Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1117/09.1T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: ERRO DE FACTO
ERRO DE DIREITO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
CASO JULGADO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REPETIÇÃO DO INDEVIDO
Data do Acordão: 01/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – PEQUENA INSTÂNCIA CÍVEL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 473.º DO C. CIVIL
Sumário: 1 - Quando se sustenta que os factos dados como provados – que não se contestam (e que até correspondem ao que se alegou) – devem conduzir, na aplicação devida das normas substantivas, a solução diversa da sentenciada, não se está a invocar um “erro notório na apreciação da prova” (não se está sequer a invocar o que quer que seja em termos de prova), como não se está a invocar uma “nulidade de sentença por a fundamentação estar em oposição com a decisão”; está-se, isso sim, a invocar um erro na previsão ou na estatuição (conforme o caso).

2 - Se da base instrutória constarem factos que não deviam, à luz duma selecção bem feita, ter sido nela incluídos, não deverão os mesmos, embora “respondidos” na decisão de facto da 1.ª Instância, ser alvo da reapreciação da Relação; num processo, tudo é comandado pelo direito, e por conseguinte e em termos factuais só deve ser apreciável e/ou reapreciável o que possa ter algum relevo jurídico.

3 - O resultado dum processo executivo não goza, via de regra, da irrevogabilidade análoga à do caso julgado material; não obstando, em princípio, à propositura, pelo executado, duma acção de restituição do indevido, uma vez que, não representando a oposição à execução uma contestação da acção executiva (e não estando por isso sujeita aos ónus de contestação, de impugnação especificada e de preclusão), esta (a acção de restituição do indevido) se deve ter sempre como admissível e acessível ao executado que, mesmo por negligência, não deduziu qualquer oposição.

4 - Não será, porém, assim – não será admissível a acção de restituição do indevido – se a falta de causa da deslocação patrimonial (produzida na execução) invocada na acção de restituição do indevido tiver a ver com a mesma situação jurídica que foi invocada na oposição deduzida à execução, que aí foi alvo de decisão de mérito (naturalmente, de improcedência) e que por isso fez caso julgado material e não pode voltar a ser discutida entre as partes.

5 - O que não será o caso, ainda que haja total identidade entre o deduzido na oposição e na posterior acção de repetição do indevido, se a oposição tiver terminado sem decisão de mérito, por, tendo o executado pago a quantia exequenda, a execução ter sido julgada extinta por ter ocorrido tal pagamento.

6 – Ainda que os cheques, títulos executivos (da anterior execução), hajam sido emitidos sob coacção moral, é exclusivamente na relação subjacente às obrigações cambiárias que a “falta de causa” – a que alude o art. 473.º do C. Civil – tem que ser apreciada e encontrada.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A..., Lda., com sede na Rua (...), Aveiro e B... , com domicílio profissional na mesma morada, intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra C... , técnico oficial de contas, com domicílio profissional na Rua (...), Aveiro, pedindo a condenação deste:

 - a restituir à A. a quantia de € 5.875,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data do recebimento da referida quantia pelo réu até efectiva e intetgral restituição à A, a título de enriquecimento sem causa;

 - a pagar aos AA. uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, cujo valor será liquidado pelo tribunal, mas que não deverá ser inferior a € 10.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a data da citação do R. até integral e efectivo pagamento aos AA.

Alegaram, em síntese, que a A. celebrou com o R., em Dezembro de 2003, verbalmente, um contrato de prestação de serviços de contabilidade, mediante o qual este se obrigava a prestar todos os serviços de contabilidade da A. (efectuar o lançamento dos documentos que a empresa lhe entregava mensalmente, o encerramento das contas, a entrega às Finanças da declaração anual de rendimentos da autora e tratar dos vencimentos, das declarações de IVA e das declarações da Segurança Social); “serviços” que o R. foi efectuando com atrasos.

Assim, quando, em finais de 2006, a A. decidiu candidatar-se, mediante um projecto financeiro, a fundos comunitários, não logrou fazê-lo (o pedido foi indeferido por falta de documentação, por o R. não lhe disponibilizar os documentos contabilísticos indispensáveis - os modelos 22 do IRC), em virtude do R. não ter ainda encerrado as contas de 2004 e 2005; não tendo assim a A. logrado receber qualquer fundo comunitário, que ascenderia ao valor de € 120.000, e tendo suportado os custos (perante a Associação Nacional das PMES) resultantes da elaboração do projecto de investimento e do processo administrativo, no valor de € 4.235,00. Documentação em falta que era também necessária para o processo de licenciamento industrial, que se encontrava ainda em curso na Direcção Regional de Economia do Centro e na Câmara Municipal de Aveiro, o que acarretou atrasos e sérios transtornos e prejuízos para a A..

O que, tudo junto, levou a A. a resolver o contrato de prestação de serviços de contabilidade que havia celebrado com o A., com efeitos a partir de Agosto de 2007.

Neste contexto, mudou a A. de técnico de contas (para que toda a sua contabilidade fosse posta em ordem e ainda fosse possível a candidatura aos referidos fundos mediante um projecto de financiamento) e pediu ao R. que lhe entregasse todas as pastas com os documentos da empresa, o que este disse que só faria após o pagamento do montante de € 5.425,25.

A A., começou por negar tal pagamento, uma vez que havia pago ao R. todos os serviços prestados até à data, todavia, como o R. se mantivesse a exigir o pagamento, a A., mesmo sabendo que tal montante não era devido, perante a necessidade de obter os documentos em causa para elaborar o projecto financeiro e perante o estado de debilidade físico e psicológico decorrente do cancro diagnosticado ao seu legal representante (aqui A.), acabou, para obter a entrega de todas as pastas com os documentos da empresa, por proceder à entrega ao R. de 8 cheques, no valor de € 5.400,00[1], porém, “em 5 de Dezembro de 2007, a outra sócia da autora apercebendo-se da situação, decidiu, em face da debilidade do autor pessoa singular, [ordenou] à instituição bancária para que anulasse os cheques, com fundamento em vício na formação da vontade, embora um cheque já tivesse sido pago”.

Em face de tal “anulação”, o R. instaurou acção executiva contra a A., reclamando o pagamento dos sete cheques; tendo a A., aquando da diligência de penhora realizada e em face da iminência da mesma, com remoção e com os danos daí resultantes (quer para a autora, quer para o estado de saúde do A., internado de urgência no Hospital, por motivo de eventual ataque cardíaco, atenta a vergonha, injustiça e humilhação suscitada com a penhora), procedido ao pagamento da quantia exequenda, acrescida das custas judiciais, tudo no valor global de € 5.200,00.

Assim, defendendo a A. que não havia “causa” para o pagamento de tais € 5.200,00, assim como para o pagamento do 1.º cheque no montante de € 675,00, vem pedir, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, que o R. lhe restitua o montante de €.5.875,00; e, defendendo ambos os AA. que a instauração da execução lhes causou danos não patrimoniais, vêm formular o pedido indemnizatório deduzido em 2.º lugar.

O R. apresentou contestação.

Começou por referir que houve documentos e elementos essenciais da contabilidade da A., relativos aos anos de 2003 e anteriores, que só lhe foram entregues nos primeiros meses do ano de 2007, razão por que só a partir desse momento ficou apetrechado a iniciar o lançamento das contas relativas aos anos de 2004, 2005 e 2006; porém, nunca deixou de prestar, de forma regular e pontual, todos os serviços de contabilidade que, dentro das limitações descritas, podiam ser legalmente praticados, a saber os apuramentos periódicos de IVA, salários e segurança social; e, quando em 2007, lhe foram disponibilizados todos documentos, logo iniciou a tarefa de efectuar os processamentos contabilísticos, afectando e mobilizando o pessoal e os meios do seu escritório ao serviço da contabilidade da A. (tendo pago, inclusive, horas extraordinárias a uma funcionária).

Mais referiu que nunca a A. lhe comunicou a intenção de se candidatar a qualquer fundo comunitário ou de iniciar qualquer processo de licenciamento industrial; e que a mudança de contabilista nada teve a ver com qualquer atraso, inércia ou falta de cumprimento seu, mas com a circunstância da A. ter conseguido outro contabilista disposto a realizar o serviço por um preço inferior.

Referiu ainda que nunca se recusou a entregar à A. as pastas com os documentos da empresa, nem fez depender essa entrega do pagamento de qualquer valor; que o que aconteceu foi que a A. se comprometeu a repor ao R. as diferenças mensais do pagamento dos serviços, desde o início do contrato, considerando o valor actualizado da avença em face do volume de documentos a tratar e processar; que, quando da cessação do contrato, a A. reconheceu perante o R. que lhe devia € 5.400,00, tendo, então, as partes estabelecido um acordo de pagamento dessa dívida que consistiu no pagamento daquela importância em 8 prestações, mensais, iguais e sucessivas, no valor de € 675,00, cada, tituladas pelos cheques que a A. lhe entregou (de que recebeu o 1.º e executou os restantes 7).

Concluiu pois pela total improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador – em que se julgou a instância totalmente regular – organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa, instruído o processo e realizada a audiência, após o que a Exma. Juíza proferiu sentença a “ (…) julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condena-se o réu C... a restituir aos autores A..., Lda. eB..., a quantia de € 5.875,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até integral e efectivo pagamento. (…)”

Inconformados com tal decisão, interpuseram recurso os AA. e o R..

Os AA. visando a condenação do R. também no 2.º pedido formulado; terminam a sua alegação com conclusões que, em face da sua extensão, nos abstemos de aqui transcrever.

O R. visando a sua total absolvição; termina a sua alegação com conclusões igualmente demasiado longas para aqui poderem/deverem ser transcritas.

Não foram apresentadas quaisquer respostas.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II - Quanto à impugnação da decisão de facto:

É este o momento – antes de se proceder ao alinhamento dos factos provados – para a apreciação e decisão da impugnação da decisão de facto.

Assim.

Quanto à impugnação dos AA./apelantes:

Os AA./apelantes iniciam quer a peça recursiva quer as respectivas conclusões a invocar o “erro notório na apreciação da prova”, todavia, nada dizem que consubstancie tal invocação.

Trata-se claramente – a qualificação jurídico-processual do que invocam – dum equívoco.

Invocam e sustentam repetidamente os AA/apelantes que os factos dados como provados – que eles próprios reconhecem ter sido “grosso modo” dados como provados – devem conduzir à procedência do pedido indemnizatório que também formularam (e que foi julgado improcedente), porém, tal invocação, não configura um erro na apreciação na prova (como também não configura, ao invés do que também invocam, uma “nulidade de sentença por a fundamentação estar em oposição com a decisão[2]), mas sim – a verificar-se, isto é a ocorrer mesmo – um erro na previsão ou na estatuição (em termos mais prosaicos, uma questão que tem a ver com a aplicação errada, segundo os AA/apelantes, do direito aos factos dados como provados), que, indiscutivelmente, não suscita ou coloca qualquer questão de reapreciação de factos.

Os AA/apelantes fazem várias citações sobre o que é o “erro notório na apreciação da prova”, porém, interpretam-nas erradamente.

Dizem, por ex., nas conclusões 5. e 6. 5. que é “erro notório o erro evidente, que não escapa ao homem comum, aquele de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente”; que se “verifica, nomeadamente, quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que normalmente está errado, que não poderia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, tudo por forma susceptível de ser alcançada pelo cidadão comum minimamente prevenido”.

Está certo, mas isto – o que se cita – não tem nada a ver com o que efectivamente invocam; isto – o que se cita – diz respeito ao momento/processo lógico que antecede e conduz à fixação dos factos; e não é neste momento, mas a jusante do mesmo, que os AA/apelantes situam o erro da decisão recorrida.

Enfim, quando se sustenta, como é o caso dos AA/apelantes, que os factos dados como provados – que não se contestam (e que até correspondem ao que os AA/apelantes alegaram) – devem conduzir, na aplicação devida das normas substantivas, a solução diversa, não se está a invocar um “erro notório na apreciação da prova”, não se está sequer a invocar o que quer que seja em termos de prova (como não se está, como já se referiu, a invocar uma “nulidade de sentença por a fundamentação estar em oposição com a decisão”).

Nada há pois – por não ser essa a sua correcta qualificação jurídico-processual – para apreciar e decidir, na apelação dos AA/apelantes, que diga respeito à impugnação da decisão de facto.

Quanto à impugnação do R./apelante:

Diz o R./apelante que foram incorrectamente julgados os quesitos 12.º a 18.º, 20.º, 22.º, 24.º a 35.º e 46.º.

Que dizer?

Desde logo e em 1.º lugar que a divergência com a decisão de facto – a impugnação da decisão de facto – não está bem/suficientemente feita.

Efectivamente, para impugnar uma decisão da matéria de facto – tomada também com base em depoimentos prestados – é absolutamente indispensável, sob pena de rejeição da impugnação (cfr. 685.º-B do CPC), que se enumerem e identifiquem os concretos meios probatórios, constantes de registo ou gravação realizada – por referência às passagens da gravação em que se funda, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 522.º.C – que impõem decisão diversa sobre os pontos de facto em causa.

Foi justamente isto que o R/apelante não fez devida e completamente; como o corpo da sua peça recursiva e as respectivas conclusões – que demarcam o objecto do recurso – supra transcritas o espelham, o R/apelante limitou-se a esgrimir argumentos que poderão/deverão ser incorporados no momento “único e concentrado” da análise crítica de todas as provas, mas que não podem ser introduzidos e tomados em conta, para alterar a decisão de facto, fora de tal momento “único e concentrado” e, principalmente, quando não se analisam – não se chamam à colação – todas as provas produzidas.

O referido art. 685.º-B e o 712.º, ambos do CPC, impõem ao recorrente que pretenda a reapreciação da prova por parte da Relação que, na fundamentação da sua discordância em relação ao decidido na 1.ª Instância, indique com exactidão (as passagens da gravação) os concretos meios probatórios que devem conduzir a decisão diversa da proferida na 1.ª Instância.

Foi justamente tal ónus de alegação/fundamentação que o R/apelante não curou de cumprir devidamente (a propósito de quesitos cujas respostas são colocadas em crise), razão pelo qual o recurso quanto à matéria de facto inserta em tais quesitos será formalmente de rejeitar.

Para além disto, há uma segunda nota que sempre limitaria o objecto do recurso de facto do R/apelante.

Vejamos:

As “questões de facto” só o são, só assim podem ser consideradas, por o direito substantivo aplicável lhes conferir relevo, isto é, as “questões de facto” não existem só por si, antes existem por referência e por reporte a um objecto processual e uma concreta solução de direito.

Não é por se alegarem factos que temos, necessariamente, “questões de facto”; os factos só passam a ser “questões de facto” se o direito, tendo em vista a pretensão formulada, conferir relevo jurídico a tais factos.

Num processo, bem vistas as coisas, tudo é direito.

Quando se profere a explícita selecção e organização da matéria de facto estas devem ser feitas, “segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito[3]; do mesmo modo, também as várias soluções plausíveis da questão de direito intervêm na selecção implícita que há-de, necessariamente, preceder a realização da audiência de julgamento e a prolação do despacho sobre a decisão de facto (nos casos em que não há selecção explícita).

Identicamente, aqui e agora.

Se da base instrutória constarem factos que não deviam, à luz duma selecção bem feita, ter sido nela incluídos, aqui e agora, embora “respondidos” na decisão de facto da 1.ª Instância, não poderão ser objecto de reapreciação; só é apreciável e/ou reapreciável – num processo, lembra-se, tudo é direito – o que possa ter algum relevo jurídico.

É justamente o caso duma parte significativa das questões suscitadas pelo R/apelante na sua impugnação da decisão de facto; questões que dizem respeito a ocorrências irrelevantes para a solução de direito.

Concretizando um pouco mais:

Alegam os AA. na PI, como se refere no relatório inicial, as várias vicissitudes da fase executiva da relação contratual havida entre a A. e o R.; as faltas, os atrasos e os incumprimentos do R. na realização da sua prestação de serviços de contabilidade.

Alegação a que, porém, não associam qualquer pedido; aliás, noutro processo – em que o R. não ofereceu qualquer contestação e cuja sentença condenatória se encontra junta de fls. 319 a 323 dos autos – já obtiveram uma indemnização do R. por causa de tais faltas, atrasos e incumprimentos.

O que está em causa nos presentes autos, o que aqui é pedido (e o pedido, é sabido, é um dos “marcos” do objecto dum processo), tem a ver com algo que não tem a ver com a prestação contratual a cargo do R. (mas sim com a prestação contratual a cargo da A.) e coloca-se, verdadeiramente, em momento em a que vigência da relação contratual até já havia cessado; o litígio dos autos – e o que nele se pede – não tem a ver com o modo como o R. cumpriu ou não a sua prestação contratual; o litígio dos autos – e o que nele se pede – começa exactamente após a cessação da relação contratual.

E embora as partes não estejam completamente de acordo sobre a qualificação da causa da cessação da relação obrigacional complexa havida – sustentando a A. que resolveu o contrato e defendendo o R. que o mesmo cessou por mútuo acordo – o certo é que estão de acordo que o mesmo deixou de vigorar a partir de Agosto de 2007.

E é justamente a partir desse momento, cessado o contrato, que surge o presente litígio; cujo âmago está em o R., segundo os AA., se recusar a entregar as pastas da contabilidade à A. sem esta lhe pagar o montante de €. 5.425,25; recusa/exigência que os AA reputam de infundada, mas que a A. acabou por satisfazer, vindo agora pedir a repetição do indevido, bem como uma indemnização pelo pretenso facto ilícito danoso cometido pelo R..

Significa o que se acaba de dizer que é juridicamente irrelevante – do ponto de vista do objecto do processo – muito do que se alegou na PI e depois se verteu, acriticamente, nos factos assentes e na base instrutória.

Em relação às fases estipulativa e executiva do contrato só interessa verdadeiramente saber qual era a prestação da A. e em que termos esta a cumpriu (em termos prosaicos, quanto era a avença e as quantias que, a tal título, entregou ao R.); passando-se a restante matéria de facto relevante após Agosto de 2007.

Enfim, encurtando razões, é completamente irrelevante para o desfecho dos autos/apelações – e para o que neles se pede[4] – o que foi incluído/perguntado nos “quesitos” 12.º a 18.º, 20.º, 22.º, 24.º, 25.º, 30.º e 46.º, razão pela qual, contendo factos irrelevantes, não iremos apreciar a impugnação deduzida sobre a decisão de facto proferida sobre os mesmos; o que de acordo e ao abrigo do art. 660.º/2 do CPC (aplicável ex vi art. 713.º/2 do CPC) aqui se declara, tendo em vista fundamentar e explicar o “passar por cima” de tais questões suscitadas em sede de impugnação da decisão de facto; e, naturalmente, em face de tal impugnação e da sua não apreciação, não se incluirão os factos constantes de tais quesitos – como de todos aqueles, mesmo dos não colocados em crise, que são irrelevantes do ponto de vista do objectos dos autos – no elenco dos factos provados deste acórdão.

Restará/ia pois susceptível de ser apreciada – por não respeitar a factos irrelevantes – a impugnação deduzida sobre a decisão tomada sobre os factos constantes dos quesitos 26.º a 29.º e 31.º a 35.º.

E é justamente aqui que entra e interessa a 1.ª nota efectuada; de a divergência com a decisão de facto – a impugnação da decisão de facto – não estar bem/suficientemente feita.

Como se vê de fls. 8 a 16 da alegação recursiva, o R/apelante limita-se a fazer observações críticas ao que a Exma Juíza a quo externalizou na motivação da decisão de facto; limita-se a dizer que os meios de prova invocados são insuficientes para dar como provados os factos constantes dos quesitos 26.º a 29.º e 31.º a 35.º.

É pouco, manifestamente pouco; tanto mais que entre tais meios de prova se contam depoimentos testemunhais, cujo conteúdo (invocado na motivação da decisão de facto) e respectiva força persuasiva não são beliscados pelo que se esgrime na alegação recursiva do R./apelante.

Em todo o caso, sem prejuízo da impugnação da decisão de facto não estar bem/suficientemente feita, entendemos – porque as razões formais não devem impedir/calar as razões substantivas (estamos naturalmente a referir-nos à substância da reapreciação da decisão de facto) que no caso se verificam – dever dizer o seguinte sobre o ponto axial quer do litígio[5], quer da impugnação da decisão de facto, quer, naturalmente, do recurso.

Estamos evidentemente a referir-nos ao que aconteceu, finda a relação contratual, a propósito da entrega das pastas com os documentos da empresa.

Questão em que a mola argumentativa do R/apelante se centra sobre a não junção ao processo do original da documento/fotocópia de fls. 35/348 – descrevendo ao longo de 5 páginas da alegação recursiva todas as vicissitudes processuais a que tal questão deu azo nos autos[6] – razão pela qual, em sua opinião, o conteúdo do mesmo não pode ser valorado como meio de prova.

Tudo, a nosso ver e com o devido respeito, bastante irrelevante.

A apreciação da prova é algo que se faz globalmente, articulando todos os meios de prova produzidos, recorrendo a todas as circunstâncias envolventes, a todos os detalhes, a todo o sentido crítico e analítico e, naturalmente, fazendo-se uso de toda a perspicácia e argúcia.

E dizemos isto porque é indiscutível que o R./apelante, no momento temporal a que nos reportamos (Julho/Agosto de 2007), se considerava credor da A. por causa da relação contratual entretanto cessada.

É o próprio R./apelante que o confessa no documento por si junto a fls. 515/517 – documento que, naturalmente, diz ser o bom e o fidedigno – mas que apenas difere, em relação ao de fls. 35/348, no montante da quantia de que se diz credor (de € 5.425,25 no de fls. 35/348 para € 5.166,43 no de fls. 515/517) e no modo como se “constroem” as parcelas que, no final, conduzem ao pretenso crédito da R./apelante.

E tanto é assim – tanto é indiscutível que o R./apelante, no momento temporal a que nos reportamos, se considerava credor da R. – que a A. lhe entregou e o R. recebeu os 8 cheques (de que descontou o 1.º e executou os outros 7), no montante global de € 5.400,00, que estão na génese do presente litígio; dito doutro modo – fica a pergunta à “la palisse” – a que outro propósito, senão por o R. se considerar credor de tal montante, a A. lhe iria entregar tais 8 cheques no montante global de € 5.400,00?

Ao que importa acrescentar – sobre a irrelevância da referida mola argumentativa do R/apelante – que do documento de fls. 35/348, quer da fotocópia quer do original, só resultará o montante do pretenso crédito do R./apelante e a demonstração/explicação do mesmo; não resultando – é o ponto decisivo da irrelevância da argumentação do R/apelante – se este recusou a entrega das pastas com documentos e/ou se exigiu o pagamento de tal pretenso crédito para proceder a tal entrega, o que – recusa e/ou exigência – só pode ter resultado das regras da experiência e da prova testemunhal produzida, cujo conteúdo e força persuasiva não foram correctamente colocados em crise na impugnação da decisão de facto deduzida pelo R./apelante.

E, sobre as regras da experiência, importa referir que as mesmas apontam claramente para a entrega dos 8 cheques ter ocorrido em consequência duma “invencível” exigência do R.; as claras divergências havidas entre as partes, que conduziram à mudança de contabilista, não só não estão em linha com a ideia de entrega voluntária e espontânea dos 8 cheques, como, naturalmente, se harmonizam com a ideia da A. não ter tido outro remédio senão satisfazer tal exigência do R.

Enfim, por razões formais – não estar a impugnação da decisão de facto bem/suficientemente feita – e pelas razões substantivas acabadas de expor, impõe-se julgar improcedente a impugnação da decisão de facto deduzida pelo R./apelante; porém, com a seguinte excepção:

A nosso ver, com o devido respeito, os factos juridicamente relevantes – quer os não controvertidos quer os controvertidos – são/eram bastantes reduzidos; porém, em vez duma pequena base instrutória, foi elaborada uma longa e extensa base instrutória, que, como sempre, quando incluiu factos irrelevantes, distrai a concentração e que o foco incida sobre o que é real e efectivamente relevante.

Vem isto a propósito do quesito 27.º na parte em que se pergunta, genericamente, se a A. havia pago ao R. todos os serviços prestados; pergunta que reproduz o que foi alegado na PI, articulado em que a A. nunca diz, “preto no branco”, quanto pagou ao R. (ao longo de toda a relação contratual), pelo que, para que não nos fiquemos por generalidades – sobre um facto, este sim, bem relevante – devemos recorrer à alegação implícita feita com a junção da fotocópia de fls. 35 (que, aliás, quanto às entregas da A., refere exactamente o mesmo montante – € 8.924,75 – que o documento de fls. 517 junto pelo R.) e, em consequência, rectifica-se/modifica-se a resposta dada ao quesito 27.º para “provado que a A. se negou a proceder a tal pagamento, uma vez que havia pago ao R. até à data, de serviços prestados, o montante de € 8.924,75”.


*

III- Fundamentação de Facto

Os factos, saneados da materialidade irrelevante, alinhados lógica e cronologicamente e expurgados de lapsos, são os seguintes:

1. Em Dezembro de 2003, a A. encarregou o R. de tratar da sua contabilidade, mediante o pagamento de € 208,25 mensais (alínea A) dos Factos Assentes).

2. Obrigando-se o R. a efectuar o lançamento dos documentos que a A. lhe entregava mensalmente, o encerramento das contas, a entrega às Finanças da declaração anual de rendimentos da autora e a tratar dos vencimentos, das declarações de IVA e das declarações para a Segurança Social (resposta dada ao facto 1º da Base Instrutória).

3. A A. passou a pagar, a título de avença mensal, a partir de 1/07/2005 e até 31/12/2006, a quantia de € 211,75, em virtude da alteração da taxa de IVA (resposta dada aos factos 7º a 9º da Base Instrutória).

4. Em Dezembro de 2006, o R. informou a A. que o custo dos serviços de contabilidade iria aumentar para € 411.40 (resposta dada ao facto 10º da Base Instrutória).

5. A A. acatou tal exigência, entendendo-a como necessária, em face dos serviços de contabilidade a prestar-lhe, e começou a pagar tal valor a partir de Janeiro de 2007 até Julho de 2007 (resposta dada ao facto 11º da Base Instrutória).

6. Em Julho de 2007, a A. decidiu fazer cessar o referido contrato e mudar de técnico de contas, o que foi comunicado ao R., para ter efeitos a partir de Agosto de 2007 (alínea C) dos Factos Assentes).

7. Aceitando o R. tal cessação do contrato a partir de tal data.

8. Comunicada ao R. a cessação do contrato, a A. pediu-lhe que lhe fossem entregues todas as pastas com os documentos da empresa (resposta dada ao facto 25º da Base Instrutória).

9. O réu recusou-se a entregar tais pastas, tendo informado que apenas as entregaria após o pagamento do montante de € 5 425,25 (resposta dada ao facto 26º da Base Instrutória).

10 A A. negou-se a proceder a tal pagamento, uma vez que havia pago ao R. até à data, de serviços prestados, o montante de € 8.924,75.

11. O R. continuou a exigir o pagamento da dita quantia para proceder à entrega das pastas, apresentando, para justificar tal verba, um documento manuscrito do teor do de folhas 35 dos autos (resposta dada ao facto 28º da Base Instrutória).

12. O valor constante desse documento contemplava o trabalho normal e o trabalho extra da funcionária do réu, a indemnização devida pelo seu despedimento, os tratamentos das declarações, salários e IVA e a responsabilidade do TOC (resposta dada ao facto 29º da Base Instrutória).

13. Em face da exigência do R., a A. procedeu à entrega ao R. de oito cheques, no valor total € 5.400,00[7], a fim de proceder ao pagamento da quantia reclamada pelo réu (alínea D) dos Factos Assentes).

14. Cheques esses assinados pelo A., sócio-gerente da Autora (resposta dada ao facto 68º da Base Instrutória).

15. Foi atendendo à necessidade de obter os documentos da empresa com extrema urgência para elaborar a candidatura a um projecto financeiro aos quadros comunitários e porque o réu apenas procederia à entrega dos documentos contabilísticos da autora mediante o dito pagamento, que a autora acabou por proceder à entrega ao réu dos cheques referidos (resposta dada ao facto 31º da Base Instrutória).

16. Nesta altura, o A. tinha sérios problemas de saúde, estando física e psicologicamente debilitado em consequência dum cancro que lhe tinha sido diagnosticado, tendo sido, recentemente, submetido a uma intervenção cirúrgica (resposta dada ao facto 32º da Base Instrutória).

17. Tudo acompanhado dum processo doloroso que envolveu o diagnóstico e remoção de um cancro, com todos os efeitos secundários daí resultantes (resposta dada ao facto 33º da Base Instrutória).

18. O que, a juntar à situação contabilista da empresa, deixou o A. verdadeiramente afectado (corresponde à resposta dada ao facto 34º da Base Instrutória).

19. Em 05/12/2007, a outra sócia da autora, D..., decidiu dar ordem à sua instituição bancária para que anulasse os cheques emitidos e entregues pela autora ao réu, embora um cheque já tivesse sido pago (alínea E) dos Factos Assentes).

20. Logo que lhe foi notificada a devolução dos cheques, o réu enviou à autora uma carta registada, datada de 12 de Fevereiro de 2008, em que se identificavam os sete cheques devolvidos e se reclamava o pagamento do seu valor (resposta dada ao facto 71º da Base Instrutória).

21. A A. recepcionou essa carta (resposta dada ao facto 72º da Base Instrutória).

22. O réu instaurou acção executiva contra a autora que com o nº. 1931/08.5TBAVR, que correu termos pelo 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, reclamando a quantia mencionada nos ditos cheques e, aquando da diligência de penhora realizada nesse processo em 15/07/08, em face da iminência da realização de penhora com remoção, a autora procedeu ao pagamento da quantia exequenda, acrescida das custas judiciais, no valor global de € 5.200 (alínea F) dos Factos Assentes).

23. A A. deduziu, em 02/09/2008, oposição a tal execução, alegando exactamente a mesma factualidade invocada na presente acção; oposição que terminou – foi indeferida – por o executado haver pago a quantia exequenda e a execução ter sido julgada extinta (cfr. certidão entretanto junta).

24. O pagamento da quantia pedida na acção executiva foi feito tendo em conta os danos que da efectivação da penhora resultariam para o estado de saúde do autor (resposta dada ao facto 35º da Base Instrutória).

25. Em face disso, nesse momento, teve o autor de ser conduzido às urgências do Hospital Infante D. Pedro, pelo estado de ansiedade em que se encontrava, atenta a vergonha e humilhação suscitada com a referida diligência de penhora e todo o aparato envolvente (resposta dada ao facto 36º da Base Instrutória).

26. Foi porque se apercebeu da debilidade do autor, que a identificada D... deu a ordem referida em 19. da matéria assente, com fundamento em vício na formação da vontade (resposta dada ao facto 37º da Base Instrutória).

27. A autora é fundadora da Associação de Produtores de Ovos Moles de Aveiro e a única exportadora de Ovos Moles, em Portugal, para os Estados Unidos da América e países de Língua Portuguesa (resposta dada ao facto 38º da Base Instrutória).

28. A autora, por referência às datas de 13/12/2005, 14/05/2007, 3/2/2010, 11/04/2011, bem assim às datas de 16/12/2005, 15/05/2010 e 11/04/2011, não era devedora de quaisquer quantias quer aos serviços de finanças, quer os serviços da segurança social (resposta dada ao facto 39º da Base Instrutória).

29. O R. não havia recebido do anterior contabilista da empresa, E..., o balancete de abertura relativo ao fecho final e o balanço geral das contas de 2003 (resposta dada aos factos 41º e 42º da Base Instrutória).

30. Os elementos em falta foram pedidos, por mais do que uma vez, pela autora e pelo réu ao anterior contabilista (resposta dada ao facto 43º da Base Instrutória).

31. Os elementos em falta juntos a folhas 471-506, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, foram entregues na data que consta dos mesmos- primeiro trimestre de 2007 (resposta dada ao facto 44º da Base Instrutória).

32. Durante os anos de 2004 a 2006, o réu praticou de forma regular e pontual os apuramentos periódicos de IVA, salários e Segurança Social (resposta dada ao facto 47º da Base Instrutória).

33. Em 2007, quando os elementos em falta lhe foram disponibilizados, o réu iniciou a tarefa de efectuar os processamentos contabilísticos (resposta dada ao facto 48º da Base Instrutória).

34. Na sequência da entrega dos elementos a que se vem fazendo referência, o réu voltou a contratar, em Maio/Junho de 2007, F... para que esta procedesse ao lançamento e encerramento dos anos de 2004, 2005 e 2006 (resposta dada aos factos 49º e 50º da Base Instrutória).


*

IV – Fundamentação de Direito

Na origem do litígio dos autos/recursos está, como já se explicou, uma vicissitude ocorrida na “liquidação” do contrato de prestação de serviços de contabilidade que havia vigorado entre a A. e o R..

Não se discute a natureza jurídica do contrato que vinculou A. e R. e tão pouco está em causa que o mesmo cessou a sua vigência/execução a partir de Agosto de 2007; foi justamente após este momento, como já se explicou, no âmbito do cumprimento da prestação, a cargo do R/contabilista, de entrega das pastas dos documentos à A. (empresa de quem o R. deixava de fazer a contabilidade), que ocorreu a vicissitude que está na génese do presente litígio.

Efectivamente – como se alegou e provou – o R. recusou-se a entregar tais pastas sem que lhe fosse pago o montante de € 5.425,25, que, segundo ele, lhe eram devidos e diziam respeito à sua contra prestação no contrato entretanto extinto.

Recusa esta que – independentemente de saber se o R. era ou não credor de tal exacto montante – foi, a nosso ver, abusiva e ilegítima.

A ser legítima, configuraria tal recusa um direito de retenção.

Sucede, porém, é o ponto, que um contabilista não goza do direito de reter e de não entregar os documentos/pastas da contabilidade enquanto não lhe forem pagos os créditos resultantes dos serviços de contabilidade.

Pelo seguinte:

Não se pode dizer que se esteja perante um “crédito resultante de despesas feitas por causa” dos documentos/pastas da contabilidade, isto é, não estamos perante a situação prevista no art. 754.º do C. Civil; não se pode considerar o contabilista, para tais efeitos, um depositário, ou seja, não o podemos integrar na previsão do art. 755.º/1/e) do C. Civil; e não vislumbramos no seu Estatuto (DL 452/99, de 5 de Novembro, com as alterações do DL 310/2009, de 26 de Outubro) um qualquer preceito que lhe confira tal direito de retenção[8].

Podemos pois dizer – é a 1.ª conclusão jurídica que os factos/autos nos suscitam – que a entrega dos 8 cheques (no montante global de € 5.400,00), tendo em vista satisfazer a exigência ilegítima do R. (de só entregar os documentos “contra” o recebimento do montante de que se dizia credor), foi feita sob coacção moral.

Por outras palavras, foi a A. ilicitamente ameaçada pelo R. com um mal – não lhe serem disponibilizados os documentos necessários à regular organização e continuação da sua contabilidade, com as consequências adversas daí resultantes – tendo o R. em vista, com tal ameaça ilícita, obter da A., como foi o caso, a emissão e entrega dos 8 cheques (com a ordem de pagamento que os mesmos encerravam).

Temos pois que a tal negócio cambiário – de emissão e entrega dos 8 cheques – é aplicável o disposto nos art. 255.º e 256.º do C. Civil, o mesmo é dizer, é tal negócio anulável.

E dizemos “é” e não “era” – tendo tal emissão e entrega ocorrido em data anterior a 18/10/2007 (data de vencimento do 1.º cheque) e tendo só agora (em 21/07/2009), muito para além do prazo de 1 ano referido no art. 287.º/1 do C. Civil, a questão sido judicialmente suscitada – por a caducidade do direito anulatório, em matéria não excluída da disponibilidade das partes (cfr. art. 333.º/2 do C. Civil), não ter sido suscitada pelo R..

O que – não obstar a caducidade ao funcionamento da coacção moral – é, neste momento, completamente vazio de sentido e relevo jurídico-práticos.

Tendo os montantes inscritos nos cheques sido já pagos, a coacção moral (nos negócios cambiários) perdeu toda a sua relevância prática; dito outro modo, a coacção moral só teria sido, do ponto de vista jurídico-prático, útil para anular as obrigações cambiárias incorporadas nos cheques recebidos pelo R. e para por essa forma obstar à exequibilidade dos títulos (cheques) contra si apresentados (o que, neste momento, é já impossível de acontecer).

Enfim, tudo isto para dizer que é apelando exclusivamente às regras do instituto do enriquecimento sem causa que se encontrará a solução jurídica do primeiro pedido formulado (julgado procedente e alvo da apelação do R.).

Para o que importa começar pela seguinte nota/explicação:

A A. está a pedir de volta (no 1.º pedido formulado) a quantia que ela própria pagou ao R. na execução referida no facto 22 deste acórdão; execução (para pagamento de quantia certa, intentada pelo aqui R. contra a aqui A.) em que a A. deduziu oposição à execução[9], razão pela qual não se pode passar em claro sobre a questão – nunca abordada nos autos[10] – do caso julgado[11].

Ensinava o Prof. Anselmo de Castro[12] que a acção executiva “existe para realizar o direito, com tanto se bastando e não para o declarar; logo, também esse fim não pode ser assinado à oposição e impor-se ao executado o ónus de a deduzir. A oposição está instituída, na e para a execução, tão só para os fins que a lei lhe fixa, quando o executado a queira deduzir, de suspender ou anular a execução e não para que em todo o caso seja tornado ou fique certo o direito do credor. Acrescentado ainda que “para se ter como excluída a acção de restituição do indevido na falta de oposição seria preciso ver-se na acção executiva uma acção declarativa do direito a ela acoplada, de que a oposição à execução funcionasse como contestação, e não o pode ser, por nenhum pedido de declaração do direito comportar o pedido de execução. Ou ver na acção executiva uma provocatio ad agendum para declaração negativa do direito do credor, isto é, o exercício de uma acção declarativa provocada.

Sem prejuízo da lógica irrepreensível de tais observações (acolhidas na doutrina e na jurisprudência), importa, todavia, reconhecer que há casos em que a pura lógica pode/deve ceder aos interesses em jogo, quando estes imponham uma solução diversa.

Se a lei processual estatui, para a oposição do executado, uma forma solene em que o princípio do contraditório é plenamente assegurado, não se vislumbra uma boa razão – como pertinentemente observa, a nosso ver, Lebre de Freitas[13] – para admitir que posteriormente uma outra acção com a mesma causa de pedir possa voltar a discutir a existência da obrigação exequenda.

“ (…) no caso de oposição de mérito, a procedência da [oposição] não se limita a ilidir a presunção estabelecida a partir do título e, embora sempre nos limites objectivos definidos pelo pedido executivo, goza de eficácia extraprocessual nos termos gerais, como definidora da situação jurídica do direito substantivo reinante entre as partes (…). A sentença proferida sobre uma oposição de mérito é assim dotada da força geral do caso julgado, sem prejuízo de, quando for de improcedência, os seus efeitos se circunscreverem, no termos gerais, pela causa de pedir invocada (negação dum fundamento da preensão executiva ou excepção peremptória contra ela), não impedindo nova acção de apreciação baseada em outra causa de pedir”[14].

Decorre do que se acaba de expor que o resultado dum processo executivo não é imutável, que o acto satisfativo do credor (pagamento) na execução não goza de irrevogabilidade análoga à do caso julgado material; que o desfecho da execução não surte eficácia fora do processo executivo, obstando, é certo, a uma nova acção executiva, mas não impedindo a propositura, pelo executado, duma acção de restituição do indevido.

Concretizando um pouco mais:

Significa – não representando a oposição à execução uma contestação da acção executiva e não estando por isso sujeita aos ónus de contestação, de impugnação especificada e de preclusão – que a acção de restituição do indevido se deve ter sempre como admissível e acessível ao executado que, mesmo por negligência, não deduziu qualquer oposição.

Significando ainda que não será assim – que não será admissível a acção de restituição do indevido – se a falta de causa da deslocação patrimonial (produzida na execução) invocada na acção de restituição do indevido tiver a ver com a mesma situação jurídica que foi invocada na oposição deduzida à execução e que já foi alvo de decisão de mérito (naturalmente, de improcedência).

Isto dito, revertendo ao caso dos autos, é exactamente por esta última situação não se verificar que, quando ao 1.º pedido formulado, não se verifica a excepção de caso julgado.

A aqui A. deduziu oposição à execução alegando exactamente a mesma factualidade invocada na presente acção; porém, como resulta do facto 23 deste acórdão, a oposição terminou, não por uma decisão de mérito, mas por, tendo o executado pago a quantia exequenda, a execução ter sido julgada extinta por ter ocorrido tal pagamento.

Enfim, podemos afirmar que existe identidade de causa de pedir entre a acção, quando ao 1.º pedido formulado, e a oposição à anterior execução, porém, tal causa de pedir não chegou a ser discutida de mérito na oposição e, por conseguinte, não se verifica a excepção do caso julgado, sendo assim inquestionável a admissibilidade da acção de restituição do indevido em que o 1.º pedido formulado se traduz.

Entrando pois – em face da não verificação da excepção do caso julgado – no “fundo” de tal acção de restituição, começar-se-á por observar que é na “causa” da relação subjacente às obrigações cambiárias que a falta de causa – ou a “sem causa justificativa” a que alude o art. 473.º do C. Civil – tem que ser encontrada.

Como já se referiu, a coacção moral perdeu toda a sua relevância jurídico-prática, na medida em que se reporta/circunscreve ao negócio cambiário e às obrigações abstractas pelo mesmo constituídas; ademais, nestes (nos negócios abstractos), a lei põe de lado a “causa”, pelo que qualquer apreciação, ao abrigo e nos termos do enriquecimento sem causa, nos remete para o negócio fundamental e subjacente.

Por outras palavras e encurtando razões, a coacção moral, que, a nosso ver, existiu, não interfere, não intervém, em rigorosamente nada na apreciação que tem que ser feita à luz do enriquecimento sem causa, ou seja, não haverá, em tese, qualquer contradição o considerar-se ter havido coacção moral na obtenção dos cheques e, por outro lado, o concluir-se que existiu “causa” para a deslocação patrimonial que o pagamento e execução dos cheques produziram entre os patrimónios da A. e do R..

A questão da “causa”, insiste-se, joga-se toda na relação subjacente, ou seja, a existência ou não de “causa” há-de no caso resultar exclusivamente dos termos da relação contratual que houve entre a A. e o R.

O que significa que, do ponto de vista das regras do enriquecimento (dos requisitos constantes dos art. 473.º e ss. do CC), estamos perante um caso bastante “prosaico”; que se reduz, em termos úteis, a fazer contas.

Conhece-se com bastante precisão a causa que legitimava/ria deslocações patrimoniais entre a A. e o R.; tal causa, inteiramente legítima e justificada, era o pagamento das retribuições dos serviços de contabilidade que o R. lhe prestava, pelo que, caso tais deslocações patrimoniais ultrapassem as retribuições que eram devidas, pode/deve falar-se em enriquecimento sem causa, em deslocação patrimonial sem causa justificativa.

O que se fica a saber “fazendo as contas”; e, fazendo-as, constatamos que não havia “causa” para uma deslocação patrimonial equivalente ao montante dos cheques (€ 5.400,00), mas tão só para uma deslocação patrimonial de € 1.926,45[15], o que significa que os restantes € 3.473,55 não tiveram “causa”, devendo falar-se, quanto a tais € 3.473,55 (e apenas quanto a tal montante), em enriquecimento sem causa e sendo o R. obrigado a restituí-lo (cfr. 473.º do C. Civil).

É o que resulta dos factos; que não revelam que haja alguma vez sido combinada entre A. e R. qualquer retribuição adicional além da avença mensal[16]; e que revelam pagamentos globais (ao longo de toda a relação contratual) no montante global de € 8.924,75, sendo assim ainda devidos, no momento em que o contrato cessou, mais € 1.926,45[17].

O que, repete-se, significa, em conclusão, que os restantes € 3.473,55 pagos (através dos 8 cheques emitidos e entregues ao R.) não têm causa que os justifique; que foram pagos “a mais” e indevidamente, assistindo assim à A. o direito à “repetição” de tal indevido – que é simultaneamente a medida do empobrecimento da A e do enriquecimento do R, constituindo assim a medida da obrigação de restituir a impor a este nos termos do art. 479.º do CC – ao abrigo da obrigação de restituir do enriquecimento sem causa (cfr art. 473.º e ss do C. Civil)

Em síntese, a apelação do R. – interposta da sua condenação no 1.º pedido formulado – procede parcialmente, pelas razões e nos termos acabados de expor.

A isto – procedência parcial da apelação do R. – se circunscreve a divergência com o decidido na 1.ª Instância; ou seja, a apelação dos AA. improcede total e completamente.

Efectivamente – e muito sucintamente – não assiste aos AA/apelantes o direito, por eles pretendidos, a uma qualquer indemnização por danos não patrimoniais[18].

É verdade que o R. fez uma ameaça ilegítima à A. (consistente na retenção e não entrega dos documentos da contabilidade) e que lhe exigiu e depois executou um crédito superior ao que lhe era devido; porém, não pode omitir-se, a liquidação que a A pretendia para a relação contratual – nada dever ao R. – também não era “verdade”.

Neste contexto, situando os AA. a ilicitude da responsabilidade extra-contratual deduzida – os receios, as ansiedades e as humilhações – no momento da diligência da penhora executiva, importa observar que, naquele momento, embora por outro e inferior montante, o R. era mesmo credor da A.

Assim, deve observar-se que é justamente para isto – para resolver divergências e definir com exactidão o que é devido – que existe o direito processual de oposição à execução (que a A. exerceu); e que, para evitar danos (também de reputação e ao bom nome) causados por diligências de penhora e por prosseguimento da execução, a lei prevê (art. 818.º/1 do CPC à época) que o executado possa prestar caução para suspender o processo de execução (faculdade que a A. não exerceu).

Ao que importa acrescentar e ter presente, no contexto dos factos, que o processo executivo havido e, dentro deste, a consequente diligência de penhora era algo que os AA. não podiam ignorar que, com ou sem razão, ia seguramente acontecer.

Embora sob coacção moral, como explicámos, haviam sido entregues pela A. ao R. 8 cheques para pagamento da quantia global de € 4.500,00, pelo que, tendo a A. dado ordem ao banco sacado para não pagar os cheques (só os últimos 7, uma vez que o primeiro deles já havia sido pago pelo banco)[19] – e tendo recebido, após isso, uma carta do R. a reclamar o pagamento de tais 7 cheques – era bastante seguro que àquela forma insuficiente de “acção directa” da A. (“anulando” os cheques, que continuavam em poder do R.) se seguiria a execução dos mesmos por parte do R..

Como já se referiu, a coacção moral (no negócio cambiário) gera uma mera anulabilidade, pelo que, sem prejuízo do disposto no art. 287.º/2 (que permite que, enquanto o negócio não estiver cumprido, a anulabilidade seja arguida sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção), se os AA. não queriam ser incomodados com uma execução e a consequente diligência de penhora, deveriam tomar a iniciativa judicial e pedir, em acção autónoma, que a “revogação” dos cheques (foi disto que se tratou, de revogar os cheques) fosse “confirmada/ratificada” pelo tribunal; aliás, era o que podia/devia ter sido feito mal foram emitidos e entregues os cheques ao R. (a solução de dar ordem de revogação só impedia, naturalmente, que o banco sacado os pagasse quando os mesmos lhe fossem apresentados a pagamento).

Ora, ponderando tudo isto – o concreto contexto e encadeamento dos factos, em que está em causa uma execução por um montante superior àquele que efectivamente estava, em termos fundamentais, em dívida – entendemos que a factualidade invocada/provada não pode gerar “danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”; como sempre é exigido pelo art. 496.º/1 do CC.

Importa ter presente que estamos no domínio da responsabilidade extra-contratual e o que se quer abranger com a expressão “ilicitude” prevista no art. 483.º do C. Civil[20]; efectivamente, os direitos subjectivos cuja violação preenche tal “ilicitude” são os direitos absolutos, nomeadamente os direitos sobre as coisas ou direitos reais, os direitos de personalidade, os direitos familiares e a propriedade intelectual, ou seja, exigir-se ilicitamente um crédito não preenche em princípio e só por si a “ilicitude” do art. 483.º do C. Civil.

Mais, dir-se-á ainda, nem sequer esta ilicitude – exigência ilícita dum crédito – foi cometida contra o A. B...; que não foi nem era executado na execução intentada pelo R. e identificada no facto 22 deste acórdão.

Não se questionam os seus problemas de saúde – que se lamentam – o seu agravamento, os receios e as ansiedades que toda a situação lhe causou, porém, é o ponto, para haver responsabilidade civil extra-contratual, tem que começar por haver um facto ilícito contra o lesado; e uma execução proposta contra uma sociedade e a consequente diligência de penhora de bens da sociedade não revestem o cometimento duma “ilicitude” do art. 483.º contra o seu sócio.

Finalmente, em relação à A/sociedade – pondo de lado a questão, controvertida na doutrina, de saber se uma sociedade é susceptível de sofrer danos não patrimoniais – a verdade é que também não se provaram quaisquer danos na sua reputação ou no seu bom nome, sejam/fossem eles indemnizados a título não patrimonial (como foram pedidos) ou como danos patrimoniais; apenas se provou (facto 28) que a A/sociedade tem “contas certas” com o Estado, o que, com o devido respeito, não significa que a execução e a diligência da penhora lhe hajam causado danos.

Concluindo pois, como se antecipou, a apelação dos AA. – interposta da absolvição do R. no 2.º pedido formulado – improcede total e completamente.


*


V - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação dos AA e parcialmente procedente a apelação do R. e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida que se substitui por decisão a condenar o R. a restituir/pagar à A. A..., Lda.[21], a quantia de € 3.473,55, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até integral e efectivo pagamento.

Custas na 1.ª instância por AA. e R. na proporção de 4/5 e 1/5; nesta instância, a apelação dos AA. a cargo deles e a apelação do R. a cargo de ambos, na proporção de 7/12 e 5/12, respectivamente.


Coimbra, 21/01/2014

 (Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)


[1] Alegou-se € 5.425,25, mas os cheques só somam € 5.400,00.

[2] É de todo evidente – daí nos ficarmos por uma nota de rodapé sobre o assunto – que os AA/apelantes não têm qualquer razão em tal invocação.

Segundo a alínea c) do art. 668.º/1 do CPC, constitui causa de nulidade da sentença os fundamentos estarem em oposição com a decisão, porém, quando se fala, a tal propósito, em “oposição entre os fundamentos e a decisão”, está-se a aludir à contradição real entre os fundamentos e a decisão; está-se a aludir à hipótese de a fundamentação apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto.

Assim, em face do sentido de tal causa de nulidade de sentença, é de todo evidente que só por manifesto lapso se pode invocar tal vício de nulidade em relação a uma sentença em que os fundamentos, de facto e de direito, se encontram expostos, em que se conclui em perfeita harmonia com o exposto e em que se conheceu, sem excesso ou omissão, das questões devidas.

Insiste-se, o que os AA/apelantes verdadeiramente invocam e imputam à sentença recorrida – sem razão, como infra se explicará – é um erro na previsão ou na estatuição, é uma aplicação errada do direito aos factos dados como provados

Improcede pois a nulidade de sentença invocada.
[3] Cfr. 511.º/1 do CPC.

[4] Insistimos sempre neste ponto – o que nos autos se pede – uma vez que se percebe, pelas diversas peças processuais produzidas nos autos, que nunca se atentou neste ponto, isto é, que o pedido restringe o objecto do processo, podendo fazer com que extensas petições iniciais se reduzam, em termos jurídico-processuais, a muito pouco, a uma causa de pedir bem estreita.
[5] Sobre a factualidade, fora de toda a dúvida, controvertida e relevante.
[6] Até deu azo a um “desnecessário” incidente de falsidade; “desnecessário”, por a impugnação da letra e da assinatura dum documento particular, como é o caso, dispensarem tal incidente.
[7] Rectifica-se, naturalmente, o que consta dos factos provados (€ 5.425,25), uma vez que os 8 cheques, cada um no montante de € 675,00, somam apenas € 5.400,00.

[8] O actual Estatuto (DL 310/2009, de 26 de Outubro) diz tão só no artigo 56.º (deveres recíprocos dos técnicos oficiais de contas) o seguinte:

1 - Nas suas relações recíprocas, constituem deveres dos técnicos oficiais de contas colaborar com o técnico oficial de contas a quem sejam cometidas as funções anteriormente a seu cargo, facultando-lhe todos os elementos inerentes e prestando-lhe todos os esclarecimentos por ele solicitados.

2 - Os técnicos oficiais de contas, quando sejam contactados para assumir a responsabilidade por contabilidades que estivessem, anteriormente, a cargo de outro técnico oficial de contas, devem, previamente à assunção da responsabilidade, contactar, por escrito, o técnico oficial de contas cessante e certificar-se de que os honorários, despesas e salários inerentes à sua execução se encontram pagos.

3 - A inobservância dos deveres referidos no número anterior constitui o técnico oficial de contas, a sociedade profissional de técnicos oficiais de contas ou a sociedade de contabilidade na obrigação de pagamento dos valores em falta, desde que líquidos e exigíveis.

4 - Sempre que um técnico oficial de contas tenha conhecimento da existência de dívidas ao técnico oficial de contas anterior, ou de situação de reiterado incumprimento, pela entidade que o contratou, das normas legais aplicáveis, não deve assumir a responsabilidade pela contabilidade.

Dizendo na versão inicial (DL 452/99, de 5 de Novembro) – vigente à data dos factos – no mesmo artigo 56º (deveres recíprocos dos técnicos oficiais de contas), o seguinte:

1. Nas suas relações recíprocas, constituem deveres dos técnicos oficiais de contas colaborar com o técnico oficial de contas a quem sejam cometidas as funções anteriormente a seu cargo, facultando-lhe todos os elementos inerentes e prestando-lhe todos os esclarecimentos por ele solicitados.

2. Os técnicos oficiais de contas quando assumam a responsabilidade por contabilidades anteriormente a cargo de outro técnico oficial de contas, devem certificar-se que os valores provenientes da sua execução estão inteiramente satisfeitos ao técnico oficial de contas cessante, sob pena de se assumirem perante este pelos montantes em falta.

Significa isto que não existe no Estatuto dos TOC, agora e antes, uma norma com conteúdo semelhante ao art. 96.º (valores e documentos do cliente) do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei 15/2005, de 26 de Janeiro), segundo o qual:

1 - O advogado deve dar a aplicação devida a valores, objectos e documentos que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores deste que tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência, e apresentar nota de honorários e despesas, logo que tal lhe seja solicitado.

2 - Quando cesse a representação, o advogado deve restituir ao cliente os valores, objectos ou documentos deste que se encontrem em seu poder.

3 - O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objectos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objectos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízos irreparáveis.

4 - Deve, porém, o advogado restituir tais valores e objectos, independentemente do pagamento a que tenha direito, se o cliente tiver prestado caução arbitrada pelo conselho distrital.

5 - Pode o conselho distrital, antes do pagamento e a requerimento do advogado ou do cliente, mandar entregar a este quaisquer objectos e valores quando os que fiquem em poder do advogado sejam manifestamente suficientes para pagamento do crédito.
[9] Como o R. logo referiu no art. 48.º da sua contestação.
[10] A ponto de ter sido necessário pedir, agora, a certidão do que se “passou” na execução/oposição.

[11] Mesmo quando não se verifica – como será o caso – deve dizer-se, quando houve um anterior processo entre as mesmas partes sobre o mesmo tema, a razão porque não se verifica o caso julgado.
[12] In Manual da Acção Executiva, pág. 291/300, num item que sugestivamente intitulou de “O problema da oposição à execução como único meio de defesa do executado contra execuções injustas ou como meio com fins próprios ou específicos não excludentes do meio comum da acção de restituição do indevido”.
[13] In Acção Executiva, pág. 165 e ss..
[14] Lebre de Freitas, in Acção Executiva, pág. 168.
[15] O R., esclarece-se, tinha o direito de exigir tal montante; não tinha era, por ser credor de tal montante, o direito de retenção sobre as pastas de documentos da A.; são, naturalmente, coisas/direitos diferentes.
[16] O que consta dos factos 33 e 34 deste acórdão é a tal propósito – ter sido combinada uma retribuição adicional – totalmente inócuo; aliás, não se referem, em tais factos, trabalhos que estejam para além da prestação normal e típica dum contabilista, apenas se dizendo que o que não foi feito antes e no momento próprio foi feito depois e concentradamente (mas tudo compreendido dentro dos trabalhos que tinham sido contratados e que integram o que é normal um contabilista ter que fazer).

[17] É o que no fundo resulta da conta corrente apresentada pelo R. (junta de fls. 515 a 517), devidamente expurgada do “injustificado” e inexplicado débito de € 3.240,00 constante da mesma.

[18] Direito/pedido cuja redacção continha três imperfeições técnicas:

Uma 1.ª, na forma global como foi formulado; efectivamente, quando dois AA. pedem uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um deles, devem pedir montantes individuais para cada um deles e não um pedido global (e não discriminado) para os dois.

Uma 2.ª, que tem a ver com a regra que constava do art. 661.º/1 do CPC e que agora consta do art. 609.º do nCPC, segundo a qual a formulação do pedido reveste a maior importância porque o juiz não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pede; o que significa que um pedido de condenação da outra parte em valor não inferior € 10.000 acaba por significar que o tribunal, perante tal pedido, só pode condenar no máximo em € 10.000, uma vez que, doutro modo, isso equivaleria a condenar em quantidade superior ao único montante certo que se pediu.

Uma 3.ª, mais de ordem substantiva, que tem a ver com o facto de se pedir que o tribunal proceda à liquidação e, por outro lado, se pedirem juros desde a data da citação (chama-se a atenção para o art. 566.º/2 do C. Civil).
[19] Ordem que, segundo a A., foi de revogação por “vício na formação da vontade”, constando, porém, do verso dos cheques, como motivo, o “furto”; o que significa, não se imputando qualquer lapso ao banco sacado, que algo que não foi devida e completamente explicado – o que, em face do desfecho de improcedência do pedido indemnizatório, também não é relevante – se terá entretanto passado.
[20] Com a 1.ª modalidade de ilicitude; é esta, seguramente, que no caso estará em causa.
[21] Naturalmente, apenas à A./sociedade; “rectifica-se” – estando a rectificação compreendido no objecto do recurso do R. – a nulidade de sentença consistente em ter-se condenado em algo diferente do que se pediu; como é evidente, o 1.º pedido estava formulado apenas e só pela A/sociedade.