Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3439/11.2TJCBR-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: INSOLVÊNCIA
APREENSÃO
DEPOSITÁRIO
DIREITO DE RETENÇÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 06/25/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA 5º J CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 149, 150 CIRE, 660, 666, 668, 839 Nº1 C) CPC, 754, 755, 759 CC
Sumário: 1.- Se a decisão recorrida, embora implicitamente, se pronuncia sobre uma questão posta pela parte, não se verifica a nulidade da mesma decisão, por omissão de pronúncia, prevista no art. 668º, nº 1, d), 1ª parte, do CPC;

2.- Em processo de insolvência, apreendido um imóvel para a massa insolvente, deve ser constituído fiel depositário do mesmo o credor titular de direito de retenção sobre o referido imóvel, que tenha visto esse direito de retenção ser reconhecido judicialmente, e não o administrador da insolvência, nos termos do art. 839º, nº 1, c), do CPC ex vi do art. 150º, nº 1, do CIRE.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. Foi declarada a insolvência de F (…) Lda.

D (…) e J (…), vieram requerer, no processo principal, a notificação do administrador de insolvência de que deverá proceder à apreensão do imóvel, sito na Rua X..., ..., Coimbra, com respeito pelo seu direito de retenção sobre o mesmo, e, por isso, em conformidade com o disposto no art. 839º, nº 1, c), do CPC, ex vi do art. 150º, nº 1, do CIRE.

Alegaram, em suma, que o aludido direito de retenção foi reconhecido judicialmente, em sentença, já transitada, proferida no Proc.1292/11.5TBCBR (conforme cópia de certidão judicial que juntaram), e que o referido administrador os informou que têm de entregar as chaves do imóvel, apesar de os requerentes terem invocado o mencionado direito de retenção, atitude esta que é ilegal face aos normativos citados.

Ouvido, o referido administrador, este respondeu que os requerentes o informaram que não pretendem ficar com o imóvel para si, pelo que entende que os mesmos devem deixar o imóvel devoluto.

Os aludidos requerentes responderam, pugnando pelo deferimento da sua pretensão.

Foi proferido despacho que considerou que o indicado imóvel foi bem apreendido, mediante o seu arrolamento, e subsequente registo predial, devendo os requerentes e o administrador de insolvência concertar posições entre si, para o bom andamento do processo. Este despacho motivou pedido de aclaração daqueles requerentes.

Antes de qualquer pronúncia judicial, veio o administrador de insolvência, no apenso D, de reclamação e verificação de créditos, manifestar a sua posição de que os requerentes deverão desocupar o imóvel a fim de facilitar a promoção da respectiva venda.

Nessa sequência os mencionados requerentes vieram opor-se, defendendo que o requerimento do dito administrador de insolvência deve ser indeferido.  

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Foi, então, proferido despacho que determinou a desocupação do imóvel e a sua entrega ao administrador de insolvência.

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2. Os referidos D (…) e J (…) interpuseram recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – O direito de retenção, tal como resulta da sua definição legal (art.º 754º do C.C.), consiste no poder do credor reter certa coisa que tem na sua posse e que é propriedade do devedor, enquanto o seu crédito não for satisfeito.

2 – Trata-se de um direito real de garantia, que visa proteger de uma forma especial o crédito daquele credor, conferindo-lhe a garantia que resulta da sua natureza como direito real, isto é, o direito de sequela e o direito de preferência de pagamento sobre os demais credores, que, no tocante às coisas imóveis, é graduado mesmo de forma prevalecente sobre a hipoteca, nos termos do art.º 759º do C.C

3 – O titular do direito de retenção detém um poder de facto sobre a coisa, que não se confunde com a posse em nome próprio, e cuja legitimidade lhe é conferida pela própria lei, resulta ope legis e que, pela sua natureza de direito real, pode ser invocado erga omnes, independentemente de qualquer registo.

4 – O retentor é, na prática, um depositário legal do bem que garante o seu crédito, o que explica a solução legal contida no art.º 839º, n.º 1, c) do C.P.C. de, perante a existência do direito de retenção, obrigar à nomeação do retentor como fiel depositário do bem penhorado.

5 – O direito de retenção não pode é ser reduzido apenas à garantia de pagamento de um crédito, como no despacho recorrido se entende e defende, negando ao seu titular aquilo que é específico deste direito, que é o direito de reter na sua posse (que não é um posse em nome próprio) o bem em causa.

6 – Todos os direitos reais de garantia conferem o poder de, pelo valor da coisa ou dos seus rendimentos, um individuo obter, com preferência sobre todos os demais credores, o pagamento de uma dívida de que é titular activo, mas cada um deles se distingue de cada um dos outros direitos reais de garantia pelas suas especificidades próprias.

7 – O direito de retenção distingue-se de todos os outros exactamente por esse traço específico que é esse poder de facto de reter na sua posse (precária, é certo) a coisa objecto desse direito, de tal forma que a sua entrega extingue mesmo aquele direito (art.º 761º do C.C.).

8 – Negar ao seu titular esse poder de facto é transformar o seu direito noutro qualquer direito real de garantia, que não o direito de retenção.

9 – O direito de retenção não é incompatível com a penhora, não sendo sequer a única situação em que a lei admite que os bens penhorados se mantenham na posse de quem os detém, como acontece com os imóveis arrendados, nem é incompatível com a venda judicial.

10 - Mas, para que o direito de retenção fosse cabalmente respeitado, em toda a sua plenitude, o legislador impõe mesmo a nomeação do retentor como fiel depositário do bem retido, nos termos do art.º 839º, n.º1 do C.P.C., solução válida também no âmbito do processo de insolvência por força do disposto no art.º 150º, n.º 1 do C.I.R.E.

11 – Na verdade, o retentor só tem de abrir mão da coisa retida quando lhe for satisfeito o seu crédito ou quando a coisa retida for vendida judicialmente no âmbito de um processo de execução, seja ele ou não universal, como é o caso da execução universal dos bens do insolvente, uma vez que, por força do disposto no art.º 824º do C.C., após a venda judicial o direito caduca e transfere-se para o produto daquela venda.

12 - O despacho recorrido faz, pois, um errado entendimento do direito de retenção, reduzindo-o apenas ao direito de se fazer pagar preferencialmente pelo preço da venda da coisa, como se já tivesse ocorrido a venda judicial do imóvel e houvesse lugar à aplicação do art.º 824º do C.C., ignorando completamente que este direito, pela sua natureza e definição, pressupõe a retenção, o tal poder de facto sobre a coisa, sem o qual não se pode falar de direito de retenção.

13 – E decide como se os Recorrentes pretendessem no seu requerimento de 10-09-2012 (refª 1272145) de que lhes fosse reconhecido um direito de gozo e fruição sobre o imóvel, quando apenas se tinham limitado a requerer serem mantidos na detenção do imóvel retido, detenção que aquele direito de retenção lhes legitima, e a confirmação dessa legitimidade da sua recusa na entrega do bem perante o Administrador de Insolvência, fundando a sua pretensão no disposto nos art.º 150º, n.º1 do C.I.R.E e no art.º 839º, n.º1 do C.P.C.

14 – Ora, os Recorrentes não pretendiam opor-se à apreensão dos bens pela massa insolvente, não pretendiam opor-se à venda do imóvel, não reclamaram nenhuma posse em nome próprio, não inverteram o título de posse, não reclamavam usucapião sobre o imóvel ou outro qualquer direito pessoal de gozo sobre o imóvel, mas tão só pretendiam o respeito do seu direito de retenção (art.º 755º, n.º 1, f) do C.C.) e que se cumprisse as normas citadas no ponto anterior.

15 – Na verdade, o despacho recorrido é, em bom rigor, nulo, porquanto não se pronunciou, em concreto, sobre a pretensão dos Recorrentes, havendo claramente omissão de pronúncia, geradora de nulidade (art.º 660, n.º 2 e 668º, n.º 1, ambos do C.P.C.).

16 – O despacho recorrido pronunciou-se sobre uma outra pretensão que não foi a formulada pelos Recorrentes nem no requerimento citado, nem em nenhum dos requerimentos por si formulados no processo.

16 – O despacho recorrido violou, pois, o disposto nos art.ºs 754º, 755º, n.º 1, f), e 761º todos do C.C., bem como dos art.º 839º, n.º 1, c) do C.P.C., o art.º 150º, n.º 1 do C.I.R.E. e os art.º 660º, n.º 2 e 668º, n.º 1, d) do C.P.C., fazendo dos mesmos uma errada interpretação e aplicação.

TERMOS em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, proferindo-se decisão que julgue o requerimento de 10-09-2012 (refº 1272145) deferido, de acordo com as conclusões aqui consignadas, com o que se fará

                                                            JUSTIÇA !

3. O Mº Pº contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

II – Factos Provados

Os factos provados são os que dimanam do relatório supra.

Está provado, ainda, que após a prolação do despacho recorrido, foi proferida sentença no apenso de reclamação de créditos, que reconheceu o crédito reclamado pelos recorrentes, e o graduou em 1º lugar, por existência de direito de retenção sobre o aludido imóvel, apreendido nos autos (no apenso C).  

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 684º, nº 3 e 685º-A do CPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade do despacho recorrido.

- Constituição dos recorrentes como fiéis depositários.

2. Resulta da combinação dos arts. 668º, nº 1, d), 1ª parte, e 666º, nº 3, do CPC, que o despacho é nulo quando o juiz deixar de pronunciar-se sobre questão que devesse apreciar, preceito aquele que está em íntima conexão com o disposto no art. 660º, nº 2, 1ª parte, que determina que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.

Embora de maneira enviesada, o despacho recorrido acabou por conhecer da questão que lhe foi posta.

Efectivamente o que o despacho recorrido devia ter decidido, positiva ou negativamente, era se os ora recorrentes deviam ser constituídos fiéis depositários do imóvel apreendido para a massa insolvente, à sombra dos invocados arts. 839º, nº 1, c), do CPC, e 150º, nº 1, do CIRE.

Antes, o despacho recorrido enveredou por debruçar-se unicamente sobre a posição manifestada pelo administrador de insolvência, de oposição ao requerimento dos apelantes, de que o imóvel lhe devia ser efectivamente entregue, para promover a sua venda, acabando, depois, por acolher a posição defendida pelo referido administrador, e assim determinando a desocupação do mencionado imóvel e a sua entrega a tal administrador.

Apesar de o caminho de abordagem jurídica da questão não se revelar o mais linear, o que é certo é que a decisão do tribunal implicitamente denegou a pretensão dos ora recorrentes, pois, como é bom de ver, a efectiva desocupação do imóvel e sua entrega ao administrador implica o não deferimento do propósito de os apelantes continuarem investidos na detenção do imóvel, na qualidade de fiéis depositários.    

Como assim, concluímos que inexistiu omissão de pronúncia, não se verificando a acusada nulidade.     

3. Encontra-se judicialmente reconhecido, por sentença proferida no âmbito Proc.1292/11.5TBCBR, já transitada em julgado, o direito de retenção dos ora recorrentes, nos termos previstos no art. 755º, nº 1, f), do CC, sobre o imóvel atrás referido, enquanto não for paga a quantia aí indicada aos mesmos.

O mesmo aconteceu na sentença de reconhecimento e graduação de créditos, proferida no apenso de reclamação e verificação de créditos da presente insolvência.  

O identificado imóvel, no âmbito dos presentes autos de insolvência, foi apreendido para a massa insolvente. De outro lado, não há notícia nos autos que o indicado imóvel já tenha sido vendido.

Por efeito da sentença declaratória da insolvência, procede-se à apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente (art. 149º, nº 1, do CIRE).

Esse poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador diligenciar no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário.

Como sabemos o identificado imóvel já foi apreendido para a massa insolvente.

Nem no requerimento que apresentaram, nem no presente recurso, pretendem os apelantes opor-se à apreensão do mencionado imóvel ou à venda do mesmo, como expressamente deixaram claro. Apenas querem ser constituídos fiéis depositários do mesmo, no respeito do direito de retenção que lhes foi reconhecido.

O administrador da insolvência, efectuada a apreensão dos bens, fica deles depositário, em regra, como acima vimos.

Só não será assim, como resulta do aludido art. 150º, nº 1, do CIRE, nas situações previstas no art. 839º, nº 1 e 2, do CPC. Aí o fiel depositário é obrigatoriamente o imposto pelo comando legal.

Uma dessas específicas situações é prevista no nº 1, sua c). O imóvel ser objecto de um direito de retenção, em consequência de incumprimento contratual judicialmente verificado, hipótese em que o depositário é o retentor.

É exactamente a circunstância que ocorre no nosso caso. Pelo que, face à expressa previsão legal, os apelantes têm toda a razão na sua pretensão de se verem investidos na posição de fiéis depositários relativamente ao aludido imóvel.   

4. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC):

i) Se a decisão recorrida, embora implicitamente, se pronuncia sobre uma questão posta pela parte, não se verifica a nulidade da mesma decisão, por omissão de pronúncia, prevista no art. 668º, nº 1, d), 1ª parte, do CPC;

ii) Em processo de insolvência, apreendido um imóvel para a massa insolvente, deve ser constituído fiel depositário do mesmo o credor titular de direito de retenção sobre o referido imóvel, que tenha visto esse direito de retenção ser reconhecido judicialmente, e não o administrador da insolvência, nos termos do art. 839º, nº 1, c), do CPC ex vi do art. 150º, nº 1, do CIRE. 

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, assim se revogando o despacho recorrido, e, em consequência, decide-se que seja substituído por outro que determine a constituição dos recorrentes como fiéis depositários do identificado imóvel.   

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Sem custas.

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Moreira do Carmo ( Relator )

Alberto Ruço

Fernando Monteiro