Quer dizer: o fundamento alegado pelo apelante nesta acção e o que invocou para se opor à execução são absolutamente homogéneos: a titularidade do direito real de propriedade sobre o bem à custa do qual foi satisfeito o crédito objecto da execução e a sua irresponsabilidade pela satisfação do crédito exequendo. Homotropia que também se deve julgar verificada no tocante aos efeitos jurídicos visados pelo apelante com a oposição à execução e com a acção. É exacto que na oposição à execução se pediu a extinção da execução, não se tendo pedido – como, em regra, se não pede - o reconhecimento do direito real de propriedade sobre o bem sobre que foi constituída a garantia patrimonial em que a penhora se resolve e a sua irresponsabilidade pela satisfação do crédito objecto de satisfação coativa. Mas não o é menos que, um tal pedido está necessariamente implícito quando se invoca, como fundamento de contestação da execução, a titularidade do direito real bem que deve ser sacrificado para satisfazer o crédito exequendo e a sua irresponsabilidade pela satisfação do crédito objecto do pedido executivo, da mesma maneira que, caso a oposição procedesse por tal fundamento, a decisão correspondente teria necessariamente implícito, como pressuposto lógico irrecusável, o reconhecimento daquela titularidade e desta irresponsabilidade, reconhecimento que determinaria a extinção da execução, com a consequente impossibilidade de o exequente satisfazer o seu crédito, através da aquisição do direito real sobre o prédio e, evidentemente, de proceder ao registo, a seu favor, dessa aquisição.

Maneira que, se o executado se opõe à execução com fundamento no facto de ser titular do direito real de propriedade sobre o bem objecto da penhora – e posteriormente de venda ou de adjudicação executivas – e na irresponsabilidade desse bem pela satisfação do crédito exequendo, e a oposição é julgada improcedente, não lhe é lícito fazer valer contra o exequente, que adquiriu aquele direito na execução, em acção posterior, aquele direito real ou qualquer outro efeito jurídico – como, por exemplo, o cancelamento do registo de aquisição daquele direito e favor do exequente - que suponha a titularidade daquele direito real.

Sendo isto exacto, então há que concluir pela verificação no caso a apontada relação de identidade, i.e., a tríplice homotropia de sujeitos, pedido e de causa petendi, exigida pelo caso julgado.

Com efeito, se os sujeitos e o objecto desta acção são iguais ao da primeira acção – a oposição à execução – há que excluir a repetição da pronúncia do tribunal da execução, resultado que se obtém através da proibição da repetição da decisão anterior e da aplicação da excepção do caso julgado.

Mas vamos que um tal entendimento do problema se não deve ter por correcto.

Como se observou, o executado tem o ónus de alegar na oposição ou nos embargos à execução todos os fundamentos possíveis de contestação da execução e o caso julgado que se forme sobre a decisão que julgue improcedente essa contestação, importa, por um lado, a execução da obrigação exequenda e, por outro, a preclusão de todo e qualquer outro fundamento de oposição, pelo que ao executado não é admissível obter, noutra acção, o reconhecimento de qualquer direito contra o exequente. Preclusão que opera através do caso julgado, e que prescinde mesmo da identidade de objecto entre a oposição à execução e a acção posterior. Assim, mesmo que o apelante não tivesse alegado, nos embargos, como fundamento destes, a titularidade do direito real e a irresponsabilidade do bem que constitui o seu objecto mediato pela satisfação do crédito referido no pedido executivo, que alega agora na acção superveniente, sempre se imporia concluir, no caso do recurso, pela verificação da excepção da res judicata.

Por último, uma decisão que reconhecesse, agora, o apelante como titular do direito real de propriedade seria, de todo, incompatível com a decisão de improcedência dos embargos e, consequentemente, com o prosseguimento da execução e com a satisfação coactiva do crédito exequendo à custa daquele direito, designadamente através da sua adjudicação ao exequente. Tendo-se decidido que nada obstava à satisfação coactiva do crédito objecto de execução, v.g. através da adjudicação daquele direito à apelada, não é admissível, por força do caso julgado, decidir agora que, afinal, o titular daquele direito não é o apelante – mas a recorrida. Uma tal decisão colidiria frontalmente com a decisão de indeferimento da oposição execução – da qual decorre a declaração de que nada obstava à execução da obrigação exequenda – e, consequentemente, com um efeito jurídico produzido nessa execução, subtraindo à apelante um direito que, na acção executiva, lhe foi atribuído.

Efectivamente, se o objecto da segunda acção é contraditório com o objecto da primeira, também há que excluir uma pronúncia contraditória com a anterior, desiderato que é conseguido através da proibição de contradição da decisão anterior e da excepção do caso julgado.

Todas as contas feitas, a conclusão a tirar é a da correcção da decisão impugnada no recurso. Cumpre, por isso, julgá-lo improcedente.

O conjunto da argumentação que determina a improcedência do recurso pode sintetizar-se nestes enunciados:

- O caso julgado constitui uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver;

- A excepção do caso julgado – dado que assenta na ideia de repetição de causas –  exige uma relação de identidade quanto aos elementos subjectivos – partes – e objectivos – pedido e causa de pedir – da instância;

- Se, porém, a relação entre o objecto da decisão transitada e o da acção subsequente, não for de identidade, mas de prejudicialidade, nem por isso, o caso julgado mantém a sua relevância: a decisão proferida sobre o objecto prejudicial – i.e., que constitui pressuposto ou condição de julgamento de outro objecto – vale como autoridade de caso julgado na acção que no qual se discuta o objecto dependente;

- Relativamente à identidade de pedido, há que atender ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem, sendo, portanto, suficiente uma identidade meramente relativa, dado que fica abrangido não só o efeito jurídico obtido no primeiro processo – como qualquer outro efeito jurídico que houvesse estado implícita, mas necessariamente em causa:

- A decisão de mérito proferida nos embargos à execução produz caso julgado, desde logo, quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda;

-  O caso julgado da decisão de improcedência dos embargos importa não só a definição de que a obrigação exequenda não é inexistente, inválida ou inexigível com base no fundamento alegado pelo executado – mas também que a obrigação é existente, válida e eficaz, do que decorre um irrecusável efeito preclusivo quanto à possibilidade de alegação de qualquer outro fundamento de inexistência, invalidade ou inexigibilidade daquela obrigação.

- O executado tem o ónus de invocar, logo na petição dos embargos todos os possíveis fundamentos de inexistência, invalidade ou inexigibilidade da obrigação exequenda e, uma vez decidido que esta obrigação não é inexistente, inválida ou inexigível pelo fundamento alegado pelo executado, é inevitável a execução da obrigação exequenda na acção executiva de que os embargos constituem dependência, pelo que não é admissível que ao executado possa vir a ser reconhecido, posteriormente, qualquer direito contra o exequente;

-  Sempre que objecto da segunda acção seja contraditório com o objecto da primeira, também há que excluir uma pronúncia contraditória com a anterior, finalidade que é conseguida através da proibição de contradição da decisão anterior e da excepção do caso julgado:

- Se o executado alegou, como fundamento da oposição à execução a titularidade do direito real sobre o bem sobre que foi constituída a garantia patrimonial representada pela penhora e a irresponsabilidade desse bem pela satisfação da obrigação exequenda, e o exequente adquiriu, na execução, que prosseguiu por força da decisão de improcedência daquela oposição, aquele direito real, o caso julgado constituído sobre essa decisão, impede o reconhecimento ou a declaração, em acção posterior, contra o exequente, de que o executado é titular daquele direito real e o cancelamento do registo, daquela aquisição, a favor do exequente.

O apelante sucumbe no recurso. Essa sucumbência torna-o responsável pelo pagamento das respectivas custas (art.º 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

                                                                                                                      2022.09.28

Relator:   Henrique Antunes

Adjuntos: Mário Rodrigues da Silva

Cristina Neves




[1] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. 568.
[2] V.g., Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 354, João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processual Civil, Edições Ática, 1968, págs. 38 e 39, Alberto dos reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, Lisboa, 1973, págs. 60 e 61.
[3] V.g. Acs. do STJ de 19.05.10 e de 28.06.12, da RC de 28.09.10 e da RL de 12.07.12, www.dgsi.pt.
[4] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, cit. pág. 349.
[5] João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processual Civil, cit., pág. 350.
[6] Ac. do STJ de 05.12.2017 (1565/15.8T8VFR-A.P1.S1).
[7] Ac. do STJ de 13.12.2018 (642/14.7T8VCT.G1.S1).
[8] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1981, pág. 203.
[9] José Lebre de Freitas “Caso julgado e causa de pedir. O Enriquecimento sem causa perante o artigo 129 do Código Civil”, ROA, Ano 2006, Dezembro de 2006, Vol. III.
[10] Cfr., v.g., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, cit. pág. 318.
[11] V.g., Acs. do STJ de 10.07.07, CJ, STJ, V, II, pág. 165, da RC de 27.09.05 e 29.05.12 e da RL de 12.07.12, www.dgsi.pt.
[12] Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, cit., pág. 253.
[13] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, cit., págs. 578 e 579.
[14] João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, cit., págs. 578 e 579.
[15] Realmente, dado que a referência temporal do caso julgado coincide com um momento preclusivo - o encerramento da discussão em 1.ª instância – o caso julgado não produz, afinal, nenhum efeito preclusivo próprio e, por isso, a função estabilizadora – i.e., a imutabilidade da decisão – atribuída ao caso julgado não é outra que não a função de estabilização que decorre da preclusão. Assim, Miguel Teixeira de Sousa, “Preclusão e caso julgado”, paper (199), Blog do IPPC.
[16] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, cit., pág.  324 e RLJ, Ano 70, pág. 235. Diferentemente, porém, Miguel Teixeira de Sousa, Caso Julgado e Preclusão, cit., pág. 10.
[17] Ac. do STJ de 26.06.12, www.dgsi.pt.
[18] Miguel Teixeira de Sousa/João de Castro Mendes, Manual de Processual, Vol. II, AAFDL, 2022, pág. 685.