Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1766/20.7T8SRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO BRANDÃO
Descritores: CUMULAÇÃO DE EXECUÇÕES
TÍTULOS DIFERENTES
Data do Acordão: 06/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 709.º DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL.
Sumário: Apesar de ocorrer coligação passiva no âmbito interno de cada um dos títulos invocados, entre mutuária e fiadores num deles e subscritora e avalistas no outro, pode ser intentada conjuntamente, no mesmo processo, uma execução cujo título executivo é um contrato de mútuo, garantido por fianças, e uma outra execução cujo título é uma livrança, ambas para pagamento de quantia certa, com os mesmos exequente e executados.
Decisão Texto Integral:








Acordam os Juízes, em conferência, na 1ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Coimbra:

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I - RELATÓRIO

A “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, CGD, intentou execução ordinária contra a sociedade “A… , Lda”, B…. , C…. ,  D… e E… , todos devidamente identificados, reclamando o pagamento da quantia exequenda de 31.598,09 €, acrescida de juros de mora, sendo os já vencidos no montante de 1.224,05 €.

Alegou em síntese que celebrou com a sociedade, 1ª executada, um contrato de abertura de crédito, formalizado por documento particular, tendo intervindo os demais executados como fiadores, e que deixou de ser cumprido a partir de 27.08.2018, sendo o valor liquidado e agora exigido o correspondente ao capital em dívida, juros e despesas que, interpelados, não pagaram.

Para além disso, a exequenda é também dona e legítima portadora de uma livrança subscrita pela 1ª executada, no montante de 28.598,09 €, avalizada pelos demais executados, e que não paga por qualquer destes intervenientes cambiários aquando do seu vencimento, em 26.02.2020, data a partir da qual são devidos juros de mora, sendo os vencidos até 08.09.2020 no montante de 611,14 €.

                                   *

Foi proferido logo após um despacho onde, depois de considerar que havia aqui uma cumulação de execuções com base em títulos diferentes e contra vários executados alicerçadas em causas de pedir e com pedidos díspares, com distinta relação material entre os executados, e que não existia qualquer litisconsórcio, concluiu haver uma coligação passiva de devedores ilegal, pelo que, apelando ao artº 38º do CPC ordenou a notificação da exequente para, em 10 dias, optar pelo prosseguimento da execução com base num dos títulos executivos apresentados, ou seja, ou com base no contrato de abertura de crédito ou com base na livrança, cujo original foi antes junto.

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A exequente, a CGD,veio responder, pugando pela validade da execução nos termos em que a intentou, dizendo que não via onde se pudesse aplicar aqui o mencionado artº 38º do CPC aplicação invocando por seu lado o disposto no artºs 56º e 709º, nº 1, do CPC, porque não há qualquer obstáculo aplicável e, por outro lado, foram demandados todos os intervenientes na relação creditícia, os mesmos em cada um dos títulos que, em todo o caso, sublinha, referentes a diversas e distintas obrigações de crédito, pelo que entende ser legal a cumulação de execuções.

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Foi então proferida uma novo despacho com a fundamentação e decisão final que se transcreve:

“Cumpre apreciar e decidir.

O artigo 709, n.º 1, do CPC, sob o título “Cumulação de execuções fundadas em títulos diferentes”, estabelece que:

“ 1 - É permitido ao credor, ou a vários credores litisconsortes, cumular execuções, ainda que fundadas em títulos diferentes, contra o mesmo devedor, ou contra vários devedores litisconsortes, salvo quando: “.

A cumulação de execuções contra vários devedores, no caso de títulos diferentes, apenas pode acontecer no caso de litisconsórcio passivo, que não no caso de coligação passiva; neste caso, é de exigir a unidade do título. A lei permite esse tipo de demanda na hipótese de os executados se encontrarem obrigados no mesmo título (cfr. art.º 56, n.º 1, al. b), do CPC, e também Rui Pinto[1]).

Tal cumulação de execuções com base em títulos diferentes e contra executados distintos alicerça-se ainda em causas de pedir e pedidos díspares. A relação material entre os executados é muito distinta, já que num caso está em causa o pagamento de uma abertura de crédito com hipoteca, de um mútuo e o outro concerne a uma obrigação cambiária respeitante a uma livrança.

Por isso, entendo que nos encontramos perante uma coligação passiva de devedores ilegal.

“Quando, no caso de coligação passiva ou mista, os devedores não se encontrem obrigados no mesmo título (n.º 1 b), deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento, convidando o exequente a escolher a execução com que quer prosseguir, sob pena de, não o fazendo, ter lugar o indeferimento total do requerimento executivo (arts. 38 e 726, n.ºs 4 e 5).”[2]

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Por todo o exposto, decido, em virtude da existência de uma coligação passiva de executados ilegal, indeferir liminarmente o requerimento executivo (cfr. artigos 38, 56, 709 e 726, n.ºs 4 e 5, do CPC).

Custas a cargo da exequente, com taxa de justiça que se fixa em 2 Uc´s (cfr. art.º 527, nº. 1, do CPC, e art.º 7, n.º 4, do RCP).

Notifique e comunique.

Oportunamente, finalize e cumpra o provimento n.º 1.

….. “

                                   *

A exequente, inconformada, veio interpor o presente recurso, pedindo a revogação da decisão de indeferimento liminar e a sua substitua por uma outra que admita o requerimento executivo e ordene o prosseguimento normal do processo, tendo apresentado despois das suas alegações as seguintes conclusões:

(..)

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

Delimitação do objeto do recurso

É pelas conclusões das alegações do recurso que se afere e delimita o seu objeto – cfr., designadamente, as disposições conjugadas dos art.ºs 5.º, 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do Código de Processo Civil, diploma de que serão os preceitos indicados sem menção de origem – sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.

Face às conclusões da motivação do recurso, a questão a decidir é apenas de Direito e tem a ver com a admissibilidade, ou não, da cumulação de uma execução cujo título é um contrato de mútuo celebrado entre a exequente e a 1ª executada, de que os demais executados são fiadores, e uma outra execução, cujo título executivo é uma livrança, subscrita pela mesma 1ª executada e avalizadas pelos mesmos demais executados.  

Iniciemos então a apreciação do presente recurso que passa pela a abordagem do litisconsórcio, voluntário e necessário, da coligação e da simples cumulação material de pedidos.

A pluralidade de partes que caracteriza o litisconsórcio coincide, em princípio, com uma pluralidade de titulares de objecto do processo, representando uma legitimidade de segundo grau, isto é, uma legitimidade que se demarca, através de critérios específicos, entre esses titulares, de molde a determinar as condições em que todos eles podem ou devem ser partes numa mesma acção. A legitimidade plural não é, por isso, um conjunto ou somatório de legitimidades singulares, mas antes uma realidade com características próprias[3].

O litisconsórcio pode ser voluntário, o previsto no artº 32º, onde todos os interessados podem demandar ou ser demandados, sem que a falta de qualquer deles gere ilegitimidade, ou pode ser necessário, o previsto no artº 33º,  caso em que têm de estar presentes todos os interessados para demandar e/ou serem demandados, posto que a falta de qualquer deles gera uma situação de ilegitimidade[4].

A coligação, prevista no artº 36º é, por outro lado, a modalidade de litisconsórcio em sentido amplo na qual os pedidos são subjectivamente diferenciados relativamente aos sujeitos que integram a parte litisconsorcial; a cada sujeito corresponde um objecto processual. Em termos simples, na coligação à cumulação de sujeitos (cumulação subjectiva) corresponde uma cumulação de pedidos (cumulação objectiva)[5].

Diz Paulo Pimenta, em “Processo Civil Declarativo”, 2ª ed., pg 83[6], que a diferença entre o litisconsórcio e coligação é que nesta há pluralidade de partes e pluralidade correspondente de relações materiais controvertidas, enquanto naquela primeira há pluralidade de partes mas unicidade da relação controvertida.

Na situação vertente não existe qualquer situação de litisconsórcio necessário em função da responsabilidade de cada um dos executados em decorrência da respectiva intervenção em cada um dos títulos executivos como veremos de seguida, sendo todavia de considerar, no que tem a ver especificamente com o contrato de mútuo celebrado com a 1ª executada, garantido pela fiança dos demais executados, que estes renunciaram“ ao prazo estipulado pelo artº 782º do Código Civil e ao exercício das excepções previstas no artº 642º do mesmo Código”.

A exquente/apelante podia pois demandar isoladamente cada um dos executados exigindo de cada um a totalidade da quantia exequenda referente a cada um dos títulos executivos, como podia demandar todos eles conjuntamente, tal como o fez aqui, naturalmente para obter uma decisão que abranja todos eles, uma vez que aquela que pudesse obter contra apenas um deles, não seria oponível aos demais, tendo em atenção o disposto nos artºs 512º, nº1, 518º, 522º e 634º do CC, artº 75º, 77º e 78º da LULL[7].

Essa opção da exequente em demandar todos os obrigados de cada um dos títulos configura uma situação de coligação a que alude o artº 36º, porém, sublinhe-se bem, no âmbito de cada um dos títulos, ou seja, ao demandar por um lado a mutuária e os fiadores configura uma coligação entre eles, e, ao demandar por outro lado a subscritora da livrança e os avalistas, configura aqui uma outra coligação.

Feita tal indicação, fica então evidenciada a questão que importa apreciar e decidir, determinar qual a relação que decorre entre os títulos e os respectivos intervenientes/executados, se há também aqui, de um ponto de vista externo a tais títulos executivos, o mútulo e a livrança, também uma coligação, a configuração que foi dada na decisão.

Escreveu-se nessa mencionada sentença que ”não existe litisconsórcio entre a sociedade executada e os outros executados que permita admitir a cumulação de títulos executivos” e que verificava-se “uma cumulação de execuções contra executados diferentes e com causas de pedir e pedidos diferentes, com fundamento em títulos executivos dissemelhantes”, pelo que “os executados (cinco) estão a ser demandados em COLIGAÇÃO e não em litisconsórcio.”

Embora não se possa deixar de concordar com a afirmação feita de que não há aqui qualquer situação de litisconsórcio necessário, e que há efectivamente uma situação de coligação, porém, esta existe, como ficou referido acima, em relação a cada um dos títulos executivos e aos seus intervenientes, mutuária/fiadores por um lado, e subscritora/avalistas por outro lado, pelo que a questão colocada vai mais além, coloca-se num outro plano, externo a cada um deles, para saber se poderia a exequente cumular uma execução baseada num contrato de mútuo e as fianças aí prestadas, com uma outra emergente de uma livrança.

Para nós a resposta é afirmativa, sim a exequente podia e pode cumular as execuções porque não tratamos de uma coligação, não há tal entre mutuária/fiadores e subscritora/avalistas, mas de uma cumulação real de pedidos[8] - emergentes de causas de pedir diversas, respeitantes a distintas relações controvertidas – deduzidos ao abrigo do disposto nos artºs 36º, 56º e 551º, nº 1, posto que não se verificam, pelo menos não vislumbramos, qualquer obstáculo substancial ou processual/formal elencados nos artºs 37º e 709º[9].

A cumulação simples de pedidos tem como pressupostos de admissibilidade, sob pena de ineptidão nos termos do artº 186º, nº 2, c), a compatibilidade substantiva entre os efeitos materiais resultantes da procedência, e a compatibilidade processual[10].

“Quando se fala em «cumulação de pedidos» pretende-se designar, não qualquer dos casos em que os pedidos são múltiplos, mas tão somente aquele em que a pluralidade de pedidos coincide com a singularidade, pelo menos ideal, do sujeito activo e do sujeito passivo da acção executiva

Quando várias pessoas fazem pedidos diferentes a uma só, ou uma só faz pedidos, também diferentes, a várias pessoas, há pluralidade de pedidos, mas esta costuma designar-se, não pelo nome de cumulação de pedidos, mas pelo de coligação, de exequentes e de executados”[11].

Para além de mais há uma diferença importante que acentua a distinção entre a cumulação de pedidos a que alude o artº 555º e a coligação prevista no artº 36º, a “conexão”[12], pressuposto desta última, enquanto o primeiro exige apenas, como referido imediatamente acima, a “compatibilidade”.

Terá sido, eventualmente, por não sido dada a devida conta à distinção entre a cumulação de pedidos, para tratar a situação como sendo uma coligação, que foi proferida a decisão de indeferimento, retendo a discussão na abordagem desta última figura e do litisconsórcio, pertinente na perspectiva do âmbito interno de cada um dos títulos, mas inadequada no plano externo que tem a ver com a junção dos dois títulos numa mesma execução, configurando uma cumulação simples de pedidos.   

Ora, a forma do processo correspondente à execução de cada um dos títulos são idênticas, sequem o mesmo rito ordinário, os pedidos, diferenciando-se embora pelos montantes, visam obter o pagamento de quantia certa e, finalmente, são-lhes aplicáveis idênticas regras quanto à competência internacional, material ou hierárquica[13].

No que tem a ver com as partes não há tampouco qualquer divergência ou alteração, a exequente é e seria a mesma nas duas acções, tal como são e seriam também os mesmos os executados em decorrência dos títulos executivos, o mútuo com a prestação das fianças num deles, e a livrança e os avales no outro, pelo que sendo ainda mais restritos os requisitos formais para a cumulação nas acções executivas que os exigidos para a acção declarativa[14], não há, repete-se, qualquer obstáculo à cumulação das execuções em decorrência do mútuo e a livrança.  

O despacho anterior buscou fundamento para a decisão de indeferimento no artº 56º, nº 1, b), mas sem indicar, contudo, qual a circunstância em concreto que, nos termos do artº 709º, impedia a coligação, ficando-se pela invocação da ilegalidade.

Estamos, como dissemos acima, perante a dedução de duas pretensões autónomas e distintas, com duas diversas causas de pedir, por um lado o contrato de mútuo e as fianças e, por outro lado, uma livrança e as obrigações cambiárias que dela decorrem com a subscrição e os avales, configurando-se assim em nosso entender, com todo o respeito por opinião diversa, uma cumulação real de pedidos, tal como prevê e admite o citado art.º 555º, n.º 1.

A exequente/apelante, ao invés de instaurar uma acção executiva com base no incumprimento do contrato de mútuo, acionando concomitantemente os demais executados com base na garantia prestada, a fiança, e instaurar uma outra acção executiva em decorrência das obrigações cambiárias, demandando aqui a primeira executada como subscritora da livrança e os demais executados como seus avalistas, resolveu fazer tal exigência através de um só processo, cumulando os respectivos pedidos[15]

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III - DECISÃO

Pelo exposto, julga-se procedente o presente recurso interposto e, consequentemente, revoga-se a decisão de indeferimento liminar que deve ser substituída por uma outra que faça prosseguir o processo.

Custas pelos executados.

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Coimbra, 15 Junho de 2021


[1] In “Manuel da Execução e Despejo”, 1.ª ed., págs. 330-331 e nota 819).
[2] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1, 3.ª ed., setembro
2014, p. 118.
[3] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pg 151
[4] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pgs 154 e 156.
[5] Cfr. Rui Pinto, Código Processo Civil Anotado, Vol.I, 2018, pg 169
[6]  Também em “O Novo Processo Civil”, 7ª ed., pgs 70 e 75
      [7] Cfr. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ªed., pg 159/161
[8] Cfr. Rui Pinto, Ob. cit., Vol II, 2018, pg 39; António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol., I, 2ª ed., pg 639, pontos 1 a 6.
[9] Cfr. José Lebre de Freitas, ob. cit., pg 171; Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, Acção Executiva Anotada e Comentada, 3ª ed., pg 198
[10] Cfr. José Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 4ª ed. pgs 504,  
      [11]  Eurico Lopes Cardoso, Manual da Acção Ecxecutiva, INCM, pg 104.
      [12] Cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., Reimpressão, pg 99 
      [13] Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 4ª ed., pg 232
[14] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. II, pg.324
[15] Ac. STJ, de 02.11.2017; Artur Anselmo de Castro, “Direito processual Civil, Vol. I, 1981, pgs 157/158 e, Vol II, pg 226/230 a propósito da ineptidão decorrente da incompatibilidade de pedidos.