Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
709/16.7PBFAR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA;
DIREITO A INDEMNIZAÇÃO;
REPARAÇÃO DA VÍTIMA EM CASOS ESPECIAIS;
VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO;
NULIDADE INSANÁVEL;
REPETIÇÃO (PARCIAL) DO JULGAMENTO
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 32.º, N.º 5, DA CRP; ART. 21.º, N.ºS 1 E 2, DA LEI N.º 112/2009, DE 16-09; ART. 82.º-A, DO CPP
Sumário:
I – Deverá ser comunicada ao arguido/responsável civil a possibilidade de, em caso de condenação, ser arbitrada à vítima, nos termos do disposto nos artigos 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16-09, e 82.º-A, n.ºs 1 e 2, do CPP, uma quantia a título de reparação pelos prejuízos que a última sofreu.
II – Só mediante tal comunicação poderá o arguido/responsável civil preparar, em tempo adequado, também nessa vertente, a sua defesa, de forma a não ser confrontado com uma surpresa, traduzida numa condenação cível não pedida pela vítima.
III – A omissão do dito procedimento configura uma nulidade absoluta, por violação do comando imperativo previsto no artigo 32.º, n.º 5, da CRP, e, assim, insanável.
IV – A consequência do vício verificado é a anulação do julgamento, nesse domínio específico, devendo a audiência ser reaberta para efeitos de ser feita a comunicação em causa, seguindo-se a produção da prova necessária ou requerida pelo arguido/responsável civil.
V – Regressando os autos à fase de julgamento, a nulidade decretada afecta, necessariamente, a sentença no seu todo, vista a relação de prejudicialidade da audiência em relação à enunciada decisão final.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

No Juízo Local Criminal de Castelo Branco – J1, da Comarca de Castelo Branco, nos autos de processo comum (singular) que aí correram termos sob o nº 709/16.7PBFAR, o arguido AA foi submetido a julgamento, acusado pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal praticado na pessoa de V1, e de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do Código Penal, praticado nas pessoas de V2 e de V3, em ambos os casos com as penas acessórias previstas nos nºs 4, 5 e 6 do mesmo normativo.
Levado a efeito o julgamento, viria a ser proferida sentença decidindo nos seguintes termos:
Pelos expostos fundamentos de facto e de Direito, decide o Tribunal:
a) Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, na pessoa de V1, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n. º 2 do Código Penal, na pena de 03 (três anos) de prisão.
b) Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, nas pessoas de V2 e de V3, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
c) Em cúmulo jurídico das penas parcelares fixadas em a. e b. fixar uma pena única de 03 (três) anos e 06 (seis) meses de prisão.
d) A pena de prisão determinada em c. é suspensa na sua execução pelo período de três anos e seis meses, sujeita ao acompanhamento do arguido em regime de prova, vocacionada para a prevenção de situações de violência doméstica e de consumo de álcool (cf. artigo 53.º e 152.º, n.º 4, ambos do Código Penal).
e) A execução do que ora se determina deverá ser proporcionada e acompanhada pelos Serviços da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (cf. artigo 53.º, n.º 2 do Código Penal).
f) Condenar o arguido, AA, na pena acessória de proibição de contactos com V1 pelo período de 3 (três) anos e 06 (seis) meses, cf. artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do Código Penal, um ano dos quais mediante utilização de meios técnicos de controlo à distância.
g) Condenar o arguido AA a pagar a quantia de € 7 000,00 (sete mil euros) a V1, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, vincendos, à taxa legal e anual de 4% desde a data do trânsito em julgado da presente decisão até efectivo e integral pagamento (cf artigo 82º-A do Código de Processo Penal e artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro).
h) Condenar o arguido AA a pagar a quantia de € 3 000,00 (três mil euros) a cada uma das suas filhas, V2 e V3, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, vincendos, à taxa legal e anual de 4% desde a data do trânsito em julgado da presente decisão até efectivo e integral pagamento (cf. artigo 82º-A do Código de Processo Penal e artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro).
i) Condenar o arguido AA nas custas do processo, fixando-se em 2 (duas) UCs a taxa de justiça (cf. artigos S13.º do Código do Processo Penal, e 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa ao mesmo), e nas demais custas do processo, nos termos do artigo 514.º, n.º 1 do Código do Processo Penal.
***
Após trânsito em julgado da sentença:
a) Remeta boletim ao registo criminal - cf artigo 374.º, n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal.
b) Oficie à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, com cópia da presente sentença, solicitando a elaboração de relatório com vista à execução da pena ora determinada.
c) Comunique, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 37.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.

Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:
1º - Resultou provado nos presentes autos que o arguido, em relação às filhas V2 e V3, agiu sempre com a intenção de constranger a liberdade de V1, e de melhor a dominar e fazer com que acedesse aos seus intentos.
2º - Tal factualidade dada como provada não é consentânea com a conduta ilícita típica subjacente ao crime de violência doméstica que pressupõe a intenção de atingir o bem-estar físico, emocional e psicológico da própria vítima.
3º - Não ficou pois provada a verificação do crime de violência doméstica sobre as filhas do casal devendo ser ordenada a absolvição do arguido nessa parte.
4º - Relativamente ao crime de violência doméstica decorrente das condutas do arguido perpetradas em relação à sua ex-companheira, a pena em que foi condenado é excessiva, devendo antes ter-lhe sido aplicada pena coincidente com o mínimo legal aplicável.
5º - O arguido não foi notificado para se pronunciar nos termos e para os efeitos do disposto no artº 82º-A, nº 2, pelo que não foi assegurado o seu direito ao contraditório.
6º - E não estão preenchidas as condições de aplicabilidade do artº 82º-A, nº 1 do CPP.
7º - Não se pode impor ao arguido como condição de suspensão da pena de prisão cuja impossibilidade de cumprimento é previsível em virtude de o mesmo trabalhar no estrangeiro sendo provável que o seu incumprimento redundará no cumprimento da pena de prisão efetiva.
8º - In casu, não se regista de todo o requisito apertado da imprescindibilidade, pelo que a medida acessória de proibição de contactos com a V1 mediante utilização de meios técnicos de controlo à distância não deve ser decretada.
9º – Foram assim violados:
- art. 152, nº 1 al. b) e d) e nº 2 e nº 5 do CP
- art. 82º-A, nº 1 e 2 do CPP
- art. 18º e 32º da CRP
- artºs 496º, nº 3 e 494º, do CC
- art 53.º, n.º 1 do CP
- artigo 35.ºda lei 112/2009 de 16 de Setembro
Com o que, e sobretudo com o muito mais que Vossas Excelências doutamente suprirão, se fará como sempre, JUSTIÇA!

Respondeu o MP em primeira instância, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões:
1ª) AA, condenado pela prática, em cúmulo jurídico, das penas parcelares de 3 anos de prisão e 2 anos e 6 meses de prisão, na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período com sujeição a regime de prova. Foi ainda condenado na pena acessória de proibição de contactos com a V1 período de 3 anos e 6 meses, um ano dos quais mediante utilização de meios técnicos de controlo à distância e no pagamento de uma compensação à ofendida V1 na quantia de 7000,OO€ e às ofendidas V3 e V2 na quantia de 3000,OO€ para cada uma, pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelos arts. 152, nº 1 al. b) e nº 2 do Código Penal, e um crime de violência doméstica p. e p. pelos arts. 152, nº 1 al. d) e nº 2 do Código Penal.
2ª) O arguido considera que a factualidade dada como provada não permite imputar ao mesmo a prática de um crime de violência doméstica na pessoa de V2 e de V3.
Ora, consideramos estarem verificados todos os elementos do tipo objectivo e subjectivo destes crimes. De resto, a fundamentação da matéria de facto é bastante clara relativamente a estes crimes.
3ª) Os motivos que levaram o arguido a praticar os factos, sejam quais forem - uma raiva incontida, ciúmes exacerbados pela mãe das vítimas, frustração do arguido, etc. - naturalmente que não podem de forma alguma obstaculizar à verificação deste crime, sob pena de ser gerada uma impunibilidade de condutas altamente censuráveis e lesivas de bens jurídicos essenciais única e exclusivamente porquanto deveríamos ter em conta os motivos pessoais do arguido quando comete factos de tamanha gravidade.
4ª) Ou seja, o arguido agiu com a intenção de atingir as vítimas no seu bem-estar e dignidade, independentemente de o mover o objectivo directo de somente as agredir e molestar como também, por via disso, atingir a vítima V1; o que, inclusivamente, na nossa óptica, agrava o desvalor da sua conduta.
5ª) Ao crime de violência doméstica está subjacente uma situação de agressões perpetradas num âmbito de uma relação parental e de coabitação", o que, de facto, sucedeu no caso concreto.
6ª) o arguido considera que a pena de prisão suspensa que lhe foi aplicada é demasiado pesada e que lhe deveria ter sido aplicada a pena coincidente com o mínimo legal possível. Discordamos em absoluto deste argumento atenta a factualidade dada como provada; com efeito, atento lapso temporal em apreço bem como a reiteração das condutas, a gravidade da violência física psicológica e inclusivamente sexual sofrida pela vítima, jamais poderia ser aplicada uma pena coincidente com o mínimo legal (dois anos - art. 152º, nº 2 do Cód. Penal).
7ª) Ora a douta sentença graduou a medida da pena em função da culpa do agente, tendo em conta as exigências de prevenção criminal e teve em conta todos os matizes do caso sub iudice para a determinação da pena a aplicar em concreto ao agente.
8ª) O arguido considera que não foi notificado para se pronunciar nos termos e para os efeitos do disposto no artº 82º-A, nº 2, pelo que não foi assegurado o seu direito ao contraditório e que não estão preenchidas as condições de aplicabilidade do artº 82º-A, nº 1 do CPP. Ora como doutamente expõe a douta sentença, «o artigo 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, consigna que há sempre lugar à aplicação do disposto no supra referido artigo, excepto nos casos em que a tal a vítima se oponha, expressamente, o que, no caso dos presentes, não sucedeu.
9ª) Bem andou o Tribunal a quo ao condenar o arguido numa indemnização pelos prejuízos pelas vítimas, o qual em sede de audiência de julgamento teve oportunidade de se pronunciar quanto aos prejuízos sofridos e se não se pronunciou, pelo que sibi imputet.
10ª) Não colhe, de todo, o argumento esgrimido pelo arguido a fim de se esquivar ao cumprimento da pena suspensa, alegando que está a trabalhar no estrangeiro. Se assim fosse, não seriam aplicadas penas de prisão suspensas na sua execução compatíveis com as exigências de prevenção geral e especial de um crime tão gravoso para os bens jurídicos como o crime de violência doméstica.
11ª) Os arguidos é que devem esforçar-se por acatar o ius imperium do Estado, colaborando e aceitando as penas que lhe são impostas (após o trânsito em julgado das decisões, naturalmente) de forma a satisfazer as exigências de prevenção geral e especial que estão na génese da sua aplicação. O que está em causa neste processo é a condenação em pena adveniente da prática de crimes.
12ª) Realce-se, também, que a condenação em concreto «A pena de prisão determinada em c. é suspensa na sua execução pelo período de três anos e seis meses, sujeita ao acompanhamento do arguido em regime de prova, vocacionada para a prevenção de situações de violência doméstica e de consumo de álcool (cf. artigo 53.º e 152.º, n.º 4, ambos do Código Penal)» permite que a DGRSP elabore um plano de reinserção social consentâneo com as condições pessoais do arguido.
13ª) É, pois, absolutamente justa e proporcional esta pena acessória, bem como a fiscalização com recurso a meios técnicos de controlo à distância, atenta a gravidade dos factos dados como provados e as necessidades de protecção da vítima.
14ª) Em suma, não existiu qualquer violação dos artigos art. 152, nº 1 al. b) e d) e nº 2 e nº 5 do CP, art. 82º-A, nº 1 e 2 do CPP, art. 18º e 32º da CRP, artºs 496º, nº 3 e 494º, do CC, art 53.º, n.º 1 do CP, artigo 35.º da lei 112/2009 de 16 de Setembro, conforme propugnado pelo arguido.
Termos em que, confirmando-se a decisão recorrida, se fará JUSTIÇA.

Nesta Relação, o Il.mo PGA emitiu douto parecer, no sentido de que o recurso do arguido «em matéria de direito nas diversas questões supra aludidas deve improceder. Quanto à alegada nulidade por violação do princípio do contraditório deverá ser ponderada a procedência do recurso com o consequente reenvio parcial à primeira instância».
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FACTOS PROVADOS:
I. O arguido AA e V1 viveram numa relação análoga à dos cônjuges, partilhando mesa, cama e habitação desde 1997, até cerca de Junho de 2016, altura em que V1 deu por terminado o relacionamento.
2. Desse relacionamento amoroso nasceram FF, nascido em 17 de Julho de 1997, V2, nascida a 24 de Janeiro de 1999 e V3, nascida em 14 de Setembro de 2001.
3. Durante a constância do relacionamento amoroso o arguido, V1 e os filhos residiram, primeiramente no Brasil, e, desde 2008, em Portugal, na Rua …., área desta comarca.
4. O arguido continuou a residir naquela morada mesmo após o fim do relacionamento amoroso.
5. Desde o início do relacionamento amoroso e concretamente desde que o casal reside em Portugal, em várias ocasiões, por vezes em estado ébrio, o arguido encetou discussões com V1, nas quais se lhe dirigia, apodando-a de “puta, filha da puta”, e lhe desferiu murros e pontapés no corpo.
6. Ainda na constância do relacionamento amoroso e mesmo após, por várias vezes, o arguido, por ciúmes, insinuou que V1 estava "a sair com o segurança do Jumbo e com outros homens lá de dentro", encetando discussões sempre que a mesma não lhe atende o telemóvel.
7. Também na constância do relacionamento amoroso, por diversas vezes, algumas em estado ébrio, o arguido não permitia que V1 adormecesse, atingindo-a com chapadas e cotoveladas sempre que a mesma adormecia, exigindo-lhe que se mantivesse os olhos abertos e que lhe respondesse, dizendo- lhe: “você está fingindo que está dormindo”, “você não está me escutando”.
8. Desde há cerca de três anos, sempre que V1 tentava dar por terminado o relacionamento amoroso, o arguido, nessas ocasiões, dizia-lhe que se o fizesse se iria suicidar, por vezes encostando uma faca de cozinha ao próprio pescoço e trancando-se no interior do quarto com uma faca, ao mesmo tempo que se dirigia aos seus filhos, afirmando "a sua mãe não me quer, vocês vão ver o que vai acontecer".
9. Noutra ocasião, e sempre que V1 e os filhos se encontravam na residência, o arguido amarrou guinchos no interior do guarda-roupa, dando a entender que se iria suicidar.
10. Em diversas ocasiões, sempre desde há cerca de três anos, o arguido dirigiu-se a V1 afirmando que iria “matar toda a família” de V1 no Brasil e que iria “colocar fogo” naquela e nos seus filhos, que iria “matar todo o mundo dormindo”, que iria “vender o carro e comprar uma arma de fogo para dar fim nisso tudo”, que se ela “não fosse sua, não seria de mais ninguém neste mundo”, que “quando eu chegar aí, eu vou dar um fim nisso tudo, eu vou resolver isso tudo, você vai ver. Você não vai ficar nem na casa, nem no café, porque eu vou dar um sumiço com sua vida, eu vou matar todo o mundo”.
11. Também desde essa altura, sempre que V1 recusava manter relações sexuais com o arguido, este dirigia-se-lhe afirmando que iria “quebrar tudo com uma marreta” se a mesma “não fizesse. Sexo” com ele.
12. Bem como, durante a noite, e encontrando-se V1 e os filhos a descansar, o arguido, por diversas vezes, bateu nas portas dos quartos, realizou chamadas telefónicas para os telemóveis dos filhos.
13. Também em várias ocasiões, sempre desde há cerca de três anos, o arguido, durante o dia, afiou facas na presença de V1, enquanto afirmava “de noite você vai ver, de noite você me paga”.
14. Numa ocasião, também desde há cerca de três anos, enquanto V1 se encontrava a dormir no sofá da sala da residência da família, o arguido ferveu num caldeirão uma quantidade não apurada de água e dirigiu-se ao seu filho FF, dizendo-lhe que ia “queimar” a sua mãe V1 e que “se esse rostinho bonito não for meu, não vai ser de mais ninguém”.
15. Ainda no aludido período, em data não concretamente apurada mas situada no final de Dezembro de 2014, no interior da residência, o arguido, em estado ébrio, pediu à sua filha V3 para dançar, tendo esta recusado, ao que o arguido a empurrou e dirigiu-se-lhe, dizendo “então some daqui, desaparece da minha frente.”
16. De seguida, o arguido dirigiu-se a V1, exigindo-lhe que mantivessem relações sexuais, dizendo “vamos estar comigo, vamos para o quarto”, ao que a mesma recusou.
17. Acto contínuo, o arguido dirigiu-se à cama que era do casal, onde V3 se encontrava a dormir e pegou na sua orelha, puxando-a, apertando e rodando-a, ao que a mesma acordou, ao mesmo tempo que proferia a expressão “some da minha cama”.
18. Perante a conduta do arguido, V1 disse-lhe “você está parvo”, ao que o arguido começou a agredi-la de modo não concretamente apurado, tendo esta pegado no telefone no intuito de chamar a Polícia e o arguido, ainda em acto contínuo, retirou o telefone a V1 e atirou-o ao chão, partindo-o.
19. De seguida, já no corredor, o arguido empurrou V1 contra a parede, ao mesmo tempo que se lhe dirigia com a expressão: “vamos para o quarto que a gente vai conversar no quarto”.
20. Não logrando manter relações sexuais com V1, em seguida, o arguido acordou a sua filha V2 e, fazendo-se acompanhar, pela força, desta e da sua irmã V3, o arguido desceu para a rua enquanto afirmava, dirigindo-se a V1: “você vai ver o que eu vou fazer; eu vou sumir com as meninas; você vai ver e se passar algum carro e se vocês gritar, aí é que eu pego mesmo e somo com as duas”.
21. Perante a conduta do arguido, V1 afirmou que iria fazer o que o mesmo quisesse, ao que o arguido regressou ao interior da residência, acompanhado de V2 e V3, dirigindo-se-lhes ainda dizendo “então some da minha frente, então vai dormir”, ao mesmo tempo que as empurrou uma contra a outra, atingindo-se mutuamente com as cabeças.
22. Logo após, V1 comunicou ao arguido que ia ceder a manter relações sexuais com ele, embora não tivesse vontade, ao que o arguido lhe ordenou que fossem tomar banho.
23. No interior da divisão da casa de banho, V1 procurou afastar o arguido de si, empurrando-o, ao que o arguido reagiu desferindo- lhe um empurrão que provocou a sua queda de V1 na banheira, batendo com a cabeça, causando-lhe dores.
24. No dia 03 de Junho de 2016, pelas 00:30 horas, no interior da cozinha da residência sita na Rua … , o arguido, encontrando-se em estado ébrio, encetou uma discussão no âmbito da qual se dirigiu à sua filha V2 e desferiu-lhe vários socos na zona da cabeça, bem como, munido de um telemóvel, a atingiu com o mesmo na cabeça e desferiu-lhe pontapés nas pernas.
25. Nesse momento, V3 entrou no interior da cozinha, ao que o arguido dirigiu-se também à mesma com vários socos na zona da cabeça, bem como, munido de um telemóvel, a atingiu com o mesmo na cabeça e desferiu-lhe pontapés nas pernas.
26. O arguido apenas cessou tais condutas quando segurado por trás e imobilizado pelo seu filho FF.
27. Nessa sequência e com receio, V2 e V3 abandonaram a residência e foram para casa de uma vizinha, sita junto à Pastelaria --- .
28. Cerca de vinte minutos depois, o arguido deslocou-se também àquela residência, onde solicitou a V2 e V3 que o acompanhassem de volta a casa e se dirigiu a V3 e lhe desferiu um beliscão nas costas, abandonando o local em seguida e levando consigo o telemóvel da mesma.
29. No dia 29 de Janeiro de 2017, o arguido ligou várias vezes para o telemóvel da sua filha V2, ordenando-lhe que ligasse para o salão de cabeleireiro onde V1 se encontrava, para saber do seu paradeiro, tendo esta recusado falar com o arguido.
30. Em seguida, o arguido dirigiu-se, por telefone, à sua filha V2, afirmando que "quando chegasse a casa, ia bater-lhe" e que lhe "iria tirar o telemóvel".
31. Momentos após, ao chegar à residência da família, e encontrando-se já presente V1, e na presença dos filhos, o arguido dirigiu-se-lhe afirmando que a iria matar, que iria matar a sua família no Brasil e os seus filhos, e que lhes iria bater.
32. Acto contínuo, o arguido exigiu a V1 que lhe devolvesse o telemóvel utilizado pela sua filha V2, e que “se não o fizesse lhe bateria”, afirmando que não lhe haviam atendido as chamadas e respondido às mensagens por ele enviadas.
33. Em data não concretamente apurada, também no ano de 2017, durante a noite, o arguido bateu por várias vezes à porta do quarto de V1, encontrando-se a mesma trancada.
34. O filho do arguido, FF, abriu a porta do quarto, ao que o arguido, munido de uma faca, que empunhou, ordenou a V1 que dali saísse, tendo o filho do arguido logrado fechar novamente a porta do quarto.
35. Também em data não concretamente apurada, no ano de 2016, o arguido, no âmbito de uma discussão com V1, munido de uma faca de cozinha, seguiu a ofendida pela cozinha, dirigindo-se-lhe empunhando a faca, até ao momento em que o seu filho FF intercedeu, afastando o arguido.
36. Ao perpetrar maus tratos psicológicos e verbais à sua companheira V1, na presença dos filhos menores de ambos, proferindo as expressões supra aludidas e com as condutas supra descritas, agiu o arguido com a intenção, que concretizou, de a atingir no seu bem-estar físico emocional e psicológico, e de a perturbar no seu sentimento de segurança, bem sabendo que o tom de voz que usava, a sua compleição física e as condutas perpetradas eram aptas a causar receio e insegurança na sua companheira, fazendo-a sentir-se nervosa, ansiosa, perturbada e triste.
37. Ao perpetrar maus tratos psicológicos e verbais às suas filhas V3 e V2, sabendo que as mesmas eram menores e particularmente indefesas, proferindo as expressões supra aludidas, atingindo-as na sua integridade física e com as condutas supra descritas, agiu o arguido com a intenção, que concretizou, de as atingir no seu bem-estar físico, emocional e psicológico, e de as perturbar no seu sentimento de segurança, bem sabendo que o tom de voz que usava, a sua compleição física e as condutas perpetradas eram aptas a causar receio e insegurança nas mesmas, fazendo-as sentir-se nervosas, ansiosas, perturbadas e tristes.
38. Agiu O arguido sempre de forma consciente, livre, deliberada e voluntária, bem sabendo ser o seu comportamento proibido e punido por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Mais se provou, com relevância para os presentes, que:
39. O arguido:
- Aufere, mensalmente, entre € 1 200,00 (mil e duzentos euros) e € 1 600,00 (mil e seiscentos euros).
- Suporta, a título de renda, cerca de € 300,00 (trezentos euros) mensais.
- Envia todos os meses para o Brasil, cerca de € 200,00 (duzentos euros), por conta da pensão de alimentos da sua filha.
- Tem o 6.º ano de escolaridade.
40. O arguido não tem antecedentes criminais registados no seu certificado do registo criminal.

DECIDINDO:
Analisadas as pretensões formuladas pelo recorrente, tal qual resulta do resumo que faz nas suas conclusões, uma questão prévia se destaca: com efeito, de entre as suas diversas conclusões, ressalta a afirmação da violação do direito ao contraditório, por inobservância do disposto no artº 82º-A, 2, do CPP.
Com efeito, dispõe o nº 1 do artº 82º-A, do CPP, que não tendo sido deduzido pedido de indemnização pela vítima, «o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham».
Ao abrigo de tal faculdade, o tribunal a quo arbitrou indemnizações oficiosas a cada uma das três vítimas.
No entanto, não deu cumprimento ao disposto no nº 2 desse mesmo artigo que impõe o respeito pelo contraditório, nesses casos.
Entendeu o tribunal recorrido que tal contraditório se mostra cumprido. Com efeito, foi claro na sua afirmação: «Em face do exposto, cumpre ponderar da aplicação deste regime, considerando que, em sede de audiência de julgamento, o arguido teve oportunidade de se pronunciar quanto aos prejuízos sofridos não só pela sua ex-companheira, como também pelas suas duas filhas, e exercer, assim, o seu direito contraditório».
A nossa Constituição garante que o julgamento e os actos que a lei determinar estão subordinados ao princípio do contraditório (seu art.º 32º n.º 5). Ao elevar à categoria constitucional a observância de tal princípio, há-de ter sido intenção do legislador constituinte que o seu desrespeito fosse alvo de uma reacção de forma a que ninguém possa ser alvo de uma condenação sem que, previamente, lhe seja concedida a possibilidade de se pronunciar sobre o concreto ponto em causa.
Se é certo que, como afirma a sentença, «em sede de audiência de julgamento, o arguido teve oportunidade de se pronunciar quanto aos prejuízos sofridos não só pela sua ex-companheira, como também pelas suas duas filhas» não é menos certo que – nessa ocasião - não lhe foi expressamente comunicada a possibilidade de, como consequência da condenação criminal, poder vir a ser alvo de oficiosa condenação cível aquiliana reparatória. Impunha-se que tal comunicação lhe fosse feita e não se vislumbra da análise do processo que tenha sido.
Só mediante tal comunicação poderia o arguido preparar devidamente a sua defesa também relativamente a esse ponto, de forma a não ser confrontado com uma verdadeira surpresa, traduzida na sua condenação cível não pedida pelas ofendidas.
Têm total pertinência no caso quer a jurisprudência, quer a doutrina invocada pelo recorrente na sua motivação:
- o Ac. do TRL, proferido no processo nº 192/2014.1JAPDL.L1-9, datado de 01-10-2015, que pode ser consultado em www.dgsi.pt: “Assim, só depois de uma indagação sobre a existência de pedido em separado (nº. 1 do art.82-A) e das necessidades de proteção daquela concreta vítima, o que deverá fazer constar do processo para cumprimento do contraditório (nº. 2 da norma) é que o Tribunal poderá arbitrar uma indemnização.
Acrescendo que, todos os pressupostos da responsabilidade civil deverão estar concretamente verificados nos factos provados.
- Maia Gonçalves (C.P.P. 17ª. ed, pág. 245) “(…) haverá que comunicar ao responsável a possibilidade de, em caso de condenação, ser arbitrada quantia a título de reparação pelos prejuízos que a vítima sofreu, concedendo-lhe o tempo estritamente necessário para organizar a sua defesa. Assim se estabelece em casos paralelos, v.g. art. 358º, nº. 1.”
- e Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário ao C.P.P. ed. 3ª, 232) “O respeito pelo contraditório não fica satisfeito pela circunstância de o responsável civil ter sido notificado da acusação e os prejuízos se encontrarem aí descritos.”
A omissão do cumprimento da expressa exigência de observância do contraditório no nosso caso há-de configurar uma invalidade de conhecimento oficioso, por estar em causa a inobservância de princípio com consagração constitucional.
O acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra (proferido em 19 de Outubro de 2011, e pesquisado em www.dgsi.pt), citado pelo ac. desta mesma Relação, de 22/1/2014, por sua vez citado pelo Ex.mo PGA no seu douto parecer concluiu que «a condenação em indemnização, sem observância do contraditório, nos casos especiais previstos no art.º 82º-A, do C. Proc. Penal (não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil), configura uma compressão intolerável de um direito, consubstanciando uma irregularidade processual, com evidente paridade com nulidades de natureza insanável, devendo o seu conhecimento e reparação ser oficioso.»
Cremos ser obrigatório dar o passo seguinte e concluir claramente que a invalidade em causa se traduz numa nulidade absoluta, por violação de comando consagrador de princípio constitucional básico, como o é o do contraditório e, assim insanável (artº 119º, proémio do CPP). A simples violação dos princípios constitucionais, por estar em causa a lei suprema, há-de gerar nulidade inultrapassável.
No entanto, no nosso caso, a nulidade em causa é restrita à omissão da comunicação referida, exigida pelo nº 2 do artº 82º-A, do CPP.
Trata-se de uma nulidade do julgamento e não de uma nulidade da sentença. No entanto essa nulidade do julgamento conduz à anulação de todos os actos posteriores pois que dele dependem ou são afectados (artº 122º, 1, CPP)
A sua consequência há-de ser a anulação do julgamento, nesse restrito aspecto, devendo a audiência ser reaberta para efeitos de ser feita ao arguido a comunicação em causa, produzindo-se a prova necessária ou requerida pelo arguido, referentes a esses aspecto, e proferindo-se nova sentença. Com efeito, nos termos do disposto no artº 122º, 3, existe um princípio do aproveitamento de todos os actos que possam ser salvos do efeito da nulidade; se é possível salvar todos os demais actos do julgamento, pois que não afectados pela invalidade em causa, não é possível salvar a sentença, em nenhum dos seus segmentos, pois que esta há-de pressupor um julgamento que decorreu sem a prática de nulidades absolutas. E, vimos já, não é esse o nosso caso. Por outro lado, não é compaginável a reabertura da audiência com a pré-existência de uma sentença vigente. Ao tribunal de recurso, na interpretação que fazemos das aplicáveis normas, não é permitido conhecer do mérito do recurso em fases sucessivas (ou por etapas), relativamente a um mesmo arguido. A análise das questões de mérito deve ser unitária, de forma a dar um tratamento contemporâneo e sequencial a todas elas. Apenas poderá o tribunal separar o conhecimento de questões de forma relativamente ao conhecimento de questões de fundo (como acontece nos casos de reenvio prejudicial e de anulação da sentença).
Assim sendo, e ressalvado todo o respeito pela opinião emitida, cremos não ser de dar cobertura ao entendimento manifestado pelo Il.mo PGA, no seu douto parecer, no sentido de que «a nulidade suscitada não reveste a natureza de prejudicialidade em relação à apreciação das demais questões, antes pelo contrário, uma vez colocada em sede de recurso, só tem razão de ser como consequência da apreciação das restantes e com a perspectiva da manutenção da condenação do arguido».
Basta atentar na possibilidade de fazer depender a suspensão da execução da pena de prisão que for aplicada do pagamento da indemnização arbitrada (v. o artº 51º, 1, a), do CP).
Em termos processuais não é possível ‘regressar’ à fase do julgamento, deixando intocada e válida a sentença, que retirara já consequências da omissão do acto gerador da nulidade em causa. Regressando os autos a essa fase, a nulidade decretada há-de, necessariamente, afectar toda a sentença, atenta a prejudicialidade do julgamento relativamente à decisão.

Termos em que, nesta Relação, se acorda em conceder provimento ao recurso, determinando a anulação do julgamento, no restrito aspecto apontado, devendo a audiência ser reaberta para efeitos de ser feita ao arguido a comunicação em causa, produzindo-se a prova necessária ou requerida pelo arguido, referentes a esses aspecto, e proferindo-se, após, nova sentença.

Recurso sem tributação.

Coimbra, 8 de Maio de 2018

Jorge França (relator)
Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)