Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
308/09.0TBSPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
OBRIGAÇÃO
Data do Acordão: 05/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SÃO PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 1014.º, N.º 1, DO CPC
Sumário: a) – Ainda que a obrigação de prestação de contas possa resultar do princípio geral da boa fé a partir de uma mera administração de facto (não convencionada nem normatizada), pressuposto essencial de tal obrigação é que se trate de uma administração de bens alheios (art.º 1014.º, n.º 1, do CPC);

b) – Não está nessa situação o Município que usa (por mera tolerância) prédio alheio para aí levar a efeito a realização da feira quinzenal e cobra uma taxa aos feirantes pela participação em tal evento, antes se trata da gestão de um negócio próprio, no interesse e por conta sua, sem qualquer obrigação de prestar contas por tais recebimentos ao proprietário daquele prédio.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

                   1. Relatório

            A... intentou no Tribunal Judicial da comarca de S. Pedro do Sul acção com forma de processo especial de prestação de contas contra o Município de B...., fundamentalmente alegando que este, pelo menos desde 12 de Fevereiro de 2001 até 30 de Abril de 2009 autorizou a realização da feira quinzenal de ... em prédio de que é proprietário sem para tanto obter autorização do A., cobrando a cada feirante uma taxa de cujos valores nunca prestou contas, julgando-se no direito de percebimento das quantias monetárias embolsadas durante aqueles anos, com referência ao disposto no art.º 464.º do Cód. Civil, ou seja, com base em alegada gestão de negócios.

            Citado, o R. contestou por excepção, invocando a incompetência em razão da matéria do tribunal comum, a favor da jurisdição administrativa, uma vez que em causa está uma relação jurídico-tributária na cobrança de uma taxa por um ente público, ao mesmo tempo que impugnou a obrigação de prestar contas, na medida em que, ao cobrar dos feirantes as respectivas taxas, fê-lo no âmbito de um negócio próprio, no interesse e por conta do Município, que não do A., a quem nada é devido de tais eventos.

            Em resposta, o A. pugnou pela improcedência da excepção dilatória de incompetência material e, aduzindo o teor dos art.ºs 1305.º e 1308.º, do Cód. Civil, alusivos ao conteúdo do direito de propriedade e sua expropriação e a carência de título que legitimasse o uso do prédio para a realização da feira, renovou o pedido de prestação de contas formulado na petição inicial.

            Em seguida, foi proferido despacho saneador-sentença a julgar improcedente a excepção de incompetência arguida e improcedente a acção por a factualidade alegada não constituir fonte de direito a exigir a prestação de contas, nem correspectivamente fonte de um dever de as prestar.

            Irresignado, recorreu o A., em cujas alegações verteu as seguintes conclusões:

            a) – A sentença recorrida parte do pressuposto de que o exercício do direito a exigir a prestação de contas assenta exclusivamente em norma legal ou particular;

            b) – Essa interpretação do art.º 1014.º do CPC é restritiva, razão pela qual o exercício do direito a exigir a prestação de contas, para além das duas fontes citadas na sentença recorrida, assenta também na verificação do princípio geral da boa fé;

            c) – Se o R. está a fazer uso de um bem alheio, propriedade do A. recorrente, e à custa disso obtém uma contrapartida financeira, então estamos perante a violação de um princípio geral de boa fé;

            d) – Este princípio deve ser usado em sentido objectivo, ou seja, como regra de conduta, isto é, não é aceitável que, à luz do direito e da justiça, o R. não seja obrigado a prestar contas dos ganhos alcançados pela utilização de um imóvel como se do dono se tratasse;

            e) – Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação do art.º 1014.º do CPC e 20,º, n.º 1 e 62.º, n.º 1, da CRP e violou ainda o princípio geral de boa fé, que deve reger todo o tipo de relações, seja entre entes privados, seja entre entes públicos e privados, como é o caso, por isso se impondo a sua revogação e substituição por outra que determine o R. a prestar contas conforme pedido na petição inicial.

            O R. respondeu a arguir previamente a inadmissibilidade do recurso por falta de indicação do valor da causa e, a ser apreciado, pronunciou-se pela improcedência das conclusões recursivas e manutenção da decisão recorrida.

            Constatando-se que o valor da acção fora indicado no formulário com que foi apresentada a petição inicial (€ 5.001,00), foi o recurso admitido.

            Cumpre apreciar, sendo que a única questão trazida a esta instância é esta:

            - Tem o A. direito a exigir do R. Município, mormente com base no princípio geral da boa fé, a prestação de contas pela cobrança de uma taxa aos feirantes da feira quinzenal levada a efeito em prédio daquele?

            Vejamos.


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            2. Fundamento

            2.1. De facto

            O acervo factual relevante para conhecimento do recurso é o que foi exposto no antecedente relatório.


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            2.2. De direito

            Como é sabido, são as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso (art.ºs 685.º-A, n.º 1 e 684.º, n.º 3, do CPC).

            E, tal como referido, o que importa apreciar e decidir é se o A., recorrente, tem direito a que o Município de B..... lhe preste contas da cobrança das taxas aos feirantes, no período de 12.2.01 até 30.4.09, ou seja, no lapso de tempo em que a feira quinzenal foi realizada em prédio sua pertença.

            Dispõe o art.º 1014.º do CPC que a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

            Como salienta A. dos Reis[1], princípio geral e pressuposto de tal preceito é que alguém administre bens ou interesses alheios e deve, por isso, prestar contas dessa administração ao titular desses bens ou interesses.

            A obrigação de prestar contas pode decorrer directamente da lei, no sentido de constituir uma imposição legal (caso do tutor ou do cabeça-de-casal), de um contrato (caso do mandato ou gestão de negócios) ou, ainda, de uma administração de facto (sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais) em ordem ao princípio geral da boa fé, enquanto princípio fundamental e instrumento consagrado pela ordem jurídica, limitador ou complementar da livre conformação das relações obrigacionais, desde logo no que tange à tutela da confiança e à protecção de terceiros baseada na conduta de outrem.[2]

            Esta fonte, do princípio geral da boa fé, tem merecido crescente afirmação da jurisprudência.[3]

            Todavia, pressuposto fundamental em qualquer das fontes de onde possa derivar aquela obrigação (lei, contrato, boa fé) é a administração de bens alheios.[4]

            Aliás, a obrigação de prestar contas constitui uma obrigação de informação de quem administra bens alheios, seja qual for a fonte do facto dessa administração.[5]

            Voltado ao caso em apreço, dir-se-á que nas sucessivas intervenções processuais o recorrente esgotou as fontes indicadas para a sua pretensão de prestação forçada de contas.

            Gizou a petição inicial com base num hipotético contrato de gestão de negócios, na resposta à contestação passou, depois, para a tutela da lei civil a propósito da defesa do direito de propriedade e terminou, nas alegações de recurso, com o princípio geral da boa fé.

            Rebatidas aquelas fontes no douto saneador-sentença, com aceitação sua, só esta última (boa fé) cumpre aqui apreciar. 

            Desde logo, porque a actuação do Município de B... se não traduziu em qualquer acto de administração de bens alheios, o uso pelos feirantes e pelo próprio Município, enquanto organizador, do prédio do recorrente por onde se espraiava a feira quinzenal não constitui nenhum acto de administração de bem alheio, gerador de obrigatoriedade de prestação de contas pelo recebimento das taxas pela participação daqueles em tal evento mercantil, antes se tratou da gestão de um negócio próprio, no interesse e por conta do Município.

            Depois, da factualidade alegada e que pode ter-se como assente, da cobrança de uma taxa aos feirantes por parte daquele Município pela organização da feira, desde logo a partir da ocupação do solo em prédio do recorrente, tudo o indica que por mera tolerância sua (continuando situação de facto advinda da anterior proprietária – REFER), durante mais de 8 anos, não pode levar à conclusão de que o recorrido teve qualquer regra de conduta que, em ordem ao propalado princípio da confiança, fizesse nascer no recorrente expectativa legítima de lhe prestar contas.

            E outra matéria o recorrente não alegou que, a tanto, pudesse conduzir.

            Assim porque nenhum preceito legal foi violado, soçobrarão as conclusões recursivas.


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            3. Sumariando (art.º 713.º, n.º 7, do CPC):

            a) – Ainda que a obrigação de prestação de contas possa resultar do princípio geral da boa fé a partir de uma mera administração de facto (não convencionada nem normatizada), pressuposto essencial de tal obrigação é que se trate de uma administração de bens alheios (art.º 1014.º, n.º 1, do CPC);

            b) – Não está nessa situação o Município que usa (por mera tolerância) prédio alheio para aí levar a efeito a realização da feira quinzenal e cobra uma taxa aos feirantes pela participação em tal evento, antes se trata da gestão de um negócio próprio, no interesse e por conta sua, sem qualquer obrigação de prestar contas por tais recebimentos ao proprietário daquele prédio.


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            4. Decisão

            Face a todo o exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.


[1] “Processos Especiais”, I, pág. 303.
[2] V. Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, Almedina, 1979, pág. 84.
[3] V. Acs. RL de 17.11.94, CJ, 1999, V, pág. 99, STJ de 11.11.01, Proc. 217/00-7.ª, Sumários, 47.º, cit. em A. Neto, “CPC, Anot.”, 20.ª ed., pág. 1344 e RP de 19.1.06 – JTRP 00038732/ITIJ.
[4] V. Ac. RL de 19.1.06, Proc. 10895/2005-6/ITIJ.
[5] V. P. Lima e A. Varela, “Cód. Civil, Anot.”, I, anot. art.º 573.º e Ac. RL de 17.4.08. Proc. 3052/2008-8/ITIJ.